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Reformar para nada: Novamente e como sempre a violação dos direitos de crianças (ou sobre como violar o ECA)

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Atualizado em 27 de maio de 2025 13:58

Ainda lembro do ano de 2002, durante a graduação em Direito, e houve a aprovação do Código Civil: a disciplina que já me conquistava, sofreu grande alteração legislativa. Esse evento foi um pouco traumático para mim, estudante, porque eu já estava na metade final do curso e já tinha passado por vários dos ramos de Direito Civil que foram alterados. Mas não houve alternativa, senão refazer os estudos.

Com o avançar da carreira acadêmica, o olhar sobre o passado agregou o inconformismo de termos tido um Código Civil em 2002 que, apesar das alterações e adaptações inerentes ao processo legislativo, ainda era um texto conectado com décadas anteriores. Essa relação com o passado era particularmente grande nos livros de Família e Sucessões, áreas em que me especializei, porque a concepção de família havia sido profundamente alterada pela Constituição da República de 1988, com a abertura cultural desse conceito para o Direito, e pela adoção de novas bases sobre infância e adolescência com os princípios do melhor interesse e da proteção integral, igualmente presentes na Constituição de 1988.

A despeito das insuficiências, o trabalho doutrinário e jurisprudencial têm sido capazes de adaptar o texto do Código Civil às normas constitucionais e às naturais mudanças sociais e históricas. Por isso, parte dos "civilistas" se questiona se, afinal, é necessário grandes modificações no Código atual.

Me junto a esse grupo de doutrinadores, acadêmicos e juristas que acham que o texto atual do Código Civil tem aptidão de ser mantido, porque ele não tem incongruências graves com a Constituição e, ao menos em Direito de Família, foco da minha apresentação, ele ainda é capaz de atender às situações jurídicas nacionais. Poderia ser melhor? Claro! No mínimo porque desde 2002 houve desenvolvimento teórico que daria suporte a novas ou diferentes regulações das situações familiares; mas a adaptação pode ser realizada perfeitamente via interpretação, sem qualquer prejuízo.

Apesar da desnecessidade de alteração, ela foi apresentada. E, novamente, desatenta ao desenvolvimento da doutrina.

Não falarei sobre todo o Direito de Família. Meu objetivo é abordar as situações jurídicas envolvendo crianças e adolescentes no Código Civil.

Ressalvadas as adaptações para reconhecer a igualdade entre mulheres e homens e substituir a expressão "pátrio poder" por "poder familiar", o Direito de Família de 1916 e 2002 são muito similares em termos textuais. O PL 634/1975, que veio a se tornar o Código de 2002, não inovou.

Sobre isso, chama a atenção que esse Código foi aprovado 14 anos depois da Constituição de 1988, portanto, em momento em que a proteção integral e o melhor interesse da criança estavam bastante consolidados no Direito brasileiro.

Se esperaria, portanto, que na reforma ora apresentada, finalmente o Código Civil viesse a incorporar ambos os princípios constitucionais, finalmente para afastar o seu texto de um entendimento tutelar sobre criança, vigente até 1988, em que a criança se aproximava mais a objeto do Direito do que a sujeito. Isso porque, a principal característica da proteção integral, encontrada no art. 227 da Constituição da República de 1988 e na Convenção sobre Direitos da ONU, da qual o Brasil é signatário, é assegurar à criança (usarei apenas essa expressão, a qual abrangerá também adolescentes) a condição de sujeito de direitos, ou, como prefiro, a condição de pessoa plena.

A proteção integral, tal qual a adotamos pela Convenção e pela Constituição, significa, em primeiro lugar, reconhecer que crianças têm direitos individuais, sociais, coletivos, políticos e todos os mais direitos atribuídos às demais pessoas. Em segundo lugar, a proteção integral reconhece o especial momento de desenvolvimento de crianças e permite a modulação do exercício de direitos, adaptando-o ao grau de maturidade atingido e que poderá ser feito a partir da avaliação de cada caso ou estipulando-se idades para a aquisição de novas formas de exercício de direitos.

A reforma apresentada ignora a proteção integral e o melhor interesse

Em primeiro lugar, a reforma ignora que uma pessoa é um centro de interesses de situações pessoais e patrimoniais, centrando as situações jurídicas de/sobre crianças em temas patrimoniais. No mínimo, essa perspectiva está 10 anos atrasada, quando o Estatuto da Pessoa com Deficiência adotou parâmetros bem mais coerentes com tratados internacionais de direitos humanos e com a dignidade da pessoa humana para separar o apoio  a pessoas com deficiência e/ou com discernimento reduzido em situações patrimoniais e situações existenciais, tanto que os arts. 6º, 84 e 85 - ainda que com críticas - impedem que a curadoria exerça suas funções nas situações existenciais da pessoa curatelada.

Essa afirmação pode ser constatada na proposta de manutenção do art. 1.634, cujo texto mantém uma lista de situações autorizativas a serem realizadas por pais e mães, sem qualquer debate sobre situações jurídicas que, a despeito da autoridade parental, não poderia haver decisão parental, pois isso violaria a condição de pessoa da criança.

Esse debate foi feito em 2008 na reforma do Código Civil português e também em 2015 na reforma do Código Civil argentino. Em Portugal, por exemplo, o art. 18811 limita o poder de representação de pais e mães sobre os "atos puramente pessoais". O Código Civil argentino contém, no art. 6412 hipóteses de exercício das responsabilidades parentais a depender da situação conjugal de pais e mães, bem como no art. 6443 estabelece regra sobre a parentalidade adolescente, resguardando o seu exercício pelos próprios adolescentes.

O reconhecimento do exercício de situações existenciais por crianças é objeto de estudos, no mínimo, desde 2014. Apresentamos alguns dos trabalhos sobre o tema, que deveriam ter subsidiado a elaboração das diretrizes da reforma do Código Civil: Thais Sêco, "Por uma nova hermenêutica do direito da criança e do adolescente" (2014); Carlos Konder e Ana Carolina Brochado, "Crianças e adolescentes na condição de pacientes médicos: desafios da ponderação entre autonomia e vulnerabilidade" (2016); Camila Colucci, "A autonomia da vontade da criança e do adolescnete" (2020); Joyceane Bezerra de Menezes e Renata Vilela Multedo, "A autonomia ético-existencial do adolescente nas decisões sobre o próprio corpo e heteronomia dos pais e do Estado no Brasil" (2016); e, João Paulo de Andrade Ferreira, "Autonomia da criança e do adolescente nas situações jurídicas existenciais" (2022).

A escolha da Comissão de reforma em substituir "poder familiar" por "autoridade parental" é evidência da escolha em manter a criança em condição subalterna. Embora "autoridade parental" tenha se popularizado como boa alternativa a "poder familiar", porque se conecta melhor com o exercício do poder-dever de pais e mães em favor dos filhos, o uso da palavra autoridade mantém a ideia subalterna de "estar submetido a alguém". Aqui também seria melhor a Comissão ter seguido o caminho de Portugal, Argentina, mas também União Europeia e França e substituir por "responsabilidades parentais", expressão que melhor dá ênfase aos deveres dos pais em função dos filhos, sem o apelo à inferiorização das crianças e da desconsideração de sua condição de pessoa/sujeito de direitos.

Gosto da defesa de Clara Sottomayor sobre o sentido das responsabilidades parentais e que serve como defesa dessa expressão: "uma concepção redutora das responsabilidades parentais à função de representação dos menores significa uma visão autoritária do poder parental, demasiado rígida e formalista para aspectos relacionados com a sua conduta pessoal e social. defendemos, antes, uma concepção personalista de responsabilidades parentais, em que a criança é considerada não apenas como um sujeito de direito suscetível de ser titular de relações jurídicas, mas como uma pessoa dotada de sentimentos, necessidades e emoções, a quem é reconhecido um espaço de autonomia e de autodeterminação, de acordo com a sua maturidade"4.

Em segundo lugar, o PL da Comissão de reforma centraliza as questões jurídicas entre pais/mães e filhos sobre a guarda. Percebe-se isso pela manutenção da estrutura dos Códigos de 1916 e 2002, em que filiação, guarda e autoridade parental são tópicos dos temas casamento e divórcio ou separação. Veja-se que a parentalidade pode ser exercida independentemente do matrimônio, regra essa assumida pelo ordenamento desde 1988, que abandonou a legitimação dos filhos pela existência ou não do casamento. Teria sido muito melhor que os ditos reformados brasileiros tivessem lembrado que o exercício do planejamento familiar também é feito por pessoas não-casadas e que elas irão estabelecer relações com seus filhos que exigirão regulamentação. Passou da hora de as relações pais/mães e filhos serem tratadas em separado das relações conjugais.

Mesmo tomando-se como regra a existência de conjugalidade, tal como há no Código e que foi mantido pela Comissão, o enfoque do exercício da parentalidade está no seu momento crítico de separação (tenho que reforçar: como se todas as pessoas se tornassem pais e mães apenas em relações conjugais). É aqui que a objetificação da criança fica mais visível a partir da leitura do próprio Código - até agora, enfrentamos o problema do Código com o sistema jurídico.

Há que se ter atenção, pois a questão é sutil: o Código Civil dá ênfase à guarda como categoria, mas sem atribuir real significado a ela. Mantendo a bipartição entre guarda unilateral e compartilhada, o texto da reforma traz novos incentivos para o compartilhamento da guarda. Mas, afinal, o que isso significa? Trata-se de compartilhamento de tempo, como parecer ser a redação do art. 1.566? Compartilhamento de responsabilidades, como é mantido o art. 1.583? Mas que responsabilidades não são compartilhadas na guarda unilateral, uma vez que a autoridade parental não é alterada ou afetada pela atribuição da guarda unilateral?

Enfim, o que é guarda?

A meu ver, não definir guarda tem o significado do que não pode ser dito, de que a criança "não sabe o que faz" e ela deve estar submetida a autoridade parental. Ela não é parte dessa situação familiar da qual ela faz parte, porque se decide sobre ela e não com ela. Isso é ter sua condição de sujeito negada. Isso é violação constitucional à proteção integral.

Aliás, chama a atenção que o texto da reforma não prevê a escuta da criança nas situações que digam respeito a ela, como exige o art. 12 da Convenção sobre Direitos da Criança e o ECA, tampouco a preocupação de convivência familiar ampla (irmãos, ascendentes e colaterais) e comunitária na fixação da guarda. O Código mantém a preocupação com a convivência com avós, mas esquece da convivência com irmãos, e isso num cenário social em que famílias recompostas são absolutamente normais.

Teria sido muito melhor substituirmos, como fizeram Argentina, Portugal e França a guarda pelo conceito de responsabilidades, conferindo ênfase à parentalidade responsável e aos cuidados de pais e mães em favor dos filhos. Sim, todos esses países excluíram a guarda dos seus Códigos e passaram a regulamentar o exercício das autoridades parentais, em uma proposta que exige de pais e mães a reflexão e decisão sobre a sua participação rotineira no cuidado pessoal, moral, social, econômico, psicológico e educacional dos filhos, afinal, ser pai ou mãe não é sobre ter o título de guardião, mas assumir a responsabilidade pelo desenvolvimento da criança até a fase adulta; não é ter poder de decidir sobre a criança, mas de decidir o que é melhor para ela.

Comparando os textos do ECA, nos arts. 22 e 33, com a proposta de reforma, o Estatuto, de 1990, é superior à proposta de reforma ao apresentar conteúdo sobre autoridade parental com muito mais amplitude do que o Código Civil e sua reforma.

Em terceiro lugar, o Código não cria regra de conflito de interesses entre pais/mães e filhos. Isso é resultado da presunção de que pais e mães sabem melhor do que as crianças e suas decisões devem se sobrepor às delas. Nada mais errado, pois, como já falamos, crianças são pessoas e, nisso, são autônomas de seus pais e mães. Elas dependem de pais e mães em razão de seu momento de desenvolvimento, mas essa circunstância não exclui as suas individualidades, capacidades e potencialidades. Adotando-se o conceito de "vida digna" de Ronald Dworking ou de "dignidade como autonomia" de Luis Roberto Barroso, temos que reconhecer que crianças têm a construção da sua própria história - talvez, não da forma como adultos entendem biografias, mas crianças as têm - e nessa perspectiva seus interesses podem conflitar com o de seus pais e mães.

Dois exemplos podem ajudar:

O primeiro deles, sobre a possibilidade de escolha de sexo em crianças intersexo, as quais têm sinais distintivos de ambos sexos biológicos. Os pais e mães podem decidir com base nas suas ideias de parentalidade, mas a criança ainda não teve o desenvolvimento do seu gênero - aqui entendido como a performance social do sexo. Como decidir? O que decidir? A criança pode não ter tido formação suficiente para escolha e os pais podem escolher por interesse puramente pessoal ou por indicação médica. Honestamente, a regra da União Europeia entende que a decisão deve ser postergada até o momento em que a criança possa participar da decisão sobre seu corpo, privilegiando a sua participação. Isso é proteção integral! Isso é respeito à criança como pessoa!

Segundo exemplo é sobre a administração dos bens dos filhos pelos pais. Pensemos em crianças artistas e a proteção de seu patrimônio. O texto da reforma não traz nenhuma regra de proteção a crianças e isso tendo o texto sido feito pós-caso Larissa Manoela e num contexto de muitos influenciadores infantis, cujos pais ou mães têm capacidade de se aproveitarem da renda gerada pelo trabalho infantil.

Em suma, a reforma não apenas ignora, como ocorreu com o Código de 2002, os fundamentos jurídicos sobre crianças e adolescentes, como também não responde às situações atuais envolvendo crianças e adolescente.

Para finalizar, quero fazer 3 considerações, sendo as duas primeiras com base na minha experiência profissional como defensora pública: a proposta de redação do art. 1.699 tem potencial de criar conflitos graves, pois permite ser interpretada como cessação automática dos alimentos aos 18 anos de idade, ainda que a dependência esteja mantida via estudos, por exemplo. Além disso, a previsão de presunção de paternidade caso não seja obedecida a intimação do suposto pai no procedimento extrajudicial de investigação de paternidade tem potencial de levar a aumento das anulatórias e instituição de prejudicial de negativa de paternidade em alimentos. Parece uma ideia boa, mas pode levar a consequências complexas. Além disso, desincentiva alimentos gravídicos, pois mantém a exigência de indícios de paternidade enquanto com o nascimento da criança bastará a indicação e negativa de exame. Esse modelo diferenciado entre alimentos gravídicos e presunção na investigação oficiosa prejudica direitos de nascituro (que curiosamente teriam posição privilegiada na reforma, que adotou teoria concepcionista).

A última das minhas considerações é a que mais me choca e me agride: foi mantida a idade núbil em 18 anos, de modo que a Comissão decidiu manter o casamento infantil, no qual o Brasil ocupa o 4º lugar mundial. Isso não é proteção infantil e definitivamente não é proteção a mulheres e meninas, como grupo especial de cuidado. É absurdo que não tenham considerado a Agenda ONU 2030 e proibido, em definitivo, o casamento infantil.

E chamo a atenção que esse "esquecimento" diz muito sobre o respeito a direitos humanos e direitos de minorias nesse Código. Não está bom. E não será bom.

___________

1 O poder de representação compreende o exercício de todos os direitos e o cumprimento de todas as obrigações do filho, exceptuados os actos puramente pessoais, aqueles que o menor tem o direito de praticar pessoal e livremente e os actos respeitantes a bens cuja administração não pertença aos pais.

2 El ejercicio de la responsabilidad parental corresponde: a) en caso de convivencia con ambos progenitores, a éstos. Se presume que los actos realizados por uno cuentan con la conformidad del otro, con excepción de los supuestos contemplados en el artículo 645, o que medie expresa oposición; b) en caso de cese de la convivencia, divorcio o nulidad de matrimonio, a ambos progenitores. Se presume que los actos realizados por uno cuentan con la conformidad del otro, con las excepciones del inciso anterior. Por voluntad de los progenitores o por decisión judicial, en interés del hijo, el ejercicio se puede atribuir a sólo uno de ellos, o establecerse distintas modalidades; c) en caso de muerte, ausencia con presunción de fallecimiento, privación de la responsabilidad parental o suspensión del ejercicio de un progenitor, al otro; d) en caso de hijo extramatrimonial con un solo vínculo filial, al único progenitor; e) en caso de hijo extramatrimonial con doble vínculo filial, si uno se estableció por declaración judicial, al otro progenitor. En interés del hijo, los progenitores de común acuerdo o el juez pueden decidir el ejercicio conjunto o establecer distintas modalidades.

3 Los progenitores adolescentes, estén o no casados, ejercen la responsabilidad parental de sus hijos pudiendo decidir y realizar por sí mismos las tareas necesarias para su cuidado, educación y salud. Las personas que ejercen la responsabilidad parental de un progenitor adolescente que tenga un hijo bajo su cuidado pueden oponerse a la realización de actos que resulten perjudiciales para el niño; también pueden intervenir cuando el progenitor omite realizar las acciones necesarias para preservar su adecuado desarrollo. El consentimiento del progenitor adolescente debe integrarse con el asentimiento de cualquiera de sus propios progenitores si se trata de actos trascendentes para la vida del niño, como la decisión libre e informada de su adopción, intervenciones quirúrgicas que ponen en peligro su vida, u otros actos que pueden lesionar gravemente sus derechos. En caso de conflicto, el juez debe decidir a través del procedimiento más breve previsto por la ley local. La plena capacidad de uno de los progenitores no modifica este régimen.

4 SOTTOMAYOR, Clara. Regulação do exercício das responsabilidades parentais nos casos de divórcio. 7a ed. Lisboa: Almedina, 2021, p. 23.