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Entre a letra da lei e os laços de afeto

terça-feira, 13 de maio de 2025

Atualizado em 12 de maio de 2025 14:32

Em 1966, por força de sentença judicial, Roberto foi declarado pai adotivo de João, então com apenas 12 anos de idade. O menino cresceu compartilhando a vida ao lado do pai e seus irmãos adotivos, entrelaçados pelo afeto genuíno de uma família comum.

Decorridas quase seis décadas desde sua adoção, João, motivado pelo forte elo com seus familiares, e pelo desejo de todos que ele, assim como seus irmãos, também obtivesse a cidadania portuguesa - direito oriundo de sua ascendência paterna e já reconhecido aos demais membros da família - formalizou pedido de inclusão dos nomes de seus avós paternos adotivos junto ao Registro Civil de Pessoas Naturais.

A solicitação foi apresentada na expectativa de ver seu pedido atendido de forma mais célere e menos custosa, tendo em vista a inexistência de dúvidas quanto à legalidade de seu processo de adoção. Para a surpresa de todos, contudo, o pleito administrativo foi indeferido, sob o fundamento de que "a adoção feita consoante o Código Civil de 1916 era resultado do vínculo exclusivo entre adotante e adotado, não se estendendo aos avós, no caso, ascendentes do adotante".

A recusa à complementação dos registros familiares pela circunscrição competente parece se respaldar na aplicação de regras de direito intertemporal, que buscam resolver conflitos de leis no tempo, e determinam que um ato realizado na vigência de determinada norma se submeta à regulação por ela prevista, o que à primeira vista pode parecer suficiente para justificar a resposta negativa ao pleito de João.

Contudo, a recusa embasada no respeito à legislação vigente à época da realização da adoção e fazendo referência a ato jurídico perfeito ocorrido sob a égide de uma Constituição e um Código Civil elaborados no século passado e já revogados parece não admitir que o Direito não é estático, e sim, dinâmico, e ignora garantias constitucionais fundamentais como o da plena igualdade entre os filhos biológicos e adotivos.

Para melhor compreensão do tema, importante lembrar que o instituto da adoção passou por significantes transformações no Brasil, sobretudo com o advento Constituição Federal e sua regulamentação pelo ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/1990), e ainda, com a entrada em vigor da lei nacional da adoção (lei 12.010/2009), esta última que trouxe o conceito de família extensa ou ampliada (também referida como grande família, ou família estendida), aquela que, para além do núcleo de pais e filhos ou da unidade do casal, é integrada por parentes com os quais a criança ou o adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade.

Se, por um lado, os revogados Código Civil de 1916 e Código de Menores (lei 6.697/1979) restringiam o parentesco apenas ao adotante e ao adotado, pela figura da chamada "adoção simples", que se diferenciava da "adoção plena", por outro, tanto o § 6º do art. 227, da Constituição Federal de 1988, quanto o Código Civil de 2002, expressamente previram a proibição do tratamento desigual entre os filhos, nos seguintes termos: "Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação".

Não fosse o suficiente, especificamente quanto aos ascendentes do adotante, o ECA previu a obrigatoriedade do vínculo de parentesco, com registro na certidão de nascimento do adotado, ao determinar: "Art. 47. O vínculo da adoção constitui-se por sentença judicial, que será inscrita no registro civil mediante mandado do qual não se fornecerá certidão. §1º A inscrição consignará o nome dos adotantes como pais, bem como o nome de seus ascendentes".

No caso aqui comentado, a adoção de João ocorreu sob a vigência de uma norma que limitava os efeitos da adoção, inclusive não havia a previsão do desligamento do vínculo jurídico do adotado com sua família biológica, à exceção do pátrio poder, conforme expressamente previsto no art. 378, do Código Civil de 1916: "Os direitos e deveres que resultam do parentesco natural não se extinguem pela adoção, exceto o pátrio poder, que será transferido do pai natural para o adotivo".

Como se percebe, a decisão do legislador à época refletia uma visão mais restritiva do instituto da adoção, que buscava preservar, ao menos formalmente, os laços jurídicos do indivíduo com sua família biológica e atribuía à adoção um caráter eminentemente contratual. 

Posteriormente, contudo, a norma agora já revogada não mais traduziria o contexto da vida real e os valores da sociedade brasileira, em que a família se revela também fundamentada nos laços de afetividade entre seus membros, obstaculizando qualquer tentativa de discriminar àqueles que, porventura, sejam filhos adotivos e, portanto, oferecendo a esses o mesmo tratamento dos considerados biológicos.

Assim, a partir da vigência da Constituição Federal de 1988, os efeitos da igualdade entre os filhos passaram a se aplicar imediatamente, o que não significa violação ao ato jurídico perfeito, pois a mudança normativa não poderia alcançar, como não alcançou, as condições e requisitos para validade dos atos de adoção anteriores à nova norma. É preciso destacar que as partes não são livres para estabelecer como quiserem os efeitos jurídicos de seus atos. Sua vontade age na formação do ato, mas não em todos os seus efeitos. E, a respeito especificamente dos efeitos da adoção, menos ainda. Como leciona Sergio Gischkow Pereira:

(...) É certo que o efeito imediato não pode contrariar a Constituição Federal quando esta protege o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. Porém, estas categorias perdem sentido em se tratando de lei de estatuto legal, como já se viu. Se isto não bastasse, tem-se que: a) a proteção ao ato jurídico perfeito diz com as condições e requisitos que regeram a constituição do referido ato; ora, a igualdade dos adotivos nada tem a ver com tais condições e requisitos, mas sim com efeitos do ato em instante posterior; b) nem haveria como falar em um direito adquirido a ter permanentemente um filho em status inferior, como que uma parcela de filho, um pedaço de filho, um-terço ou um-quarto de filho e assim por diante (o que mostra os gravíssimos problemas éticos com que se depararam os que almejam sustentar a não extensão da igualdade constitucional às adoções precedentes)1.

Aqui não se ignora que no caso de João o direito gerado foi exercido em consonância às normas da época. Isto é, o ato jurídico perfeito da adoção foi configurado em observância fiel à lei então em vigor. Ocorre que o que se extrai, em sua essência, vai além da mera interpretação estrita da lei revogada.

De tal maneira, como bem explicam Vitória de Castro Capute e Walsier Edson Rodrigues Júnior ao tratarem da certidão civil e efeitos sucessórios da adoção, todas as certidões solicitadas a partir da vigência da Constituição devem, independentemente de quando ocorrida a adoção, consignar como pais os adotantes, e ainda, quanto aos pais dos adotantes, que antes não possuíam vínculos e sequer constavam nas certidões de inteiro teor, devem ser incluídos nas certidões, desde que seja solicitada a retificação do registro.2

A sacralização das noções de ato jurídico perfeito e de direito adquirido é um equívoco, e não pode impedir o legislador de promover reformas normativas exigidas pelo próprio tempo e valores prevalentes na sociedade3. Tanto que desenvolvidas teorias que identificam graus distintos de retroatividade de normas do direito civil4.

Em consonância com o direito vigente, com a adoção, independente da época de sua ocorrência, o filho adotivo se torna filho e como tal não pode ser diferenciado dos filhos biológicos.  Desta maneira, "os ascendentes do adotante se tornam parentes do adotado, como de igual os colaterais do adotante se tornam parentes do adotado, a exemplo do irmão do adotante que se torna tio do adotado e o pai do adotante que se torna avô do adotado".5

É de se ressaltar, ainda, que no caso aqui trazido houve a concordância expressa de todos os irmãos envolvidos para a inclusão dos nomes de seus avós paternos no assento de nascimento de seu irmão adotivo, cuja retificação possuía finalidade precipuamente existencial.

E conclusão adversa também não se sustentaria mesmo sob objeção de algum irmão. Com base nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, previstos no art. 226, § 7º, da CF, que impõem o acolhimento igualitário tanto dos vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos quanto daqueles originados da ascendência biológica, é vedada qualquer discriminação entre as espécies de filiação.

Como bem resume Gustavo Tepedino, "na complexidade dos arranjos familiares atuais, mostra-se de fato urgente a afirmação da família (não como instituição previamente imposta por laços sanguíneos, mas como comunidade instrumental ao pleno desenvolvimento da personalidade de seus integrantes, destinada a` efetiva promoção da dignidade de cada um deles)".6

Neste contexto, o direito à identidade familiar e a respectiva função social do registro civil devem garantir que a certidão de nascimento, mais do que um documento formal, seja também um instrumento de preservação da história e da identidade das pessoas - valendo destacar, inclusive, que daí se justifica a mutabilidade dos registros.

Assim é que zelando pela ordem jurídica e pelo interesse público, a i. promotora de Justiça responsável pelo caso de João em sede judicial, manifestou-se da seguinte forma:

"A conclusão é que não existe mais a imposição de certas restrições da legislação revogada e ultrapassada para que se possa examinar hipótese que reclama a aceitação jurídica da igualdade dos filhos. E, in casu, todos são idosos e, como vemos, unidos, constituindo uma família, o que, hoje, é difícil de se ver, e têm em seus registros os nomes dos avós paternos. (...) Por que motivo não admitir a inserção dos avós paternos adotivos no assento de [João]? (...) Atualmente, já se admite uma série de situações que não caberiam em outras épocas, tais como, casamento homoafetivo, cujo casal pode até adotar, inseminação caseira, paternidade/maternidade socioafetiva, enfim, diversas relações jurídicas que antes não seriam admitidas".

Não por outro motivo, João e sua família puderam comemorar o deferimento do pleito de retificação da sua certidão de nascimento concedido perante o d. juízo de Registros Públicos. A decisão demonstra a sensatez de um Poder Judiciário que evolui conforme as demandas sociais, renovando as esperanças de que pedidos de mesma natureza, apoiados em motivações pessoais legítimas, sobretudo quando sequer prejudicais a terceiros e amparados em legislações que refletem avanços da sociedade, possam igualmente ser acolhidos.

Que no próximo Dia Nacional da Adoção, celebrado em 25/5, seja uma oportunidade para aumentar a visibilidade sobre essa forma de constituição de vínculo familiar, e de se refletir sobre a tutela jurídica dos interesses dos adotantes e sobretudo dos adotados, com efetivação do direito à convivência e constituição de família, com todos os efeitos correlatos previstos em nosso ordenamento.

___________

1 PEREIRA, Sérgio Gischkow. A adoção e o direito intertemporal. In: CAHALI, Yussef Said; CAHALI, Francisco José (org.). Doutrinas essenciais. Família e Sucessões, Volume IV. São Paulo: Revista dos Tribunais, págs. 845-846.

2 CAPUTE, Vitória de Castro; RODRIGUES JÚNIOR, Walsir Edson. Adoção simples: conteúdo da certidão em resumo e efeitos sucessórios a partir da Constituição Federal de 1988. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 12, n. 3, 2023. Disponível aqui.

3 A disciplina da família pela Constituição da República de 1988 respondeu às mudanças experimentadas pela sociedade no curso do século XX, sobretudo quanto à emancipação feminina, à revisão dos papéis de gênero, ao reconhecimento de efeitos jurídicos às conjugalidades informais, à igualdade entre os filhos e à tutela das pessoas vulneráveis. Um tempo em que as tradições e as instituições que dirigiam a organização e o processo de construção da vida familiar perderam hegemonia, cedendo espaço para novos modelos de família emergentes de minorias étnicas, classes sociais menos favorecidas economicamente ou, ainda, mais recentemente, de parceiros homossexuais. MENEZES Joyceane Bezerra de; DE CICCO Maria Cristina; BODIN DE MORAES Maria Celina. Constituição da República de 1988: elementos para uma teoria constitucional da família. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 13, n. 3, 2024. Disponível aqui.

4 A respeito, ver PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil - v. I / Atualiz. Maria Celina Bodin de Moraes. - 30. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2017, págs. 126 e seguintes; e ainda, OLIVA, Milena Donato; TEPEDINO, Gustavo. Teoria Geral do Direito Civil; org. TEPEDINO, Gustavo. Fundamentos do Direito Civil. Rio de Janeiro, Forense: 2020, págs. 88 e seguintes.

5 NETTO LÔBO, Paulo Luiz. Código Civil comentado. AZEVEDO, Álvaro Villaça (Coord.). São Paulo: Atlas, 2003. v. XVI, p. 182, apud MADALENO, Rolf. Direito de família, 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

6 TEPEDINO, Gustavo. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCIVIL, Belo Horizonte, v. 27, págs. 11-12, jan/mar 2021. Disponível aqui.