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Migalhas das Civilistas

Um observatório do Direito Civil

Maria Celina Bodin de Moraes, Silvia Felipe Marzagão, Joyceane Bezerra de Menezes, Maria Cristina De Cicco, Flávia Alessandra Naves Silva e Thaís Fernanda Tenório Sêco
Na produção da normatividade jurídica, constitui indispensável ressalva de método apontar às cautelas que devem cercar o recebimento de princípios, categorias e institutos advindos do Direito estrangeiro. Com maior razão cabem essas ressalvas quando se está a produzir direito por via da atividade legislativa, cujos traços de vinculabilidade e generalidade sobressaem em face dos modelos jurisprudenciais e dos modelos hermenêuticos oferecidos por via doutrinária1.  Como infelizmente não é incomum na cultura jurídica brasileira, soluções advindas de outros sistemas jurídicos são por vezes transplantadas de modo acrítico, sem que o intérprete tenha em vista a integralidade do entorno normativo que originou a solução "transplantada", muito embora dentre as mais dificultosas questões do Direito Comparado esteja, justamente, a compreensão do fenômeno da circulação dos modelos jurídicos2. É que modelos podem migrar de um sistema a outro, mas não os seus formantes, inclusivos, para além da lei, da jurisprudência e da doutrina, elementos conformadores de sua estrutura, considerada no seu modo peculiar de articulação; nem seus criptotipos, quais sejam, ideias e concepções implícitas que o jurista, imerso em determinada cultura, acaba por considerar3, ainda que de modo inconsciente. Em outro contexto, mas igualmente atento às peculiaridades da cultura nacional, há décadas observou Roberto Schwarz que, quando as ideias viajam, elas podem, deslocadas, "ser verdadeiras ou falsas num sentido inverso", alimentando "contrastes rebarbativos, desproporções, disparates, anacronismos, conciliações, contradições", tudo levando à "composição arlequinal" de que falara Mário de Andrade4, isto é: "ao desacordo entre a representação e o contexto5". Por isso, a doutrina avisada recomenda cautela com as "ilusões de ótica"6, bem como com o anacronismo hermenêutico derivado da similitude meramente terminológica,7 utilizando, para tanto, a noção de mutação8. Soluções prestigiadas em outros sistemas e que passam a circular por meio de microrrecepções - expressas ou silenciosas - não são nunca "transplantáveis", mas tão somente acomodáveis por via de certas mutações e adaptações9. Para ser exitosa e útil, a adaptação há de considerar, para além da necessidade ou não da recepção, os diversos formantes do sistema que recebe o modelo, tudo tendo como efeito uma diversa modelação do instituto, regra, princípio ou solução "recebida". Essas lições vêm à mente quando se lê o parágrafo segundo do art. 169 da projetada reforma do Código Civil brasileiro10. Estabelecendo exceção à regra segundo a qual o negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo, os anteprojetistas enunciaram: "A previsão contida no caput não impossibilita que, excepcionalmente, negócios jurídicos nulos produzam efeitos decorrentes da boa-fé, ao menos de uma das partes, a serem preservados quando justificados por interesses merecedores de tutela". A regra atenta ao sistema e à segurança jurídica por dois problemas graves. O primeiro é a remissão à boa-fé - a qual, pelo contexto do enunciado, deve ser a boa-fé subjetiva (ou "boa-fé fato", estado anímico do sujeito jurídico que é parte do negócio), o que demandará pesquisa empírica para a determinação da hipótese legal11. O segundo está na consequência, qual seja, o reconhecimento da validade do negócio nulo, se assim for permitido pelo critério do merecimento de tutela, que, retirado do Código Civil italiano por uma espécie de "passe de mágica", se quer ver agora transplantado ao Direito brasileiro. Mas não apenas "retirado" esse critério do Codice Civile: retirado de forma incompleta, tornando o conceito ainda mais problemático. O interesse de quem é tutelado? Com base em quais parâmetros? O Código civil italiano não usa o termo "merecimento" de forma genérica, mas o atrela ao parâmetro do ordenamento, quando especifica, no art. 1322, par. 2, que os atos de autonomia privada "devem ser voltados a realizar interesses merecedores de tutela segundo o ordenamento jurídico"12. Recentemente a Corte di Cassazione italiana, em Seções Unidas, reafirmou que o juízo de merecimento de tutela exprime-se à luz dos princípios fundamentais do ordenamento e dos valores que o caracterizam. Por conseguinte, qualquer ato de autonomia deve ser concretamente submetido a um controle qualitativo e axiológico que respeite a total identidade do sistema, a fim de verificar se, efetivamente, tende à concretização dos valores que fundamentam o ordenamento jurídico italiano e que são contidos nos seus princípios constitucionais. Nessa perspectiva, afirmam as Seções Unidas, evocando uma orientação consolidada, o juízo de "merecimento" a que se refere o art. 1.322, par. 2, do Codice civile, é um juízo que deve afetar não o contrato em si, mas o resultado que as partes almejaram com ele (ou seja, o propósito prático, a causa concreta). Os atos de autonomia negocial devem propender à concretização dos valores que fundamentam o ordenamento jurídico e contidos nos princípios constitucionais. Na Itália, o princípio da causalidade negocial impõe que os atos negociais sejam causais, de modo que o ato é merecedor somente quando responder a uma função jurídica e socialmente útil. Por conseguinte, a ausência de causa ou a sua ilicitude produzem a nulidade do ato, porquanto não são concebíveis atos de autonomia que prescindam da avaliação do fundamento justificador. Logo, mesmo que coubesse recorrer, no Direito brasileiro, a "importação" do critério do merecimento de tutela, não poderia ser feita como foi, incompleta, e para o efeito que foi, impondo-se, ao contrário, atrelá-lo a um parâmetro sólido, como, por exemplo, o ordenamento jurídico. Ocorre que o Direito Civil brasileiro, para além de admitir a abstração da causa13, conta com um conceito amplo de ilicitude civil. O art. 187, como é por todos sabido, estabelece "balizas de licitude" no exercício jurídico, quais sejam, a boa-fé, os bons costumes, e a finalidade econômica e social do direito. Atos conformes a esses parâmetros são os que, no exercício jurídico, são considerados, entre nós, como "merecedores da tutela do ordenamento", não havendo nenhuma necessidade do recurso a um conceito atado a diferentes formantes. Além do mais, são sabidos e ressabidos os graves problemas ligados à indeterminação no Direito, ao estabelecimento de seu conteúdo, do alcance de seu significado, de suas eficácias14. Tenha-se como exemplo contrastante o princípio da boa-fé objetiva ("boa-fé normativa"), talvez o mais conhecido "caso" de indeterminação semântica no Direito contratual. Ainda que exaustivamente trabalhado através dos séculos; ainda que considerado um "acquis culturel" do Direito, suscitando, nos diferentes sistemas, os mais aprofundados estudos; ainda assim a sua positivação na legislação brasileira, em 1990, no Código de Defesa do Consumidor e, posteriormente, em 2002, no Código Civil, gerou um ainda inacabado debate. Só agora, passados 30 anos, começa a amainar a sua "hiperinvocação"15 que abarrotou tribunais, começando a ser colhidos frutos da intensa produção doutrinária sobre o seu conteúdo, alcance, distinções e funções. Em suma, só agora - mesmo para princípio tão "antigo" e estudado como o é o da boa-fé objetiva - começa a verificar-se certa estabilização na jurisprudência, que ainda luta, todavia, para melhor precisar o seu campo operativo16. Se assim ocorre com um princípio como o da boa-fé, o que dizer da importação de um conceito tão altamente indeterminado como o de "interesse merecedor de tutela", cujo conteúdo e eficácia ainda não foram consolidados na doutrina brasileira17? E que, à diferença do princípio da boa-fé, cujas consequências se situam no plano da eficácia, atingirá - se prevalecer a proposta de redação ao art. 169 - o plano da validade dos negócios jurídicos? Não custa lembrar que a difusão de um modelo jurídico supõe certo conhecimento empírico por quem o vem a imitar. Esse conhecimento, contudo, ainda não é uma comparação, muito menos comparação aprofundada18. Os diferentes direitos comportam, cada um, conceitos à sombra dos quais exprimem suas regras; categorias ordenantes dos sistemas19, regras específicas das quais, à partida, o comparatista, olhando "de fora para dentro", não tem sequer a percepção. Uma noção que é explícita em um sistema pode ser implícita em outro, e certamente, não será compreendida via o mero lançamento de expressões sugestivas em texto de lei. Recordemos, para concluir, nosso escritor maior, Machado de Assis, segundo o qual todo transplante está sujeito à "lei de aclimação"20. Se essa "lei" não for obedecida, ficaremos com três males difíceis de superar: a composição arlequinal de um Código que deveria ser a referência maior em harmonia e sistematicidade; o aumento dos litígios, deixando ao nuto de cada juiz determinar qual negócio é ou não é "merecedor de tutela"; e, como resultado fatal, o crescimento da insegurança que mina a confiança no Direito. __________ 1 Para a ideia de modelos jurídicos: REALE, Miguel. Fontes e Modelos do Direito. Para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 1994, pp. 63-122. MARTINS COSTA, Judith. Autoridade e Utilidade da Doutrina: a construção dos modelos doutrinários In: Modelos de Direito Privado. (Org.) São Paulo: Marcial Pons, 2014.? 2 FRADERA, Véra Maria Jacob de. Reflexões sobre a Contribuição do Direito Comparado para a elaboração do Direito Comunitário. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 92-114. 3 Para essas categorias, reenvie-se a: SACCO, Rodolfo. La Comparaison Juridique au Service de La Connaissance du Droit. Paris: Economica, 1991, p. 41 e ss. 4 A expressão está em SCHWARZ, Roberto. As idéias fora do lugar. In: Ao Vencedor as Batatas. 2ª ed. São Paulo: Duas Cidades-Editora 34, 2000, p. 25. 5 SCHWARZ, Roberto. As idéias fora do lugar. In: Ao Vencedor as Batatas. 2ª ed. São Paulo: Duas Cidades-Editora 34, 2000, p. 21-25. 6 A expressão é de SACCO, Rodolfo. La Comparaison Juridique au Service de La Connaissance du Droit. Paris: Economica, 1991, p. 42. 7 LEGRAND, Pierre. Sur l'analyse différentielle des juriscultures. Revue Internationale de Droit Comparé, Paris, Societé de Législation Comparée, 4, 1999, p. 1053-1071. 8 SACCO, Rodolfo. La Comparaison Juridique au Service de La Connaissance du Droit. Paris: Economica, 1991, p. 113 e ss., em especial p. 118-128. 9 Assim se escreveu em MARTINS-COSTA, Judith. Apresentação a PARGENDLER, Mariana. Evolução no direito societário: lições do Brasil. In: Modelos de Direito Privado. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 533-539. 10 Refiro-me à iniciativa de reforma procedida por Comissão instituída pelo Senado Federal que, a pretexto de modernizar o Código Civil, modificou um milhar de seus artigos, promovendo completa subversão na letra, no espírito, na linguagem e no método da Lei Civil. (O arquivo consta do site do Senado Federal, na aba Comissão de Juristas responsáveis pela revisão e atualização do Código Civil. Último acesso em 13 de maio de 2024). 11 Vide PARGENDLER, Mariana. Alcance e limites da presunção de boa-fé. Custos probatórios e normas profiláticas no Direito Privado. In: BENETTi, Giovana et ali. História, Cultura, Método. Leituras da obra de Judith Martins Costa. Rio de Janeiro. GZ, 2019, pp. 259-278. Acerca das distinções entre a boa-fé subjetiva e a objetiva e dos problemas derivados da qualificação da boa-fé subjetiva como presunção, escreveu-se em: MARTINS-COSTA, Judith. o princípio da "boa-fé do particular perante o Poder Público. Comentário ao artigo 2º, inciso II. In: Direito Privado na Lei da Liberdade Econômica: Comentários. (Coord.). São Paulo: Almedina, 2022 (coord. em co-autoria com Guilherme Nitschke). 12 No original: "Le parti possono anche concludere contratti che non appartengano ai tipi aventi una disciplina particolare, purché siano diretti a realizzare interessi meritevoli di tutela secondo l'ordinamento giuridico". 13 COUTO E SILVA, Clóvis. A obrigação como processo. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2006, p. 52-61; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo III. Atualizado por Marcos Bernardes de Mello e Marcos Ehrhardt Jr. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, § 264, item 1, p. 147. 14 Na doutrina recente: ÁVILA, Humberto. Teoria da indeterminação no Direito: entre a indeterminação aparente e a determinação latente. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2023. 15 TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. A boa-fé objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no Novo Código Civil. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Obrigações. Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 29-44. 16 Assim se examinou em MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado: critérios para sua aplicação. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2024, § 16. 17 Ressalva-se, dentre outros trabalhos: De CICCO, Maria Cristina. Poderes do juiz, função social do contrato e equilíbrio contratual na legalidade constitucional. In: MENEZES, Joyceane Bezerra de e BARBOSA, Fernanda Nunes. A Prioridade da Pessoa Humana no Direito Civil-Constitucional. Estudos em homenagem a Maria Celina Bodin de Moraes. Indaiatuba: Ed. Foco. 2024, p 199-219. Ainda, entre outros interessantes trabalhos, ligados à "escola" do Direito Civil Constitucional, ver: SOUZA, Eduardo Nunes de. Merecimento de tutela: a nova fronteira da legalidade no direito civil. Revista de Direito Privado, vol. 58, 2014, p. 75-107. 18 SACCO, Rodolfo. La Comparaison Juridique au Service de la Connaissance du droit. Paris: Economica, 1991, p. 7. 19 DAVID, René; JAUFFRET-SPINOSI, Camille; GORÉ, Marie. Les grands systèmes du droit contemporains. 12ª ed. Paris: Dalloz, 2016, § 12, p. 12. 20 MACHADO DE ASSIS. Balas de Estalo. In: Crônicas. Obras Completas de Machado de Assis. Vol. 25. São Paulo: W. M. Jackson Inc. Ed., 1957.
O anteprojeto de reforma do Código Civil de 2002 (CC/02) retirou da invisibilidade jurídica o tema da terapia gênica coligada às técnicas de reprodução humana assistida (RHA). Isso porque, consoante o inciso V do art. 1.629-D, excepciona a possibilidade de intervir sobre o genoma humano, com vista à sua modificação, desde que haja a finalidade de tratar doenças graves via diagnóstico genético pré-implantacional - DGPI (anterior a implantação do embrião no útero) ou diagnóstico pré-natal - DPN (momento em que o embrião se encontra em desenvolvimento intrauterino).1 Todavia, distinguir a terapia gênica das práticas de aconselhamento genético se torna premente no debate sobre governabilidade genética. Isso, pois o propósito e o impacto na estrutura do genoma humano guardam especial diferença. De um lado, o condão da terapia gênica está na intervenção direta na estrutura do DNA, afetando, consequentemente, o genoma contido na dupla hélice.2 A exemplo, menciona-se o potencial da técnica CRISPR-Cas9, responsável por atuar como uma tesoura genética capaz de inserir, recortar ou excluir qualquer gene de animais ou plantas, seja em linhagem somática ou germinativa.3 Por outro lado, em regra, as práticas de aconselhamento genético mediante diagnósticos, consubstanciam a possibilidade de fazer a mera leitura das características genéticas atribuíveis e, a partir disso, possibilitar a seleção do material biológico ou proceder com possíveis cuidados à gestante ou à prole. Além disso, poderá atuar em diferentes momentos: a) anteriormente a concepção dos gametas reprodutivos (diagnóstico pré-conceptivo); b) posteriormente a concepção dos gametas reprodutivos, havendo, neste momento, o embrião em estágio pré-implantacional (diagnóstico genético pré-implantacional); c) após o momento de nidação e o desenrolar do desenvolvimento intrauterino, para verificar as condições de saúde do nascituro (diagnóstico pré-natal); e d) a partir do nascimento com vida, para se atentar às possíveis doenças congênitas (diagnóstico pós-natal).4 Diante disso, a proposta do anteprojeto parece ter excepcionado a regra geral de vedação às práticas de intervenção no genoma humano desde que haja o único propósito de ser fundamentado em um protocolo terapêutico, também chamado de eugenia negativa pela doutrina especializada. Em contrapartida, a eugenia positiva se baseia na ideia de utilizar a biotecnologia com o propósito artesão ou de melhoramento humano. Sendo assim, lembra-se da crítica moderna do filósofo alemão Habermas no sentido de que a preocupação na atualidade repousa, sobretudo, na possibilidade de não se saber distinguir, na prática, esses dois protocolos (terapêutico x aprimoramento humano) a partir dos valores sociais, fundamentando, portanto, a chamada eugenia liberal, que merece atenção e cuidado.5 À frente desse cenário, ainda que pareça acertada a regra de exceção à vedação na proposta de reformulação da legislação civil, carece de debate a determinação conceitual, também em esfera jurídica, quanto ao entendimento sobre o que seriam as doenças graves. Afinal, o avanço da biotecnociência no campo da genética e da reprodução humana fundamenta o que Norberto Bobbio6 intitulou de quarta era dos direitos, ao referir-se "aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo". Ademais, a proteção do patrimônio genético encontra-se tutelado pelo legislador constituinte, no art. 225, na condição de interesse difuso, uma vez que importa a toda a coletividade ver protegida para as atuais e futuras gerações a biodiversidade. Dentro dessa percepção, o ser humano, enquanto um animal, ainda que dotado de racionalidade, deve ser abrangido nessa percepção para se proteger o patrimônio genético humano. Contudo, na própria ótica de proteção da herança genética, também merece proteção a diversidade biológica humana, cabendo a necessidade de distinguir (a) doença hereditária, (b) doença incompatível com a vida e (c) deficiências.7 Afinal, nesse quadro, merece distinção específica o conceito de deficiência e doenças. Isso porque a deficiência não deve ser vista como sinônimo de ausência de saúde, qualidade de vida ou incompatibilidade com a vida.  Na verdade, seguindo a própria tendência de reformulação da codificação civil, conforme os mandamentos do modelo social de deficiência, seria a pessoa com deficiência detentora de autonomia, inclusive, para gerir aspectos específicos da sua vida, ainda que demande apoio. Outra reflexão que merece ser discutida, neste momento de tramitação do anteprojeto, seria a possível antinomia do inciso V, do art. 1.629-D, com o art. 25 da Lei de Biossegurança (Lei n. 11.105/2005). Explica-se: segundo o art. 25 da Lei n. 11.105/2005 é proibido a engenharia genética em células germinativas (gametas, zigoto e embrião).8 Contudo, o anteprojeto fala que é proibido intervir no genoma, com a exceção de através da terapia gênica (sinônimo de engenharia genética) e do diagnóstico genético pré-implantacional (leitura do DNA) evitar doenças graves. A tendência de usar as técnicas reprodutivas com o fim de evitar doenças graves já existia, no corpo das normas deontológicas do CFM, todavia, direcionadas para a seleção cromossômica via DGPI, isto é, fora do escopo da edição genética.9 Por esse motivo, a dúvida que surge seria a seguinte: o anteprojeto poderá criar um conflito entre normas, na medida em que relativiza a prática da engenharia genética em células germinativas? Isso, pois uma norma-regra encontra-se em lei específica, estando no âmbito penal, e a outra, por sua vez, no âmbito civil, no livro de família. Nesse cenário, cumpre lembrar que a elaboração e a vigência da Lei de Biossegurança assentaram-se em momento próximo à conclusão do projeto genoma humano (1990-2003),10 responsável por se dedicar a decodificar quase que a totalidade dos genes que compõem a estrutura do DNA. Além do mais, o início do século XXI foi um momento de alarde na comunidade acadêmica no tocante a latente possibilidade de instrumentalização da vida humana a partir das técnicas medicamente assistidas. Neste momento histórico, também, as técnicas de edição genética disponíveis eram demoradas, demasiadamente onerosas e de difícil replicação pelos cientistas. A forma mais eficaz existente no tratamento de doenças era o simples diagnóstico genético, em qualquer das fases de desenvolvimento da vida humana, que em verdade não se trata de uma técnica que intervém diretamente na estrutura do DNA, mas possibilita tão somente decifrar os genes. A engenharia genética da precisão, por sua vez, através da ferramenta conhecida pelo acrônimo CRISPR-Cas9, tornou-se uma possibilidade científica somente no ano 2012, sendo provada cientificamente em 2014. Ao contrário das ferramentas disponíveis anteriormente, trata-se de metodologia inovadora por permitir intervir na estrutura do DNA de maneira rápida, pouco onerosa e de fácil replicação pelos cientistas. Ademais, a descoberta da técnica ocasionou uma verdadeira revolução no cenário da biotecnologia, ocasionando inclusive em briga, nos estados-nacionais, para o registro de sua patente consoante o impacto no mercado agrícola e de medicamentos humanos.11 Inclusive, as cientistas responsáveis pela descoberta do método, Jennifer Doudna e Emmanuelle Charpentier, foram as responsáveis por ganharem o prêmio Nobel de química, no ano de 2020,12 pela incrível descoberta da técnica que revolucionou sem sombra de dúvidas a história da humanidade. Consoante o exposto, argumenta-se, por isso, que a técnica eficaz no tratamento de doenças surgiu em momento posterior a Lei de Biossegurança. Portanto, sequer era uma possibilidade científica à época de elaboração desta lei vigente. Por esse motivo, entende-se que esta norma merece ser revisitada à luz dos novos paradigmas em matéria de governabilidade genética. Portanto, o diálogo promovido pelo anteprojeto do Código Civil nos leva a refletir sobre a atualização das potencialidades científicas não vislumbradas à época da Lei de Biossegurança, que atualmente promove a vedação absoluta à edição genética em linhagem germinativa (art. 25 da Lei de Biossegurança), não abarcando em sua proibição as células somáticas. Além disso, a previsão indicada no anteprojeto suscita muitas dúvidas: as práticas da terapia gênica (a exemplo do CRISPR) e dos diagnósticos genéticos (a exemplo do DGPI ou do DPN, mencionados no anteprojeto) poderiam ser utilizadas para todos os fins, como nas doenças incompatíveis com a vida, nas doenças hereditárias e nas deficiências? Qual o sentido empreendido à finalidade terapêutica? A intervenção no patrimônio genético com base na deficiência seria ou não discriminatória? Reconhecer a deficiência como diversidade da condição humana importa em reconhecer que o patrimônio genético deve ser protegido em sua diversidade de forma isonômica? Haveria um princípio da proteção à diversidade do patrimônio genético? Em havendo, este deve ser aplicado indistintamente ou poderia ser aplicado de forma relativizada, a partir de estágios distintos de determinado patrimônio genético, por exemplo, como antes ou depois da sua fecundação ou implantação?  São perguntas cujas respostas são distintas em diversas doutrinas que, ao cabo, devem estar voltadas à uma construção benéfica para a humanidade.  Referências  BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho.  Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.  BRASIL. Senado Federa. Anteprojeto de lei para revisão e atualização da lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil. Relatório final da comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Brasília DF: 11 abr. 2024. Disponível aqui. Acesso em 08 mai. 2024.  CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM nº 2.230, de 20 de setembro de 2022. Adota normas e'ticas para a utilizac¸a~o de te'cnicas de reproduc¸a~o assistida - sempre em defesa do aperfeic¸oamento das pra'ticas e da observa^ncia aos princi'pios e'ticos e bioe'ticos que ajudam a trazer maior seguranc¸a e efica'cia a tratamentos e procedimentos me'dicos, tornando-se o dispositivo deontolo'gico a ser seguido pelos me'dicos brasileiros e revogando a Resoluc¸a~o CFM no 2.294, publicada no Dia'rio Oficial da Unia~o de 15 de junho de 2021, Sec¸a~o I, p. 60. Disponível aqui. Acesso em 24 abr 2024.  CORREA, Marilena. O admirável Projeto Genoma Humano. Physis, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 277-299, 2002. Disponível aqui. Acesso em 13 mai. 2024.  DANTAS, Carlos Henrique Félix. Aprimoramento genético em embriões humanos: limites ético-jurídicos ao planejamento familiar na tutela da deficiência como diversidade biológica humana. 1ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022.  DOUDNA, Jennifer; STERNBERG, Samuel. A crack in creation: gene editing and unthinkable power to control evolution. Boston: Editora Houghton Mifflin Harcourt, 2017.  GONÇALVES, Giulliana Augusta Rangel; PAIVA, Raquel de Melo Alves. Terapia gênica: avanços, desafios e perspectivas. Einstein (São Paulo), v. 15, p. 369-375, 2017. Disponível aqui. Acesso em 13 mai. 2024.  HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal? Tradução de Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2004.  SOUZA, Iara Antunes de. Aconselhamento genético e responsabilidade civil: as ações por concepção indevida (Wrongful conception), nascimento indevido (Wrongful Birth) e vida indevida (Wrongful life). Belo Horizonte: Arraes Editores, 2014.  THE NOBEL PRIZE IN CHEMISTRY 2020. NobelPrize.org. Nobel Media AB, 2020. Disponível aqui. Acesso em 13 mai. 2024. __________ 1 "Art. 1.629-D. As técnicas reprodutivas não podem ser utilizadas para: [...] V - intervir sobre o genoma humano com vista à sua modificação, exceto na terapia gênica para identificação e tratamento de doenças graves via diagnóstico pré-natal ou via diagnóstico genético pré-implantacional." BRASIL. Senado Federa. Anteprojeto de lei para revisão e atualização da lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil. Relatório final da comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Brasília DF: 11 abr. 2024. Disponível aqui. Acesso em 08 mai. 2024. 2 Consultar GONÇALVES, Giulliana Augusta Rangel; PAIVA, Raquel de Melo Alves. Terapia gênica: avanços, desafios e perspectivas. Einstein (São Paulo), v. 15, p. 369-375, 2017. Disponível aqui. Acesso em 13 mai. 2024. 3 Ver DOUDNA, Jennifer; STERNBERG, Samuel. A crack in creation: gene editing and unthinkable power to control evolution. Boston: Editora Houghton Mifflin Harcourt, 2017. 4 Sobre o tema, recomenda-se SOUZA, Iara Antunes de. Aconselhamento genético e responsabilidade civil: as ações por concepção indevida (Wrongful conception), nascimento indevido (Wrongful Birth) e vida indevida (Wrongful life). Belo Horizonte: Arraes Editores, 2014. 5 HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal? Tradução de Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 6 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho.  Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 9. 7 DANTAS, Carlos Henrique Félix. Aprimoramento genético em embriões humanos: limites ético-jurídicos ao planejamento familiar na tutela da deficiência como diversidade biológica humana. 1. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022. 8 Lei de Biossegurança: "Art. 25. Praticar engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano ou embrião humano: Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa." 9 "5. As te'cnicas de reproduc¸a~o assistida na~o podem ser aplicadas com a intenc¸a~o de selecionar o sexo (presenc¸a ou ause^ncia de cromossomo Y) ou qualquer outra caracteri'stica biolo'gica da crianc¸a, exceto para evitar doenc¸as no possi'vel descendente". CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM nº 2.230, de 20 de setembro de 2022. Adota normas e'ticas para a utilizac¸a~o de te'cnicas de reproduc¸a~o assistida - sempre em defesa do aperfeic¸oamento das pra'ticas e da observa^ncia aos princi'pios e'ticos e bioe'ticos que ajudam a trazer maior seguranc¸a e efica'cia a tratamentos e procedimentos me'dicos, tornando-se o dispositivo deontolo'gico a ser seguido pelos me'dicos brasileiros e revogando a Resoluc¸a~o CFM no 2.294, publicada no Dia'rio Oficial da Unia~o de 15 de junho de 2021, Sec¸a~o I, p. 60. Disponível aqui. Acesso em 24 abr 2024. 10 CORREA, Marilena. O admirável Projeto Genoma Humano. Physis, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 277-299, 2002. Disponível aqui. Acesso em 13 mai. 2024. 11 Consultar DANTAS, Carlos Henrique Félix. Aprimoramento genético em embriões humanos: limites ético-jurídicos ao planejamento familiar na tutela da deficiência como diversidade biológica humana. 1. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022. 12 THE NOBEL PRIZE IN CHEMISTRY 2020. NobelPrize.org. Nobel Media AB, 2020. Disponível aqui. Acesso em 13 mai. 2024.
Segundo o disposto no § 2º do art. 421 do projeto de Código Civil, a cláusula contratual que violar a função social do contrato é nula de pleno direito. Temos aqui dois temas de grande relevância, talvez passados desapercebidos pela douta Comissão de Reforma do Código Civil de 2002, demandando, por isso, uma crítica construtiva por parte da doutrina, sob pena de ser aprovado um parágrafo, cujo teor pode conduzir, de um lado, a um impasse e, de outro, à referência a um termo de significado todavia incerto entre nós, qual seja, o sentido da locução função social do contrato. Vamos iniciar nossas ponderações pela sanção de nulidade da cláusula violadora da função social do contrato. Sendo o contrato uma espécie de negócio jurídico, faremos, inicialmente, algumas breves digressões em torno dessa peculiar figura.1 A noção de negócio jurídico está intimamente relacionada a um exaustivo controle, exercido pela Ordem Jurídica, no referente à capacidade dos agentes, à licitude de seu objeto e à observância da forma, quando ela for da substância do ato. Desta sorte, o negócio jurídico, diversamente de qualquer outro tipo de fato jurídico, deve passar, obrigatoriamente, por três planos, o da existência, o da validade e o da eficácia. Pertencem ao plano da existência (ou dos pressupostos) do negócio, o agente, uma declaração de vontade e as circunstâncias negociais. A doutrina refere-se aos elementos de existência do negócio jurídico, utilizando o vocábulo elemento em sua acepção aristotélica, ou seja, "aquilo com que se faz alguma coisa". De acordo com essa perspectiva, o negócio jurídico é, pois, constituído, feito, por esses elementos. O segundo plano a ser ultrapassado pelo negócio jurídico é o da validade, isto é, o plano das adjetivações, dos requisitos, aquilo que a ordem jurídica requer, nos elementos da existência, para que o negócio jurídico seja válido. Em relação ao agente, requer-se seja capaz e legitimado para o negócio, que sua declaração seja livre, sem vícios; em relação ao objeto, que seja lícito e possível, física e juridicamente, em relação à forma, que seja observada quando prescrita em lei. Já o tempo e o lugar, que integram o plano da existência, não estão sujeitos a requisitos. A terceira e última etapa a ser ultrapassada é aquela referente aos fatores de eficácia, assim denominados por serem externos ao negócio, não constituírem uma de suas partes integrantes, não obstante, relevantes para obtenção do resultado visado. É evidente que a eficácia a que se alude é a eficácia jurídica, ou seja, aquela própria ou típica, relativa aos efeitos manifestados como queridos, e não outra qualquer. Assim, os negócios jurídicos subordinados a uma condição suspensiva não serão eficazes enquanto não houver o implemento da condição. De acordo com a lição de Antônio Junqueira de Azevedo,2 é possível fazer-se uma classificação dos fatores de eficácia: Em primeiro lugar, os fatores de atribuição de eficácia em geral, sem os quais o negócio não produz efeito algum; em seguida, os fatores de eficácia diretamente visada, ou seja, aqueles indispensáveis para que um negócio, eficaz entre as partes, produza determinados efeitos, visados pelos contratantes. Por último, os fatores de atribuição de eficácia mais extensa, consistentes em certas medidas, por exemplo, as de publicidade, em que o negócio que já é eficaz entre as partes, tenha sua eficácia ainda mais ampliada, atingindo a terceiros ou a comunidade, tornando-se eficaz erga omnes. É o que ocorre, quando as partes recorrem às medidas de publicidade em geral. Assim sendo, seriam nulos os negócios jurídicos celebrados com inobservância dos requisitos de validade: Agente incapaz, objeto ilícito ou impossível e inobservância da forma, quando exigida em lei. Seriam ineficazes os negócios cujos efeitos, pretendidos pelas partes, não pudessem ser obtidos devido a determinados obstáculos: Aqueles postos pela Ordem Jurídica, os dependentes do acaso (como o implemento de uma condição) ou ainda aqueles obstáculos decorrentes da inobservância de certas medidas publicitárias. Tendo em vista a cominação, pelo legislador do futuro Código Civil, de sanção de  nulidade da cláusula violadora da função social do contrato, logo vem à mente do  leitor uma primeira pergunta: A nulidade de pleno direito da cláusula em questão anularia todo o contrato ou apenas aquela cláusula, restando as demais íntegras? Conforme o teor do art. 184 do Código Civil, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na parte válida, se esta for separável; mas, segue o legislador: A invalidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal. Como antes referido, o festejado professor Marcos Bernardes de Mello trata das espécies de invalidade, acentuando um aspecto que aqui nos interessa mencionar: O problema da possibilidade de poder ser a invalidade total ou parcial, constituindo assunto relacionado à questão da separabilidade de suas partes, a qual se condiciona à preservação da integridade do ato jurídico. O ilustrado professor chama a atenção para o fato de se poder falar objetivamente em invalidade parcial, se a exclusão da parte inválida não atinge o negócio jurídico como um todo. No caso do §2º do art. 421 do anteprojeto de Código Civil haveria a possibilidade de, eventualmente, permanecer o contrato válido, uma vez extirpada a cláusula violadora da função social. Contudo, parece-nos que seria mais coerente fosse essa cláusula qualificada como ineficaz, ou seja, não produziria os efeitos jurídicos pretendidos pelas partes, preservando o negócio, na hipótese de que esse fosse daqueles insuscetíveis de serem separados. A partir deste momento, passaremos a comentar a referência à persistência da exigência de exercer o contrato uma função social, de acordo com o aludido § 2º, exigência agravada com a sanção de nulidade da cláusula contratual que a violar. Utilizando a sabedoria popular, entendemos ser apropriado evocar aqui o dito conhecido por todos, mais católicos que o Papa! Com efeito, embora transcorridos 22 anos de vigência do Código Reale, a nossa doutrina e tampouco os tribunais todavia não chegaram a um consenso sobre qual seria o sentido dessa expressão, interpretada das mais diversas formas, segundo a ideologia do intérprete, sua filiação a uma ou a outra corrente da economia, da política, da filosofia, etc. A dificuldade em precisar seu exato sentido sempre foi reconhecida, tanto é que o Código italiano de 1942, modelo de inspiração maior do legislador Reale, não adotou a exigência de o contrato, ou a empresa, exercerem uma função social. Não há aqui, evidentemente, espaço bastante para debater esse assunto de forma aprofundada, contudo, desde que nos propusemos a comentar o §  2º do art. 421, acrescido ao texto do Código de 2002 pelo legislador da sua reforma, entendemos ser relevante expor essa dificuldade e sugerir que, em já havendo um certo consenso, seja retirada, no anteprojeto, a menção à função social do contrato e da empresa, sobretudo em razão da sugestão, partida do atual legislador, de ser anulada a cláusula que ferisse a função social do contrato. Novamente, dadas todas as vênias, essa exigência não se coaduna com a redação do texto do art. 421 e seu § único, após a vigência da lei 13.874/19, pois, o legislador dessa lei criou  uma verdadeira antinomia, de um lado, a exigência de cumprimento da função social (leia-se a extinção do princípio cardeal dos contratos, a sua relatividade); de outro, no seu § único, uma posição liberalista, afirmando a prevalência do principio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. Podemos afirmar, sem receio, tratar-se de uma reforma um tanto desastrosa, porquanto  defeituosa desde o ponto de vista da lógica. Ademais, se examinarmos o estágio atual do direito contratual e empresarial brasileiro, veremos que, em razão da globalização, do incremento dos negócios no plano internacional, ocorre uma internacionalização do nosso direito civil, do nosso conceito de contrato, mediante o influxo dos princípios UNIDROIT, do Code Européen des Contrats, da UNCITRAL, da CISG e da Doutrina, nacional e internacional, onde a noção de função social não tem lugar, por variados motivos, merecendo destaque tanto o fato de ela eliminar a mais importante e mais clássica das qualidades do contrato, ou seja, a sua relatividade (le contrat est la chose des parties) além do fato de incumbir ao juiz verificar o seu cumprimento (da função social) gerando insegurança aos jurisdicionados, pois trata-se de conceito indeterminado. Por outro lado, percebe-se um movimento, nacional e internacional, segundo o qual a doutrina surge como uma fonte de unificação internacional do Direito, porquanto ela comanda todos os esforços em direção à formação de uma concepção meta-nacional do direito, sobretudo na área do contrato, ou, como afirma C. Mouly, "à l'état d'esprit qui préside au dépassement et à l'abstraction des cadres nationaux".3 Importante destacar o fato de, inversamente do ocorrido em relação ao  CC/16, o atual diploma civil  apresenta-se  como um modelo aberto, ou seja, ele não exclui o jogo de outras fontes, como o costume, as convenções internacionais e até mesmo as normas internacionais. É relevante referir  essa abertura  à influência estrangeira naquilo concernente ao Direito privado em geral, e, mais particularmente, no plano do Direito dos contratos e da empresa. Ademais, menção há de ser feita à  circulação de modelos jurídicos provindos da common law, inglesa ou americana, fato incontestável, sobretudo a  partir da segunda metade do século XX, na área dos contratos empresariais. Evocamos ainda o caso da ratificação, pelo nosso governo, da Convenção de Viena de 1980 sobre venda internacional de mercadorias, mediante o decreto 832/14, já com repercussão em nosso direito contratual, v.g., recepcionando o dever de o credor mitigar o próprio prejuízo, o recurso às práticas das partes na interpretação do contrato, etc., soluções fundadas em princípios igualmente adotados por nossa legislação (a BFO, a Confiança), integrantes dessas convenções internacionais, refletindo o pensar jurídico de muitos países, relativamente ao conceito de contrato. Por fim, evocamos um derradeiro argumento em favor da eliminação da exigência de função social do contrato e da empresa: O da contratualização do direito, definida como sendo o deslocamento do centro da organização da sociedade, tradicionalmente tendo como mais relevante instrumento a lei, para o contrato. Segundo afirmado por Camille Jaufret-Spinosi, nos dias atuais a parte dos vínculos prescritos diminui em proveito dos vínculos consentidos. Passamos do direito imposto ao direito negociado.4 Em sendo essa a atual compreensão do contrato, fica evidente que a exigência de exercerem, o contrato e a empresa uma função social, deve ser dispensada no novo diploma regulador das relações contratuais, contribuindo para atualização de nosso direito contratual. ________ 1 Recorremos, neste ponto aos ensinamentos do professor Marcos Bernardes de MELLO, Teoria  do fato jurídico, Plano da Validade, 7a edição,  revista e atualizada , Saraiva, S.P., 2006, pp. 69 a 87. 2 Negócio jurídico, existência, validade e eficácia, Saraiva, São Paulo, 3a edição revista, 2000, pp. 3 No original: ...ao estado de espírito que preside a ultrapassagem  e  a abstração dos quadros nacionais,  Revue internationale de droit comparé, vol. 38, n°2, pp 351-368. 4 V. Rapport de Synthèse, in Journées  Brésiliennes de l'Association Henri Capitant, Le Contrat, Tome LV, éditeur  SLC, Paris, 2008, p. 02-22, esp. p. 03.
No mundo social (que é também o mundo do Direito), o nome constitui uma instituição totalizante e de unificação do eu. O nome, diz Bourdieu, "atesta a identidade da personalidade, como individualidade socialmente constituída", ainda que "à custa de uma formidável abstração"1. A compreensão dessa abstração é ilustrada pelo autor a partir da obra de Proust, o qual faz uso, em suas personagens, do nome próprio precedido do artigo definido, como em "o Swann de Buckingham Palace", "a Albertina de então", "a Albertina encapotada dos dias de chuva", indicando este fracionamento do sujeito em seus múltiplos eus.2  Juridicamente, a importância primordial do nome está em servir como sinal designativo, que permite a individualização da pessoa humana a partir da qual ela constrói sua subjetividade. Por essa razão, constitui um dos direitos mais essenciais da personalidade, aqui entendidos a partir de um "conceito elástico"3.  Nesse sentido, nossa reflexão diz respeito às propostas de mudança do Código Civil contidas no anteprojeto apresentado ao Senado Federal no dia 17 de abril, a começar pelo artigo 16, cuja redação final apresentada assim prescreve:  Art. 16. A identidade da pessoa natural se revela por seu estado individual, familiar e político, não se admitindo que seja vítima de qualquer discriminação, quanto a gênero, a orientação sexual ou a características sexuais. § 1º O nome é expressão de individualidade e externa a maneira peculiar de alguém estar em sociedade. § 2º Sem autorização do seu titular, o nome da pessoa não pode ser empregado por outrem em publicações ou representações que a exponham ao desprezo público, ou que tenham fins econômicos ou comerciais. § 3º O pseudônimo, o heterônimo, o nome artístico, as personas, os avatares digitais e outras técnicas de anonimização adotados para atividades lícitas gozam da mesma proteção que se dá ao nome. § 4º Para os fins do parágrafo anterior, é vedada a adoção de técnicas ou estratégias de qualquer natureza que conduzam ao anonimato, que levem à impossibilidade de identificar agentes e lhes imputar responsabilidade. § 5º Sem autorização, não se pode usar o nome alheio em publicidade, em marca, logotipo ou em qualquer forma de identificação de produto, mercadoria ou de atividade de prestação de serviços, tampouco em manifestações de caráter religioso ou associativo. § 6º A mudança e a alteração do nome obedecerão à disciplina da legislação especial, sem que isso importe, por si só, alteração de estado civil. § 7º A modificação do sobrenome de criança ou de adolescente por força de novo casamento ou união estável de seus ascendentes só poderá ocorrer a partir dos 18 (dezoito) anos.  Verifica-se, do caput do aludido artigo, que este não trata do direito ao nome propriamente, mas sim do direito à identidade pessoal, considerado por alguns como direito autônomo da personalidade4. Ainda que se possa questionar a autonomia deste como direito da personalidade, fato é que o caput do dispositivo é bastante limitado ao abordar as formas pelas quais o direito à identidade da pessoa natural pode ser violado, já que as discriminações sociais não se limitam ao gênero, à orientação sexual ou às características sexuais, ainda quando se trate do direito ao nome como decorrência da identidade pessoal. E justamente porque o nome não expressa apenas a individualidade sexual ou de gênero da pessoa humana. O nome expressa também etnia, costumes, cultura, religião, crenças, ancestralidade5.  Se mais não fosse, veja-se que o caput do artigo seguinte do anteprojeto (art. 17) retoma o direito à identidade pessoal, expandindo-o para, agora, dele extrair-se, nos termos do parágrafo 1º, além do direito ao nome, o direito à imagem, à voz, à integridade psicofísica, à orientação ou expressão de gênero, sexual, religiosa, cultural e "outros aspectos que lhe sejam inerentes". No fim, não fica claro se o direito à identidade pessoal seria um direito aglutinador de outros direitos da personalidade, que englobaria específicos direitos cuja autonomia já se encontra reconhecida pela lei, pela doutrina e pela jurisprudência (como nome, imagem e integridade psicofísica, por exemplo) ou se seria um direito autônomo como os demais descritos na codificação, o qual se comporia de alguns elementos (quais seriam eles, o dispositivo tampouco refere) e que, em sua concretude, remeteria às "peculiaridades da pessoa natural". O artigo 17, in verbis, assim dispõe: Art. 17. Toda pessoa tem direito ao reconhecimento e à preservação de sua identidade pessoal, composta pelo conjunto de atributos, características, comportamentos e escolhas que a distingam das demais. § 1º Além do nome, imagem, voz, integridade psicofísica, compõem também a identidade pessoal os aspectos que envolvam orientação ou expressão de gênero, sexual, religiosa, cultural e outros aspectos que lhe sejam inerentes. § 2º É ilícito o uso, a apropriação ou a divulgação não autorizada dos elementos de identidade da pessoa, bem como das peculiaridades capazes de identificá-la, ainda que sem se referir a seu nome, imagem ou voz.  Uma complexa pergunta emerge do enunciado, que, se entrasse em vigor, obrigaria a doutrina e a jurisprudência a prover alguma resposta para ela: o que são os atributos e os elementos da identidade pessoal? Seriam estes a mesma coisa que direitos? A confusão está posta.  No Brasil, à diferença do que ocorreu na Itália desde a década de 1970, o direito à identidade não encontra autonomia dentre os direitos da personalidade, sendo visto, majoritariamente, como um direito que envolve outros direitos, estes sim de autonomia reconhecida tanto em doutrina quanto em jurisprudência e também na própria lei desde o Código Civil de 2002. Assim, o direito à identidade, visto como "o direito a que a projeção social da própria personalidade não sofra deturpações ou distorções devido à atribuição de ideias, opiniões ou comportamentos diferentes daqueles que o indivíduo expressou na sua vida de relações"6, encontra proteção primordialmente por meio do direito à imagem. Esta, que possui tanto uma feição estática (a chamada imagem-retrato) quanto uma feição dinâmica (a chamada imagem-atributo, ligada à "descrição do caráter da pessoa"7) dará guarida à proteção deste "direito de ser si mesmo", ainda que críticas possam ser feitas ao modo como o direito foi retratado na elaboração do artigo 20 do CCb.  Na Itália, os tribunais criaram o chamado "direito à identidade pessoal", de caráter supostamente mais amplo e aglutinador, para tratar desse aspecto da pessoa humana. Talvez esse tenha sido o intuito no anteprojeto de reforma. Se foi, a proposta não alcança o sentido desejado ao trazer incerteza.  Não sem razão, Maria Celina Bodin de Moraes, reconhecida entre os dez mais importantes juristas do Brasil no World Scientists Rankings 2024, afirma que "O direito à identidade pessoal contemplaria, então, duas instâncias: uma estática e outra dinâmica. A identidade estática engloba os direitos ao nome, à origem genética, à identificação biofísica e à imagem-retrato; a identidade dinâmica refere-se à verdade biográfica e ao estilo individual e social, isto é, à imagem-atributo, àquilo que a diferencia e singulariza em sociedade. Alguns autores, neste último sentido, falam de 'direito à paternidade de seus próprios atos'".8   Retornando à reflexão sobre o art. 16, quanto ao parágrafo 1º, cabe questionar o uso do adjetivo "peculiar". No que adjetivar a pessoa humana seria, afinal, útil em um enunciado normativo? E ainda chamando-a de "peculiar", considerando o sentido por vezes pejorativo com o qual se emprega o referido adjetivo na linguagem cotidiana?  Já no parágrafo 2º, a problemática é de outra ordem. De modo similar, em seu cerne, ao que dispõe o artigo 20 do Código em vigor9, dispõe acerca da necessidade de autorização da pessoa para o emprego de seu nome "em publicações ou representações que a exponham ao desprezo público, ou que tenham fins econômicos ou comerciais". Ocorre que a nova redação, ao reproduzir a proibição contida no art. 20 e parágrafo único do dispositivo atual, parece desconsiderar todo debate travado no Brasil quando do julgamento da ADI 4815, ocorrido em junho de 2015, no qual prevaleceu por unanimidade, junto ao Supremo Tribunal Federal, a liberdade de expressão e de informação diante do perigo de censura a editoras e veículos de comunicação em geral, tendo em vista o caráter econômico de sua atividade. No caso, debatia-se muito a questão das chamadas "biografias não autorizadas" e da (in)exigibilidade de autorização prévia do biografado para a sua publicação, discussão que o novo parágrafo 2º pode reacender no que tange ao direito ao nome e à identidade pessoal. Na ocasião, seguindo o voto da relatora, Min. Cármen Lúcia, a decisão conferiu interpretação conforme à Constituição aos artigos 20 e 21 do Código Civil, invocando os direitos fundamentais à liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação.  Como já tivemos a oportunidade de sustentar em tese de doutoramento, na elaboração da obra biográfica, cuja intenção, como premissa, não é difamatória, pode ocorrer de algumas passagens narradas exporem o nome do biografado ou biografada ao desprezo público, porquanto não só de gloriosos momentos é feita a vida de qualquer pessoa. Nesse sentido, ou bem se reconhece legitimidade às biografias de modo geral, ou bem se proíbe que publicações e representações exponham, em alguma medida, o nome de outrem ao desprezo público. Com efeito, não se pode dar todo peso ao nome, assim como a nenhum dos demais direitos da personalidade.       Da mesma forma, os parágrafos 3º e 4º que vêm na sequência também podem ensejar confusão no intérprete e, com isso, colocar em risco todo sentido de uma maior segurança jurídica buscado pela Comissão. Isso porque a redação do primeiro, ao proteger o pseudônimo, o heterônimo, o nome artístico, as personas e os avatares digitais, afirmando tratar-se de "técnicas de anonimização", seguindo-se da redação do parágrafo 4º, que diz ser "vedada a adoção de técnicas ou estratégias de qualquer natureza que conduzam ao anonimato, que levem à impossibilidade de identificar agentes e lhes imputar responsabilidade", pode soar contraditória. Embora o sentido do anonimato que o parágrafo 4º vete seja o que impossibilita a identificação para fins de responsabilidade, a verdade é que o parágrafo 3º não traz "técnicas de anonimização". Essas são utilizadas quando se abordam dados pessoais - proteção atualmente elevada à condição de direito fundamental da pessoa humana no Brasil10 - de que é exemplo a técnica da criptografia. O pseudônimo, por exemplo, pode exercer diferentes funções na produção literária, sendo a preservação da privacidade apenas uma delas, ao lado de diversas outras, dentre as quais a separação de identidades de escrita, questões que envolvem preconceitos ou estereótipos de qualquer natureza e até mesmo liberação criativa.  Em relação ao parágrafo 6º do art. 16, este parece-nos absolutamente despiciendo, uma vez que não se cogitaria, de forma séria, que a legislação especial, ao tratar da possibilidade de alteração registral do nome tivesse qualquer reflexo no estado civil da pessoa. Do mesmo modo, melhor sorte não parece ter o parágrafo 7º, visto que a modificação do sobrenome de criança ou de adolescente deve observar às questões de filiação (biológica, por adoção ou socioafetiva), tendo relação com direito próprio dela, nada tendo a ver com o novo estado civil de um de seus ascendentes.  Por fim, a redação proposta para o artigo 20, parágrafo 1º, traz nova menção ao direito ao nome, que vai na contramão das liberdades democráticas. Veja-se: "Quando houver ameaça ou lesão ao nome, à imagem e à privacidade de pessoa que exerça função pública, a aferição da potencialidade ofensiva da ameaça ou da lesão será definida, proporcionalmente, à autoridade que exerce, resguardado o direito de informação e de crítica."  Trata-se de dispositivo com potencial para silenciar vozes que se pretendam levantar contra personalidades do cenário político nacional, cujo poder econômico e de mobilização de forças sociais e institucionais não pode deixar de ser destacado. Sabemos que é da própria democracia aceitar, especialmente em relação a políticos (mais do que em relação a qualquer outra figura pública) a crítica mais ácida e a multiplicidade de versões sobre sua trajetória de vida. Na política, mais do que nas artes ou no esporte, a vida privada da pessoa se relaciona com sua vida pública, na medida em que a cada eleição o eleitor deve fazer uma escolha dentre um número determinado de pessoas para representá-lo na tomada de decisão sobre os temas públicos mais importantes, que afetam diretamente a sua existência. É preciso que nos recordemos sempre, como uma vez me disse uma notável jurista brasileira: ingenuidade não é qualidade. __________ 1 BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.). Usos e abusos da história oral. 8ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 186. 2 Ibidem, p. 187. 3 BODIN DE MORAES, Maria Celina. A tutela do nome da pessoa humana. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 149. Hoje compreendido como um direito da personalidade humana, que não se realiza "através de um esquema fixo de situação jurídica subjetiva - o direito subjetivo -, mas sim por meio de uma complexidade de situações subjetivas, que podem se apresentar ora como poder jurídico, ora como direito potestativo ou como autoridade parental, interesse legítimo, faculdade, estado - enfim, qualquer acontecimento ou circunstância (rectius, situação) juridicamente relevante" (BODIN DE MORAES, Maria Celina. Ampliando os direitos da personalidade. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 126), o nome já foi visto, na seara jurídica, como simples "designação da personalidade", e não um direito em si, sendo esta mesma "um complexo de direitos" [subjetivos] e não, tampouco, um direito. Assim BODIN DE MORAES, Maria Celina. Na medida..., p. 151. 4 Na década de 1950, o jurista italiano Adriano De Cupis lecionava que o direito à identidade se decompunha em direito ao nome, direito ao título e direito ao sinal figurativo. (DE CUPIS, Adriano. Os direitos da personalidade. Trad. Adriano Vera Jardim e Antonio Miguel Caeiro. Lisboa: Livraria Morais Editora, 1961, p. 165-308). Foi a partir da década de 1970 que, na Itália, a cultura jurídica passou a reconhecer um caráter dinâmico a este direito, também definido pela doutrina daquela país como "l'interesse alla individualità personale" ou "l'interesse alla verità personale", "il diritto all'identità morale", "il diritto ad essere se stessi" ou ainda "falsa luce agli occhi del publico". É nesse sentido, da autonomia do direito à identidade pessoal em relação ao nome e a outros direitos, que Giorgio Pino defendeu sua tese de doutoramento que resultou na obra Il diritto all'identità personale: interpretazione constituzionale e creatività giurisprudenziale. Bologna: Il Mulino, 2003. No Brasil, defendeu tese de doutoramento nesse mesmo sentido Raul Cleber da Silva Choeri, que resultou no libro O direito à identidade na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010 e, em nível de mestrado, Ligia Fabris Campos. O direito de ser si mesmo: a tutela da identidade pessoal no ordenamento jurídico brasileiro. Dissertação de Mestrado - PUC-Rio, 2006. Em ambos os trabalhos acadêmicos o direito à identidade pessoal foi fundamentado na cláusula geral de tutela da pessoa humana do art. 1º, III, da CF/88.    5 Apenas para citar-se um exemplo, em 2023, o Ministério Público Federal (MPF) expediu recomendação aos cartórios do Acre para que registrem indígenas recém-nascidos com nomes em suas línguas tradicionais. Disponível aqui. Acesso em 03 de maio de 2024. 6 PINO, Giorgio. Il diritto all'identità personale: interpretazione constituzionale e creatività giurisprudenziale. Bologna: Il Mulino, 2003, p. 9. 7 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 25. ed. rev. e atual. por Maria Celina Bodin de Moraes. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 215, v. I. 8 BODIN DE MORAES, Maria Celina. Na medida..., p. 138. 9 "Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. (Vide ADIN 4815) Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes." 10 Art. 5º, LXXIX, da CF/88 - é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 115, de 2022).
segunda-feira, 13 de maio de 2024

Editorial - Migalhas das Civilistas

Com enorme alegria e comprometidas com os valores da igualdade, pluralidade, alteridade e amizade, As Civilistas se uniram ao Migalhas para inaugurar essa coluna editorial quinzenal. Nós, as Civilistas, somos uma associação de mulheres dedicadas ao estudo do Direito Civil nas diversas áreas de atuação do direito: advogadas, magistradas, professoras, registradoras, notárias ligadas pelo desejo de aprimoramento técnico e leitura interdisciplinar desse campo do direito, tão fundamental para a sociedade. Estudamos e aplicamos o Direito Civil, considerando a unidade do ordenamento jurídico, sob uma visão multidisciplinar e atenta às demandas da sociedade contemporânea. Compreendemos o sujeito de direito dos códigos como o sujeito de direitos humanos e fundamentais, razão pela qual apostamos na aplicação do direito civil segundo a legalidade constitucional. Nosso objetivo primordial é contribuir para a construção e disseminação de um discurso jurídico, político e social que promova a dignidade da pessoa humana, e seus corolários: integridade psicofísica, liberdade, igualdade e solidariedade. Sob essa premissa, buscamos a efetivação da igualdade de gênero e a inclusão de grupos sociais vulneráveis. Se historicamente fomos talhadas para a tarefa do cuidado, esse viés nos inspira a análise cautelosa e globalizada dos institutos, visando à máxima promoção da pessoa humana que, na quadra histórica atual, constitui um valor constitucional. Não se pode desconsiderar que somente após as duas Grandes Guerras do Século XX, as mulheres romperam a barreira do silêncio e, paulatinamente, passaram a ocupar os bancos das universidades e buscar as carreiras jurídicas. O interesse pela história das mulheres, em geral, é muito recente, remontando às décadas de 1960-70.1 Mais recente é a atuação das civilistas que, no cenário nacional, despontaram apenas a partir da década de 1980. Chega a ser inacreditável que, poucas gerações atrás, simplesmente não havia mulheres presentes nos espaços de discussão e construção do direito. De fato, como se o direito não dissesse respeito à vida de mulheres, as leis eram feitas exclusivamente por homens. Dentre essas, a partir de um grande esforço, que engajou civilistas de todo o Brasil, pudemos identificar pouco mais de 30. Sem dúvidas que essas mulheres pioneiras tiveram que enfrentar muitas barreiras e preconceitos para se afirmar nestes espaços antes obstruídos para nós. E por isso mesmo, tratamos de expressar-lhes nossas homenagens e nossa gratidão, por terem aberto os caminhos para a nossa presença, neste ambiente que antes nos fora obstruído, dedicando-lhes a medalha das Civilistas Eméritas. Não obstante, esses espaços são vistos, ainda, como naturalmente ocupados por homens, sendo sempre excepcional a presença das mulheres. A hegemonia masculina, herança dos tempos em que nossa participação era efetivamente obstruída e negada, se retroalimenta. Ainda hoje, uma rápida análise sobre os currículos do curso de Direito mostra a preponderância da bibliografia masculina, confirmando que foram os homens que, nos últimos anos, explicaram e construíram a estrutura e função dos diversos institutos, notadamente, do Direito Civil. A despeito de sua competência técnica, porém, eles nem sempre demonstraram atenção aos impactos decorrentes da discriminação de gênero e/ou das vulnerabilidades, tampouco podem tratar do tema com a percepção própria ao existir e ser mulher. É o próprio olhar masculino que precisa se transformar e vislumbrar aquilo que antes não enxergava, a partir do momento em que a mulher, presente no espaço público, passa a pautar os temas e os problemas que a sociedade até pouco ignorava. O Supremo Tribunal Federal, ostenta um total de 10 Ministros e uma única Ministra; enquanto o Superior Tribunal de Justiça, possui 27 Ministros homens e apenas  seis Ministras mulheres. Do ponto de vista do recorte racial a exclusão é ainda mais evidente, não há mulheres negras, e dentre homens negros, conta-se hoje, apenas um no STJ. Embora sejamos maioria entre os inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil, apenas quatro das 24 seccionais são lideradas por mulheres, valendo também lembrar que o Conselho Federal jamais teve uma presidente. Segundo dados de Relatório do Conselho Nacional de Justiça, a participação das mulheres na composição de tribunais superiores caiu de 23,6% para 19,6% nos últimos dez anos. Os dados caminham em direção contrária do ODS nº05, da Agenda 2030, da ONU, com a qual o Brasil se comprometeu. Nesse cenário,  nosso empenho é sobretudo de ocupar esses espaços de debate e construção e ressignificação dos institutos e categorias do Direito Civil, fazendo ressaltar os valores que proclamamos e a imperiosidade de sua releitura para favorecer a representatividade e visibilidade  daqueles e daquelas que têm sido historicamente excluídos nesta dupla camada: como partícipes da construção do direito e da definição das normas jurídicas, e como sujeitos de direito, nunca devidamente considerados, com especial atenção ao tema das vulnerabilidades. Por meio dessa coluna, buscamos incentivar o diálogo e o debate sobre temas relevantes, funcionando como um canal aberto a todas e todos os juristas que se dedicam ao estudo do direito civil e áreas afins, ocupados em construir pontes e/os meios para a otimização da tutela integral da pessoa na área dos direitos existenciais e patrimoniais.  Perceber as contradições do direito que não se apresenta, efetivamente, como uma unidade coerente e irretocável, é parte do processo reflexivo e dialógico para a propositura de mudanças. E isso requer tempo e pluralidade de personas à mesa, debruçados sobre o mesmo problema, a fim de construir soluções mais firmes e ajustadas aos fins almejados por uma sociedade democrática. Acreditando no diálogo franco e no debate técnico, essa coluna se propõe a trazer reflexões plurais amplas e imbuídas do espírito cooperativo pleno. Sejam todos e todas muito bem-vindos às Migalhas das Civilistas! __________ 1 PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Trad. Viviane Ribeiro. Bauru, SP: EDUSP, 2005, p.16-20.