Reflexões sobre adequação médica, bioética e jurídica - Os procedimentos para realização de transplantes de órgãos entre vivos
sexta-feira, 6 de junho de 2025
Atualizado às 08:05
Introdução
O Núcleo de Estudos em Direito, Saúde e Bioética da Escola Superior de Magistratura (ESMRGS) da AJURIS, com apoio do CEJUD - Centro de Formação do Judiciário do RS e o Laboratório de Pesquisa em Ética e Bioética na Ciência (LAPEBEC) do HCPA, promoveu o seminário sobre Reflexões sobre Adequação Médica, Bioética e Jurídica sobre os procedimentos para realização de transplantes de órgãos entre vivos, em 25 de outubro de 2024, como a conferência do Doutor Joel de Andrade, Médico, Coordenador Estadual de Transplantes na Secretaria do Estado de Saúde de Santa Catarina e Coordenado Técnico do Sistema Nacional de Transplantes. O seminário pode ser assistido na sua integra na Plataforma Direito na Saúde. (ANDRADE, 2025)
Os pontos mais importantes do conteúdo incluem a importância da bioética e das questões jurídicas relacionadas ao transplante de órgãos, especialmente no contexto da Lei de Transplantes, lei 9.434/97.
Destaca-se o papel crucial dos juízes e magistrados nesse processo, que será o objetivo central deste texto, considerando o artigo art. 9º, da lei 9.434/77. Assim, a pergunta central que norteará o desenvolvimento do objetivo central deste texto é: O que os juízes devem considerar para autorizar doação intervivos não?
A fim de responder esta pergunta, o texto está organizado nos seguintes itens:
1) As regras para a doação de transplantes intervivos não aparentados;
2) Sistema Nacional de Transplantes e a importância das Comissões Intra-Hospitalares de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante, e
3) O poder judiciário e sistema de justiça: autorização para a realização de transplantes intervivos não aparentados
1 - Regras para a doação de transplantes intervivos não aparentados no Brasil
O Código Civil Brasileiro, lei 10.406/02, regra geral do cidadão comum, determina no artigo 13, parágrafo único, posto no Capítulo II, dos Direitos da Personalidade, que a doação de órgãos será regulada na forma estabelecida em lei especial, no caso a Lei de Transplantes de Órgãos, lei 9.434/97.
A regra especial, por sua vez, a Lei de Transplantes, a lei 9434/ 97, estabelece que a doação de órgãos entre pessoas não aparentadas necessita de um deferimento judicial. Isso significa que, para que um transplante entre doadores não relacionados ocorra, é imprescindível a autorização de um juiz, garantindo que o processo siga os princípios éticos e legais adequados. Destaca-se o artigo art. 9º, da Lei, que normatiza:
É permitida à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge ou parentes consanguíneos até o quarto grau, inclusive, na forma do § 4º deste artigo, ou em qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial, dispensada esta em relação à medula óssea.(Redação dada pela lei 10.211, de 23/3/01)
Portanto, a decisão deve ser tomada por um juiz, que avaliará o caso concreto com base em aspectos normativos, bioéticos, éticos e técnicos, garantindo a adequação de todo processo, em respeito aos direitos de personalidade, pautado no princípio da dignidade da pessoa humana.
Neste contexto, é fundamental que o processo de consentimento informado seja realizado de forma adequada, com todos os documentos médicos e análises de risco do doador devidamente apresentados. Além disso, a decisão deve ser baseada em informações completas e instrumentadas, garantindo que o juiz não decida sem o devido conhecimento sobre o caso.
2) Sistema Nacional de Transplantes (SNT) e a importância das Comissões Intra-Hospitalares de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante
O Sistema Nacional de Transplantes - SNT é a estrutura do Ministério da Saúde (MS), responsável por coordenar, normatizar e monitorar a realização de transplantes de órgãos, tecidos e células no Brasil. Seu principal objetivo é garantir que os transplantes sejam realizados de forma ética, segura e transparente, respeitando os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS).
O SNT regulamenta e fiscaliza a doação e transplante de órgãos, tecidos, células e parte do corpo humano, a partir de doadores vivos ou falecidos, conforme autoriza o Código Civil, lei 10.406/02, artigo 13 e a Lei de Transplantes de Órgão, lei 9434/97.
O Brasil possui o maior programa público de transplante de órgãos, tecidos e células do mundo, que é garantido a toda a população por meio do SUS, que financia cerca de 86% dos transplantes de órgãos no país. Apesar do grande volume de procedimentos de transplantes realizados, a quantidade de pessoas em lista de espera para receber um órgão é um desafio a ser enfrentado.
O SNT tem como propósito garantir a transparência e equidade na distribuição por meio do monitoramento da lista única de espera de órgão humanos após a morte do doador e a adequação de todo o processo quando há a doação de órgãos intervivos, em vista de garantir a diminuição de pessoas, receptoras, aguardando por um órgão nas listas de transplante de doadores.
Além disso, atua na capacitação de profissionais da saúde, na conscientização da população sobre a importância da doação e na garantia da qualidade e segurança dos procedimentos de transplante.
A formação e a capacitação de profissionais são coordenadas pelas Secretarias de Saúde do Estados, por meio das Centrais Estaduais de Transplantes de Órgãos. A Central Estadual de Transplantes (CET) é um órgão responsável pela coordenação e gestão dos transplantes de órgãos dentro de um estado. Ela atua na organização da captação de doadores, na distribuição de órgãos e na supervisão dos procedimentos de transplante, garantindo que sejam realizados de acordo com as normas éticas e legais. Além disso, a central é fundamental para a formação de profissionais e para a promoção de campanhas de conscientização sobre a doação de órgãos.
As orientações de todo o Sistema devem ser difundidas pelas Comissões Intra-Hospitalares de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante (CIHDOT). A CIHDOT é um grupo que atua na coordenação e promoção da doação de órgãos em nível institucional. Ela é responsável por discutir e implementar estratégias para aumentar a captação de doadores, além de garantir que os procedimentos sigam as normas éticas e legais. A CIHDOT também pode envolver profissionais de saúde, representantes de hospitais e especialistas em bioética, visando otimizar o processo de doação e transplante de órgãos.
No caso de transplantes intervivos de pessoas não aparentadas, o papel da CET e da CIHDOT são quase irrelevantes. Estas estruturas são voltadas à captação, distribuição e utilização de órgãos de doadores falecidos. As equipes de saúde diretamente envolvidas na realização do transplante intervivos, os consultores de Bioética e os Comitês de Bioética Clínica é que acabam sendo fundamentais para a adequação do processo de doação.
O potencial doador deve ser avaliado no sentido de garantir que a sua manifestação de vontade seja livre de coerção; de que não há comercialização de órgãos (ato ilícito civil e penal, conforme regra constitucional artigo 199 § 4º e artigo 15 da Lei de Transplantes) ou qualquer outra forma de interferência indevida.
Na consultoria de Bioética Clínica poderão ser abordadas questões trazidas pela equipe multiprofissional, especialmente pelos médicos, psicólogos e assistentes sociais. Na consultoria de Bioética Clínica poderão ser abordados múltiplos aspectos, além das questões éticas, morais e legais, que podem estar envolvidos nesta situação, tais como: econômicos; afetivos; culturais; psicológicos; sociais, espirituais, entre outros.
A partir desta consultoria direta com o potencial doador, e da interação com os demais membros das equipes assistenciais, será elaborado um parecer, registrado no prontuário do potencial doador. Este parecer será baseado, em sua maioria, nos aspectos biográficos do potencial doador. Os aspectos biológicos serão objeto de parecer das demais equipes envolvidas.
Neste parecer da Bioética Clínica constarão os dados que permitiram verificar a adequação bioética da intenção de doar, especialmente os aspectos referentes a autonomia, autodeterminação, integridade e vulnerabilidade. Este parecer será encaminhado para conhecimento e avaliação por parte do Comitê de Bioética Clínica. Havendo necessidade imperiosa de realizar o procedimento e o parecer sendo da adequação do ato de doar, o mesmo poderá ser encaminhado a autoridade competente para permitir a realização do transplante, ad referendum.
Nas consultorias de Bioética Clínica envolvendo potenciais doadores não aparentados foi possível identificar situações adequadas e inadequadas desde o ponto de vista bioético.
Caso 1
Em uma situação, uma família, que veio de outro estado para realizar um transplante intervivos de rim, apresentou um rapaz, de 19 anos, como sendo "filho de criação". Na consultoria, todas as pessoas presentes, potencial doador, paciente receptor e sua esposa, foram informados que a entrevista ocorreria em duas etapas. Na primeira, todos estariam presentes, enquanto que na segunda etapa, apenas o potencial doador permaneceria com os consultores de Bioética Clínica. No primeiro momento, apenas a esposa do paciente que iria receber o rim falou, não dando espaço para que os outros participantes apresentassem os seus pontos de vista. Ela argumentou que o potencial doador estava retribuindo os cuidados que recebeu, dela e do esposo, desde a infância. Ela reiterou várias vezes que a ideia de doar tinha partido do potencial doador e que eles não tiveram influência alguma nesta decisão. Vale destacar que o paciente receptor do rim, que também estava presente, não se manifestou. Quando foi dada a continuidade da reunião, agora apenas com a participação do potencial doador, esta senhora afirmou que não sairia, pois tinha direito de estar presente em todas as etapas do processo de avaliação. Porém, acabou aceitando e se retirou. O potencial doador, na presença apenas da equipe de Bioética Clínica, informou que não era "filho de criação", mas sim filho da funcionária que fazia tarefas domésticas para a família do receptor. Na sua fala ficou evidente que estava sendo pressionado a doar, especialmente pela esposa do receptor. A utilização da Escala de Percepção de Coerção de MacArthur evidenciou esta situação. O parecer foi dado no sentido de que foram evidenciados aspectos de coerção que inviabilizaram a realização da doação. A esposa do doador recebeu a notícia com indignação e disse que iria solicitar a revogação deste parecer. O procedimento não foi realizado.
Caso 2
Foi encaminhado um doador não aparentado que tinha poucos vínculos com a família da paciente receptora de fígado, que era uma menina de 5 anos. Este potencial doador tinha 25 anos e compareceu na consultoria com a namorada e outro amigo. Foi realizado o mesmo procedimento descrito no caso anterior. A família da receptora não participou da entrevista em função do tênue relacionamento existente entre eles. O potencial doador relatou que era da mesma cidade da receptora, mas que não se conheciam. Ficou sabendo por outras pessoas que esta menina estava necessitando de doação de fígado para tratar um sério problema de saúde. Ele ficou bastante mobilizado com a história e comentou com a namorada e este amigo da sua vontade de doar. Os dois discutiram o assunto em conjunto com ele, buscaram informações sobre como era a cirurgia de doação com uma equipe médica de sua localidade. Após isto, o seu desejo de ser um doador intervivos para a menina foi reiterado. Quando a namorada e o amigo foram questionados sobre o motivo de estarem presentes, ambos disseram que se o potencial doador tivesse algum impedimento biológico de doar, eles também se ofereceriam para fazer a doação. Na conversa individual com o potencial doador não foram evidenciados quaisquer fatores de coerção, inclusive emocional. O potencial doador já havia sido avaliado e liberado pela equipe de Psicologia. O parecer foi dado no sentido da adequação bioética do ato voluntário de doação. Estas informações, em conjunto com as demais informações dos aspectos biológicos, que igualmente indicavam a compatibilidade entre o potencial doador e a receptora, foram encaminhadas ao poder judiciário. Houve um despacho favorável e o procedimento foi realizado com sucesso, com ambos os pacientes, doador e receptor, tendo tido alta hospitalar com segurança.
3) O poder judiciário e sistema de justiça: autorização para a realização de transplantes intervivos não aparentados
A decisão judicial é fundamental para que o transplante de órgão intervivos não aparentados seja efetivada. Neste contexto, além do pedido feito pelo receptor deve estar instrumentalizado com todos os documentos e laudos médicos e técnicos que embasam a condição clínica do demandante.
Da mesma forma, o/a magistrado/a deve considerar, além, dos documentos e recomendações do CET e da CIHDOT, os pareceres e relatórios encaminhados pelas diferentes equipes assistenciais envolvidas na avaliação do potencial doador não aparentado. Nos hospitais que não tem consultorias de Bioética Clínica, especial atenção deverá ser dada aos pareceres da Psicologia e do Serviço Social, buscando evidenciar algum aspecto de coerção que possa estar presente.
É importante levar consideração a recomendação do Conselho Nacional de Justiça, por meio do Enunciado 114, FONAJUS, VI Jornada de Direito da Saúde. de que "Na doação de órgãos entre vivos que dependa de prévia autorização judicial, como os casos de transplante entre pessoas não aparentadas, é fundamental que o processo de consentimento informado seja realizado de forma a observar aspectos técnicos, adequação normativa e deontológica e os ditames da bioética. Este processo deve estar instrumentalizado com todos os documentos médicos, análise de risco à saúde do doador e documentos referentes às entrevistas realizadas pela equipe transplantadora, Comitê de Bioética Hospitalar e profissionais das Secretarias de Regulação de Transplante de Órgãos dos Estados".
Considerações finais
O aumento nas taxas de doações de órgãos depende diretamente da realização de atividades educacionais, tais como capacitação, treinamento de habilidades e acompanhamento, voltadas aos profissionais de saúde que atuam nas CETs, nas CIHDOTs e nos hospitais. A realização de campanhas de esclarecimento para a população, assim como os demais setores da sociedade envolvidos com as questões da doação de órgãos é igualmente fundamental.
A realização de transplantes de órgãos intervivos com doadores não aparentados é sempre uma atividade singular. Cada situação tem suas características próprias e deve ser avaliada com base neste elementos peculiares. Nestas situações, que devem ser a exceção e não a regra, deverão ser observados todos os aspectos técnicos e legais associados à realização de transplantes de órgãos. Nestes casos deverão ser considerados todos os potenciais riscos para o doador e os benefícios esperados à saúde do receptor. É uma situação onde devem ser considerados os interesses e direitos de dois pacientes: doador e receptor. Neste sentido, o Sistema de Justiça, Magistratura, Ministério Público e Advogados devem atuar para garantir que a doação seja livre de coerção e baseada em uma genuína solidariedade.
Referências
ANDRADE, Joel. Reflexões sobre adequação médica, bioética e jurídica sobre os procedimentos para realização de transplantes de órgãos entre vivos. Seminário do Núcleo de Estudos em Direito, Saúde e Bioética da Escola Superior de Magistratura- AJURIS, Org. Fernandes, Márcia Santana, realizado 25 de outubro de 2025. Acessível aqui.
BRASIL. Lei 10.406/02. Código Civil Brasileiro.
BRASIL. Lei Lei 9.434/77. Lei de Transplante de Órgão.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Enunciado 114, FONAJUS, VI Jornada de Direito da Saúde.
BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Sistema Nacional de Transplantes.