Transferência internacional de dados entre Brasil e UE: O dilema da ANPD após a decisão de adequação
sexta-feira, 12 de setembro de 2025
Atualizado em 11 de setembro de 2025 09:23
1 Breve introdução
Na última semana, a União Europeia deu um passo histórico ao reconhecer o Brasil como país adequado para a transferência internacional de dados pessoais. A decisão da CE - Comissão Europeia, que ainda aguarda etapas formais de aprovação1, coloca o país em posição de destaque no cenário global de proteção de dados, juntando-se aos vizinhos Uruguai e Argentina e a mais 15 países.2
Mas afinal, o que isso significa para o Brasil? Em primeiro lugar, representa um selo de confiança no nosso regime jurídico. A LGPD, inspirada e frequentemente comparada ao Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados da União Europeia GDPR - General Data Protection Regulation mostrou-se suficientemente adequada para garantir direitos individuais, em especial a proteção da privacidade e dos dados pessoais.
Do ponto de vista econômico, o impacto é imediato. Empresas brasileiras não precisarão mais adotar cláusulas adicionais ou mecanismos contratuais complexos para enviar ou receber dados da Europa. Isso reduz custos, elimina burocracia e aumenta a competitividade das companhias nacionais, especialmente startups e empresas de tecnologia, que agora podem disputar em pé de igualdade contratos internacionais.
No campo institucional, a decisão é também um reconhecimento ao trabalho da ANPD - Autoridade Nacional de Proteção de Dados, que conquistou autonomia e consolidou seu papel como regulador confiável. A chancela europeia fortalece a ANPD e pressiona pela manutenção de um órgão atuante, técnico e independente.
Para os cidadãos, o ganho é igualmente relevante. Seus dados passam a ser tratados com padrões de segurança comparáveis aos europeus, o que reforça a confiança nas instituições e dá mais efetividade a direitos já previstos: acesso, correção, portabilidade e exclusão de informações pessoais.
Do ponto de vista diplomático, o Brasil entra em um seleto grupo de países considerados 'seguros' para o fluxo de dados pela União Europeia, ao lado de economias avançadas como Japão, Suíça e Reino Unido. Esse posicionamento reforça a imagem internacional do país e abre portas para novas cooperações científicas, tecnológicas e econômicas.
É verdade que desafios permanecem. A adequação, por si só, não garante que a proteção de dados no Brasil seja efetiva. Ainda é necessário fortalecer a cultura de privacidade nas empresas, investir em capacitação e garantir que a LGPD seja cumprida de forma rigorosa. Do contrário, corre-se o risco de o reconhecimento europeu ser apenas um título formal.
De todo modo, o saldo é positivo. A decisão projeta o Brasil como protagonista regional e consolida a proteção de dados como um direito fundamental em prática, não apenas em teoria. Cabe agora transformar esse marco normativo em mudanças reais no cotidiano de empresas, órgãos públicos e cidadãos.
Na coluna desta semana, fica a reflexão: não basta o selo de confiança europeu. É preciso que o Brasil faça jus a ele, mostrando ao mundo que a proteção de dados não é apenas uma obrigação legal, mas um compromisso democrático e civilizatório.
2 Análise do sistema brasileiro - o que a Comissão considerou?
Uma decisão de adequação faz uma radiografia completa do ordenamento jurídico do país avaliado a fim de conferir se o país adota um modelo de proteção, no mínimo, equivalente ao da EU. No caso do Brasil, a Comissão Europeia destacou que a Constituição Federal de 1988 protege a intimidade e a vida privada no seu art. 5º, inciso X, o sigilo de correspondência e comunicações no seu inciso XII e, de forma expressa, a proteção de dados pessoais, incluído pela EC 115/22.3
Também destaca a CE que conforme constituição brasileira, os direitos fundamentais nela previstos, incluindo privacidade e proteção de dados, são aplicáveis universalmente a qualquer pessoa, inclusive estrangeiros, assegurando nível elevado de proteção.4
Outro ponto considerado é a ratificação, pelo Brasil, do Pacto San Jose da Costa Rica, com a incorporação consequente ao direito brasileiro do art. 11 (direito à privacidade) e art. 8 (direito a julgamento justo) da referida Convenção.
Quanto à LGPD, a decisão ressalta sua promulgação aplicável a todos os indivíduos, independentemente de sua nacionalidade, bem como a instituição da ANPD - Autoridade Nacional de Proteção de Dados, órgão responsável por fiscalizar, regulamentar e aplicar a legislação no país, com autonomia institucional.
A atuação internacional da ANPD é destacada no considerando 14 do documento (p. 4), sendo reconhecida sua participação ativa na proteção de dados, como membro da GPA - Global Privacy Assembly, organismo que reúne mais de 130 autoridades de proteção de dados no mundo, incluindo todas as da União Europeia. Além disso, é reconhecido que o país também passou a ser observador no Comitê da Convenção 108 do Conselho da Europa, sobre a proteção de dados pessoais, bem como tendo protagonizado debates na ONU sobre privacidade e liderado, junto com a Alemanha, as resoluções da ONU sobre o direito à privacidade na era digital (2013 e 2014), as quais condenam práticas como vigilância e coleta arbitrária de dados e conclamam os Estados a garantirem transparência, supervisão independente e responsabilização no tratamento de informações pessoais.
Por fim, a Comissão destaca que a estrutura legal brasileira aplicável aos dados pessoais transferidos da União Europeia para o Brasil é semelhante à da própria União Europeia. Esse sistema não se apoia apenas em dispositivos constitucionais e legais internos, mas também em obrigações de direito internacional, como a adesão do Brasil à Convenção Americana de Direitos Humanos e o reconhecimento da jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
3. O que muda para o Brasil?
O reconhecimento feito pela UE, após a devida tramitação e aprovação da decisão de adequação gerará efeitos benéficos ao país de pelo menos quatro ordens: jurídica, econômica e social.
3.1. Ganhos jurídicos
O primeiro benefício a ser destacado é de ordem jurídica e regulatória. O reconhecimento europeu reforça a legitimidade constitucional e legal da LGPD, aproximando o Brasil de sistemas jurídicos considerados como referências globais.
Há uma redução de incertezas jurídicas para empresas que necessitam transferir dados entre Brasil e União Europeia, pois deixam de ser obrigadas a adotar mecanismos adicionais (como cláusulas contratuais padrão ou regras corporativas globais). Isso se traduz diretamente na diminuição de custos para empresas brasileiras que prestam serviços para a União Europeia.
Uma empresa brasileira de tecnologia da saúde que presta serviços de telemedicina para hospitais na Alemanha, v.g., precisa transferir dados de pacientes europeus para processar exames e emitir laudos no Brasil.
Antes da decisão de adequação, é necessário incluir no contrato Cláusulas Contratuais Padrão (Standard Contractual Clauses - SCCs) aprovadas pela Comissão Europeia, além de avaliações adicionais de risco. Esse procedimento gera custos elevados de compliance e, em alguns casos, pode atrasar a assinatura de contratos. Após a decisão de adequação, contudo, a transferência pode ocorrer diretamente, sem a exigência de cláusulas ou autorizações adicionais.
Para empresas brasileiras, a decisão gera segurança jurídica e redução de custos.
3.2. Ganhos econômicos
Em termos econômicos, o impacto da decisão é imediato e estratégico. A eliminação de barreiras regulatórias nas transferências de dados favorece o comércio internacional, sobretudo em setores como tecnologia, saúde, finanças e comércio eletrônico.
Empresas brasileiras, especialmente startups e setores de tecnologia, ganham competitividade global, uma vez que podem operar de forma integrada a cadeias europeias sem custos adicionais de conformidade.
Uma fintech brasileira que queira oferecer serviços de pagamento digital em Portugal, por exemplo, poderá dispensar a contratação de auditorias independentes, pareceres jurídicos e contratos adicionais, o que pode gerar custos e inviabilidade da operação.
3.3. Ganhos políticos e diplomáticos
Como impacto da decisão, o Brasil ingressa em um seleto grupo de países considerados "seguros" pela União Europeia, ao lado de economias avançadas como Japão, Suíça e Reino Unido.
A medida projeta o Brasil como líder regional em proteção de dados, conferindo-lhe capacidade de influência nas discussões multilaterais sobre privacidade, segurança digital e governança da internet.
Politicamente, trata-se de uma validação internacional da democracia digital brasileira, em um contexto em que o país se apresenta como defensor de direitos fundamentais e alinhado a padrões internacionais de direitos humanos.
3.4. Ganhos sociais e institucionais
No plano social, a decisão deve aumentar a confiança dos próprios cidadãos brasileiros no sistema jurídico nacional e na efetividade, confiabilidade e avanço da LGPD e das decisões da ANPD.
Institucionalmente, a ANPD ganha força para impor boas práticas de governança de dados, estimular a cultura de proteção da privacidade e exigir maior responsabilidade das organizações públicas e privadas.
Essa internalização de padrões internacionais contribui para a maturidade regulatória do país e fortalece a agenda de direitos fundamentais no ambiente digital.
4. E como ficará a reciprocidade? É automática?
A decisão preliminar da União Europeia de reconhecer o Brasil como país adequado para a transferência internacional de dados pessoais gera, inevitavelmente, uma expectativa de reciprocidade regulatória. Isso significa que, assim como a União Europeia permitirá que dados de seus cidadãos circulem livremente para o Brasil, também caberá ao Brasil reconhecer que os dados de cidadãos brasileiros podem ser enviados a países da União Europeia sem necessidade de autorizações adicionais.
Ocorre que inexiste uma reciprocidade automática, por razões óbvias. Um país com nível de proteção menor que o Brasil pode considerar o nível de proteção brasileiro adequado, mas isso não quer dizer que o inverso seja verdadeiro.
Com efeito, a LGPD prevê, em seu art. 34, que a ANPD - Autoridade Nacional de Proteção de Dados pode deliberar sobre a adequação de outros países ou organismos internacionais ao nível de proteção adotado pela legislação brasileira.
A resolução ANPD 19/24 prevê critérios para decisão de adequação a partir de seu art. 10. Até o momento, contudo, nenhuma decisão foi expedida pela autoridade.
A priori, contudo, o próprio histórico de adoção da LGPD e sua influência pelo GDPR sinalizam pela emissão de uma futura decisão recíproca.
5. O dilema para a ANPD - a questão da retransferência de dados pessoais para os Estados Unidos
Uma questão a ser considerada no caso de a ANPD entender pela adequação da UE ao regime de proteção de dados adotado pelo Brasil, o que potencialmente traria ainda mais benefícios econômicos ao país, são os riscos de tratamento de dados por empresas americanas, em especial as Big Techs.
A UE e os Estados Unidos têm travado uma disputa sobre a possibilidade de transferência de dados pessoais europeus para empresas americanas, desde as revelações do caso Snowden, em 2013.
As revelações feitas pelo ex-agente da NSA expuseram programas de vigilância massiva conduzidos pelas autoridades norte-americanas, envolvendo inclusive a coleta indiscriminada de comunicações de cidadãos europeus. Esse episódio abalou a confiança entre os blocos e colocou em xeque a validade do primeiro acordo entre eles nesse campo, o Safe Harbor Agreement (2000). Em 2015, o TJ/UE, no emblemático caso Schrems I (C-362/14), declarou inválido o Safe Harbor, entendendo que as práticas de vigilância reveladas não eram compatíveis com os princípios de necessidade e proporcionalidade previstos no direito europeu e que inexistiam mecanismos eficazes de tutela judicial para os cidadãos da União.
Em resposta, os dois blocos celebraram um novo acordo, o EU-US Privacy Shield (2016), que procurava introduzir garantias adicionais de transparência e controle institucional. Entretanto, o acordo logo foi criticado pela fragilidade das salvaguardas e pela persistência do modelo norte-americano de proteção de dados, o que ficou ainda mais evidente no escândalo da Cambridge Analytica, em 2018, com a coleta e o uso abusivo de informações pessoais de milhões de usuários do Facebook para manipular processos eleitorais, revelando lacunas graves de accountability no sistema norte-americano.
Esse contexto levou novamente o TJ/UE a intervir, e no julgamento do caso Schrems II (C-311/18), em julho de 2020, o tribunal declarou inválido o Privacy Shield. A Corte destacou que a legislação de vigilância dos Estados Unidos - especialmente a FISA 702 e a Executive Order 12333 - continuava a permitir a coleta em larga escala de dados, sem salvaguardas adequadas de proporcionalidade e sem a existência de vias efetivas de revisão judicial para cidadãos europeus.
Diante da pressão, o governo norte-americano editou a Executive Order 14086, em 2022, estabelecendo novas garantias, limitando o acesso das autoridades de inteligência e criando o Data Protection Review Court (DPRC) como mecanismo independente de recurso. A partir dessas mudanças, em 2023, a Comissão Europeia aprovou o EU-US Data Privacy Framework (DPF), restabelecendo os fluxos de dados entre os dois blocos, agora sob regras mais rigorosas de necessidade, proporcionalidade e supervisão.
Ocorre que as críticas que vinham sendo feitas ao regime americano se mantem, como a ausência de garantias para a tutela jurisdicional efetiva, considerando o modelo de judicial review nos Estados Unidos, bem como a existência de leis que autorizam uma vigilância governamental em áreas sensíveis, o que possui estatura superior à Ordem Executiva 14086, ato de natureza administrativa.
Devido a essas questões, o caso foi novamente levado ao TJ/UE (Caso T-553/23 - Latombe vs Comissão). Coincidentemente, na semana passada, quase juntamente com a apresentação da minuta da decisão de adequação do sistema brasileiro ao regime europeu de proteção de dados, o Tribunal Geral do TJUE julgou o caso, considerando que o Data Privacy Framework, acordo feito entre a União Europeia e os Estados Unidos para transferência internacional de dados está de acordo com a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia. Cabe ainda recurso para o TJUE (Court of Justice).5
A ausência de uma decisão final por parte do TJ/UE, bem como os próprios questionamentos levantados contra o Data Privacy Framework podem expor certa preocupação de adoção, pela ANPD, de uma decisão de adequação da União Europeia, havendo o risco de exposição a regimes de vigilância dos EUA que, embora formalmente limitados pela Executive Order 14086 e pelo Data Protection Review Court, ainda são considerados controversos. Em especial com toda a política controversa adotada pelo atual presidente Donald Trump.
O mais recomendado, por ora, talvez seja aguardar o trânsito em julgado da ação T-553/23 no TJ/UE e a estabilização da política externa e econômica dos Estados Unidos, eis que, das Big Techs americanas, apenas a Apple não se encontra certificada no Data Privacy Framework.
Conclusão
A decisão de adequação da União Europeia projeta o Brasil como ator global de destaque na proteção de dados, conferindo ganhos jurídicos, econômicos e diplomáticos relevantes. Contudo, uma decisão regulatória recíproca por parte do Brasil, por intermédio da ANPD, exige cautela.
De fato, embora seja provável que a ANPD reconheça a União Europeia como adequada, a possibilidade de retransferência de dados a países como os Estados Unidos, cuja legislação ainda é marcada por tensões entre vigilância estatal e privacidade individual, impõe uma postura prudente, sobretudo diante da tensão atual no Brasil envolvendo o governo brasileiro, o governo americano, o STF e as Big Techs.
Por ora, o mais adequado deve ser aguardar um desfecho mais claro para esse cenário, bem como o posicionamento definitivo do TJ/UE quanto à validade do Data Privacy Framework.
_______
1 COMISSÃO EUROPEIA. Commission Implementing Decision pursuant to Regulation (EU) 2016/679 of the European Parliament and of the Council on the adequate level of protection of personal data by Brazil - Draft Adequacy Decision. Bruxelas, 4 set. 2025. Disponível aqui. Acesso em: 9 set. 2025.
2 COMMISSION OF THE EUROPEAN UNION. Data protection adequacy for non-EU countries - Adequacy decisions. Disponível aqui. Acesso em: 9 set. 2025.
3 No entanto, como já dissemos em publicação em outro artigo nesta coluna, tal menção à previsão expressa de proteção de dados pessoais na Constituição Federal de 1988 não deve ser entendida como absolutamente necessária, já que em muitos ordenamentos ela é implícita, como nas próprias constituições de países europeus, como a Alemanha e a Itália. Além disso, ela deve ser entendida como princípio implícito do Estado de Direito, expressão da autonomia da vontade, como autodeterminação informacional. Cf. Quintiliano (2022). QUINTILIANO, Leonardo David. A proteção de dados pessoais como direito fundamental. - (ir)relevância da PEC 17/2019? Migalhas de Proteção de Dados, São Paulo, 23 ago. 2021. Disponível aqui.
4 Embora a Constituição Federal preveja em seu artigo apenas a proteção para estrangeiros residentes, o STF corrigiu a falta de técnica sistêmica do constituinte, ao entender que limitações aos direitos fundamentais devem ser expressas, como ocorre em diversas passagens na Constituição de 1988. Cf, v.g., BRASIL. Recurso Extraordinário nº 215.267-SP. Relatora: Ministra Ellen Gracie. Primeira Turma. Julgado em 24 de abril de 2001; publicado no Diário da Justiça da União em 25 de maio de 2001. Ementa: ao estrangeiro, residente no exterior, também é assegurado o direito de impetrar mandado de segurança.
5 UNIÃO EUROPEIA. Tribunal Geral da União Europeia. Caso T-553/23 - Latombe vs Comissão. Julgado em 3 de setembro de 2025. ECLI:EU:T:2025:XYZ. Disponível aqui. Acesso em 9 set. 2025.