Quem, de fato, performa o mito de Medeia no divórcio ou dissolução de união estável?
terça-feira, 29 de abril de 2025
Atualizado em 28 de abril de 2025 13:47
O mito de Medeia é contundente ao versar a miséria humana diante do abandono/perda, da separação. A tragédia narrada por Eurípedes retrata a feiticeira Medeia, então esposa do herói Jasão, irremediavelmente colérica diante da separação e do propósito de Jasão em desposar Glauce, princesa de Corinto. Tomada pelo ódio, Medeia presenteia a noiva com um vestido, o qual incendeia quando provado, matando Glauce e seu pai. Não contente, Medeia ainda mata os filhos que teve com Jasão e foge para Atenas. Jasão, completamente destroçado, se prostra à sombra de sua nave Argo, já avariada, sendo morto pela proa que despenca1.
Esse mito tem sido trabalhado na psicologia e psicanálise sempre pelo viés do feminino, para problematizar a mulher enquanto mulher/esposa/companheira/amante e/ou mãe2. Há até mesmo quem relacione Medeia à alienação parental3. Medeia seria, assim, a síntese da mulher fatalmente ferida em seu amor, inconsolável pela perda/abandono e separação, cega de ódio, sedenta por vingança daquele a quem devotou todo seu afeto, dedicação e intelecto, sacrificando até mesmo suas origens4.
No entanto, a despeito de sempre ser chocante que uma mãe cometa uma atrocidade contra a própria prole em uma circunstância de separação, a experiência aponta que são os pais/homens os verdadeiros coléricos inconsoláveis5. Não há uma única semana no país sem notícias de um homem que atenta contra a vida da ex-esposa/companheira e/ou da prole, infelizmente muitas vezes obtendo êxito6. A verdadeira noção estatística disso, no entanto, é incompleta. As apurações mais detalhadas circunscrevem-se ao feminicídio, e quanto à violência contra crianças e adolescentes as apurações mais confiáveis não identificam especificamente os casos de filicídio e tampouco a autoria do crime conforme gênero, idade, grau de instrução entre outros critérios7.
Para além do filicídio, são inúmeros os casos, na vivência do direito de família, que mostram a instrumentalização da prole pelo pai/ex-esposo/companheiro, sacrificando-a em seu desenvolvimento psíquico-emocional (uma espécie de morte), para atingir a mãe/ex-esposa/companheira: desde atos aparentemente inofensivos (combinar "segredos" que não podem ser ditos à mãe, fazer passeios ao invés de dar continuidade à rotina escolar, negligenciar a rotina de cuidados básicos como alimentação e sono, ser permissivo com uso de telas, entre outros, para, supostamente, ser um "pai legal"), até atos mais graves, como abandono afetivo e patrimonial, negligência capaz de comprometer a integridade da criança e adolescente e/ou maus-tratos psicológicos e emocionais (ainda que velados) e físicos durante a convivência.
Essa realidade não é só alarmante pelo que representa em relação à criança e adolescente, as mais indefesas vítimas de uma tal conduta, mas pelo fato de que, na vivência da advocacia na área, é notória a falta de apuração adequada de dados atinentes, seja pela ineficiência ou limitação de estudos sociais e perícias psicológicas realizadas nos processos de família, seja pela deslegitimação da narrativa das mães/mulheres, ou, ainda pior, por uma postura judicial ora indiferente, ora manifestamente refratária ao enfrentamento de tais questões, no mais das vezes sob o manto do discurso de "objetividade" na "busca da solução do conflito".
Para além da discussão sobre a pertinência da lei de alienação parental (lei 12.318/10 - LAP), cujo conteúdo abarca apenas uma parte da conduta de genitores coléricos (inclusive a instrumentalização da própria LAP), há uma "morte": todo divórcio/dissolução turbulento/a, porque o pai/ex-esposo/companheiro instrumentaliza a prole para atingir a mãe/ex-esposa/companheira, "mata" aspectos e potencialidades psíquicas e emocionais das crianças e adolescentes envolvidos, impedindo seu pleno desenvolvimento em franca violação à Constituição e ao ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente.
A não apuração desses dados serve à continuidade dos fatos que lhe são subjacentes. Como uma patologia cujo sintoma se percebe, mas em relação à qual nada se apura, acaba que nenhum remédio adequado é prescrito. Todos se mostram paliativos.
Uma segunda camada dessa realidade diz respeito à perpetuação da visão estrutural machista no âmbito judicial: o mito de Medeia atribuído à mulher que "ousa" se separar e, ainda mais, litigar é notório. Percebe-se isso na redação das peças de causídicos(as) que se prestam à reprodução desse discurso, representando pais/ex-esposos/companheiros praticamente "canonizados", como também em decisões judiciais que aderem a tal discurso ainda que inconscientemente. O resultado há muito é conhecido. A despeito de avanços realizados, estamos longe de um judiciário infenso à estrutura machista que reiteradamente valida narrativas masculinas e deslegitima as femininas, muitas vezes resultando em prejuízo a crianças e adolescentes.
Não por acaso, o CNJ elaborou, por meio de Grupo de Trabalho instituído pela portaria 27/21, o chamado Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero8, a partir do qual resultaram instituídas as diretrizes estabelecidas pela resolução 492/239. O propósito do CNJ é concretizar, no âmbito do judiciário, não só os ditames constitucionais relativos à vedação de qualquer discriminação e à promoção de igualdade entre os gêneros, como também efetivar os direitos humanos desde uma perspectiva interseccional.
Na prática, o protocolo CNJ busca combater as questões centrais de desigualdade de gênero: (i) desigualdades estruturais; (ii) divisão sexual do trabalho; (iii) estereótipos de gênero; (iv) violência de gênero (em todos os sentidos, inclusive a processual).
E é interessante notar que, quanto aos estereótipos, no tópico "Pensando sobre a operação de estereótipos no direito e na atividade jurisdicional - exemplos e questões", o protocolo CNJ aborda especificamente a possibilidade do estereótipo influenciar a apreciação de determinado fato considerando apenas evidências que reafirmam, por exemplo, o estereótipo "em disputas de guarda envolvendo acusações de alienação parental, a partir da ideia preconceituosa de que as mulheres são destemperadas, vingativas, volúveis e menos racionais do que os homens"10.
No entanto, conforme o Banco de sentenças e decisões com aplicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, mantido pelo CNJ11, até o momento, no Brasil inteiro, há registro de apenas 408 sentenças/decisões no âmbito de direito de família guiando-se pelo protocolo.
Em tal cenário, "reflexões críticas" advertindo das "armadilhas" presentes nos protocolos CNJ de perspectiva de raça e gênero, sob o argumento, em suma, de "vieses" capazes de comprometer as melhores das intenções, acabam se mostrando despropositadas.12
A realidade efetiva, de quem atua no âmbito do direito de família e, sobretudo, lida com casos envolvendo violência doméstica, e da jurisdicionada, mulher e mãe, está longe do ideal conjecturado em tal protocolo CNJ. No imaginário social e judicial ainda é atribuído à mulher o lugar de Medeia, contrariando a experiência, convenientemente jamais apurada em dados precisos, da conduta colérica e nefasta de pais/ex-esposos/companheiros em relação à própria prole, instrumentalizando-a para atingir suas ex-esposas/companheiras, senão para causar intenso e perene sofrimento, ao menos para causar constante angústia.
1 EURÍPIDES. Medeia. Edição bilingue. Tradução, posfácio e notas Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2010.
2 Vide, exemplificativamente: SCHAFFA, Sandra. Medeia, o feminino, in Jornal de Psicanálise, São Paulo, 42(76): 51-64, jun. 2009; DELUIZ, Cristiana. MEDEIA: para além do mito, uma mulher em atos, in EVOCATIO Revista Luso-Brasileira de Filosofia, Artes e Cultura, V. 4, n. 11, 2024; ROSSI, Jean Pablo; SANTOS, Cláudia Raquel Padovani dos; BRESCANSIN, Lívia Y.. "Entre o amor e o ódio": contribuições do mito da "Medéia" de Eurípedes para o estudo da ambivalência materna, in APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação, Ano XIV, n. 23, jan./jun.2020, pp. 153-174; MARCOS, Cristina Moreira; SILVA, Thaís Limp. Madeleine e Medeia: mulheres além da maternidade, Psicologia em estudo, disponível aqui. Acesso em 9/4/25;
3 MATIOLI, Aline Spaciari; MARTINEZ, Viviana Velasco Carola. De Medeia à alienação parental: traduções trágicas para o excesso pulsional, in Tempo psicanalítico, v. 53, n. 2, p. 164-193, dez. 2021, disponível aqui. Acesso em 9/4/25.
4 O Rei Eetes, pai de Medeia, havia prometido a entrega do velocino a Jasão mediante o cumprimento de uma tarefa impossível. Medeia, encantada por Jasão, o auxilia com seus feitiços e Jasão consegue o velocino, fugindo ambos em sua nave Argo. Para dissuadir o pai da perseguição, Medeia leva seu irmão pequeno junto, despedaçando-o e jogando pedaços ao mar de forma que seu pai desiste da perseguição a Jasão para juntar o que pode do filho em vista de um funeral. MATYSZAK, Philip. Os mitos gregos e romanos: um guia das narrativas clássicas. Tradução de Camila Aline Zanon. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2022, p. 139.
5 As taxas de feminicídio falam por si: conforme apuração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2023 1.463 mulheres foram vítimas de feminicídio no Brasil, representando um, crescimento de 1,6% comparado ao ano anterior, e o maior número já registrado desde a lei Maria da Penha. Vide publicação especializada disponível aqui. Acesso em 9/4/25.
6 Uma das últimas notícias mais impactantes diz respeito ao caso do menino Theo, no Rio Grande do Sul, cujo pai, Tiago Ricardo Felber, após tentar esganar o filho um dia antes, decidiu lançar a criança de 5 anos de uma ponte. Segundo narrativa do próprio pai, autor do filicídio, ele fez "uma loucurinha", e em seguida gravou áudio dizendo "aguenta o coração para o resto da vida, atirei o Théo 'debaixo' da ponte agora". A motivação do crime: vingança contra a ex-esposa, mãe do menino. Vide as notícias veiculadas: disponível aqui, e aqui. Acesso em 9/4/25.
7 Exemplificativamente: Panorama da Violência Letal e Sexual contra Crianças e Adolescentes no Brasil, desenvolvido pela UNICEF Brasil a partir do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), disponível aqui. Acesso em 9/4/25; e o relatório anual Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), disponível aqui. Acesso em 9/4/25, o qual também toma por base a apuração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre outros dados. Há, outrossim, outro estudo viabilizado pelo IPEA, de Helder Ferreira, sob o título "O crescimento dos homicídios de crianças e adolescentes no brasil: 1980 a 2003", disponível aqui. Acesso em 9/4/25.
8 Disponível aqui. Acesso em março de 2025.
9 Publicada no DJe/CNJ 53/23, de 20/3/23, p. 2-4 e disponível aqui. Acesso em março de 2025.
10 Vide, disponível aqui, página 29.
11 Vide, disponível aqui. Acesso em 9/4/25, mesma data da pesquisa no banco de dados respectivo.
12 Refiro-me ao artigo As armadilhas dos julgamentos sob 'perspectiva' propostas pelo CNJ, de Lênio Luiz Streck, veiculado pelo Consultor Jurídico em 5/12/24, disponível aqui , último acesso em 9/4/25. Em contraponto dialógico ao artigo de Lênio Streck, ver os artigos que se sucederam também no Consultor Jurídico: SEVERO, Valdete Souto. Por que protocolos para julgamento com perspectiva racial e de gênero? Diálogo necessário, veiculado em 19/12/24, disponível aqui, último acesso em 9/4/25, e SEVERI, Fabiana. Julgamentos sob perspectiva: análise sobre armadilhas citadas por Lenio Streck, veiculado também em 19/12/24, disponível aqui, último acesso em 9/4/25.