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Migalhas Notariais e Registrais

Questões práticas e teóricas envolvendo o Direito Notarial e de Registro.

Izaías G. Ferro Júnior, Carlos Eduardo Elias de Oliveira, Hercules Alexandre da Costa Benício, Flauzilino Araújo dos Santos, Ivan Jacopetti do Lago e Sérgio Jacomino
1. Introdução Que Justiça o Brasil quer? Ou, assumindo o risco da pretensão superlativa, que Justiça o dinâmico mundo moderno precisa? Essas perguntas, dilemas antigos, são cotidianas para o jurista, mas é preciso que estejam nas mentes daqueles que estabelecem as grades curriculares das faculdades de direito do Brasil. O ministro Luís Roberto Barroso, em palestra feita em 2016, no 7º Congresso Brasileiro de Sociedades de Advogados, afirmou que "o advogado do futuro não é aquele que propõe uma boa demanda, mas aquele que a evita." Apesar do apelo do ministro , feito em 2016, o número de processos judiciais não para de crescer. O relatório Justiça em Números 2024 constatou um aumento de 9,5% em novos processos em relação a 2023. São quase 84 milhões de processos em tramitação, distribuídos por 91 tribunais (mais de 80% na Justiça Estadual). O índice de judicialização chegou, em 2023, a 35 milhões de novos casos. É como se houvesse um processo para cada três brasileiros, evidência da incontrolável e crescente explosão de demandas, muito acima da capacidade de resposta do Poder Judiciário. Assim, ao apresentar o mencionado relatório, o ministro Barroso declarou: "Não existe nenhum Judiciário no mundo com o volume de litigiosidade que o Brasil tem." Ele reconheceu não haver estrutura que consiga atender com a celeridade desejável esse volume de demanda e afirmou: "Não por outra razão estamos mapeando a litigiosidade no país para tentar enfrentá-la". 2. A tutela jurisdicional É indiscutível que o direito à tutela jurisdicional, prerrogativa inafastável própria e basilar do Estado democrático de Direito, é caminho que conduz à ordem jurídica justa, pavimentado pelo devido processo legal. A jurisdição é um elemento de inclusão social, conforme escreve De Paula (2002, p. 87). Não se concebe um Estado Democrático de Direito sem a noção jurisdicional como um direito individual e social ilimitado, até porque "quanto mais se consolida a ideia do Estado Democrático de Direito mais se manifesta a consciência de que o centro nervoso do sistema se fixa na tutela jurisdicional, onde a cidadania se alicerça para construir a sociedade solidária, livre, justa e respeitada", conforme lição de Humberto Theodoro Júnior (1999, p. 05). Assim, oportuno reiterar que o presente texto não defende restrição ao direito à tutela jurisdicional, ao contrário, homenageia o amplo acesso à Justiça, mantendo a porta existente, mas reconhecendo a efetividade de outras portas, posto que reafirma ser o acesso amplo "direito social básico nas modernas sociedades" (CAPELLETTI & GARTH, 1988: p. 06). Contudo, é preciso admitir que a perspectiva monolítica do Judiciário, baseada no mito que seria esse modelo suficiente para solução de todos os tipos de desencontros, colide com evidências da realidade. O volume de processos ao longo do tempo acompanhou, obvia e naturalmente, o interesse em litigar, resultando na constante necessidade de aumento do quadro de juízes e de estrutura, a fim de atender a procura sempre geometricamente progressiva do jurisdicionado. É evidente que a máquina Estatal não suporta um volume tão intenso e sem perspectiva de redução, fazendo surgir o paradoxo da Justiça injusta. O enorme desequilíbrio existente entre o ânimo de litigar do jurisdicionado, e a (in)capacidade de processo e julgamento pelo judiciário, resulta na negação da própria tutela jurisdicional, porque, conforma Dinamarco (2005, p. 80),  O sistema político-constitucional de oferta do serviço jurisdicional resolve-se no equilíbrio entre uma fundamental promessa de absorção de pretensões de pessoas em busca de satisfação e uma série de limitações ao exercício do poder de recebê-las, processá-las e acolhê-las. Oportuno lembrar que, da mesma forma que o amplo acesso à justiça, o direito a uma razoável duração do processo e à efetividade do provimento estão sob a proteção da Constituição. 3. O paradigma dominante nas instituições de ensino superior É razoável supor que uma das causas da litigiosidade crescente tenha sede na cultura que se formou em torno do mito do Judiciário suficiente, alimentada, em grande medida, pela grade curricular acadêmica. Nas IES - Instituições de Ensino Superior, em regra, não existe o estudo do "Direito Extrajudicial" ou "Direito Notarial e Registral". Apesar da onda crescente de extrajudicialização, as faculdades de Direito mantem currículos impregnados com o princípio demandista da relação processual tripartite (autor-juiz-réu), enquanto o paradigma aponta para uma direção completamente inovadora. Ao deitar luz antiga sobre processos novos, o ensino jurídico se divorcia da realidade, contribuindo para uma formação insuficiente do acadêmico. Os advogados são formados sem uma base importante que poderia abrir novas portas para soluções céleres, sem lide e com toda a segurança jurídica Eventualmente sem desenvolver as competências e habilidades próprias para a atuação extrajudicial, os novos advogados se veem despreparados para a realidade com que vão conviver, portando conceitos que estão, paulatinamente, perdendo substância. O acadêmico recebe um diploma novíssimo, coberto da poeira invisível das ideias antigas. 4. O sucesso da experiência de extrajudicialização Os cartórios brasileiros fazem parte do que se convencionou chamar de sistema multiportas1 de solução de conflitos, que emerge como um mecanismo essencial, ao proporcionar aos cidadãos diferentes vias para a resolução de litígios, incluindo métodos extrajudiciais, como a mediação e a arbitragem, bem como soluções formais por meio dos serviços notariais e registrais. Assim, o conhecimento aprofundado destas áreas torna-se fundamental para os futuros operadores do Direito, capacitando-os a lidar com a crescente demanda por soluções extrajudiciais e contribuindo para a efetividade do sistema de justiça no Brasil. A inclusão de disciplinas sobre práticas notariais e registrais na grade curricular jurídica fortalece, ainda, a formação interdisciplinar e prepara os profissionais para os desafios impostos pela modernização, digitalização e regulamentação das atividades no âmbito extrajudicial. Dentro desse contexto da extrajudicialização, por intermédio do sistema notarial e registral, é possível dar o exemplo dos atos no tabelionato de notas que representam o maior sucesso dos últimos anos: os inventários e divórcios extrajudiciais. É possível observar que até mesmo herdeiros com relacionamento difícil têm superado suas diferenças para finalizar o inventário rapidamente, o que é excelente por extinguir o condomínio forçado que é criado em virtude do falecimento do titular dos bens e que pode acirrar os ânimos. Os próprios romanos já diziam que o condomínio é mãe da discórdia. O divórcio e a dissolução de união estável extrajudiciais também têm se demonstrado muito úteis e eficazes, cabendo ressaltar a importância do prévio recolhimento do ITCD, que ocorre quando há partilha com excedente, o que muitas vezes não tem sido objeto de preocupação do Judiciário. Essa falta de recolhimento do imposto tem gerado problemas quando da apresentação das partilhas ao registro de imóveis. Como o fato gerador do ITCD é a sentença judicial, a falta de recolhimento do tributo no momento oportuno gera multas e juros, o que não ocorre no divórcio extrajudicial, pois o imposto é sempre recolhido previamente à lavratura da escritura. Temos recebido muitos pedidos de lavratura de escritura para retificação de partilha feita judicialmente, para evitar esse pagamento de juros e multas no ITCD. Aliás, a possibilidade de retificação extrajudicial de formais de partilha é mais uma hipótese de desjudicialização e a sua utilização tem sido feita com muito sucesso, havendo enunciado sobre o tema do Colégio de Registro de Imóveis de Minas Gerais2. Em São Paulo, em abril de 2024, foi proferida decisão pelo Corregedor Geral de Justiça admitindo a retificação por escritura de partilha processada judicialmente3. O divórcio extrajudicial, por ser ato tão célere que pode até mesmo ser lavrado no mesmo dia em que apresentada a documentação, caso o imposto já tenha sido recolhido. Com isso, evita-se o prolongamento do conflito entre os cônjuges colaborando em muito para a diminuição da lide e para a paz do antigo casal, o que talvez venha facilitando reconciliações: têm sido comuns casamentos entre as mesmas pessoas que já tinham se divorciado. O sucesso do inventário e do divórcio extrajudiciais é tão grande que o CNJ, em agosto de 2024, em razão de pedido de providências apresentado pelo IBDFAM, alterou a resolução 35/CNJ, ampliando as hipóteses de desjudicialização, adequando o procedimento extrajudicial às exigências legais e sociais. A partir da data de publicação da nova resolução , de nº 571, foi expressamente previsto pelo CNJ: 1- autorização para inventário extrajudicial com testamento homologado e partilha consensual; 2- alienação de bens do espólio pelo inventariante nomeado por escritura pública para pagamento de despesas do inventário, independentemente de autorização judicial; 3- inclusão de menores e incapazes nos procedimentos extrajudiciais, desde que observadas cautelas específicas; 4- adequação normativa para a separação de fato consensual; e 5 - eliminação do instituto da separação extrajudicial. O texto da resolução 35/CNJ, com redação dada pela nova resolução 571, tratou de questão muito relevante referente à união estável, reconhecendo o efeito perante terceiros dos títulos qualificados (sentença, escritura pública e termo declaratório), desde que registrados no Livro E do Cartório do Registro Civil competente. Essa necessidade de registro para que a união estável tenha efeito perante terceiros já tinha sido reconhecida pelo Provimento nº 141/CNJ, hoje compilado ao novo Código Nacional de Normas, no art. 537, § 1º.  A nova redação do art. 18 da resolução 35 não deixa dúvidas: Art. 18. No inventário extrajudicial, o convivente sobrevivente é herdeiro quando reconhecida a união estável pelos demais sucessores, ou quando for o único sucessor e a união estável estiver previamente reconhecida por sentença judicial, escritura pública ou termo declaratório, desde que devidamente registrados, nos termos dos arts. 537 e 538 do CNN/CN/CNJ Extra (Provimento CNJ 149/2023). Infelizmente a alteração da resolução 35/CNJ foi tímida em alguns pontos. No inventário com menores ou incapazes, exigiu a remessa ao Ministério Público mesmo quando a partilha for feita em frações ideais de cada um dos bens que compõem o patrimônio. Essa necessidade de remessa foi mantida até mesmo quando o menor ou incapaz for o único herdeiro. No inventário com testamento, exigiu a fase judicial de abertura e o cumprimento do testamento mesmo nos casos de testamento invalidado, revogado, rompido ou caduco, devendo ser reconhecida por sentença judicial a invalidade ou a ineficácia do testamento.  No que se refere ao divórcio extrajudicial com filhos menores ou incapazes, somente foi autorizada a lavratura da escritura se comprovada a prévia resolução judicial de todas as questões referentes à guarda, à visitação e aos alimentos dos filhos. Em alguns estados da federação, como no Rio de Janeiro, já se admitia essa lavratura mesmo sem a prévia resolução dessas questões. O referido Código de Normas do RJ assim prevê: "Se o casal tiver filhos menores em comum, as partes devem se comprometer a ajuizar ação de guarda, visitação e alimentos no prazo de 30 dias." (art. 476, § 1º, do Código de Normas RJ). O estudo do extrajudicial vai além de evitar a litigiosidade. Representa soluções tanto para os advogados quanto para o cidadão que ainda são desconhecidas da maioria da população, o que não pode prevalecer. Na atualidade, como falar na pessoa natural e nas alterações na vida da pessoa, inclusive as mudanças de nome ou de nome e de gênero, e também em reconhecimento de paternidade ou maternidade sem falar em Registro Civil? Como falar em cobrança de dívida sem falar em Protesto? Sobre o protesto, importante lembrar que em julho deste ano foi publicada a alteração no Código Tributário Nacional, incluindo o protesto extrajudicial como hipótese de interrupção da prescrição tributária. Como falar em associações, sociedades, fundações, organizações religiosas e partidos políticos sem falar em Registro Civil das Pessoas Jurídicas? Como falar em notificações extrajudiciais, em publicidade de documentos estrangeiros e na eficácia perante terceiros de contratos particulares que envolvam bens móveis, sem falar no Registro de Títulos e Documentos? Sobre o registro de títulos e documentos, aliás, deve ser ressaltada a recente aprovação no âmbito do marco legal de garantias (Lei 14.711/23) da possibilidade de busca e apreensão extrajudicial de bens móveis, que representa outra importante medida de auxílio ao Poder Judiciário no esforço pela racionalização do número de demandas judiciais no Brasil. Como falar em negócios jurídicos ou em planejamento sucessório sem falar em Tabelionato de Notas? Como falar em propriedade e em outros direitos reais sobre imóveis sem falar em Registro de Imóveis e em direitos reais sobre bens móveis sem falar no Registro de Títulos e Documentos? Devem ser ressaltadas as oportunidades na área de regularização de imóveis, pois temos mais de 40 milhões de imóveis sem registro no Brasil4, sem contar as inúmeras outras irregularidades, como falta de averbação de construção, necessidade de retificação de área, entre outras. Tudo isso está à disposição do advogado, mas muitos deles não sabem. Aliás, tudo está à disposição não apenas dos advogados, mas de todos os operadores do Direito e também de outros profissionais, como responsáveis técnicos, corretores de imóveis, entre outros. 5. Desjudicializar a vida Em agosto de 2023 o ministro Luís Roberto Barroso palestrou no XIII Fórum de Integração Jurídica. Em sua apresentação, o ministro salientou a importância da desjudicialização para desafogar os tribunais. Barroso também ressaltou a relevância do serviço notarial e registral, destacando que: "Nós precisamos desjudicializar a vida brasileira", ressaltando a necessidade de simplificação e eficiência nos processos. A atuação da advocacia extrajudicial já traz e continuará trazendo a simplificação e a eficiência. O ministro Luiz Felipe Salomão, no pedido de providências que resultou na alteração da redação da resolução 35/CNJ, registrou que a EC 45/04 contemplou de forma expressa no texto constitucional que é assegurada a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. Para o ministro , a ideia que motivou a referida Emenda Constitucional foi a implementação de um novo paradigma na administração da Justiça, com o estímulo a mecanismos inovadores e capazes de prover a solução de conflitos no Brasil com maior eficiência e celeridade. A conclusão do ministro foi no sentido de que o Sistema Extrajudicial deve ser utilizado para dar solução aos problemas do cidadão. É em razão disso que observamos recentemente um enorme aumento de atribuições dos serviços notariais e registro, muitas vezes por meio de Provimentos da Corregedoria do CNJ. São tantos que recentemente foram compilados no novo Provimento 149, de 30/08/2023, que instituiu o Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ - Foro Extrajudicial. Importante lembrar aos advogados sobre a capilaridade dos cartórios, o que facilita o acesso aos atos extrajudiciais, e sobre o fato de que a maioria dos atos nos tabelionatos de notas não tem competência territorial, a não ser que sejam praticados via e-notariado. Não há nenhuma espécie de instituição, entidade, órgão público no Brasil que tenha maior capilaridade do que os serviços notariais e de registro. Existem no Brasil, à disposição dos doutores advogados e também de toda a população, mais de quinze mil cartórios extrajudiciais de notas e registros, presentes em todos os municípios e nos quais trabalham mais de trezentas mil pessoas. A eficiência desses serviços na prevenção de lides já foi atestada em pesquisa realizada pela empresa norte-americana Tillinghast, que constatou, considerando a percentagem do Produto Interno Bruto - PIB - comprometido com o orçamento do Poder Judiciário, na França, Alemanha, Itália, Espanha, Holanda e Japão, países que, como o Brasil, adotam o notariado latino, que o custo do Judiciário gira em torno de 0,5% do PIB, enquanto nos Estados Unidos da América - EUA -, que não adotam esse tipo de notariado, o custo eleva-se para sete vezes mais, alcançando 3,6% do PIB. A China, ao protocolar seu pedido de inscrição na União Internacional do Notariado - UINL, a fim de adotar o notariado latino, explicou que o fazia em razão de ter verificado, por meio de suas embaixadas, que em países que adotam esse tipo de notariado o número de demandas judiciais envolvendo questões patrimoniais e de família é muito menor do que nos demais países.  Enfim, há muitos caminhos à disposição dos advogados. Ao examinar esses caminhos, não há dúvida de que o extrajudicial representa um atalho, tão seguro quanto a via judicial, que pode diminuir em muito o tempo destinado à solução dos problemas, mas de nada adianta existir a via extrajudicial se os advogados a desconhecem ou a olham com preconceito: é normal que o novo seja visto com preconceito. Por isso, o conhecimento é importante, pois afasta o preconceito. O desembargador Ricardo Dip, do TJ/SP, afirma que confundir os cartórios extrajudiciais com burocracia: (...) é uma lástima e acontece justamente pela falta de incluir-se a disciplina de Direito Notarial e Direito Registral na vida acadêmica. Muita gente desconhece a importância dessas instituições, e, ao ignorar essa importância, acaba concluindo mal em relação a determinadas medidas. 6. Sugestão de disciplina Considerando a relevância da extrajudicialização e seus desdobramentos práticos, principalmente para o discente que se forma com a intenção de exercer a advocacia, é oportuno que as Instituições de Ensino Jurídico incluam em sua grade curricular disciplina voltada para preparar o futuro profissional para a advocacia preventiva e/ou não judicial. A disciplina trataria do "Direito Extrajudicial" e condensaria o estudo sobre as múltiplas alternativas à jurisdição, da prevenção de conflitos, de sua solução pacífica e desjudicializada, com ênfase na utilidade do direito notarial e registral. Um esboço do plano de ensino para essa disciplina, segundo Ribeiro (2005, p. 79), poderia contemplar os seguintes elementos: Ementa: conceito de extrajudicialização. Sistema multiportas e tutelas alternativas. Advocacia preventiva. Procedimentos administrativos e extrajudiciais. Direito Notarial e Registral aplicado. Objetivos Gerais: propiciar uma assimilação de conteúdo centrado no paradigma da extrajudicialização, com base na inter-relação entre professor e alunos, de maneira sistêmica, crítica, criativa e sensível. Objetivos Específicos: estimular, instigar e orientar reflexões e discussões nos moldes do diálogo ordenado professor-aluno, aluno-aluno e aluno-professor; orientar bibliografia especifica sobre os assuntos propostos, instigar sua leitura e pesquisa; propiciar a correção, a autocorreção, a orientação e a auto orientação dos estudos da disciplina; evidenciar todo o processo da construção do conhecimento em todo o seu contexto, com visão interdisciplinar; refletir, discutir e escrever crítica e criativamente sobre problemas e soluções atuais propostos pela extrajudicialização; e, confrontar e contrastar a perspectiva tradicional do processo com a perspectiva do novo paradigma. Conteúdo Programático: 1. Introdução histórica e noções conceituais sobre extrajudicialização. 2. Procedimentos e instrumentalidade na esfera extrajudicial. 3. noções de direito notarial e registral aplicado. 7. Conclusões O paradigma atual reclama a urgente inclusão da disciplina direito extrajudicial, ou direito notarial e registral, na grade curricular acadêmica. A desjudicialização é uma revolução paradigmática em andamento, com normas que redesenham e ampliam as portas de acesso à Justiça. O modelo de ensino jurídico atual não assimilou a mudança de paradigma, concentrando a substância de sua estrutura curricular na formação de profissionais demandistas e dependentes do Estado-Juiz, que certamente encontrarão dificuldades para sorverem e bem utilizarem os instrumentos do novo paradigma. É urgente e inadiável que as instituições de ensino jurídico promovam a incorporação, em sua estrutura curricular, de disciplina específica que contemple o direito extrajudicial e preventivo. Este artigo tem como objetivo provocar o debate sobre o tema e inspirar a academia a agir. Para o advogado, fica a mensagem: procure aprender sobre o direito notarial e registral, a advocacia extrajudicial já é uma realidade e pode fazer uma enorme diferença na sua vida profissional e na satisfação dos seus clientes. ________ 1 Esse sistema viabiliza métodos alternativos ao Poder Judiciário de resolução de conflitos. Assim, as partes, com maiores alternativas para encontrar a solução adequada a suas demandas, podem resolver de modo mais célere e efetivo suas disputas, ficando o Poder Judiciário adstrito às causas de maior dificuldade de pacificação. In: SALES, L. M. de M., & de Sousa, M. A. (2011). O Sistema de Múltiplas Portas e o judiciário brasileiro. Revista Brasileira De Direitos Fundamentais & Justiça, 5(16), 204-220. Disponível aqui. Acesso em: 9 dez. 2024. 2 O referido enunciado é o nº 31: Formal de partilha homologado judicialmente. Possibilidade de retificação por escritura pública. Inexistência de sentença de mérito. A escritura pública constitui meio adequado para retificar formais de partilha homologados judicialmente, desde que as partes interessadas sejam maiores, capazes e concordes. COLÉGIO Registral Imobiliário de Minas Gerais - CORIMG. Disponível aqui. Acesso em: 9 dez. 2024. 3  CORREGEDORIA-GERAL de Justiça de São Paulo. Recurso Administrativo nº 1143240-21.2023.8.26.0100. DJe de 17.04.2024 - SP 4  FALTA DE ESCRITURA ATINGE MAIS DE 40 MILHÕES DE IMÓVEIS. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/07/falta-de-escritura-atinge-mais-de-40-milhoes-de-imoveis-veja-o-que-fazer.shtml. Acesso em: 9 dez. 2024. 5 BRASIL. Constituição Federal. Brasília: Senado Federal, 1988. 6 CINTRA, Antônio Carlos Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. São Paulo. Malheiros Editores. 9a Edição, 1999, p. 131. 7 COLÉGIO Registral Imobiliário de Minas Gerais - CORIMG. Disponível aqui. Acesso em: 9 dez. 2024. 8 CORREGEDORIA-GERAL de Justiça de São Paulo. Recurso Administrativo nº 1143240-21.2023.8.26.0100. DJe de 17.04.2024 - SP. 9 DINAMARCO, Cândido Rangel, O futuro do processo civil brasileiro, in Fundamentos do processo civil moderno, Vol. II, 3ª edição, Malheiros Editores, 2000. 10 FALTA DE ESCRITURA ATINGE MAIS DE 40 MILHÕES DE IMÓVEIS. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/07/falta-de-escritura-atinge-mais-de-40-milhoes-de-imoveis-veja-o-que-fazer.shtml. Acesso em: 9 dez. 2024. 11 HABERMAS, Junger. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, V. 1, Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro. Tempo Brasileiro, 1997, p. 154. 12 PAULA, Jônatas Luiz Moreira de Paula. A Jurisdição como Elemento de Inclusão Social. São Paulo. Editora Manole. 2002, p. 87. 13 RIBEIRO, Paulo Hermano Soares. O fenômeno paradigmático da desjudicialização e sua repercussão na construção de um novo modelo de ensino jurídico. Revista Brasileira de Estudos Jurídicos. Montes Claros, v. 2, n. 2, p. 61-82, jul.-dez. 2007. 14 SALES, L. M. de M., & de Sousa, M. A. (2011). O Sistema de Múltiplas Portas e o judiciário brasileiro. Revista Brasileira De Direitos Fundamentais & Justiça, 5(16), 204 -220. Disponível aqui. Acesso em: 9 dez. 2024. 15 THEODORO JÚNIOR, Humberto. A Arbitragem como meio de solução de controvérsias - artigo publicado na Revista Síntese de direito Civil e Processual Civil n. 02 - Nov-Dez/1999, p. 05.
segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Champagne na laje

Era uma quinta-feira, 23h59min, noite do dia 22 de dezembro de 2016. Neste exato horário enviava um e-mail a um amigo brasiliense, sempre bem-informado, à época muito próximo dos registradores. Queria saber ser a medida provisória que todos esperávamos havia sido publicada no Diário da União. Recolhia-me na madrugada sem o saber. A bateria do celular havia se esgotado. Eis que pela manhã, o e-mail batia na caixa-postal: "o assunto está resolvido. A MP foi publicada!", dizia o amigo de modo lacônico. O dia 23 amanhecia com um novo marco legal para o Registro de Imóveis brasileiro. "Vivemos um dia histórico", pensei. A MP 759/2016 estrelava no Diário Oficial da União. Era necessário dar a boa-nova para os colegas. Eu acabava de ser eleito presidente do IRIB justamente para lutar pela modernização do sistema registral e, especialmente, pela aprovação do ONR - Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis. Sentia-me corresponsável. O artigo 54, num de seus parágrafos, trazia a grande novidade: O IRIB ficava autorizado a constituir o ONR e elaborar o seu estatuto social, submetendo-o à aprovação da Corregedoria Nacional de Justiça (§ 3º do art. 54). Sabemos que este dispositivo vigoraria até ser estranhamente derrubado na madrugada do dia 10.jul.2017... Afinal, era um projeto do próprio Executivo. Na tarde do dia seguinte faríamos uma live do topo do prédio onde se acha instalado o 1º Registro de Imóveis de São Paulo, a cargo do nosso colega Flauzilino Araújo dos Santos. Na laje do edifício. Lembrei-me imediatamente do concerto dos Beatles no rooftop do edifício londrino. O tempo estava chuvoso, o céu paulistano vergava como barriga de burro sobre as nossas cabeças, a conexão não se estabelecia. Operando a infraestrutura tecnológica estava Flauzilino Júnior. Lembro-me que transmitimos a live por um canal do IRIB no Facebook, do qual já não temos qualquer resquício. O nome do encontro era provocativo: Champagne na Laje. Lembro-me que Flauzilino trouxe um champagne gelado que foi servido aos presentes - Marcelo Berthe, o próprio Flauzilino, eu, uns poucos convidados que acorreram à serventia naquele dia. Queríamos dar as notícias, satisfazer dúvidas, congratularmo-nos com os colegas, festejarmos a árdua conquista... A carta-convite dormitou nos registros daqueles dias e vale a pena reproduzir aqui: "Colegas. Muitos já sabem: temos um novo modelo de registro de imóveis eletrônico. Trata-se do importante marco legal representado pela MPV 759/2016. Não haverá no futuro mais do que o registro de imóveis eletrônico. 'Você está preparado?' Este foi o lema de nossa campanha. Bem por essa razão, o ONR deve ser festejado como o eixo fundamental sobre o qual o SREI vai se assentar. Temos os dois pilares: regulação (Judiciário) e execução (registradores). Para comemorar, vamos brindar, às 16h. com um champagne na laje. Vamos contatá-los perto das 16h. para que se conectem em hang-out em comemoração ao advento da MP. Aguardem o link. Parabéns a todos vocês que confiaram em nossa chapa e que emprestaram seu nome e credibilidade às iniciativas da chapa construindo pontes!". (E-mail de 23 de dez. de 2016, 13:27). O evento realizou-se como programado. Monitorávamos os que se conectavam na live e ficávamos admirados, eram personagens importantes do meio. Mal percebíamos, naquele instante mágico, o prenúncio das tempestades corporativas que desabariam logo à frente sobre nós... Foi uma larga travessia num oceano de procelas, de ventos traiçoeiros, um mar infestado de monstros, piratas e sereias. Olho à volta e só reconheço aqueles poucos amigos, colegas que, desde a partida, permaneceriam a bordo. Lembrei-me de Jasão e os Argonautas na apresentação da POC-SREI, realizada no dia 1 de dezembro de 2019 na Future Law, em São Paulo. A nossa jornada em busca do velocino de ouro foi árdua: "Foi duro, foi lindo, foi intenso. Foi belo. Atravessamos o ano navegando mares, galgando o cimo das grandes montanhas, descendo aos vales, deparando-nos com armadilhas do caminho, cismamos com os abismos e gretas, sonhamos com o impossível".1 O SREI é de todos nós - realizamos o impossível! Estamos agora na expectativa da queda dos últimos bastiões da dura recalcitrância. O ONR é constitucional, jamais duvidamos disso. O modelo "molecularizado", como sempre defendemos, acaba de ser confirmado no voto do Ministro Dias Toffoli: "caberá aos próprios oficiais de registro a responsabilidade sobre a segurança, a guarda e a conservação dos dados, tal qual já ocorre hodiernamente, não havendo interferência nas atribuições dos oficiais e, portanto, não havendo que se falar em falta de segurança ou em publicidade indevida dos dados armazenados, como faz supor o requerente", o que confirma o que sempre vínhamos defendendo"2. Até aqui pudemos navegar. Lutamos o bom combate, defendemos a institucionalidade, a descentralização da atividade registral, porém ainda não terminamos a corrida. Aguardemos a finalização do julgamento no STF. E sigamos em frente, como sempre dizíamos quando tudo parecia perdido: "até a última flecha". Sim, Flauzilino, até a última flecha!3 ONR-SREI - ontem, hoje e amanhã Entrevista com Flauzilino Araújo dos Santos No dia de hoje, 9/12/2024, às 14h45min., nas instalações do primeiro registo de imóveis de São Paulo, situado na Rua Tabatinguera, encontrei Flauzilino Araújo dos Santos em seu escritório. Encontro-o tranquilo e sereno. Munido de um gravador, aproveito o ensejo para puxar pela memória do velho companheiro os eventos que vivenciamos no tumultuado ano de 2016. Deixei a gravação correr solta. Flauzilino estava disposto a rememorar os episódios que, com clareza nos revela nesta entrevista. O que representou para você aquele momento em que se deu a publicação da Medida Provisória 759/2016? Lembro-me que naquele mesmo dia, 23/12/2016, realizaríamos uma live na Laje do edifício na Rua Tabatinguera, chamando-a de Champanhe na Laje. Quais são as suas reminiscências e lembranças daquele dia? Bom, embora o principal objeto da lei não tenha sido o direito de laje, o instituto acabou por se tornar um destaque pela novidade que representou no direito brasileiro. Obviamente, nós tivemos outros instrumentos - tão ou mais importantes do que o próprio direito de laje - principalmente o reconhecimento do ONR-SREI, que já estava consubstanciado na recomendação 14/2014 da Corregedoria Nacional de Justiça emigrando para a lei. Penso que, ao lado da regularização fundiária, foi o instituto mais importante criado pela medida provisória. Foi muito significativo o direito de Laje, como disse, representou uma novidade, razão pela qual nós achamos por bem, e simbolicamente, fazer o anúncio aos Registradores de imóveis do Brasil em uma transmissão feita pela Internet diretamente da Laje de um edifício paulistano... Obviamente, foram também importantes, na medida provisória, o condomínio urbano simples, o loteamento com acesso controlado, o condomínio de lotes e outros institutos afins, menos significativos do ponto de vista dos direitos reais, como, por exemplo, a regularização de imóveis à beira de rodovias, que se acham fora do perímetro urbano, mas que são imóveis com características urbanas pela sua destinação. Puxando pela memória, qual foi o sentimento de ver aprovada a medida provisória depois de tanto trabalho para defender a ideia do ONR junto ao governo, mercado e registradores? Vínhamos há mais de 20 anos, pensando, conversando, discutindo a criação de uma colegiação obrigatória, inspirados no sistema registral espanhol, enfrentando grandes dificuldades entre nossos pares. De repente, uma porta se abria para que participássemos do grupo de trabalho que apresentaria a minuta de um plano nacional de regularização fundiária4. Foi uma rara oportunidade para materializar a ideia que vinha de ser amadurecida e discutida, em maior ou menor intensidade, pelos registradores de imóveis do estado de São Paulo e do Brasil. Lembro-me de que, um pouco antes, o colega Marcelo Melo publicaria um artigo no "iRegistradores", onde defendia que a solução para o registro de imóveis brasileiro estaria na criação de um órgão de controle feito por e para os próprios Registradores.5 E foi isso. Esta foi a proposta que acabou materializada, com a previsão de que o ONR funcionaria em consonância com o IRIB, instituição encarregada de organizar o ONR. Acredito que a evolução natural, conforme pensávamos então, seria que o ONR absorvesse o IRIB que funcionaria como um braço de estudos avançados de registro de imóveis. Lamentavelmente, esse objetivo não foi compreendido por alguns setores do próprio registro de imóveis, tendo ocorrido, então, veto presidencial ao dispositivo que dispunha que o próprio IRIB organizaria o Registro de Imóveis eletrônico. Infelizmente não houve compreensão por parte de alguns setores da própria atividade. No evento do IRIB de 2016 você havia apresentado a proposta de criação do ONR às lideranças da classe. Como foi a receptividade da ideia pelos nossos pares? De fato, isso ocorreu em Salvador, na Bahia, no transcurso do evento do IRIB6. Eu falei com todos os ex-presidentes e com o então presidente do IRIB e combinamos uma reunião para tratar do assunto da criação do ONR. Porém, no dia da reunião os participantes chegaram à conclusão de que não havia necessidade de intervir e nos liberaram para tomar as medidas que julgássemos cabíveis. Creio que acreditaram que não seria viável a inclusão de tais dispositivos em lei criando uma entidade como o ONR. Menosprezaram, assim, a possibilidade de interferir e a reunião não se realizou. Afortunadamente, estávamos naquela posição no grupo de trabalho criado no âmbito do Ministério das Cidades e foi possível não apenas a inserção do ONR/SREI no texto que se convolaria na medida provisória, mas a sua manutenção - fato de grande importância - no transcurso do processo legislativo no Congresso Nacional, de tal maneira que o texto voltou para o Poder Executivo federal como fora editado na medida provisória. Como sabemos, após tudo isso houve o veto no Palácio do Planalto.7 A criação do ONR foi uma longa jornada. O modelo de pessoa jurídica sui generis era defendido por você.8 Não havia muita ressonância e receptividade. Afinal, o ONR é uma criação sua, genuinamente, fruto de suas ideias originais. Como foi defender uma ideia tão heterodoxa? Vínhamos conversando com os Registradores da Espanha. A participação dos colegas brasileiros nos cursos anuais de aperfeiçoamento que eram realizados na Espanha9, nos levaria à ideia de abandonarmos o modelo de associação meramente voluntária, pois todas as nossas entidades - IRIB, Anoreg, associações estaduais (como a ARISP) - são associações de colegiação voluntária. Dependíamos do convencimento dos colegas para o apoio e valorização da importância da representação corporativa, da unidade em torno da atividade profissional, da defesa institucional. Vínhamos conversando sobre tudo isto, mesmo antes do Projeto SREI. Como estou dando esta entrevista ao próprio Sérgio Jacomino, digo que ele era a liderança dessas discussões, por sua estreita ligação com o Colégio de Registradores da Espanha. Diante de um colégio forte, como o daquele país, era nossa aspiração ter, no Brasil, uma entidade de registradores forte e que representasse não somente o Registro de Imóveis como atividade, mas que tivesse um viés de representação corporativa dos registradores imobiliários. Não seria uma defesa meramente sindical, mas a defesa da atividade jurídica dos registradores. Afinal o ONR veio a lume. Era a aspiração de muitos de nós. Por qual razão parte da classe atacou a ideia de modo tão intenso?10 Diria que até bem pouco a instituição do ONR sofreu ataques que alguns chamariam de "fogo amigo". Eu particularmente acho que não existe "fogo amigo", mas "fogo inimigo", porque os prejuízos foram e ainda são grandes e bem visíveis. Devemos isso a vários fatores - entre eles os naturais defeitos da alma humana. Há um outro fator que é a falta de conhecimento, colegas que jamais souberam o que era e significava o Projeto SREI/ONR, que não leram os documentos fundacionais, não estudaram a especificação do sistema, enfim, gente que "não viu e não gostou". Ignorara-se a gênese do projeto, alguns pegaram o bonde andando e ainda dizendo "sou contra porque sou contra"... Em terceiro lugar, e não menos importante, havia o aspecto financeiro. Àquela altura dos acontecimentos formaram-se várias associações estaduais, parte delas dependendo do suporte material da própria ARISP, entes criados para prestação de serviços de intermediação como solicitação de certidões, de pesquisas, encaminhamento de títulos para registro, notificações para constituição de devedores em mora etc. Esses serviços eram cobrados à parte, acrescidos aos emolumentos devidos e representava um ganho marginal significativo, receita que financiava ditas associações. Temia-se que o ONR absorvesse os serviços e assim cessasse a receita das associações estaduais. Entretanto, a cobrança foi julgada ilegal pelo CNJ... Sim, a cobrança de taxas foi considerada ilegal pelo CNJ.11 Entretanto, havia a expectativa de sua inclusão em projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional. Foram várias as tentativas, os famosos "jabutis", que não lograram êxito.12 Os próprios poderes públicos reconheciam que não havia como sobretaxar os serviços registrais apenas por serem prestados de forma eletrônica. Fôssemos promover uma verdadeira reengenharia do sistema, dar-se-ia o reverso - serviços eletrônicos, em todas as modalidades, são serviços de menor custo e não mais caros. Este foi o principal motor que mobilizou as oposições que advieram. Digo que não foram poucas e vieram de várias fontes... Hoje o ONR está estabelecido. Como enxerga o desenvolvimento das ideias que fundamentaram as iniciativas originais? Hoje o ONR, em razão de sua posição como entidade bem regulada e que tem como agente regulador a própria Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ, digo que não há como retroceder e desfazer-se das ideias que fundamentam a criação do ONR. Poder-se-á falar em velocidade maior ou menor de implementação, mas este é um caminho sem volta. Primeiro, porque há as demandas da sociedade por eficiência; depois, estamos a falar leis e de normas do CNJ que passaram pelo plenário do Conselho, revelaram provimentos da Corregedoria Nacional de Justiça. Estamos diante de um conjunto legal e normativo que define o registro eletrônico e as comunicações de forma eletrônica. Trata-se de uma situação consolidada. Desfazer será uma tarefa inglória. A criação de SERP de alguma forma descaracterizou o ONR-SREI? Eu creio que a criação do SERP foi um equívoco. O que realmente seria necessário é a consagração da interoperabilidade, não somente entre os próprios registros públicos, mas também, e principalmente, com os tabelionatos de notas. O serviço de registro de imóveis se relaciona muito mais com os tabelionatos de notas do que com os demais serviços de RTDPJ e RCPN. O que ainda continua sendo necessário é a interoperabilidade do serviço extrajudicial. Essa interoperabilidade seria uma consequência lógica do desenvolvimento dos sistemas, independentemente de estar ou não codificada em lei, criando um serviço eletrônico de registros públicos. Penso que uma interoperabilidade máxima deveria começar com as notas e não com o registro civil ou com o RTDPJ. Nem deveria se limitar a estes entes... A interoperabilidade dever se dar com as juntas comerciais, com o poder judiciário, com os bancos que atuam na concessão do crédito rural e imobiliário. Enfim, são entes com os quais o registro de imóveis verdadeiramente se relaciona, muito mais do que com as demais especialidades de registros públicos. Em suma, foi um grande equívoco. O STF julga nestes dias várias ações de inconstitucionalidade, algumas movidas sob o patrocínio de entidades estaduais. Como o senhor avalia essas iniciativas? Houve uma oposição organizada contra a Medida Provisória 759/2016 e contra a própria Lei 13.465/2017. Foram demandas intentadas contra a criação do ONR-SREI e que culminaram em várias ações diretas de inconstitucionalidade no STF, além de ações propostas em varas federais, representações no CNJ, Corregedorias estaduais etc.13 Considero que essas iniciativas são como movimentos de remar contra a maré. A criação do ONR tinha e tem um lastro de legitimidade e de legalidade indiscutível. Não houve ofensa a qualquer norma legal ou regulamentar, não se fragilizou o sistema de registro de imóveis no país. O que houve foi um imenso equívoco motivado por aqueles fatores já apontados e quiçá por outros que a gente vai saber ao depois... Há um futuro para o ONR? O futuro do ONR será o futuro do Registro de Imóveis, tanto do ponto de vista da instituição jurídica brasileira, na sua conformação jurídica, constitucional, técnica e instrumental, mas, também, da atividade profissional e corporativa dos oficiais de registro de imóveis. Eu creio que o ONR será o responsável para construir o que teremos no futuro da atividade. Certamente, não tenho uma bola de cristal, mas, se o ONR malograr, temo que possa carregar consigo o próprio sistema de registro de imóveis no Brasil. 1 JACOMINO, Sérgio. O SREI e o velocino de ouro. São Paulo: Observatório do Registro, 5.12.2019. Disponível aqui. 2 Voto proferido nas ADIs 5.771, 5.787, 5.883 e 6.787, ações pendentes de julgamento final. 3 A conhecida passagem de 2 Reis, 13:14-20 sobre o profeta Eliseu e o Rei Jeoás nos servia de inspiração. Flauzilino havia feito uma preleção sobre a necessidade de irmos até o fim de nossa missão. "Não pare até ter terminado". Consulte: Disponível aqui. 4 Trata-se da Portaria 326, de 18/6/2016 do Ministérios das Cidades, publicada no DOU de 19/7/2016, pp. 42-43. Vide Ministério das Cidades e o novo impulso da Regularização Fundiária. São Paulo: Observatório do Registro, 2/8/2016. Disponível aqui. 5 O "iRegistradores" foi descontinuado e as suas edições se perderam. Parte do acervo foi replicada no Observatório do Registro. V. MELO, Marcelo Augusto Santana de. Registro de Imóveis brasileiro - necessidade urgente de atuação corporativa. São Paulo: Observatório do Registro, 31.3.2016. Disponível aqui. 6 O evento a que se referiu foi o XLIII Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, realizado em Salvador/BA, de 26 a 30 de setembro de 2016. 7 Tão ou mais impressivo do que o veto, foi o fato de que iniciativa nascera do próprio Executivo, foi defendida com convicção pelo então Ministro das Cidades, Bruno Araújo, sem qualquer resistência oposta em todo o processo legislativo. Eis que no dia da sanção, segundo me afiançou o entrevistado, o mesmo ministro Bruno Araújo lhe encaminharia uma mensagem parabenizando-o pela lei, extensivo ao próprio IRIB... 8 Para cercar-se de segurança, foram ouvidos juristas de escol. O leitor pode consultar: SIQUEIRA, Graciano Pinheiro de. É o art. 44 do CC um elenco taxativo? São Paulo: Observatório do Registro, 26/1/2017. TORRES, Heleno Taveira. ONR - Natureza jurídica. São Paulo: Observatório do Registro, 14/12/2017. Todos os textos disponíveis aqui, sob a epígrafe ONR - o que é? 9 Houve inúmeros cursos de aperfeiçoamento patrocinados pelo Colégio de Registradores da Espanha (CORPME) em parceria com a AECI - Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento, como apoio do IRIB. Muitos registradores foram agraciados com bolsas para participar dos cursos promovidos anualmente. 10 Indicamos a seguir o dossiê com todos os lances da jornada, desde as discussões preliminares, até o advento da Lei 13.465/2017. V. JACOMINO, Sérgio. ONR - Operador Nacional do Registro de Imóveis eletrônico. São Paulo: Círculo Registral, 16.1.2017. Disponível aqui. 11 Pedido de Providências 0003703-65.2020.2.00.0000, Minas Gerais, j. 19/6/2020, Dje 6/8/2020, Relator Min. Dias Toffoli. Disponível aqui. 12 Para registro histórico, é possível acompanhar cada lance em JACOMINO, Sérgio. Vésperas do SERP - uma ideia fora do lugar - partes I, II, III, IV no site disponível aqui. Pesquisar, entre aspas, "Vésperas do SERP - uma ideia fora do lugar". 13 Ad exemplum: ADI 5.771, ajuizada pelo Ministério Público Federal; ADI 5.787, intentada pelo Partido dos Trabalhadores; ADI 5.883, ajuizada pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil; ADI 6.787, promovida pelo Partido Socialismo e Liberdade. AÇÃO ORIGINÁRIA 2.549-DF. ajuizada por LUCINEIA ISABEL TEIXEIRA.
"Lenders have relied on "robo-signers" who substituted speed for accuracy by signing, and sometimes backdating, hundreds of affidavits claiming personal knowledge of facts about mortgages that they did not actually know to be true."1  "Como uma IA, não consigo avaliar diretamente sua liberdade porque ela envolve contextos pessoais, emocionais e sociais que estão além do meu alcance."2 Em publicações anteriores, tratamos da diferença entre a fé pública notarial e a registral3, distinguindo os fatos atestados pelo notário dos documentos qualificados pelo registrador, bem como da evolução do notário de mera testemunha privilegiada para efetivo jurista, passando então seus atos do âmbito da prova para o da forma dos negócios4. Com isso, esperamos ter debelado críticas simplórias e confusões conceituais básicas que, não obstante, ainda vicejam, aqui e acolá, no campo jurídico de profissionais, mesmo experimentados, que atuam com questões notariais e registrais. O presente texto visa arrematar essa pequena série introdutória sobre a figura do notário tratando daquela que talvez seja sua função mais reluzente na época atual: O acautelamento da vontade. Com efeito, a partir da Idade Contemporânea, a atuação do notário como jurista - característica preponderante da profissão durante a Baixa Idade Média e Idade Moderna - e a atuação do notário como testemunha pública - preponderante na fase romana e, com matizações, na Alta Idade Média - se imiscuem naquilo que os próprios revolucionários franceses anteciparam como proteção da fortuna do cidadão para a manutenção da ordem pública. Conforme o relatório da Assembleia Revolucionária que encaminhou a lei de 25 ventoso do ano XI da revolução (lei de organização do notariado francês): "O interesse (da sociedade) exige ainda que os homens mais experientes venham a esclarecer os seus concidadãos e a protegê-los destes erros fatais que, ao dispersarem fortunas privadas, atacam de forma mais ou menos sensível a ordem pública e a felicidade"5 As palavras do legislador revolucionário tiveram um alcance extraordinário e podem ter seus ecos sentidos até mesmo em textos de economistas americanos atuais que pouco sabem sobre a divisão das funções do extrajudicial ou sobre o ethos das profissões jurídicas, mas que enxergam, especialmente na sociedade de massas vigente, a fragilidade com que o consentimento do consumidor é construído. Assim, John Kenneth Galbraith, conselheiro econômico de uma galeria de presidentes americanos6, escrevia, ao final da década de 50, que "não se pode defender a produção como a satisfação de necessidades, se essa produção cria as necessidades"7, então o indivíduo que aplaude esse tipo de produção estaria "precisamente na posição daquele espectador que aplaude os esforços do hamster para se manter à frente da roda que é impulsionada pelos seus próprios esforços."8 Ora, em uma época em que algumas das maiores empresas do mundo, sob o pretexto de serem empresas de tecnologia, obtêm, na verdade, a maior parte de suas receitas a partir da publicidade9, é bastante claro que o consumidor se vê, mais do que nunca, na posição de hamster, correndo dentro da roda para satisfazer necessidades muitas vezes criadas pela própria indústria, o que se dá inclusive no âmbito imobiliário. Recentemente, a maior incorporadora de capital aberto na bolsa brasileira informou "o maior investimento em marketing em um único empreendimento", alocando 5% do VGV - Valor Geral de Vendas do empreendimento, estimado em R$ 500 milhões, para campanhas e materiais de propaganda10. Ainda, marcas ícones do consumo de luxo mundial, como Versace, Armani, Ferrari e Lamborghini, passaram a fazer parcerias para o desenvolvimento do design, mobiliário e branding de empreendimentos imobiliários, o que, logicamente, traz um apelo muito maior ao produto do que a sua mera lógica de uso11.   É bastante claro que, dentro do processo de compra de um bem imóvel, como dentro do processo de compra de qualquer outra mercadoria, existe uma série de fatores que dirigem a atenção do consumidor não para o valor "de uso" do bem, mas para a sua imagem, história, marca, o sonho que ele reflete. É nesse sentido que a jurisprudência se utiliza do termo "venda emocional" para se referir a práticas de captação da vontade de forma agressiva, apelando para emoções em momentos de especial euforia12. Justamente para isso a escritura pública existe, exercendo historicamente a função de desanuviamento da pressão da decisão dentro do processo de compra ou disposição do bem que é, para a maior parte das famílias brasileiras, o seu maior ativo - ou, durante muitas décadas, seu maior passivo. Sobre esse aspecto, o excerto da Comissão Norte-Americana de investigação sobre as causas da crise do subprime, citado em epígrafe, deixa claro que a falta de adequado consentimento do consumidor na compra de imóveis através de empréstimos financiados foi uma das razões iniciais para todo o debacle. Segundo Celeste Hammond e Illaria Landini, essa falta pode ter sido inclusive uma das causas do alastramento da crise globalmente: "Investidores globais, especialmente aqueles em sistemas jurídicos de Civil Law, podem ter assumido incorretamente que existe um papel semelhante ao do notário de no processo de hipoteca residencial americano. Em países de Civil Law, um notário supervisiona e aprova todas as transações envolvendo imóveis, incluindo hipotecas, e fornece orientação aos mutuários sobre a adequação de suas obrigações de empréstimos. A suposição de que os Estados Unidos aplicam um processo de notariado latino e uma má interpretação do processo real de empréstimos nos EUA explicam parcialmente o entusiasmo global por investir no mercado de empréstimos americano. Esse entusiasmo de investimento fez com que o mercado de hipotecas subprime crescesse descontroladamente e explica a amplitude expandida da crise global que resultou."13 Por isso, o prêmio Nobel de economia Robert Shiller propõe que o notário do tipo latino deveria ser uma das medidas profiláticas a serem implementadas em solo americano para que a crise do subprime não volte a se repetir: "Outra possível opção de mitigação de riscos seria a exigência de que todo mutuário hipotecário tenha a assistência de um profissional similar a um notário latino. Esses notários atuam em muitos países, embora não nos Estados Unidos. Na Alemanha, por exemplo, o notário é um profissional jurídico treinado que lê em voz alta e interpreta o contrato, além de fornecer aconselhamento jurídico a ambas as partes antes de testemunhar suas assinaturas. Essa abordagem beneficia particularmente aqueles que não conseguem obter aconselhamento jurídico competente e objetivo. A participação de uma figura nomeada pelo governo no processo de concessão de hipotecas tornaria mais difícil para credores hipotecários desonestos direcionarem seus clientes para advogados coniventes, que não os alertariam adequadamente sobre os perigos que poderiam estar enfrentando."14 Como apontado por Shiller, a figura do notário dificilmente poderia aqui ser substituída pela do advogado, pois este também existia, embora unilateralmente, durante a crise americana. Segundo Peter Murray e Rolf Stürner: "No final das contas, não há comparação entre a imparcialidade e neutralidade dos notários e o papel dos advogados, empresas de seguro de títulos ou corretores de imóveis que fecham transações imobiliárias e fazem transferências no mundo da Common Law. O advogado de um banco, que fecha uma transação na qual as outras partes estão desprovidas de representação, não deve nenhum dever ético ou legal significativo a ninguém além de seu cliente e está sujeito a fortes influências econômicas de seu papel como fornecedor de seguro de título e defensor de um participante recorrente. Ninguém além do cliente pode contar com tal figura para qualquer nível de consideração ou proteção."15 Igualmente no Brasil, essa argumentação foi base para a decisão do STJ em 2016 no Tema 938 de recursos repetitivos sobre a famosa "Taxa Sati" - Serviço de Assessoria Técnico-Imobiliária - cobrada na base de 0,8% do valor do imóvel para a orientação jurídica na formação das contratações de imóveis. Segundo o min. Paulo de Tarso Sanseverino, "essa assessoria é um serviço que envolve o elemento confiança (intuitu personae). Assim, se o consumidor necessitar de alguma assessoria técnica ou jurídica para orientá-lo acerca do contrato ou de outros detalhes relativos à aquisição do imóvel, pode contratar diretamente um profissional ou advogado da sua confiança, e não alguém vinculado à incorporadora."16 Em âmbito internacional, a necessidade de escritura para o adequado tratamento da vontade vem sendo reforçada mais recentemente conforme a experiencia da "ley 5/19" da Espanha, "reguladora de los contratos de crédito inmobiliario", em que se previu uma ata notarial constando todos os documentos informativos obrigatórios para a contratação de um empréstimo imobiliário, entre eles uma prova teste a ser respondida pelo consumidor ante o notário, para se comprovar seu adequado entendimento sobre o contrato que pretende assumir, sendo obrigatoriamente formalizada com dez dias de antecedência mínima à assinatura da efetiva escritura de hipoteca e financiamento17. Na Alemanha, o próprio BGB prevê o prazo de 14 dias como período de reflexão do consumidor, e dentro do qual todas as informações necessárias para a contratação imobiliária devem ser previamente oferecidas à parte pelo notário18. Nesse aspecto algumas diferenciações das formalidades e controles exercidos pelo notário em contraposição a outras possíveis garantias de segurança devem ser desdobradas. Em primeiro lugar, o âmbito das cláusulas: o consentimento não está no contrato, mas na manifestação da parte para com ele. Embora a afirmação pareça óbvia, ela afasta o pensamento corrente de que contratos dirigidos ou com cláusulas pré-fixadas não precisariam de atuação notarial, em especial quando sujeitos a registro, uma vez que o registrador poderia negar acesso ao fólio real de contratos com cláusulas contrárias à determinação legal19. Ocorre que, pela própria diferenciação entre fé pública notarial e registral20, o registrador não presencia a assinatura do contrato - e ainda que presenciasse, sua fé pública não alcança fatos da realidade externa alheias ao seu próprio acervo, para os quais possui tanta fé pública quanto qualquer particular -, assim, nenhuma manifestação de vontade está realmente protegida pelo simples fato de as cláusulas serem, em abstrato, válidas e sem vícios. Como no caso americano, é possível celebrar contratos lícitos perante o Direito, sem que haja qualquer instrução do consumidor sobre o seu conteúdo, causando, ao final, uma grande crise. Em segundo lugar, a própria assinatura: Embora seja desde a época medieval21 a forma preponderante de certificação do possível assentimento para com qualquer documento escrito, desde Roma era objeto de uma interpretação restritiva, que via nela muito mais uma função probatória do que de demonstração de um consentimento informado22. Sobre ela, seja-nos consentido remeter a texto diverso em que, comparando a assinatura digital ao reconhecimento de firma, demonstramos que o papel da assinatura hoje é estritamente probatório: Vincula a uma autoria externa, e a uma possível integridade do documento, mas não à efetiva liberdade instruída da parte que assina23, não assegurando qualquer cuidado com o trato do consumidor. Se, por um lado, a integridade do documento, em especial o digital, deve ser adequadamente guarnecida para que possua acesso ao fólio real, não se podendo, por exemplo, registrar documentos digitais em formatos não inalteráveis como uma mera planilha aberta em "xml", por outro, é também a assinatura digital, apresentada como envelopamento criptográfico final de um arquivo de um dado autor até a entrega a seu destinatário, a responsável pelo maior número de contestações em juízo no âmbito do consumidor, em especial, o mais vulnerável, a demonstrar que um arquivo seguro - físico ou digital - não guarnece por si só a vontade de quem o produziu24. Destarte, a escritura é o instituto jurídico cuja existência volta-se inteiramente para a garantia do espaço de liberdade necessário para a adequada manifestação informada do consentimento. Nela, a função probatória das atas a certificar a efetiva manifestação direta e imediatamente ante o notário (imediação), e a função consultiva imparcial do notário como jusperito a adequar a vontade de um específico cliente à forma que melhor se adapte para aquela pessoa dentro das possíveis no ordenamento, se mesclam de maneira única, a garantir uma vontade, o máximo possível, livre e informada. É por isso que Nuñez Lagos aponta que a escritura é o único ato administrativo que possui em seu cerne a formação da vontade individual. De todos os atos com chancela estatal é aquele que existe precipuamente para o engendro dos negócios particulares25. Enquanto o juiz aplica o Direito do ordenamento para o caso, aplicando a lei que eventualmente foi violada pelas partes que se recusaram a cumprir voluntariamente a determinação legal, de modo a restabelecer a ordem pública violada, o notário aplica o Direito do caso ao ordenamento, procurando dentro do sistema jurídico a regulação legal que lhe pareça mais adequada a cada sistema psíquico e negócio privado que ante ele manifestou sua comunicação específica26. Nesse sentido, mais do que uma questão de prova, mais do que uma questão de cláusula, a escritura garante efetivamente que as vontades manifestadas nos momentos mais drásticos da vida de cada indivíduo sejam as mais acauteladas possíveis, segundo as formas hoje existentes em nosso sistema. Se na estrutura dada pela individualidade kantiana, a manifestação de vontade como expressão da liberdade individual e a autorresponsabilidade daí decorrente formam a base filosófica do que veio a ser o Direito Privado ocidental na conformação da dignidade da pessoa humana-patrimônio-direito subjetivo-negócio jurídico27, é a escritura pública a maior tecnologia jurídica desenvolvida para o acautelamento do exercício da liberdade individual. Por isso, como demonstração de uma liberdade adequadamente ponderada, ainda é a formação da escritura uma atividade intrinsecamente humana. Não à toa, se ligam à função notarial as qualificações de prudência e cautela que dificilmente encontram uma avaliação objetiva e matemática, como demonstrado pela citação em epígrafe sobre a avaliação da liberdade por um sistema de IA.  Nem tudo, por outro lado, necessita de escritura - e dir-se-ia, a maior parte dos nossos negócios não possui sequer forma prescrita. Mas a compra daquele bem da vida que é, em nossa economia atual, o maior débito das famílias, e que, no Brasil, é também o seu maior sonho28, deveria ser, justamente, o contrato mais acautelado. As eventuais comparações com mercados como a bolsa de valores, ressaltando a desnecessidade de uso de escrituras para a compra de ações de valores milionários, acabam não observando que menos de 3% da população brasileira investe em bolsa29. Não enxergam também o fator inverso: Existem mais brasileiros apostando em "bets" do que aplicando em bolsa e, entre a população endividada, mais de 40% ainda usou o pouco de suas disponibilidades financeiras para apostas. Ora, a facilidade em captura de tais consumidores, ligada à falta de qualquer acautelamento imparcial sério é, possivelmente, uma das razões para esse "vicejante mercado" que já monta mais de R$ 50 bilhões30. É, bem por essa razão de proteção dos menos aquinhoados, que a comissão de juristas que elaborou o anteprojeto de atualização do CC sugeriu acréscimo, ao art. 108, de dispositivos para garantir o assessoramento dos notários também àqueles que negociarem bens imóveis com valor inferior a 30 salários mínimos31, o que, nas palavras de um dos juristas da comissão, "entrega ao notário público a guarda desses negócios entre particulares, tal como convém à efetividade da dimensão objetiva dos direitos fundamentais."32 Enfim, com Carnelutti, Satta e Vallet de Goytisolo, podemos dizer que a escritura é o momento dramaticamente humano do "juízo sobre a vontade", descendente da jurisdição voluntária, e ligado originalmente à própria atuação jurisdicional. É nela que, por construção histórica-social que remonta à própria origem do Direito Civil europeu continental, o ato administrativo estatal recai sobre os negócios privados através da atuação do "homem de boa-fé", permitindo a orientação consultiva e o cuidado para com cada indivíduo. "Cavere" é a verdadeira função do notário33. 1 Relatório Final da Comissão Nacional sobre as causas da crise econômica e financeira nos Estados Unidos. Jan. 2011. 2 Resposta do "ChatGPT" à questão "eu sou livre?" proposta por um dos autores. 3 3 equívocos comuns sobre a função notarial: Semelhanças e diferenças entre a fé pública notarial e registral - Parte 1. Disponível aqui. Acesso em 1/12/24. 4 Três equívocos comuns sobre a função notarial - Parte 2 - Da prova à forma: o notário como jurista. Disponível aqui. Acesso em 1/12/24. 5 No original: "L'intérêt (de la société) exige encore que des hommens plus expérimentés viennent éclairer leus concitoyens et les garantir de ces erreurs funestes qui, en dispersant les fortunes particulières, attaquent d'une manière plus ou moins sensible l'ordre er la félicité publique."  6 John Kennedy, Lyndon Johson e Bill Clinton, além de auxiliar na equipe de Franklin Delano Roosevelt. 7 No original: "One cannot defend production as satisfying wants if that production creates the wants." 8 No original: "the individual who urges the importance of production to satisfy theses wants is precisely in the position of the onlooker who applauds the efforts of the squirrel to keep abreast of the wheel that is propelled by its own efforts." Esta e a anterior citação em "The Myth of Consumer Sovereignty". In: The Affluent Society. Boston: Houghton Mifflin, 1958. 9 A título meramente exemplificativo, a Alphabet, conglomerado das empresas reunidas em torno do buscador "Google" declarou, no último trimestre do corrente ano, 192 bilhões de dólares de receita de sua linha de "advertising", num total de 220 bilhões de receita. Vale dizer, 87% das receitas do Google decorrem de propaganda. V. Disponível aqui. Acesso em 1/12/24. No Facebook, para o mesmo período, 113 bilhões de um total de 116 bilhões decorreram de propaganda, ou seja, 97%. V. Disponível aqui. Acesso em 1/12/24. 10 V. Disponível aqui. Acesso em 1/12/24. 11 V. Disponível aqui. Acesso em 1/12/24 e disponível aqui. Acesso em 1/12/24. 12 V. a título exemplificativo, TJSP. Ap. 1000931-37.2023. Rel. Des. Pedro Baccarat. J. 13/6/24. Ainda, TJSP. Apel.1009650-09.2023.8.26.0597. Rel. Sá Moreira de Oliveira. j. 2/12/24, em que se aponta que "os métodos de negociação dos prepostos das apelantes retiraram dos apelados quaisquer possibilidades de reflexão sobre os benefícios e prejuízos decorrentes do contrato, caracterizando a denominada "venda emocional", a qual desrespeita as regras do estatuto consumerista". 13 No original: "global investors, especially those in civil law legal systems, may have incorrectly assumed that a role similar to that of the civil law notary exists in the American residential mortgage process. In civil law countries, a civil law notary supervises and approves all transactions involving real estate, including mortgages, and provides counseling to borrowers about the suitability of their loan obligations. The assumption that the United States applies a civil notary process and a misunderstanding of the actual U.S. loan process partially explains global enthusiasm for investing in the American loan market. This investment enthusiasm caused the subprime mortgage market to balloon, and explains the expanded scope of the global crisis that resulted." V. Celeste M. Hammond & Ilaria Landini, The Global Subprime Crisis As Explained By The Contrast Between American Contracts Law And Civil Law Countries' Laws, Practices And Expectations In Real Estate Transactions: How The Lack Of Informed Consent And The Absence of the Civil Law Notary in the United States Contribute to the Global Crisis in Subprime Mortgage Investments, 11 J. Int'l Bus. & L. 133 (2012). 14 No original: Another possible default option would be a requirement that every mortgage borrower have the assistance of a professional akin to a civil law notary. Such notaries practice in many countries, although not in the United States. In Germany, for example, the civil law notary is a trained legal professional who reads aloud and interprets the contract and provides legal advice to both parties before witnessing their signatures. This approach particularly benefits those who fail to obtain competent and objective legal advice. The participation of such a government-appointed figure in the mortgage lending process would make it more difficult for unscrupulous mortgage lenders to steer their clients toward sympathetic lawyers, who would not adequately warn the clients of the dangers they could be facing. V. The Subprime Solution. How today's global financial crisis happened, and what to do about it. Oxford: University Press, 2012. p. 133-134.                  15 No original: "Ultimately there is no comparison between the impartiality and neutrality of notaries and the role of lawyers, title companies, or real estate brokers who close real estate transactions and make conveyances in the common law world. The lawyer for a bank, who closes a transaction in which the other parties are unrepresented, owes no meaningful ethical or legal duty to anyone other than his client, and is subject to strong economic influences from his role as purveyor of title insurance and advocate for a repeat player participant. No one other than the client can rely on such a personage for any level of consideration or protection." The Civil Law Notary - Neutral Lawyer for the situation. A comparative Study on Preventative Justice in Modern Societies. Munique: C.H. Beck, 2010. p. 167. 16 STJ, 2. S. Resp 1.599.511-SP. Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino. J. 24/8/16. 17 Cfr. Arts. 14 e 15 da Ley 5/19. 18 V. §§312, 2, 1, b, 483, 2, 495, 2, 2 e 495, 3, do Código Civil Alemão. 19 Nesse sentido, v. CHALHUB, M. N. A segurança jurídica do contrato de alienação fiduciária por instrumento particular. In: Disponível aqui. Acesso em 5/12/24. 20 Motivo do primeiro texto da série. V. nota 3. 21 Em que substituída pelos sinetes no chamado ius sigili que ulteriormente deu guarida ao reconhecimento de firma e aos títulos de crédito. 22 E por isso os documentos privados deveriam ser sempre assinados perante testemunhas e, quando apresentados em juízo, as testemunhas deviam ser chamadas a testificar sobre o seu contexto de produção. 23 V. o nosso Esfragística, criptografia, assinaturas e função notarial. Disponível aqui. Acesso em 1/12/24. 24 V. o nosso, em coautoria com o defensor público Erick Lé Palazzi Ferreira. Assinatura avançada no registro de imóveis: crédito rápido, reparação lenta. Disponível aqui. Acesso em 1/12/24. Como citado no texto em referência na nota anterior, mesmo um ministro da Justiça já teve ocasião de declarar que não assinou um arquivo que foi, segundo nosso ordenamento, a ele atribuído pelo uso da criptografia digital. 25 El Derecho Notarial. Lima: Gaceta Notarial, 2013. p.25-77. 26 NUÑEZ LAGOS, R. Los Esquemas Conceptuales del Instrumento Publico. Lima: Gaceta Notarial, 2013. p.213-262 27 V. PAIS DE VASCONCELOS, P.; LEITÃO PAIS DE VASCONCELOS, P. Teoria Geral do Direito Civil. 9. Ed. Coimbra: Almedina, 2019. p. 7-36. 28 V. Disponível aqui. Acesso em 5/12/24, em que a Febraban aponta que o maior desejo dos brasileiros é a compra de um imóvel. 29 Disponível aqui. Acesso em 5/12/24. 30 Disponível aqui. Acesso em 5/12/24. E disponível aqui. Acesso em 5/12/24. A necessidade de uma maior formalidade para aplicações financeiras foi ressaltada pelo STF no julgamento da lei estadual da Paraíba que obrigou empréstimos consignados de aposentados a serem formalizados por assinatura física. V. Disponível aqui. Acesso em 5/12/24. 31 Dispositivo constante do anteprojeto: Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis. § 1º Os emolumentos de escrituras públicas de negócios que tenham por objeto imóvel com valor venal inferior a trinta vezes o maior salário-mínimo vigente no País, terão os seus custos reduzidos em cinquenta por cento. 32 . BRITO, E. P. de Transversalidade da constituição com a revisão e atualização do Código Civil. Disponível aqui. Acesso em 12/12/24. 33 CARNELUTTI, F. La figura juridica del notario. Conferência na Academia Madrilenha do Notariado. Maio de 1950. In: Teoría del Derecho Notarial. Lima: Gaveta Notarial, 2021. p. 123-149. SATTA, S. Poesia e veritá nella vita del notaio. p. 548.In: Vita Notarile: Studi problemi e lettere del notariato. Rivista di Diritto e pratica contrattuale e tributaria. Indice Generale. 1955. Palermo: Edizioni Fiuridiche Italiane. p. 543-550. VALLET DE GOYTISOLO, J. La función del notariado y la seguridad jurídica. Lima: Gaceta Notarial, 2012. p. 39-54.
Há determinados temas que são tão claros que sequer exigem fundamentação extensa. O recente provimento do CNJ contém um dispositivo tão absurdo, que merece apenas brevíssimos comentários. Dispõe o § 3º do art. 320, I, do provimento 188, de 4/12/24: "A superveniência de ordem de indisponibilidade impede o registro de títulos, ainda que anteriormente prenotados, salvo exista na ordem judicial previsão em contrário". Felizmente o provimento só entrará em vigor 30 dias após a publicação - há tempo, portanto, para corrigir a infeliz disposição. Dentre os princípios informadores da atividade registral está o da segurança jurídica, que seria a certeza quanto ao ato e sua eficácia, promovendo a libertação dos riscos.  O princípio está estampado logo no art. 1º da lei 8.935/94. Antes mesmo da edição da lei que regulamentou o art. 236 da CF/88, o princípio já constava, também do art. 1º, da lei 6.015/73. Segurança jurídica - os serviços registrais e notariais devem assegurá-la, sob pena de não alcançarem sua finalidade, dando margem ao surgimento de inúmeros conflitos de interesses. Dentre os princípios fundamentais do registro imobiliário, está o princípio da prioridade. O desrespeito a tal princípio faz cair por terra todo o sistema do registro imobiliário. Tal princípio "determina a prioridade do título, e esta a preferência dos direitos reais, sendo eficaz o registro desde o momento em que se apresentar o título ao oficial do registro e este o prenotar no protocolo (art. 1.246 do Código Civil e art. 186 da Lei n. 6.015/73) - comporta exceções (arts. 189 e 192 da Lei n. 6.015/73). O princípio da prioridade importa em que os títulos tomarão, no Protocolo, o número de ordem que lhes competir em razão da sequência rigorosa de sua apresentação, e o número de ordem determinará a prioridade do título, e esta a preferência dos direitos reais. O desrespeito ao princípio da prioridade pode fazer ruir toda a segurança do sistema"1. Ora, o que quer fazer o CNJ? Derrubar a prioridade prevista em lei ordinária, afastar a preferência dos direitos reais, e arruinar a segurança jurídica que o registro imobiliário proporciona. Quem comprar um imóvel com observância de todas as disposições aplicáveis, com diligência extrema, e apresentar o título de imediato ao registro, ainda assim não estará seguro - pode surgir uma ordem de indisponibilidade posterior à prenotação que, nos termos do dispositivo em comento, impedirá o registro!!!!! O princípio da prioridade, base de todo o registro imobiliário, impõe o registro na estrita ordem de apresentação dos títulos, salvo expressa ordem judicial, específica quanto a determinado título.  Para evitar intepretações errôneas como a do CNJ, as Corregedorias Estaduais editaram normas específicas (até mesmo desnecessárias, mas com objetivo de esclarecimento). Dispõe o Tribunal de São Paulo que "quando se tratar de ordem genérica de indisponibilidade de determinado bem imóvel, sem indicação do título que a ordem pretende atingir, não serão sustados os registros dos títulos que já estejam tramitando, porque estes devem ter assegurado o seu direito de prioridade" (Provimento nº 58/89, Cap XX, Seção IV, Subseção II, 108.3).  No mesmo sentido em Minas Gerais: "Provimento Conjunto nº 93/2020, art. 850, § 2º, a ordem ou mandado de indisponibilidade genérica ou específica de determinado imóvel será prenotada e, respeitando-se a respectiva ordem de protocolo, averbada. § 3º Não serão sustados os registros dos títulos que já estejam prenotados, devendo ser assegurada a sua prioridade". O Estado do Rio de Janeiro, em recente alteração do seu Código de Normas, estabeleceu no art. 1.212: " A ordem ou mandado de indisponibilidade genérica ou específica de determinado imóvel será prenotada e, respeitando-se a respectiva ordem de protocolo, averbada. § 2º. Não serão sustados os registros dos títulos que já estejam prenotados, devendo ser assegurada a sua prioridade". O CNJ resolveu andar na contramão.  E o faz com empenho. Sabedor de que a indisponibilidade é a restrição ao poder de dispor da coisa, impedindo-se sua alienação ou oneração por qualquer forma, "permite" que seja lavrada a escritura2 mesmo diante de ordem de indisponibilidade, sem ponderar se seriam nulos, anuláveis, ou meramente ineficazes os atos de disposição de bens atingidos pela indisponibilidade, ignorando a origem da determinação e seus efeitos, que podem variar. À guisa de regulamentar a CNIB, o CNJ foi muito além. No entanto, permite a lavratura da escritura, mas impede o registro não só de tais escrituras, mas também daquelas lavradas e prenotadas no registro quando não havia ordem de indisponibilidade. Qual a lógica, tendo em conta o sistema de duas etapas na aquisição da propriedade? Para a primeira etapa, a indisponibilidade não é óbice, ainda que decorra da lei e o efeito seja a nulidade do ato de disposição de bens atingidos pela indisponibilidade. Quanto à segunda etapa, a indisponibilidade impede o registro, mesmo a que alcança o protocolo após o ingresso de um título totalmente hígido. Eu, como registrador de imóveis, profissional do Direito, responsável pela segurança jurídica quanto aos atos que pratico, prefiro estar com o Raul Seixas, não quero mais andar na contramão. Dito tudo isto, concluo que talvez não fosse preciso tanto: pode o CNJ dispor contra leis Federais, que asseguram o princípio da prioridade e a preferência dos direitos reais (art. 1.246 do CC e art. 186 da lei 6.015/73)? _________ 1 SOUZA, Eduardo Pacheco Ribeiro de. Noções Fundamentais de Direito Registral e Notarial. São Paulo: Saraiva, 3ª edição, 2022. 2 Provimento 188, art. 320-F, Parágrafo único. A existência de ordem de indisponibilidade não impede a lavratura de escritura pública, mas obriga que as partes sejam cientificadas, bem como que a circunstância seja consignada no ato notarial.
O reconhecimento da filiação, seja ela biológica ou socioafetiva, é uma questão de extrema relevância no âmbito do Direito de Família e das Sucessões e está alicerçado em princípios constitucionais como o da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal), da igualdade entre os filhos (art. 227, § 6º, da Constituição) e do melhor interesse da criança e do adolescente. A legislação infraconstitucional, como o Código Civil, reforça essa visão, especialmente em seus arts. 1.593 (que reconhece as várias formas de parentesco) e 1.607 (que regula o reconhecimento de filhos). A resolução 571, de 27/8/24, deu nova redação à resolução 35/CNJ, introduzindo diversas alterações significativas no intuito de promover a desjudicialização e garantir maior celeridade em assuntos relacionados a inventário, partilha, separação consensual, divórcio consensual e extinção consensual de união estável. Foi, assim, autorizada a extrajudicialização do inventário, mesmo quando as partes sejam pessoas menores ou incapazes, desde que observados os requisitos previstos nos incisos do art. 12-A. Os requisitos a serem observados são os seguintes: Pagamento do quinhão hereditário do menor ou da meação do incapaz em parte ideal em cada um dos bens inventariados e manifestação favorável do Ministério Público, sendo expressamente vedada a prática de atos de disposição relativos aos bens ou direitos do interessado menor ou incapaz, conforme § 1º do mesmo artigo. O § 2º do art. 12-A da resolução 35/CNJ, incluído pela resolução 571/CNJ, estabelece que, havendo nascituro do autor da herança, para a lavratura do inventário, deverá ser aguardado o registro de seu nascimento com a indicação da parentalidade, ou a comprovação de não ter nascido com vida. A disposição do § 2º é compreensível, pois a partilha muda a depender de ocorrer ou não o nascimento com vida desse herdeiro. Assim, a resolução 571 bem regulamentou essa questão do nascituro. Por outro lado, não se pode compreender o disposto no art. 12-B, § 1º, da resolução aqui comentada, que traz a vedação do inventário extrajudicial se na certidão do testamento for constatada a existência de disposição reconhecendo filho. Ora, sabe-se que o reconhecimento de filho no testamento é disposição irrevogável, conforme estabelece a lei 8.560/92, em seu art. 1º, III, e o CC brasileiro, em seu art. 1.609, inciso III. Assim, se constar do testamento válido esse reconhecimento, muito dificilmente deixará de ser considerada essa declaração, pois a anulação do reconhecimento somente será admitida nos casos de existência de vício de consentimento no ato jurídico realizado, o que deverá ser feito judicialmente, na via adequada a este procedimento. Cabe enfatizar que ambas as modalidades de filiação, biológica e socioafetiva, podem ser objeto de testamento. Havendo no testamento o reconhecimento de filiação, e sendo o testamento válido, o meeiro(a) e sucessores devem aceitar tal fato e proceder à inclusão de mais um herdeiro no inventário. Se todas as partes aceitarem o novo herdeiro, não há razão para ser obrigatória a via judicial. Havendo consenso entre as partes, não se pode conceber da proibição da opção pela via extrajudicial. Seria perfeito que o CNJ tivesse determinado que, antes de prosseguir no inventário, fosse averbado no registro civil o nome do pai ou da mãe, de modo que o reconhecimento do filho esteja refletido no seu registro civil, na mesma lógica estabelecida para o caso do nascituro. A melhor hipótese ventilada para justificar a redação da norma que veda o inventário quando há reconhecimento de filho no testamento é a de que a resolução 571 desconsiderou o fato de que o reconhecimento de paternidade pode ser feito diretamente no Registro Civil das Pessoas Naturais, por isso é importante reforçar que não é necessário mover a máquina judiciária para a averbação da paternidade ou maternidade no registro do filho. No caso de o pai biológico ter falecido, vale o testamento como manifestação de vontade dele, como autorizam a lei 8.560/92 e o Código Civil vigente. Já para o reconhecimento socioafetivo, há previsão expressa da aceitação do testamento como manifestação da vontade do pai ou da mãe no provimento 149/CNJ, em seu art. 507, § 8º. Assim, necessário se faz a revisão do disposto na resolução 35/CNJ, quanto ao afastamento da via extrajudicial quando houver filho reconhecido no testamento. Enquanto não houver tal revisão, sugere-se que, quando for apresentado ao Juiz o testamento para fins de seu registro, abertura e cumprimento1, seja informado ao Juiz que a averbação da paternidade ou maternidade já foi realizada e seja solicitada a autorização para a lavratura extrajudicial do inventário. A resolução 35/CNJ, a nova resolução 571/CNJ, bem como outras normas que ampliam as possibilidades de atuação extrajudicial consolidam a tendência à desjudicialização. Contudo, necessário se faz que sejam eliminadas barreiras desnecessárias, haja vista serem os atos notariais e registrais consagrados como instrumentos plenos e legítimos de resolução de questões familiares e patrimoniais. _________ 1 A autorização judicial é obrigatória em qualquer hipótese de existência de testamento, nos termos dos incisos do art. 12B, da Resolução nº 35/CNJ, na nova redação dada pela Resolução 571/CNJ.
Nesta seção da "Oficina Notarial e Registral" vamos tratar hoje de um tema pouco estudado e que pode ocorrer nos processos extrajudiciais de usucapião, adjudicação, execução extrajudicial etc. É possível que no curso desses processos ocorra a reiteração de pedidos de suscitação de dúvida. No caso concreto enfrentado por nós tratava-se de reiteração de dúvida já suscitada e julgada procedente anteriormente - inclusive em grau de recurso, com trânsito em julgado.1 Vamos lançar um breve olhar sobre a jurisprudência escassa que enfrentou raros casos de reiteração de pedidos de suscitação de dúvida. Formou-se, ao longo do tempo, no Eg. Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, uma orientação bastante consistente e que vale a pena rememorar para que se iluminem as questões agitadas no caso concreto enfrentado por nós. Sabemos que a dúvida tem natureza administrativa (art. 204 da LRP). As decisões prolatadas  no processo de dúvida (art. 198 da LRP) não produzem eficácia externa, típica da coisa julgada material - salvo se o interessado optar pela via do processo contencioso, como posto na parte final do art. 204 citado. Portanto, no processo de dúvida não ocorre a coisa julgada material. Entretanto, com o trânsito em julgado (art. 203 da LRP), dá-se a coisa julgada formal - na verdade um efeito preclusivo endoprocessual, com o esgotamento da matéria neste âmbito. Segundo Ricardo Dip et al., de fato, não há coisa julgada material no processo de dúvida, mas "pode cogitar-se, contudo, de formação de coisa julgada formal (que melhor se denomina preclusão administrativa", vale dizer: "imutabilidade nos mesmos autos em que proferida".2 A reiteração da dúvida não é incondicionada no sistema registral pátrio, admite-se-a, "desde que se supere motivo anteriormente reconhecido3 ou que se tenha alterado a jurisprudência a respeito das questões tratadas".4 Nery e Nery sustentam que a coisa julgada formal ocorre quando a sentença já não se acha sujeita a recurso ordinário ou extraordinário, quando já se tenham "esgotados todos os meios recursais de que dispunham as partes e interessados naquele processo. Para a coisa julgada formal leva-se em conta, principalmente, a inimpugnabilidade da sentença, vale dizer, o momento em que se forma a coisa julgada".5 Tradicionalmente, o CSMSP sempre entendeu viável a reiteração de suscitação de dúvida, desde que "afastados os motivos e as irregularidades que justificaram as exigências albergadas em anterior decisão de dúvida, mantendo-se, ou não, o reconhecimento de procedência da recusa".6 Nem mesmo os pedidos "de reconsideração" são cabíveis, justamente porque no processo de dúvida a decisão terminativa tem caráter preclusivo. Encerrada a via administrativa, não se pode conceber o revolvimento ou desfazimento das decisões de primeiro e segundo graus. Não há qualquer previsão na lei de regência (LRP arts. 198-204).7 Suscitação de dúvida - obrigação do Oficial Entretanto, visto da perspectiva do interessado, nada impede que ele provoque nova suscitação de dúvida, já que a sua eventual pretensão encontra guarida no art. 12 da LRP: "Art. 12 Nenhuma exigência fiscal, ou dúvida, obstará a apresentação de um título e o seu lançamento do Protocolo com o respectivo número de ordem, nos casos em que da precedência decorra prioridade de direitos para o apresentante". Feita a reapresentação do título, que é protocolado e examinado, redundando na reiteração de exigências, nada impede que o interessado requeira a suscitação de dúvida. A suscitação é obrigação legal imposta ao registrador que se não pode forrar à obrigação contida no comando legal, sob pena de responsabilidade administrativa.8 Por fim, nem mesmo poderia ser prolatada sentença de arquivamento sumário do pedido, já que tal decisão pode vir a ser anulada por ferir o disposto no art. 199 da LRP.9 Parece bem assentes, portanto, tais balizas para os casos ordinários. Entretanto, será assim para os processos registrais complexos - como, por exemplo, a usucapião e adjudicação extrajudiciais? Processo de usucapião e a coisa julgada formal Homólogo ao rito processual ordinário10, sem os efeitos da coisa julgada material, a usucapião extrajudicial tramita na serventia com a obrigatória ultrapassagem de todas as etapas intercorrentes do processo extrajudicial, culminando com o saneamento e decisão final acerca do registro ou da rejeição da pretensão (§ 8º do art. 216-A da LRP).  Tem-se entendido que é o deferimento ou rejeição do pedido, devidamente fundamentado, que pode ser objeto de dúvida - salvo decisões intercorrentes admitidas por exceção. De fato, poder-se-ia acenar com a figura extravagante de agravo de decisões intercorrentes no iter processual da dúvida. Depois do advento do CPC/15, o seu art. 15 prevê que, relativamente às decisões administrativas, as suas disposições serão aplicadas a elas supletiva e subsidiariamente, incidindo, portanto, as normas do agravo de instrumento em todo processo administrativo em curso nas serventias extrajudiciais.11 No caso concreto examinado por nós (aresto já indicado na nota 1), não se inaugurou uma nova sazão do processo registral. A parte é a mesma, a prenotação idem, o Oficial do Registro e os órgãos judiciários são os mesmos; em suma, o processo registral é o mesmo, e o tema sobre o qual se controverte é o mesmo. A decisão terminativa do Oficial nada mais fez do que encerrar o processo pela rejeição do pedido, com fundamento nas razões já explicitadas e apreciadas no curso do processo em seus vários graus de recursos. Portanto, teoricamente, a reiteração do pedido de suscitação de dúvida já não caberia no curso de um mesmo processo extrajudicial. Caberia, se o caso, o ajuizamento da ação ordinária de usucapião (§ 9º do art. 216-A da LRP) ou a via de escape prevista na própria LRP (art. 204). _________ 1 Ap. Civ. 1114836-23.2024.8.26.0100, São Paulo, j. 13/11/2024, Rel. Des. Francisco Loureiro. Disponível aqui. 2 DIP, Ricardo. RIBEIRO, Benedito Silvério. Algumas Linhas Sobre a Dúvida no Registro de Imóveis. In Revista de Direito Imobiliário, n. 23, jan./jun. 1989. 3 É o caso tratado pelo CSMSP quando o interessado trouxera a juízo "outros elementos de embasamento para sua pretensão, tardiamente obtidos para impulsionamento anterior da via recursal, quando, noutra dúvida, suscitada a propósito do registro dos mesmos títulos, lhe foi adversa a R. decisão de primeiro grau". Ap. Civ. 3.095-0, São Paulo, j. 27/12/1983, DOJ 11/01/1984, Rel. Des. Bruno Affonso de André. Disponível aqui. 4 DIP, Ricardo, op. cit. loc. cit. O exemplo mais impressivo é a hesitação jurisprudencial acerca da exigibilidade da CNJ do INSS para os atos de alienação ou oneração de bens imóveis. 5 NERY JR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. CPC Comentado. 17ª ed., São Paulo: RT, 2019, p. 1.208, n. 17. 6 A decisão proferida em sede de dúvida não faz coisa julgada (salvo formal - cf. art. 204 da LRP). A reiteração de dúvida se admite, se superados os óbices que ensejaram a recusa anterior ou que se altere a jurisprudência acerca da matéria posta novamente em debate: Ap. Civ. 10.380-0/1, Americana, j. 27/8/1990, Dje 29/10/1990, Rel. Des. Onei Raphael Pinheiro Oricchio, disponível aqui. Há inúmeros precedentes:  Ap. Civ. 1018383-15.2014.8.26.0100, São Paulo, j. 2/12/2014, Dje 2/3/2015, Rel. des. Elliot Akel, disponível aqui. Ap. Civ. 1.559-0, São Caetano do Sul, j. 25/3/1983, DOJ 3/5/1983, Rel. Des. Bruno Affonso de André. Disponível aqui. No mesmo sentido: Ap. Civ. 3.095-0, São Paulo, j. 27/12/1983, DOJ 11/1/1984, Rel. Des. Bruno Affonso de André, disponível aqui; Ap. Civ. 3.497-0, São Caetano do Sul, j. 18/7/1984, DOJ 15/8/1984, Rel. Des. Marcos Nogueira Garcez, disponível aqui. Ap. Civ. 6.536, 7 Agravo interno 2054280-52.2021.8.26.0000/50000, Ribeirão Preto, j. 8/6/2021, DJe 16/6/2021, Rel. des. Ricardo Mair Anafe. Disponível aqui. No mesmo se pretendeu a rescisória de processo de dúvida, pedido julgado incabível. Disponível aqui. STJ REsp 1.269.544/MG, j. 26/6/2015, Dje 29/5/2015, Rel. Min. João Otávio de Noronha. Disponível aqui. No mesmo sentido: PASSOS, Josué Modesto. BENACCHIO, Marcelo. A dúvida no Registro de Imóveis. São Paulo: RT, 2020, p. 103, n. 14.2. 8 O CSMSP já decidiu que "é obrigação legal do Serventuário suscitar a dúvida, nos termos do art. 198 dessa Lei, sempre que houver recusa sua para a prática de atos de registro". Ap. Civ. 11.673-0/6, Agudos, j. 17/9/1990, DJ 31/10/1990, Rel. Des. Onei Raphael Pinheiro Oricchio, disponível aqui. Na 1VRPSP, Processo 100.09.135469-8, São Paulo, j. 30/11/2009, Dje 3/12/2009, Dr. Gustavo Henrique Bretas Marzagão. Disponível aqui. 9 O processo de dúvida "não comporta arquivamento puro e simples, sem julgamento, frente ao disposto no art. 199 da Lei de Registros Públicos". (...) "Mesmo em se tratando de nova apresentação do título, sendo suscitada a dúvida, esta somente poderia findar-se por sentença, na forma da lei, inadmitido o seu arquivamento, puro e simples". Ap. Civ. 6.507-0, São Carlos, j. 15/12/1986, DOJ 15/12/1986, Rel. Des. Sylvio do Amaral, disponível aqui. 10 As próprias NSCGJSP preveem no item 416.1: "O requerimento de reconhecimento extrajudicial da usucapião atenderá, no que couber, aos requisitos da petição inicial, estabelecidos pelo art. 319 do Código de Processo Civil - CPC". Vide: Processo: 1008143-25.2018.8.26.0100, j. 6/4/2018, Dje 17/4/2018, Dra. Tânia Mara Ahualli, disponível aqui. 11 PASSOS e BENACCHIO, Op., cit. nota 7, p. 101, n. 13.2.3.
Resumo Começamos por resumir, em tópicos, as principais ideias deste artigo: A titularidade de criptomoedas corresponde à titularidade de direitos pessoais (que são bens móveis por determinação legal - art. 83, III, CC), e não de direitos reais. (capítulos 1 e 2). A titularidade de direitos sobre "moedas" ou "funcionalidades" disponibilizadas em jogos eletrônicos é de direito pessoal, à semelhança do que, mutatis mutandi, se dá com a titularidade sobre as criptomoedas (capítulos 1, 2 e 3.1.). No caso de criptomoedas com âncora conhecida - como no caso da famosa ether -, a titularidade de criptomoeda é um direito pessoal com identificação de um sujeito de direito obrigado a garantir a satisfação do direito do titular (capítulo 3.2.). No caso de criptomoeda sem âncora conhecida - como na hipótese do bitcoin -, a titularidade segue sendo um direito pessoal, mas é desconhecido o sujeito de direito que pudesse, em tese, vir a ser obrigado a garantir a satisfação do direito do titular (capítulo 3.3.). No caso de aquisição, gestão e alienação de criptomoedas vir a ser realizada com a intermediação de uma corretora, seria, em regra, descabido cogitar em lei que instituísse patrimônio de afetação sobre as titularidades das criptomoedas, pois a corretora atuará como mera mandatária. A exceção corre à conta das hipóteses em que a corretora exerce a intermediação por meio de uma operação de espelhamento obrigacional (capítulo 3.4.1. e 3.4.2.). Merece reflexão eventual conveniência de lei que estabeleça regime de patrimônio de afetação sobre o dinheiro depositado nas contas das corretoras de criptomoedas como forma de fortalecer a segurança jurídica dos investidores (capítulo 3.4.1.). O pagamento, com criptomoedas, da aquisição de um bem não configura um contrato de compra e venda, e sim um contrato de permuta (capítulo 3.5). 1. Introdução Qual a natureza jurídica da criptomoeda? É um direito real? É um direito pessoal? Qual a repercussão prática disso? Esse é o foco do presente artigo. Desde logo, por todas as conversas que nos ajudaram a amadurecer o tema, agradecemos ao amigo jurista Rafael de Castro Alves, consultor legislativo do Senado, advogado e ex-procurador do Banco Central, dono de profundo conhecimento em Direito aplicado ao mercado financeiro. A resposta às perguntas centrais deste artigo tem de se encaixar na classificação do CC, para bens móveis, os quais podem ser: a) Bem móvel por natureza (art. 82, CC1); b) Bem móvel por determinação legal, que pode ser subdividido em (art. 83, CC2): b.1) Energia elétrica; b.2) Direitos reais; b.3) Direitos pessoais de caráter patrimonial. A questão não é meramente estética. Há desdobramentos práticos dessa categorização, conforme veremos ao longo deste artigo. Além disso, a importância das criptomoedas é tamanha que foi editada a lei das criptomoedas (lei 14.478/22), regulando esse "ativo virtual" (para usar a nomenclatura legal). Antes de responder e avançar na resposta da pergunta central deste artigo, convém uma comparação. Alguns jogos eletrônicos de computador, de Playstation e de outras plataformas permitem que o usuário "compre" armaduras ou roupas para o seu personagem. É clássico o jogo Fortnite, que vende "armaduras" (geralmente chamadas de skin) para o personagem. A propósito, segundo notícia colhida da mídia, houve um caso de um menino britânico de 10 anos de idade que gastou mais de US$ 1.500,00 no jogo Fortnite, comprando itens para o seu personagem no jogo.3 De curiosidade, em 2021, para os amantes do jogo, foi lançada a skin traje do Batman, a qual é disponibilizada por 1.500 V-Bucks, "moeda oficial do jogo". Para adquirir 1.500 V-Bucks, o jogador precisa pagar, em real, um valor para a empresa fornecedora do jogo Fortnite, e esta, em contrapartida, disponibilizará o referido quantitativo de moeda digital. Esses 1.500 V-Bucks deve ficar por volta de R$ 37,00.4 Indaga-se: Qual a natureza jurídica dessas "armaduras" compradas para o personagem do jogo? E a natureza jurídica da moeda oficial do jogo Fortnite? Há uma tendência popular de tratar esses "bens digitais" como se fossem direitos reais de propriedade. É comum ouvir alguém dizer: Sou dono de mil bitcoins; ou sou dono da armadura do Batman no jogo fortnite; ou tenho milhares de V-Bucks, a moeda digital do mundo digital. Mas é preciso tomar cuidado para que o senso comum não contamine a acuidade técnica dos conceitos jurídicos, pois o regime jurídico é diverso a depender da natureza jurídica das coisas. Desde logo, já respondemos: As criptomoedas, assim como a armadura do Batman no Fortnite bem como as moedas oficiais desse jogo (os V-Bucks), não passam de meros direitos pessoais (art. 83, III, CC). Não se trata de um direito real de propriedade. 2. Direitos reais vs direitos pessoais: Bens incorpóreos Reportamo-nos a anterior artigo nosso em que defendemos que os direitos reais não podem recair sobre bens incorpóreos, salvo lei expressa em sentido contrário. No máximo, o que há no nosso ordenamento é hipótese de direito pessoal que atrai, no que couber, regras de direitos reais por razões de ordem práticas.5 Como inexiste lei que etiquete a titularidade sobre criptomoedas como direitos reais, a natureza jurídica dessa titularidade é de direito pessoal (art. 83, III, CC). Pode-se, apenas no couber, aplicar regras de direitos reais. 3. Criptomoedas como direito pessoal 3.1. Comparação com "ativos" de jogos virtuais Ao ingressar no Fortnite, o usuário celebra um contrato com o fornecedor desse jogo. Não há a intermediação humana no momento da celebração desse contrato. E nem seria necessário, porque a figura do smart contracts lato sensu6 retrata exatamente a existência de contratos cuja celebração, execução ou extinção ocorre mediante um sistema cibernético. Nesses casos, o que importa é a vontade humana inicial, que forneceu esse sistema cibernético a adotar determinada reação diante de uma ação do usuário. Portanto, no caso do Fortnite, quando o usuário compra as "moedas virtuais do jogo" e quando as utiliza para comprar para o seu personagem a "armadura do Batman" ou outra skin, tudo não passa de um serviço prestado pela empresa fornecedora do jogo ao usuário. O serviço consiste em garantir ao usuário esse universo cibernético e fantasioso cativante à mente humana. Tudo é uma ilusão de ótica causada pelo software do Fortnite.7 Logo, o que o usuário titulariza é apenas um direito pessoal: A fornecedor do jogo Fortnite tem de garantir ao usuário a continuidade do serviço cibernético, com os personagens comandados pelo usuário com as "armaduras" ou outras skins escolhidas pelo jogador, respeitada, obviamente, eventual particularidade contratual que respalde eventual descontinuidade do jogo. Não há, de modo algum, qualquer direito real do usuário sobre a "armadura do Batman". Teoricamente, se, na plataforma do jogo, for possível um personagem entregar a outro personagem, de outro usuário, a "armadura do Batman", outra skin ou até mesmo as moedas oficiais do jogo, o que teremos aí seria uma transmissão do direito pessoal (especificamente uma cessão de crédito, uma cessão de contrato ou outro instituto translativo de direito pessoal, a depender do tipo de jogo). O outro usuário passará a titularizar o direito pessoal que havia sido adquirido pelo anterior jogador. O fornecedor do Fortnite terá de assegurar ao personagem do novo jogador a "armadura do Batman" ou outras skins. Em tese, esse direito pessoal poderá até ser utilizado em contrato de permuta na vida real. Suponha que alguém - que é um fanático jogador de Fortnite - esteja a vender um celular. Imagine que aparece um outro fanático jogador interessado em adquirir o celular. Ora, nesse caso, seria totalmente lícito que esses jogadores fizessem um contrato de permuta: O celular de um em troca do direito pessoal do outro à "armadura do Batman" ou a uma determinada quantida de V-Bucks (a moeda oficial do jogo). O antigo dono do celular, após a permuta, passaria a ter a "armadura" do Batman ou passaria a ter uma quantidade de V-Bucks para gastar no jogo, tudo por ter-se tornado titular do respectivo direito pessoal perante o fornecedor do Fortnite. De modo similar, quando discutirmos a natureza jurídica das criptomoedas, a comparação é bem didática. É claro que, se formos discutir o regime jurídico aplicável (o que seria outro assunto), não há nada a comparar, porque a importância assumida pelas criptomoedas nos negócios jurídicos é muito superior ao da "armadura" do Batman do boneco do Fortnite. 3.2. Criptomoedas com âncora conhecida: Natureza jurídica Quanto às criptomoedas, temos dois grupos principais: Aquelas com uma âncora conhecida e aquelas sem âncora conhecida. O primeiro grupo diz respeito a casos em que há uma pessoa (física ou jurídica) conhecida que comanda a disponibilização de criptomoedas. É o caso do ether, criptomoeda que é comandada por uma pessoa jurídica (que chamaremos de fornecedor do ether). Nesse caso, quando o usuário acessa o software que dá acesso à plataforma blockchain para realizar transações com ether, o que se tem aí é um verdadeiro contrato desse usuário com o fornecedor da ether. Trata-se de um contrato com uso de tecnologia para a contratação, a execução e a celebração do contrato, mediante reações cibernéticas do sistema desenhado pelo desenvolvedor da ether. Quando o usuário adquire ether, ele, na verdade, adquire apenas um direito pessoal perante o fornecedor, o qual tem o dever de manter o serviço da plataforma funcionando para garantir a identificação da titularidade do ether. 3.3. Criptomoedas sem âncora conhecida: Natureza jurídica O segundo grupo de criptomoedas é daqueles não possuem âncora conhecida. É o caso do bitcoin, que se opera por meio de uma plataforma de blockchain que foi desenvolvida por uma pessoa desconhecida e que é autoexecutável mediante a participação dos mineradores. Ao acessar o software que permite operações nessa plataforma, o usuário celebra um contrato com o desconhecido fornecedor do Bitcoin. Trata-se de um contrato com uso de tecnologia para a celebração e a execução mediante as reações automáticas do sistema cibernético. O problema é que, como o fornecedor é desconhecido, os usuários não terão, na prática, contra quem endereçar eventual ação de responsabilidade civil contratual no caso de a plataforma de blockchain vir a ser retirada totalmente do ar (com, inclusive, eventual apagamento dos espelhamentos da plataforma nos computadores de todos os mineradores). No mais, o raciocínio desenvolvido para as criptomoedas com âncora conhecidas é totalmente aplicável, inclusive em relação à presença de eventual corretora. 3.4. Corretora e a questão do patrimônio de afetação Como fica o arranjo jurídico de titularidade de criptomoedas quando o usuário contrata uma corretora? Nesse ponto, temos duas situações: Uma sem o que chamamos de operação de espelhamento obrigacional e outra com esse espelhamento. 3.4.1. Corretora SEM operação de espelhamento obrigacional Começamos pela operação sem esse espelhamento. Nessa hipótese, se o usuário contrata uma corretora e passa a esta a sua senha pessoal, a verdade é que a corretora atuará como mera mandatária do usuário: Acessará o software que permite operar na plataforma de blockchain específica para, em nome do usuário, fazer alienações ou transferências de ether. Como se vê, a corretora não é titular de nenhum direito real, mas é mera mandatária. Por isso, se essa corretora vier a falir, o juízo falimentar não poderá arrecadar as criptomoedas dos usuários, pois essas criptomoedas são direitos pessoais dos usuários: A corretora é mera mandatária deles. Por essa razão, nessa situação, são totalmente descabidas reflexões de instituir regime de patrimônio de afetação sobre as criptomoedas: Inexiste qualquer titularidade de direito real sobre criptomoedas! Nem mesmo o cliente tem direito real, mas mero direito pessoal perante o fornecedor da ether. A única sensibilidade é se o usuário vier transferir dinheiro (em real, por exemplo) para uma conta bancária da corretora, com o objetivo de esta, como mandatária, vir a fazer aquisição de ether. Nesse caso, indaga-se: Se vier a ser decretada a falência da corretora, como ficará esse "dinheiro"? Antes de responder, é preciso uma lembrança. O dinheiro transferido para a corretora é apenas um direito pessoal que se aproxima ao do depositante no contrato de depósito irregular de que trata o art. 645 do CC.8 É similar ao dever dos bancos em que depositamos cédulas de dinheiro. É diferente do que se dá com o dinheiro em espécie (a cédula). Este é um bem corpóreo. Sobre ele, há direito real de propriedade. Quando entregamos cédulas de dinheiro para o banco, a propriedade é transferida por se tratar de uma coisa fungível. Em contrapartida, o banco assume um dever obrigacional de restituir cédulas semelhantes caso o cliente venha a exigir (art. 587 e 645, CC9). Se for decretada a falência do banco, os clientes se unirão aos demais credores em busca de receber a satisfação do seu direito pessoal (o direito a receber, em espécie, o valor que foi depositado). Igual resposta há para a corretora de criptomoedas: Ela apenas tem um dever de natureza obrigacional perante o usuário. Em tese, até seria possível que uma lei estabelecesse que as corretoras deveriam manter segregação contábil do dinheiro depositado pelo usuário e só poderiam utilizar esse dinheiro a compra de criptomoedas ou para restituir ao usuário. Nessa hipótese, até se poderia estabelecer um regime de patrimônio de afetação desse dinheiro para imunização diante de outros credores da corretora. Trata-se de alternativa plenamente viável ao legislador, até porque as corretoras de criptomoedas não podem exercer atividades de intermediação financeira por não serem instituições financeiras. Cabe um alerta: Se o fornecedor do ether vir a adotar alguma conduta capaz de retirar a plataforma do ar (Exemplo: Apagar dos computadores de todos os mineradores os espelhamentos da plataforma de blockchain), só sobrará aos usuários (que tinham ether) a opção de ajuizar ações de responsabilidade civil contratual contra o fornecedor. 3.4.2. Corretora COM operação de espelhamento obrigacional Situação diferente é quando a corretora de criptomoeda atua por meio do que chamamos de operação de espelhamento obrigacional. 3.4.2.1. Definição da operação de espelhamento obrigacional e o exemplo das BDRs A operação de espelhamento obrigacional dever de manter a titularidade de um crédito (crédito principal) como forma de vir a satisfazer um crédito do devedor (crédito espelhado). Essas operações podem ou não envolver títulos de crédito. A operação de espelhamento obrigacional é comumente utilizada em situações em que uma pessoa pretende adquirir um direito pessoal (crédito, título de crédito, criptomoedas etc.), mas há obstáculos operacionais que inviabilizam ou dificultam demasiadamente esse pleito. Nessas hipóteses, um intermediário (que chamaremos de espelhador) realiza uma operação destinada a assegurar um resultado prático similar. De um lado, adquire, em nome próprio, o direito pessoal almejado (crédito principal), superando todos os referidos obstáculos operacionais, e obriga-se a manter esse crédito pessoal até "segundas ordens" por parte do interessado. De outro lado, o espelhador obriga-se, perante o interessado, em pagar a este o valor do crédito principal quando este vier a ser realizado, deduzidas eventuais remunerações pelo serviço de intermediação. A operação de espelhamento obrigacional é empregada, pela B3 (empresa que mantém a Bolsa de Valores e outros serviços relevantíssimos ao mercado de capitais), para viabilizar a pretensão de investidores que desejam adquirir ações ou outros valores mobiliários no exterior. De uma forma bem simplificada e sem minúcias técnicas irrelevantes ao presente artigo, podemos resumir assim a operação.10 Como há expressivos obstáculos operacionais a que se consiga formalizar diretamente a compra de ativos estrangeiros em nome do investidor brasileiro, a B3 vale-se de uma operação de espelhamento obrigacional: Ela adquire, em nome próprio, o ativo estrangeiro (crédito principal) e, concomitamente, emite ao investidor brasileiro uma BDR (Brazilian Depositary Receipts). A BDR é um título de crédito11 por meio do qual o emitente (no caso, a B3) obriga-se a manter a titularidade daquele ativo estrangeiro e a entregar ao investidor o valor obtido com a futura venda ou realização daquele ativo estrangeiro. Assim, suponha que investidor brasileiro queira comprar uma ação da Apple Inc., que é negociada em bolsa de valores nos EUA. É muito burocrático viabilizar essa pretensão diretamente. O investidor poderia, então, adquirir uma BDR da Apple (que é identificada na Bolsa de Valores Brasileira pelo ticker APPL34), emitida pela B3, de modo a obter um resultado prático similar. 3.4.2.2. Caso das corretoras de criptomoedas As corretoras de criptomoedas podem oferecer aos investidores operações de espelhamento obrigacional para satisfazer-lhes a pretensão de adquirirem criptomoedas. Isso, porque aquisição e alienação de criptomoedas diretamente pelo usuário envolvem dificuldades operacionais a ponto de ser mais fácil para as corretoras realizar esses atos em nome próprio (crédito principal) e obrigar-se, perante o investidor, a entregar-lhe os proveitos econômicos correspondentes (crédito espelhado). Nesses casos, a corretora será a titular das criptomoedas, ou seja, será a titular de direitos pessoais. Já o investidor será titular de um outro direito pessoal, especificamente um direito de crédito perante a corretora. Em situações como essa, como a corretora é a titular das criptomoedas (que é um direito pessoal), há risco de credores pessoais da corretora (Ex.: credores trabalhistas, fiscais etc.) virem a penhorar e excutir esses bens, o que frustraria totalmente a segurança jurídica necessária dos investidores. Diante disso, é conveniente que a lei preveja o regime de patrimônio de afetação para imunizar essas titularidades de criptomoedas por parte da corretora perante outros credores que não seja o próprio investidor. 3.5. Pagamento de compra de bens com criptomoedas: Compra e venda ou permuta? Um dos desdobramentos práticos é discutir se, por exemplo, os Cartórios de Notas poderiam ou não lavrar escrituras públicas de transferência de um imóvel em troca do recebimento de criptomoedas (como a famosa bitcoin). Nesse ponto, com acerto, o provimento 38/21 da CGJ/RS12 permite esse tipo de escritura e nomina o contrato translativo como o de permuta nos termos do art. 533 do Código Civil.13 De fato, não se trata de compra e venda, pois esta se caracteriza pela entrega de dinheiro. Dinheiro deve ser entendido apenas como a moeda oficial do país ou de outro país (respeitadas as regras restritivas de uso de moeda estrangeira no país, como a do art. 13 da lei do mercado de câmbio - lei 14.286/21).14 Não importa aí se o dinheiro será pago em espécie ou por transferência bancária (em que, na prática, há apenas uma transferência de um direito pessoal do cliente de um banco, já que o depósito bancário configura uma espécie de contrato de depósito15), pois, em ambos os casos, temos uma forma de circulação de dinheiro oficial nos termos da lei. _________ 1 Art. 82. São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social. 2 Art. 83. Consideram-se móveis para os efeitos legais: I - as energias que tenham valor econômico; II - os direitos reais sobre objetos móveis e as ações correspondentes; III - os direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas ações. 3 Disponível aqui.  4 Disponível aqui. 5 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias. Direitos Reais sobre Coisa Incorpórea?. Disponível aqui. Publicado em 27 de novembro de 2024. 6 Sobre a nomenclatura dos smart contracts, ver: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Smart Contracts vs Contratos Eletrônicos vs Outras Classificações: Por uma sistematização de nomenclatura. Disponível aqui. Publicado em 14 de novembro de 2024. 7 Alertarmos, desde logo, que as "moedas virtuais" ou as armaduras ou outra skin dos personagens do jogo Fortnite não se enquadram como "ativos virtuais" para efeito da lei 14.478/2022. Esta Lei define "ativos virtuais" com o objetivo de viabilizar uma regulamentação estatal deles e, com isso, foca representações virtuais de valor com o objetivo precípuo de pagamento e investimentos (art. 3º). Além do mais, o art. 3º, III, da referida lei exclui expressamente do seu âmbito "instrumentos que provejam ao seu titular acesso a produtos ou serviços especificados ou a benefício proveniente desses produtos ou serviços, a exemplo de pontos e recompensas de programas de fidelidade".  8 Art. 645. O depósito de coisas fungíveis, em que o depositário se obrigue a restituir objetos do mesmo gênero, qualidade e quantidade, regular-se-á pelo disposto acerca do mútuo. 9 Art. 587. Este empréstimo transfere o domínio da coisa emprestada ao mutuário, por cuja conta correm todos os riscos dela desde a tradição. Art. 645. O depósito de coisas fungíveis, em que o depositário se obrigue a restituir objetos do mesmo gênero, qualidade e quantidade, regular-se-á pelo disposto acerca do mútuo. 10 Uma descrição mais técnica está disponível aqui. 11 Alertamos que os títulos representativos de direitos também devem ser considerados títulos de créditos, regidos por regras de Direito Cambial. 12 Art. 1º - Os Tabeliães de Notas apenas lavrarão escrituras públicas de permuta de bens imóveis com contrapartida de tokens/criptoativos mediante as seguintes condições cumulativas: I - declaração das partes de que reconhecem o conteúdo econômico dos tokens/criptoativos objeto da permuta, especificando no título o seu valor; II - declaração das partes de que o conteúdo dos tokens/criptoativos envolvidos na permuta não representa direitos sobre o próprio imóvel permutado, seja no momento da permuta ou logo após, como conclusão do negócio jurídico representado no ato; III - que o valor declarado para os tokens/criptoativos guarde razoável equivalência econômica em relação à avaliação do imóvel permutado; IV - que os tokens/criptoativos envolvidos na permuta não tenham denominação ou endereço (link) de registro em blockchain que deem a entender que seu conteúdo se refira aos direitos de propriedade sobre o imóvel permutado. Art. 2º - Os Registradores de Imóveis, na qualificação de títulos referentes a transações de imóveis por tokens/criptoativos, observarão a presença das exigências do art. 1º, e, caso atendidas, transcreverão expressamente no ato as cláusulas relativas aos incisos I e II. Art. 3º - Todas os atos notariais e registrais realizados na forma deste provimento deverão ser comunicados ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, na forma do Provimento nº 88/2019 do Conselho Nacional de Justiça. 13 Art. 533. Aplicam-se à troca as disposições referentes à compra e venda, com as seguintes modificações: I - salvo disposição em contrário, cada um dos contratantes pagará por metade as despesas com o instrumento da troca; II - é anulável a troca de valores desiguais entre ascendentes e descendentes, sem consentimento dos outros descendentes e do cônjuge do alienante. 14 Art. 13. A estipulação de pagamento em moeda estrangeira de obrigações exequíveis no território nacional é admitida nas seguintes situações: I - nos contratos e nos títulos referentes ao comércio exterior de bens e serviços, ao seu financiamento e às suas garantias; II - nas obrigações cujo credor ou devedor seja não residente, incluídas as decorrentes de operações de crédito ou de arrendamento mercantil, exceto nos contratos de locação de imóveis situados no território nacional; III - nos contratos de arrendamento mercantil celebrados entre residentes, com base em captação de recursos provenientes do exterior; IV - na cessão, na transferência, na delegação, na assunção ou na modificação das obrigações referidas nos incisos I, II e III do caput deste artigo, inclusive se as partes envolvidas forem residentes; V - na compra e venda de moeda estrangeira; VI - na exportação indireta de que trata a lei 9.529, de 10 de dezembro de 1997; VII - nos contratos celebrados por exportadores em que a contraparte seja concessionária, permissionária, autorizatária ou arrendatária nos setores de infraestrutura; VIII - nas situações previstas na regulamentação editada pelo Conselho Monetário Nacional, quando a estipulação em moeda estrangeira puder mitigar o risco cambial ou ampliar a eficiência do negócio; IX - em outras situações previstas na legislação. Parágrafo único. A estipulação de pagamento em moeda estrangeira feita em desacordo com o disposto neste artigo é nula de pleno direito. 15 Há quem defenda que o contrato de depósito bancário configura um contrato atípico, mas isso é irrelevante para efeito deste artigo. O que importa é que o cliente é titular de um direito pessoal.
quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Direitos reais sobre coisa incorpórea?

1. Introdução A titularidade de bens incorpóreos configura direitos reais ou direitos pessoais? Esse é o foco do presente artigo. A pergunta tem relevância prática, especialmente porque o Código Civil, ao classificar os bens, faz menção aos direitos reais e aos direitos pessoais com caráter econômico, além de aludir também à energia elétrica e ao direito à sucessão hereditária (arts. 81 e 83 do CC1). O debate também assume relevância no mundo contemporâneo, recheado de titularidades de bens digitais, com inclusão de criptomoedas e de valores mobiliários. Nesses casos, teríamos um direito real de propriedade ou apenas um direito pessoal? Enfrentaremos o tema neste artigo.  2. Reflexões  Há três pontos a serem levados em conta quando tratamos dos direitos reais. O primeiro é o de que, em nome do princípio da taxatividade, só é direito real aquilo que a lei assim designar. O art. 1.225 do CC cataloga os principais direitos reais, como o de propriedade, o de usufruto, o de hipoteca etc. Inexiste previsão legal expressa para que o direito sobre os "bens digitais" sejam incluídos como direitos reais de propriedade. Esse primeiro ponto, porém, poderia ser questionado, porque há quem defenda que o direito real de propriedade também pode recair sobre bens incorpóreos. Por isso, é preciso atentar para um segundo ponto. É que, conforme o caput do art. 1.228 do CC2, o direito real de propriedade é caracterizado, entre outros poderes inerentes, pelo poder de perseguir a coisa das mãos de terceiro (o ius persequendi). Por aí já se vê que a categoria do direito real de propriedade diz respeito a coisas corpóreas, porque, somente para elas, há sentido lógico em invocar o ius persequendi. Se alguém leva meu veículo e entrega a terceiros, eu, como titular do direito real de propriedade, tenho o direito de reivindicar a coisa das mãos desse terceiro. Não há sentido lógico em falar em ius persequendi para bens incorpóreos. Não há como alguém tomar meu direito de crédito (ex.: direito a receber R$ 10.000,00 de uma pessoa) e entregar a terceiros. Não há lógica em falar que eu teria de ajuizar uma ação reivindicatória para obter uma ordem judicial determinando que o terceiro me devolva o crédito. Direitos de crédito não são direitos reais de propriedade. A categoria jurídica de direito real não desenvolvida para esses casos. Um terceiro ponto é que, quando tratamos de direitos reais, é possível falar em usucapião em favor do possuidor. Também só há sentido em pensar em usucapião para bens corpóreos. Não há qualquer aderência lógica em pensar que, no exemplo acima do direito de crédito, um terceiro teria tomado o meu crédito e o teria adquirido por usucapião por ter ficado mais de 5 anos com meu crédito. A verdade é que a categoria dos direitos reais não foi pensada para bens incorpóreos. Essa categoria, na verdade, foi desenvolvida como forma de incorporar o ius in rem, em contraposição ao ius in personam. O direito anglo-saxão, a propósito, não seguiu a linha de direitos reais, mas preferiu seguir a utilizar a dualidade ius in rem e ius in personam3. Não se ignora, porém, que o legislador, em algumas questões pontuais, passou a prever alguns tipos de direitos reais sobre bens incorpóreos. É o caso do penhor de direitos (art. 1.451, CC) e da cessão fiduciária de direitos creditórios relativos a contratos de alienação de imóveis (art. 17, II e § 1º, da lei 9.514/1997). Há ainda outras hipóteses em que o legislador, sem textualmente se valer da etiqueta de direitos reais, acena para a sua incidência sobre alguns bens incorpóreos. É o que se dá com alienação fiduciária em garantia de valores mobiliários (art. 66-B da Lei de Mercado de Capitais - lei 4.728/19654). Além do mais, mesmo sem autorização legal expressa, é sabido ser comum a utilização do usufruto em quotas de sociedades. Diante desse cenário, indaga-se: os direitos reais podem ou não incidir sobre bens incorpóreos? Se respondêssemos positivamente sem qualquer ressalva, estaríamos a, na prática, a transformar praticamente todos os direitos pessoais (os que descendem da antiga figura do ius in personam) em direitos reais (cujo ancestral é o ius in rem). Teríamos a estranhíssima situação de uma pessoa que titulariza um crédito de R$ 10.000,00 perante um devedor avocar, para si, a categoria de direito real de propriedade, o que seria um despropósito. Se, porém, negarmos, incorreremos em contrariedade a hipóteses legais expressas de direitos rotulados como reais mesmo incidindo sobre imóveis. Por isso, entendemos que o adequado é considerar que, em regra, os direitos reais só recaem sobre bens corpóreos, salvo disposição legal específica em sentido contrário (como no caso da cessão fiduciária de créditos imobiliários nos termos do art. 17, § 1º, da lei 9.514/1997). Paralelamente a isso, é também possível admitir a aplicação, no que couber, de regras próprias de direitos reais a determinados direitos pessoais, como ocorre com o usufruto de ações ou quotas de sociedade. Explica-se com um exemplo. Sob o título "Constituição de Direitos Reais e Outros Ônus", os arts. 39 e 40 da Lei nº 6.404/1976 preveem a averbação, em livro próprio da sociedade, do penhor ou da caução de ações bem como de outros "outros direitos e ônus". Neste último grupo, o referido art. 40 enquadra "usufruto, o fideicomisso, a alienação fiduciária em garantia e quaisquer outras cláusulas ou ônus que gravarem a ação"5. A lei  6.404/1976 não etiquetou, como direitos reais, esses "outros direitos", nem mesmo o usufruto. Daí se indaga: há ou não direitos reais aí? Entendemos que não. Apesar disso, no caso do usufruto, de fideicomisso e de alienação fiduciária em garantia de ações, o efeito prático é similar, porque aí haverá um direito pessoal (ius in personam) que atrairia, no que couber, as regras próprias do direito real de usufruto (no caso do usufruto de ações) e de propriedade (no caso de alienação fiduciária em garantia e de fideicomisso). Curioso é que, no caso de quotas de sociedades, inexiste dispositivo similar. Todavia, por analogia, é forçoso reconhecer o cabimento desses ônus especiais, que são direitos pessoais que atraem, no que couber, as regras de direitos reais. Parece-nos que o legislador, que, por vezes, age com preocupação prática e não teórica, incorreu em certo tropeço ao etiquetar, como direitos reais, algumas hipóteses pontuais envolvendo bens incorpóreos. Todavia, não houve prejuízo prático, porque a aplicação de regras de direitos reais não causou transtornos efetivos. Em suma, a regra é a de que direitos reais só incidem sobre bens corpóreos, salvo lei em sentido contrário.  Paralelamente a isso, há ainda uma situação sui generis de direitos pessoais que atraem, no que couber, as regras de direitos reais. Alertamos que o conceito de direito pessoal no Código Civil Brasileiro alcança não apenas hipóteses que envolvem relações jurídicas (como a envolvendo credor e devedor), mas também situações jurídicas de natureza patrimonial não etiquetadas como direitos reais. Esse foi o critério legal adotado no art. 83 do CC. Do ponto de vista prático, as duas últimas situações (direitos reais sobre bens incorpóreos por força de lei e direitos pessoais com regras subsidiárias dos direitos reais) distinguem-se mais por razões de mera etiqueta jurídica, porque, na maior parte dos casos concretos os efeitos jurídicos práticos se equivalerão. Em qualquer um desses casos, não se deve falar em usucapião nem de ius persequendi, pois estes dois institutos pressupõem coisas corpóreas. A posição acima encontra amparo no jurista português Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, que, embora trate do Direito das Coisas Português, expede lição plenamente extensível ao Direito das Coisas Brasileiro por conta da proximidade, com as adaptações acima6. O professor Marcelo Milagres, no seu aprofundado Manual de Direito das Coisas, também nos parece reconhecer a tese supracitada, embora o autor realce a existência de correntes destinadas a estender direitos reais para coisas incorpóreas7. Igualmente, em sentido similar ao ora defendido, acenava Luciano de Camargo Penteado8. Por fim, merece elogios o Anteprojeto de Reforma do Código Civil, elaborada pela Comissão de Juristas designada pelo Presidente do Senado Federal em 20239. Sugeriu-se a inclusão de dispositivos10 que, na prática, reconhecem expressamente a situação sui generis do direito brasileiro envolvendo direitos pessoais que atraem, no que couber, as regras dos direitos reais, tudo dentro da preocupação do legislador com a utilidade prática das regras. __________ 1 Art. 80. Consideram-se imóveis para os efeitos legais: I - os direitos reais sobre imóveis e as ações que os asseguram; II - o direito à sucessão aberta. Art. 83. Consideram-se móveis para os efeitos legais: I - as energias que tenham valor econômico; II - os direitos reais sobre objetos móveis e as ações correspondentes; III - os direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas ações. 2 Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. § 1 o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. § 2 o São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem. § 3 o O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente. § 4 o O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante. § 5 o No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores. 3 Para aprofundamento, ver: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de Oliveira. Princípio da Harmonização Internacional dos Direitos Reais. Tese de Doutorado perante a Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Disponível aqui. Pp. 191-198. 4 Art. 66-B. O contrato de alienação fiduciária celebrado no âmbito do mercado financeiro e de capitais, bem como em garantia de créditos fiscais e previdenciários, deverá conter, além dos requisitos definidos na Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, a taxa de juros, a cláusula penal, o índice de atualização monetária, se houver, e as demais comissões e encargos. (Incluído pela lei 10.931, de 2004) § 1o Se a coisa objeto de propriedade fiduciária não se identifica por números, marcas e sinais no contrato de alienação fiduciária, cabe ao proprietário fiduciário o ônus da prova, contra terceiros, da identificação dos bens do seu domínio que se encontram em poder do devedor. (Incluído pela lei 10.931, de 2004) § 2o O devedor que alienar, ou der em garantia a terceiros, coisa que já alienara fiduciariamente em garantia, ficará sujeito à pena prevista no art. 171, § 2o, I, do Código Penal. (Incluído pela lei 10.931, de 2004) § 3o É admitida a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, hipóteses em que, salvo disposição em contrário, a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito é atribuída ao credor, que, em caso de inadimplemento ou mora da obrigação garantida, poderá vender a terceiros o bem objeto da propriedade fiduciária independente de leilão, hasta pública ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, devendo aplicar o preço da venda no pagamento do seu crédito e das despesas decorrentes da realização da garantia, entregando ao devedor o saldo, se houver, acompanhado do demonstrativo da operação realizada. (Incluído pela lei 10.931, de 2004) § 4o No tocante à cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou sobre títulos de crédito aplica-se, também, o disposto nos arts. 18 a 20 da Lei no 9.514, de 20 de novembro de 1997. (Incluído pela lei 10.931, de 2004) § 5o Aplicam-se à alienação fiduciária e à cessão fiduciária de que trata esta Lei os arts. 1.421, 1.425, 1.426, 1.435 e 1.436 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.  (Incluído pela Lei 10.931, de 2004) § 6o Não se aplica à alienação fiduciária e à cessão fiduciária de que trata esta Lei o disposto no art. 644 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.             (Incluído pela Lei 10.931, de 2004) 5 SEÇÃO VII Constituição de Direitos Reais e Outros Ônus Penhor Art. 39. O penhor ou caução de ações se constitui pela averbação do respectivo instrumento no livro de Registro de Ações Nominativas. (Redação dada pela Lei nº 9.457, de 1997) § 1º O penhor da ação escritural se constitui pela averbação do respectivo instrumento nos livros da instituição financeira, a qual será anotada no extrato da conta de depósito fornecido ao acionista. § 2º Em qualquer caso, a companhia, ou a instituição financeira, tem o direito de exigir, para seu arquivo, um exemplar do instrumento de penhor. Outros Direitos e Ônus Art. 40. O usufruto, o fideicomisso, a alienação fiduciária em garantia e quaisquer cláusulas ou ônus que gravarem a ação deverão ser averbados: I - se nominativa, no livro de "Registro de Ações Nominativas"; II - se escritural, nos livros da instituição financeira, que os anotará no extrato da conta de depósito fornecida ao acionista. (Redação dada pela Lei nº 9.457, de 1997) Parágrafo único. Mediante averbação nos termos deste artigo, a promessa de venda da ação e o direito de preferência à sua aquisição são oponíveis a terceiros. 6 Luís Manuel Teles de Menezes Leitão ensinava (LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direitos Reais. Coimbra/Portugal: Almedina, 2018, pp. 56-57): (...) Coisas corpóreas são aquelas que existem no mundo natural, tendo consequentemente existência física, independentemente de revestirem a natureza da matéria (terrenos, edifícios, objetos, líquidos, gases e outros elementos materiais) ou de energia (como a eletricidade ou a energia nuclear). Coisas incorpóreas são aquelas que têm mera existência social, entre elas se incluindo os bens intelectuais (obras literárias e artísticas, invenções e marcas). A classificação entre coisas corpóreas e incorpóreas deve-se a Gaius que utiliza o critério de serem ou não apreensíveis pelos sentidos, qualificando como coisas incorpóreas os direitos. Atualmente, no entanto, o critério da apreensão pelos sentidos não pode ser seguido, já que muitas coisas com existência física, como os gases e a eletricidade, não são apreensíveis pelos sentidos. Por outro lado, os direitos não podem ser vistos como coisas incorpóreas, uma vez que não se admitem direitos sobre direitos. As coisas incorpóreas abrangem assim apenas os bens intelectuais, objeto do Direito de Autor e da Propriedade Industrial. O art. 1302º, nº 1, estabelece que só as coisas corpóreas, móveis ou imóveis, podem ser objeto do direito de propriedade regulado no Código, na sequência do § 90 do BGB, que refere que "coisas no sentido da lei são somente os objetos corpóreos". Em consequência dessa opção legislativa, refere o art. 1303º, nº 1, que os diretos de autor e a propriedade industrial estão sujeitos a legislação especial. Efetivamente, coisas incorpóreas, como a obra literária ou artística, os bens industriais (invenção, modelo, desenho, marca, logotipo) ou quaisquer outras coisas incorpóreas, não são abrangidos pelo Direito das Coisas, sendo sujeitos a outros regimes. O Direito das Coisas é, porém, objeto de aplicação subsidiária aos direitos de autor e à propriedade industrial em tudo o que se harmonize com a natureza daqueles direitos e não contrarie o regime especial por eles estabelecidos (art. 1303º, nº 2). A aplicação subsidiária é, porém, bastante limitada, uma vez que grande parte dos institutos relativos aos direitos reais, como a posse, a ocupação, a acessão, a usucapião, a tradição e a aquisição tabular são de aplicação quase inconcebível fora do âmbito das coisas corpóreas. Essa aplicação é, por outro lado, limitada ao conteúdo patrimonial desses direitos, uma vez que os mesmos possuem um cariz pessoal, ligado à determinação da sua titularidade originária, que nunca se coloca em relação aos direitos reais sobre coisas corpóreas. Resulta, assim, que só as coisas corpóreas podem ser objeto de direitos reais, sendo os outros bens objeto de direitos de natureza diferente. 7 Ensina Marcelo Milagres (MILAGRES, Marcelo. Manual de direito das coisas. Belo Horizonte, São Paulo: D'Plácido, 2023, pp. 32-35). A Parte Geral do Código Civil brasileiro não desconhece os bens materiais, nem os bens incorpóreos como aqueles essenciais ao desenvolvimento da personalidade humana. De outro lado, o Direito das Coisas - ou Direitos Reais -, na Parte Especial, traz a ideia de redução temática ou de restrição à disciplina das relações jurídicas concernentes aos bens corpóreos ou materiais. As formas de manifestação de domínio se cingem a esses bens, não sendo compreendido pela codificação o regime jurídico de bens imateriais, como marcas, patentes, softwares - objeto de legislação especial -, em que pese a reconhecida possibilidade de penhor e de usufruto de ações. (...) Coisas, pela delimitação material, são espécies de bens. O próprio Superior Tribunal de Justiça já reconheceu a impropriedade de ações possessórias para fins de tutela de direitos autorais. Segundo sua Súmula 228, "é inadmissível o interdito proibitório para a proteção de direito autoral". (...) Embora Ebert Chaumon tenha afirmado que a atual codificação brasileira não se alinharia à tese da possessio juris ou quase possessio, sendo inadmissível o poder sobre uma coisa incorpórea, disciplinou-se, em caráter excepcional, a possibilidade de usufruto de títulos de crédito (art. 1.395 do Código Civil) e de penhor de direitos e títulos de crédito (art. 1.451 do Código Civil). 8 São dele estas palavras: "Se o ente for corpóreo e passível de apropriação e tiver função de utilidade para o sujeito (valor econômico), pode ser objeto de direito real. Caso falte o requisito corporeidade, é necessário que a lei preveja, expressamente, modos de transferência específicos que remeta, também expressamente, o regime de transferência ao de um dos direitos reais instituídos, ou ainda que, de antemão, diga que tal ou qual direito real pode se exercer sobre determinados bens imateriais" (PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das Coisas. São Paulo: RT, 2008, p. 53) 9 Para aprofundamento dos trabalhos da Comissão, ver aqui. 10 Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem, sobre coisa corpórea, o exercício de fato, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade. Parágrafo único. A regra do caput se aplica aos bens imateriais no que couber, ressalvado o disposto em legislação especial. (...) Art. 1.228-A. É reconhecida a titularidade de direitos patrimoniais sobre bens imateriais.
segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Uma (re)visão das unidades interligadas

Países com amplas dimensões territoriais ou que contam com grande número populacional, possuem, geralmente, algum problema social e de ordem pública. O Brasil, acumulando esses dois aspectos - em extensão, um dos maiores países do mundo (perdendo apenas para Rússia, Canadá, Estados Unidos e China), e o sexto mais populoso do planeta (perdendo, apesar de não haver uma competição, para China, Índia, Estados Unidos, Indonésia e Paquistão) -, não é diferente. Quando da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, nosso país já contava com uma população na margem dos 150 milhões de habitantes. Seguimos crescendo e, atualmente, segundo o IBGE, existem mais de 203 milhões de brasileiros1 - número atualizado até 22/12/23. Ao mesmo tempo em que, naquela época, o número populacional subia, outro índice chamava a atenção do setor público: O de sub-registro de crianças recém-nascidas. Conforme a ARPEN-Brasil - Cartilha da Associação Nacional dos Registradores Civis2, intitulada de "Registro Civil de Nascimento: o primeiro ato de cidadania", o índice de sub-registro, em 2004, no Brasil, era de 17%. Outra informação, também compartilhada nessa cartilha, é de que segundo "a ONU é considerado erradicado o sub-registro de nascimento quando o país atinge índice igual ou inferior a 5%". Em 2013, portanto nove anos depois, foi o último ano em que o Brasil esteve acima do índice indesejado. Após, superou e, no ano de 2022, alcançou o índice de sub-registro de 1,31%. Vejamos o gráfico a seguir: Em 2022, novamente com base nas informações constantes da Cartilha da ARPEN-Brasil, o destaque no combate à erradicação do sub-registro de nascimentos era do Estado do Paraná, com índice de 0,17%, seguido pelos estados de Santa Catarina e São Paulo, com 0,20% e 0,21%, respectivamente. Na margem contrária, Roraima, com 14,29%, era superado pelos estados do Amapá e Amazonas, com 9,52% e 6,48%, respectivamente. A conquista do indicador de 1,31% foi alcançada em função da enorme capilaridade dos cartórios de Registro Civil de Pessoas Naturais. Afinal, e segundo dados da ARPEN-Brasil, o país possui 7.687 serventias com esta especialidade em 5.570 municípios. Ou seja, todos os municípios do país, nos vinte e seis estados e no distrito federal, possuem, ao menos, um cartório de Registro Civil. Foi com base nessa capilaridade que o CNJ encontrou uma alternativa para frear o índice de sub-registro de nascimentos. Então, em 3/9/10, foi publicado o provimento 13, referindo, em seu preâmbulo, o seguinte: CONSIDERANDO que é o registro de nascimento perante as serventias extrajudiciais do registro civil das pessoas naturais que confere, em primeira ordem, identidade ao cidadão e dá início ao seu relacionamento formal com o Estado, conforme dispõem os arts. 2º e 9º do Código Civil em vigor; CONSIDERANDO a instituição do Compromisso Nacional pela Erradicação do Sub-registro Civil de Nascimento e a ampliação do acesso à documentação básica, por meio do decreto 6.289, de 6/12/07, e da publicação dos Protocolos de Cooperação Federativa - Compromissos: Mais Nordeste pela Cidadania e Mais Amazônia pela Cidadania, que estabelecem a intensificação das ações para erradicar o sub-registro civil de nascimento nas respectivas regiões, até o final de 2010, incluída o registro de nascimento e a emissão de certidão de nascimento nos estabelecimentos de saúde antes da alta hospitalar; CONSIDERANDO a parceria firmada entre a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, o CNJ, o Ministério da Justiça, a Associação dos Notários e Registradores do Brasil e a Arpen Brasil - Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais, por meio do acordo de cooperação, processo 00005.003503/2007-71, publicado no Diário Oficial em 3/1/08, o qual objetiva cooperação com vistas à implantação do Plano Social de Registro Civil de Nascimento e Documentação Básica, destinado à erradicação do sub-registro civil de nascimento; CONSIDERANDO a participação do CNJ no Grupo de Trabalho que discute a criação e implantação do SIRC - Sistema de Informações de Registro Civil, de acordo com portaria conjunta SEDH/PR/MJ/CNJ, publicada em 18/2/09; CONSIDERANDO a participação do CNJ, da Corregedoria Nacional de Justiça e das Corregedorias - Gerais de Justiça dos Estados e Distrito Federal nas ações de Mobilização Nacional pela Certidão de Nascimento; CONSIDERANDO a publicação do decreto 7.231 de 14/7/10 e dos provimentos 2 de 27/4/09, 3 de 17/11/09 e 10 de 13/7/10 da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ; CONSIDERANDO que a ARPEN-BR - Associação dos Registradores das Pessoas Naturais do Brasil sugeriu a possibilidade de formação de consórcio de empregadores urbanos para a contratação de preposto capaz de atuar em parte dos estabelecimentos de saúde; CONSIDERANDO o entendimento de que a aplicação analógica do artigo 25-A da lei 8.212/91 não encontra óbice legal (art. 5º, II, da CF) e contribui para a obtenção do pleno emprego e para o incremento do bem-estar e da justiça social (art. 170, VIII e 193, ambos da Constituição Federal); CONSIDERANDO, por fim, a conveniência de uniformizar e aperfeiçoar o registro de nascimento e a emissão da respectiva certidão nos estabelecimentos de saúde, antes da alta hospitalar da mãe ou da criança; Com a faculdade oportunizada pelo provimento, cartórios instalaram, em suas circunscrições de atuação (art. 12 da lei 8.935/94), unidades interligadas em complexos hospitalares e, desde então, lavram assentos de nascimento, inclusive dos munícipes das cidades vizinhas que encaminham as gestantes para uma unidade hospitalar maior, uma vez que estes municípios não possuem hospitais e/ou profissionais capazes para a realização de partos. Assim, enquanto o índice de sub-registro de nascimentos caminhava para a erradicação deste indicador, outro - de cartórios deficitários - acelerava o passo. Confira aqui a íntegra da coluna. _________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.
Resumo Este artigo relata e examina a inovadora lavratura de escritura pública de inventário extrajudicial envolvendo herdeiros menores, realizada junto ao 1º Tabelião de Notas de Santo André, São Paulo, em conformidade com a resolução CNJ 571/24. A escritura incluiu a partilha dos menores em frações ideais de imóveis, destacando as implicações jurídicas, processuais e doutrinárias dessa inovação normativa, e abordando ainda a questão da eventual extinção do condomínio entre os herdeiros. Introdução A resolução 571, de 2024, promulgada pelo CNJ, introduziu um marco relevante para o direito sucessório brasileiro ao autorizar inventários extrajudiciais envolvendo herdeiros menores ou incapazes, desde que todos os requisitos legais sejam atendidos e com manifestação favorável do Ministério Público1. Essa inovação normativa visa desburocratizar o sistema e tornar mais célere a partilha de bens, mantendo o rigor protetivo sobre o patrimônio de herdeiros vulneráveis. Estrutura normativa e conceito de fração ideal  A resolução CNJ 571/24 determina que a partilha de bens imóveis para herdeiros menores seja feita em frações ideais, uma medida que se coaduna com o conceito jurídico de co-propriedade abstrata. A fração ideal representa uma proporção do direito de propriedade sobre um bem indivisível, sem segmentação física da área, garantindo ao herdeiro a titularidade sobre uma parte proporcional do valor total do bem, conforme sua cota no espólio2. Segundo Guarnera, essa solução é amplamente vantajosa, pois evita a depreciação do imóvel e preserva seu valor econômico e jurídico3. Neste mesmo sentido, Germano, Nalini e Nosch4, inovaram ao defender a divisão do patrimônio igualmente entre herdeiros. Assim, ainda que um deles fosse incapaz, não haveria qualquer prejuízo. É o que acontece na imensa maioria das partilhas, com atribuição de parte ideal (CC art. 1.784).  Raramente os bens são atribuídos de forma exclusiva ou individual aos herdeiros. Caso ocorra a hipótese, aí se justificará participação do Ministério Público e do Poder Judiciário. Conforme o §1º do art. 12-A da resolução, "o pagamento do quinhão hereditário ou da meação do herdeiro menor deve ocorrer em parte ideal de cada bem inventariado". Dessa forma, cada menor detém uma cota ideal sobre os bens imóveis do espólio, evitando o fracionamento físico que, além de ser oneroso, poderia comprometer o valor do bem5. A escolha da fração ideal visa tanto à preservação do patrimônio dos herdeiros quanto ao respeito à unidade econômica dos imóveis partilhados. Procedimento de sub-rogação e validação pelo Ministério Público A escritura, lavrada junto ao 1º Tabelião de Notas de Santo André, incluiu a sub-rogação dos dois herdeiros menores em frações ideais de bens imóveis. A sub-rogação, um mecanismo de substituição de titularidade em cotas abstratas, permite que os herdeiros exerçam seu direito sem que o bem precise ser fragmentado fisicamente. A manifestação favorável do Ministério Público foi fundamental para assegurar a conformidade do ato com o princípio da proteção integral dos incapazes, que encontra respaldo no art. 12-A, §3º, da resolução6. Essa exigência visa a garantir que os valores atribuídos aos quinhões dos herdeiros menores estejam adequados e proporcionais, conforme a titularidade de cada um. A atuação do MP nesse processo é central, pois assegura a proteção dos direitos dos herdeiros menores e valida a eficácia jurídica da escritura extrajudicial7. DA NECESSIDADE DE HOMOLOGAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO E A CONSEQUENTE CONDIÇÃO DE EFICÁCIA MINISTERIAL A resolução CNJ 571/24 inseriu o art. 12-A na resolução CNJ 35/07, estabelecendo um requisito essencial para que a escritura de inventário e partilha com herdeiros menores seja eficaz: a homologação pelo Ministério Público. Este dispositivo reforça a garantia de que os direitos dos herdeiros incapazes sejam respeitados e protegidos no âmbito do inventário extrajudicial. Abaixo, o artigo é transcrito, com destaque ao §3º, que aborda de forma direta a intervenção ministerial: Art. 12-A. No inventário e na partilha extrajudiciais promovidos em cartório e com a participação de menores ou incapazes, a eficácia da escritura dependerá da manifestação favorável do Ministério Público, conforme disposto na legislação civil e notarial vigente.  §1º Nos casos em que houver incapazes, os bens e direitos dos herdeiros menores devem ser preservados em frações ideais, respeitando-se a indivisibilidade e o valor dos bens comuns.   §2º Havendo disposição testamentária ou nascituro do autor da herança, a lavratura da escritura extrajudicial deverá aguardar a confirmação judicial, nos termos do CC.   §3º A eficácia da escritura pública do inventário com interessado menor ou incapaz dependerá da manifestação favorável do Ministério Público, devendo o tabelião de notas encaminhar o expediente ao respectivo representante. Em caso de impugnação pelo Ministério Público ou terceiro interessado, o procedimento deverá ser submetido à apreciação do juízo competente. No contexto do presente inventário, a eficácia do negócio jurídico descrito na escritura é subordinada à participação e à anuência do Ministério Público. Segundo o professor Antonio Junqueira de Azevedo, ao discutir a eficácia de atos jurídicos, não nos referimos a uma eficácia prática imediata, mas sim à eficácia jurídica, com ênfase na sua eficácia própria ou típica: a dos direitos expressamente manifestados como desejados pelas partes. A doutrina usualmente trata a eficácia no âmbito dos elementos acidentais do negócio jurídico, que incluem o termo, a condição e o modo ou encargo8. A condição, neste caso, exerce um papel de destaque, pois influencia diretamente a eficácia do negócio jurídico, e sua implementação está vinculada à divisão equânime e à ausência de prejuízos aos herdeiros menores. Trata-se de uma condição suspensiva, isto é, uma condição que, enquanto não cumprida, impede que o negócio jurídico produza efeitos no mundo exterior. Somente com a manifestação favorável do Ministério Público, que atesta a regularidade e a justiça do ato, os direitos dos menores são integralmente protegidos, e o inventário adquire eficácia plena e vinculante. Pontes de Miranda9, ao explorar o conceito de eficácia suspensiva, esclarece que negócios jurídicos pendentes de eficácia operam como causas temporárias de ineficácia: embora válidos entre as partes, eles permanecem inoperantes até o cumprimento da condição estipulada. Essa observação é aplicável ao inventário extrajudicial, em que o registro imobiliário só poderá ocorrer após a manifestação ministerial. Assim, no caso descrito, o Ministério Público se manifestou favoravelmente ao plano de partilha apresentado, considerando salvaguardados os interesses dos herdeiros menores, permitindo que a escritura seguisse para registro, validando o ato no plano jurídico e externo. Eventual extinção do condomínio e consequências jurídicas A atribuição de frações ideais aos herdeiros menores implica a constituição de um condomínio, pois cada herdeiro possui uma parte indivisa do bem. A extinção desse condomínio pode ser realizada mediante acordo entre os herdeiros ou por ação judicial, caso seja necessário dissolver a co-propriedade. A eventual alienação ou divisão do imóvel dependerá da anuência de todos os co-proprietários, ou, no caso de herdeiros ainda menores, de autorização judicial específica10. Essa possibilidade de extinção do condomínio é uma consequência natural do regime de frações ideais, sendo uma forma de viabilizar a individualização da propriedade caso surjam interesses divergentes entre os herdeiros. Tal procedimento, no entanto, deve sempre considerar a proteção dos interesses dos menores, como disposto na doutrina de Venosa sobre a tutela dos direitos de herdeiros vulneráveis11. Considerações sobre o Impacto da resolução CNJ 571/24 O presente caso exemplifica o potencial de aplicação da resolução CNJ 571/24, que permite uma administração patrimonial menos burocrática, alinhada às necessidades de uma justiça célere e eficiente. A possibilidade de extinção do condomínio após a distribuição em frações ideais garante a flexibilidade na gestão do patrimônio, possibilitando que os herdeiros possam, no futuro, realizar a divisão física ou a alienação dos bens, se assim desejarem e com as devidas salvaguardas legais12. Conclusão  A execução deste inventário extrajudicial junto ao 1º Tabelião de Notas de Santo André representa uma aplicação prática e eficaz da resolução CNJ 571/24, proporcionando uma alternativa ao processo judicial, com a devida proteção dos direitos dos herdeiros menores. A manutenção em condomínio e a possibilidade de extinção deste, conforme os interesses dos herdeiros, contribuem para a valorização e a preservação do patrimônio hereditário, além de promover uma administração patrimonial alinhada aos princípios da proteção integral e da função social da propriedade. ________ 1. CNJ. resolução 571, de 27 de agosto de 2024. Disponível aqui. 2. Silva, Antônio. Direito das Sucessões Contemporâneo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2024. 3. IBDFAM. CNJ publica resolução que autoriza extrajudicialização de divórcios e inventários, mesmo com filhos menores e testamentos. Disponível aqui. 4. Portal Migalhas. CNJ autoriza inventário extrajudicial com herdeiro menor incapaz. Disponível aqui. 4. Portal Migalhas. Um passo adiante. Disponível aqui. 5. Guarnera, Roberto. Estudos sobre a Desjudicialização e a Eficiência no Direito Sucessório Brasileiro. São Paulo: Editora Jurídica, 2024. 6. Venosa, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Sucessões. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2024. 7. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Manual Prático para Implementação da resolução 571/24. Brasília: CNJ, 2024. 8. Santos, Maria do Carmo. Proteção Jurídica do Menor no Direito Sucessório Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2024. 9. Farias, Cristiano Chaves de; Rosenvald, Nelson. Curso de Direito Civil: Sucessões. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2024. 10. Junqueira de Azevedo, Antonio. Teoria Geral dos Negócios Jurídicos. São Paulo: Saraiva, 2024. 11. Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro:
Resumo Começo com um resumo, em tópico, das ideias principais deste artigo: Quanto ao suporte formal, o contrato pode ser analógico ou eletrônico (capítulo 2); Quanto à escrita, o contrato pode ser escrito ou não escrito (capítulo 3). A assinatura pode ser física ou eletrônica. Esta última pode ser simples, avançada ou qualificada. Também há assinatura eletrônicas típicas e atípicas (capítulo 4.1 a 4.4.). No caso de assinatura com reconhecimento de firma (inclusive o reconhecimento de assinatura eletrônica pelo notário) ou de assinatura eletrônica típica, o documento considera-se autêntico, de modo que eventual impugnação do signatário quanto à sua autoria deve ser acompanhada de prova (capítulo 4.5). Quanto à automação, o contrato pode ser: manual ou automatizado lato sensu (= smart contract lato sensu ou contrato autoexecutável lato sensu). Este último é subdivido em: contrato automatizado emancipado (smart contract stricto sensu) e contrato automatizado não emancipado (capítulo 5). Nos contratos automatizados lato sensu, a vontade inicial humana é a matéria-prima para a aplicação da teoria geral dos contratos, inclusive as regras de resolução ou revisão contratual por fato superveniente bem como as de invalidade de cláusulas contratuais. O juiz, porém, deve manter acentuada postura de contenção em atenção ao inequívoco interesse das partes em prestigiar uma interpretação mais literal do contrato (capítulo 6). 1. Introdução Este artigo foca na definição e na classificação dos contratos eletrônicos e dos smart contracts, também chamados de contratos inteligentes. Para tanto, o artigo aborda outras classificações, como de assinaturas eletrônicas, tudo com o objetivo de sistematizar as terminologias. Não se trata de diletantismo. A ciência do Direito ocupa-se de taxonomias e classificações, porque cada categoria atrai um regime jurídico diferente. Registramos nossos agradecimentos ao amigo professor Leandro da Silva Nunes Vieira, consultor legislativo do Senado Federal, dono de um vasto conhecimento em tecnologia da informação. As conversas com ele foram fundamentais para as reflexões deste artigo. O presente artigo é fruto de reflexões realizadas durante nosso estágio pós-doutoral em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), sob a supervisão do Professor Eduardo Tomasevicius Filho. 2. Classificação do contrato quanto ao suporte formal (analógico vs eletrônico ou digital) Quanto ao suporte formal, o contrato pode ser classificado em: a) contrato analógico: é aquele resultante de um acordo de vontades externado em um ambiente não digital. - Incluem-se aí não apenas os contratos formalizados por escrito em papel ou em outro suporte físico, mas também os contratos não escritos, como os formalizados verbalmente, por gesticulações ou, até mesmo, pelo silêncio conclusivo na hipótese do art. 111 do CC1. b) contrato eletrônico ou digital: é aquele fruto de acordo de vontades exteriorizado em um ambiente digital. Entende-se por ambiente digital os canais de comunicação no meio cibernético, envolvendo interação entre computadores, como no caso de uso da internet. - Incluem-se aí não apenas os contratos formalizados em arquivos de texto eletrônico (como os em formato PDF), mas também os aperfeiçoados por e-mail, por aplicativos de conversa on-line (como o WhatsApp) ou por outro canal de comunicação cibernético2. 3. Classificação do contrato quanto à escrita (escrito vs não escrito) Quanto à escrita, o contrato pode ser: a) contrato escrito: é aquele em que o acordo de vontades é colocado a termo, em texto escrito, ainda que em um suporte digital (como em um arquivo eletrônico em formato PDF). Podem ser subdivididos em: a.1) contrato por instrumento particular: é aquele escrito pelas partes. b.2) contrato por instrumento público: é aquele escrito por um agente público com fé pública a partir da manifestação de vontade das partes. É o caso dos contratos formalizados por escritura pública, inclusive a escritura pública eletrônica lavrada por meio da plataforma do e-Notariado (arts. 284 e seguintes do CNN-Extra-CNJ3). b) contrato não escrito: é aquele em que o acordo de vontades não é exteriorizado por texto escrito, a exemplo dos contratos fruto de uma comunicação verbal (contrato verbal), ainda que por meio eletrônico (como em videoconferência). 4. Espécies de assinatura 4.1. Introdução No caso de contratos escritos, a prova da autoria da manifestação de vontade costuma ser feita pela assinatura. Afinal, a assinatura faz presumir a autoria da declaração de vontade, conforme art. 219 do CC4. Nesse ponto, indaga-se: esse dispositivo deve ser interpretado para abranger assinaturas físicas e eletrônicas? Responderemos após explicamos as espécies de assinaturas. 4.2. Assinatura física e Assinatura eletrônica A assinatura pode ser classificada em: assinatura física: é a assinatura manuscrita, feita a mão, em suporte físico. É a representação gráfica manuscrita feita pela pessoa para identificar-se para fins oficiais. A assinatura física tem de ser lançada na carteira de identidade (art. 3º, "f", da lei das carteiras de identidade - lei 7.116/83). assinatura eletrônica: é o ato praticado em meio digital com o objetivo de atestar a autoria de uma manifestação de vontade. Esse ato envolve o que chamamos de âncora de confiabilidade, assim designado o elemento de identificação do autor da declaração de vontade5. A âncora de confiabilidade da assinatura eletrônica pode ser de diversos tipos, a exemplo de um código (como um login e senha) fornecido ao sujeito por diversos meios: carta, e-mail, consulta presencial, videoconferência etc. Clique aqui para ler a íntegra da coluna. ________ 1 Art. 111. O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa. 2 O anteprojeto de reforma do CC elaborado pela comissão de juristas nomeada pelo presidente do Senado Federal em 2023 dá didática definição: "Art.  Entende-se por contrato digital todo acordo de vontades celebrado em ambiente digital, como os contratos eletrônicos, pactos via aplicativos, e-mail, ou qualquer outro meio tecnológico que permita a comunicação entre as partes e a criação de direitos e deveres entre elas, pela aceitação de proposta de negócio ou de oferta de produtos e serviços" (Disponível aqui.) 3 Código Nacional de Normas do CNJ aplicável ao Extrajudicial (provimento 149/23). 4 Art. 219. As declarações constantes de documentos assinados presumem-se verdadeiras em relação aos signatários. Parágrafo único. Não tendo relação direta, porém, com as disposições principais ou com a legitimidade das partes, as declarações enunciativas não eximem os interessados em sua veracidade do ônus de prová-las. 5 Para aprofundamento, ver: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de; BENÍCIO, Hércules Alexandre da Costa. Assinatura eletrônica nos contratos e em outros atos jurídicos. Disponível aqui. Publicado em 28 de agosto de 2020.
O artigo que apresentamos resulta do desafio que me foi proposto pelo Senhor Doutor Sérgio Jacomino, ilustre registrador e cultor da ciência jurídica, no IX encontro de Direitos Reais, de Direito Registal Imobiliário e de Direito Notarial que teve lugar no colégio da Trindade, em Coimbra, no passado dia 22 de maio de 2024. No referido evento apresentei umas breves notas, tentando contribuir, como debatedor, para ampliar/apelar ao debate sobre as implicações da Inteligência Artificial (doravante "IA") no método jurídico e em especial na atividade notarial e registal. A IA aparece como produto da inovação científica sem paralelo e que se vem desenvolvendo desde há, pelo menos, sete décadas, procurando imitar o cérebro humano com a finalidade de o aperfeiçoar e de superar as nossas capacidades cognitivas.1 Há quem afirme que estamos perante uma concorrência de inteligências! A IA vai, paulatinamente, afastando e substituindo o trabalho intelectual dos seres humanos, especialmente no âmbito de profissões mais técnicas, como por exemplo, construir uma ponte, fabricar um automóvel, construir um edifício, controlar o tráfego aéreo. O surgimento da IA poderá representar, assim, impacto sobre a História da humanidade muito diferente daquele que teve a revolução agrícola ou a revolução industrial - esta é a primeira revolução a pôr em causa, também, as profissões que exigem um nível superior de diferenciação. Perante este cenário, qual o nosso papel, enquanto seres humanos, num mundo em que a IA cresce exponencialmente e nos afasta como medida de todas as coisas?2 Que valor podemos acrescentar à IA quando esta cresce em capacidade que lhe permite "pensar" mais (que não melhor) em termos estatísticos do que a inteligência humana? A resposta estará no controlo, direção e governo da IA. Empresas como a Google, Amazon, Facebook (Meta) e Apple, conhecidas pelo acrónimo GAFA são o produto da "Era do Petabyte", uma nova era da nossa História reveladora do aumento exponencial da massa de dados digitalizados cada vez mais acessíveis porque se encontram hoje numa "nuvem" e já não em disquetes, discos duros ou pen drives. Como referiu o ilustre notário espanhol Manuel González-Meneses García-Valdecasas3, o método científico sempre foi construído sobre hipóteses submetidas a testes. Na verdade, continuando a acompanhar o autor citado, quer a física (não só a clássica newtoniana, mas também a quântica), quer a biologia, têm oferecido aproximações à verdade, mas incapazes de nos dar conta de toda a complexidade do real. Hoje, com os petabytes, é possível afirmar que a correlação é suficiente: deixou de ser necessário lançar mão de modelos explicativos, isto é, podemos analisar dados sem necessidade de formular hipóteses, bastando lançar números sobre potentes computadores e deixar que os algoritmos estatísticos encontrem soluções em padrões que os cientistas não são capazes de ver. Exemplos desta nova forma de fazer ciência são a sequenciação genética aleatória levada a cabo já no início deste século pelo biólogo J. Craig Venter e que permitiu descobrir novas formas de vida. Mas também o programa Cluster Exploratory, plataforma destinada a mimetizar o cérebro e o sistema nervoso.4 O ritmo é estonteante e hoje, face à quantidade de dados disponíveis e ao seu tratamento, assistimos a fenómenos como o machine learning, o processamento de linguagem natural e a própria inteligência artificial generativa. Esta revolução no método científico será transponível para o método jurídico? Perante todo este ruído, toda esta massa de dados, todo o avanço tecnológico de que é exemplo candente o ChatGPT, partilhamos algumas das questões levantadas por González-Meneses: Vamos continuar a ter necessidade de juristas? É necessário fazer um curso de Direito, com a memorização de doutrina, jurisprudência, definições e antecedentes históricos? Afinal, toda essa informação não está já na nuvem? Vamos continuar a fazer todo um percurso de estágio e de experiência profissional para sermos magistrados, notários, conservadores dos registos ou advogados? Continuamos vinculados a uma lógica jurídica baseada em normas, regras ou princípios gerais e na consequente qualificação jurídica ou aplicação da regra geral ao facto concreto? Uma análise superficial pode levar-nos a concluir que esta é uma tarefa de fácil tratamento algorítmico. Em breve, não teremos ferramentas informáticas que permitirão processar, de forma automática, todos os dados disponíveis nos tribunais, nos cartórios, nos serviços de registo e nos escritórios dos advogados para correlacionar padrões que possam servir de base a decisões adequadas ao caso concreto? Continuaremos vinculados à lógica jurídica de subsunção de um facto concreto a uma regra geral, ou seja, ao silogismo legal que é uma forma de dedução? Aparentemente, este exercício de qualificação encaixaria bem numa ferramenta informática desenvolvida pela IA, mas aquele exercício convoca uma tarefa intelectualmente bem mais complexa que requer ao aplicador do Direito um entendimento do significado da norma, regra ou critério geral e da sua relação com os interesses ou valores do caso concreto a subsumir. Requer, ainda, a seleção da norma que será relevante para o caso concreto, de entre as inúmeras normas de diferentes ordenamentos jurídicos. O tradutor DeepL ou outros disponíveis à distância de um click, para traduzir de forma aceitável um determinado texto, não precisa de compreender as regras gramaticais de determinado idioma, pois o processo de tradução é estatístico, baseado na comparação e análise de uma massa infinita de dados. Também não lhe interessa o significado dos textos que traduz, nem a relevância dos mesmos para quem requer a tradução ou a adaptação linguística ao destinatário da tradução.5 No limite, podemos optar por um sistema de decisão jurídica que não subsuma factos a regras ou princípios gerais e que não precise de nenhum modelo conceptual. Este sistema, alimentado por milhões de textos jurídicos anteriores (sentenças, articulados, escrituras públicas, registos), operaria de forma indutiva e estatística gerando, automaticamente, soluções com base em semelhanças ou padrões detetados sem necessidade de perceber o significado ou sentido de nenhuma norma, conceito, ou teoria abstrata. Poderia ser uma opção política, legitimada pelo povo, no contexto de uma democracia. A este propósito é muito interessante a posição assumida pelo norte americano, Erik J. Larson, um informático e empreendedor tecnológico, no livro "The Myth of Artificial Intelligence. Why Computers Can't Think the Way We Do?"6 que se mostra muito crítico com o projeto científico e tecnológico da IA e, em particular, com a ideia de que o aparecimento da IA de nível humano ou sobrehumano é uma inevitabilidade quase iminente. Segundo este autor, os promotores da IA cometem um grave erro intelectual: por um lado, sobrestimam de forma pouco científica a capacidade real da IA, mesmo no estado da arte atual e, por outro, subestimam a inteligência natural humana. Para fundamentar esta posição, Larson invoca a autoridade do filósofo Charles Peirce, para explicar que a inteligência diferencial humana não é aquela que se manifesta em processos lógicos de dedução (que se limita a tornar explícito o conhecimento que já estava implícito em algumas premissas) ou da indução (que pretende obter um conhecimento geral, partindo da acumulação de observações particulares ou singulares), processos que os computadores já conseguem fazer com êxito. Aquele filósofo defende que a inteligência diferencial humana se manifesta num processo a que chamou "abdução", ou seja, a capacidade de conjeturar ou prever por forma a obter uma hipótese explicativa com base em determinados dados. Ora, segundo este autor, o único tipo de pensamento que funcionaria para uma IA de nível humano é justamente aquele relativamente à qual não há ainda ideia de como desenhar ou programar.7 A pretensão de que as máquinas, por si só, e em função da quantidade massiva de dados que estão à sua disposição, são capazes de avançar o nosso conhecimento científico é posta em causa por Larson ao afirmar que: "(q)uando Copérnico defendeu que a terra girava à volta do sol e não o inverso, teve de ignorar montanhas de evidências e dados acumulados durante séculos por astrónomos que trabalhavam o modelo ptolomaico. Copérnico redesenhou tudo com o Sol no centro e fabricou um modelo heliocêntrico. Ora, só ignorando todos os dados anteriores ou, ao menos, reconceptualizando-os, pôde Copérnico afastar o modelo geocêntrico e introduzir uma estrutura radicalmente nova para o sistema solar". E conclui: "como é que o big data poderia ter ajudado neste processo se todos os dados se encaixavam num modelo equivocado?". A IA que combina a base massiva de dados e a aprendizagem automática (big data e machine learning) usa um sistema de indução automatizada e não uma verdadeira inteligência com capacidade cognitiva. O problema de conhecimento não será, assim, quantitativo. A disponibilidade de mais dados, de novos dados, pode ajudar-nos a detetar um modelo explicativo erróneo, mas não nos oferece, por si só, uma nova explicação. Assim, só o controlo efetivo da IA poderá manter a nossa capacidade de preservar a inteligência natural, a inteligência humana, como defende o ilustre Professor de Filosofia do Direito da Universidade Pontifícia de Comillas, José María Lasalle Ruiz8. E esse controlo implicará a aplicação da nossa inteligência e capacidades cognitivas, restaurando a sabedoria aristotélica que procurava a prudência como suporte da equidade. A prudência, a par da justiça, da força e da temperança, é uma das quatro virtudes cardeais da Antiguidade e talvez a mais esquecida. Virtude intelectual, explicava Aristóteles, na medida em que tem a ver com a verdade, com o conhecimento e com a razão. A prudência é a disposição que permite deliberar corretamente acerca do que é bom ou mau, não em si, mas no mundo tal como ele é, não em geral, mas nesta ou naquela situação e que nos leva a agir de acordo com o bem. A prudência condiciona todas as outras virtudes e é o que separa a ação do impulso.9 Sem a prudência como suporte da equidade, a decisão humana será substituída, também no Direito, pela lógica do conhecimento que nasce da gestão algorítmica de uma massa infindável de dados. E se as regras passarem por aqui, então já perdemos o "jogo" para as máquinas. Se a IA é algo ou uma coisa que aspira em ser alguém, então cabe ao ser humano ser a sua consciência crítica e decisória, garantido o seu controlo. É um desafio para inteligência humana que no campo do Direito implica a restauração da iuris prudens principio que interpretou o Direito como "ars iuris" (arte de fazer o justo), do "suum quique tribuire"  (dar a cada um aquilo que é seu).  Devemos resistir à tentação de aceitar a oferta de uma segurança jurídica infalível imposta por uma ditadura da IA.  O ser humano deve, pelo contrário, afirmar a sua condição, acrescentado um valor que não pode ser deixado ao tratamento algorítmico. Só os seres humanos poderão decidir o que significa dar a cada um o que é seu. O aplicador do Direito tem de ir mais além, entendendo o significado da norma que vai aplicar e a sua relação com os interesses e valores em causa, num determinado caso concreto a subsumir com as regras ou princípios gerais, porque presenciou, viu, ouviu, relacionou. Acredita-se que uma civilização apoiada na tecnologia da informação pode disponibilizar ferramentas mais sofisticadas e eficientes para a manutenção da paz social, mas o problema do conhecimento não é quantitativo. Mais dados, novos dados, ajudam-nos a detetar que um determinado modelo pode estar errado, mas não nos oferecem, por si só, novas explicações. Há que atribuir um significado aos dados, construir um novo modelo. Em recente entrevista ao diário espanhol ABC, o matemático, Pablo Morales10, galardoado com o "Premio Talento Joven Fundación BBVA" por ter desenhado algoritmos que permitem detetar ondas gravitacionais afirmou: "(t)rabalho com algoritmos, mas por vezes surpreendem-me, pois tomam decisões, mas não sabem explicar porquê! Mesmo quando acertam, não existe a explicação que se exige a um médico, a um juiz." e continua: "[o]s algoritmos são treinados com milhões de dados disponibilizados pelas pessoas, e cada vez precisam menos de nós. Mas eu confio em fontes de prestígio, de cientistas que conheço. A reputação continua a ser um assunto dos seres humanos." Como bem assinalou Sérgio Jacomino11, "(d)evemos manter a inquietação, o inconformismo, em face da investida neopositivista que esta vaga tecnológica representa. Como o Dr. Pangloss, na novela de Voltaire, a IA fala sobre tudo e todos, pontifica como o eixo plenário do conhecimento humano.. Mas Voltaire não pode compreender a dimensão de Leibniz. O melhor mundo possível não é aquele que exonera o homem e Deus". E conclui: "(a) IA é a expressão de um otimismo idealista. Os idealismos provaram ser o veneno da liberdade humana". Por tudo o que fica dito, parece-nos que atribuir à IA capacidades cognitivas de que esta ferramenta realmente carece pode levar-nos a delegar competências decisórias sobre questões humanas que excedem, verdadeiramente, a sua capacidade ________ 1 Geoffrey Hinton em entrevista à revista XL Semanal, 1928, de 6 de outubro de 2024. 2 Recuperamos a sentença de Protágoras na sua obra A Verdade. Para mais desenvolvimentos, cf. Danilo Pereira dos Santos "Observações Sobre a Doutrina do Homem-Medida: Uma Tentativa de Reconstrução do Pensamento de Protágoras" disponível aqui. 3 "Big data" y "machine learning": ¿el fin del método jurídico? In Notario del Siglo XXI, nº 113. 4 Chris Anderson, "The end of theory." In Wired Magazine, de 23.06.2008 5 "Big data" y "machine learning": ¿el fin del método jurídico? In Notario del Siglo XXI, 113. 6 Erik J. Larson, "The Myth of Artificial Intelligence. Why Computers Can't Think the Way We Do?", Harvard University Press, 2021. 7 Contra, Geoffrey Hinton, na já citada entrevista à revista XL Semanal, quando afirma que ..."[d]evemos compreender que a IA é uma forma de inteligência mais potente do que a nossa. E muito superior a todos nós em muitos aspetos". E prossegue: "[a] IA tornar-se- á incontrolável, pois teremos várias superinteligências. Imaginemos uma IA da Google, outra da Microsoft e várias de origem chinesa. A IA tem já as suas próprias necessidades: se perguntarmos à Alphazero, a IA de xadrez da Google se quer ganhar ao seu adversário, a resposta será: claro!". E conclui:"[a]lgumas pessoas pensam que a IA é limitada porque só é alimentada com os dados disponíveis na internet. Isso é um engano. A IA superinteligente já viu coisas que os humanos nunca viram. Sobretudo poderá fazer analogias melhores do que as nossas. Entendi isto mesmo quando perguntei ao ChatGPT porque é que um monte de compostagem funciona como uma bomba nuclear. À medida que o monte de compostagem aquece, gera calor de forma mais rápida (por ação microbiana). E, à medida que uma bomba nuclear produz neutrões, fá-lo cada vez mais rápido. A escala entre uma e outra é completamente diferente, mas a lógica é a mesma: uma reação em cadeia. O ChatGPT chegou a esta conclusão, mas onde encontrou esta ideia? É possível encontrar esta analogia na internet? Pedi ao Sergey Brin, fundador da Google, para pesquisar este fenómeno e não o encontrou. A IA atual é extremamente eficaz a criar analogias. A sua capacidade de aprendizagem nada tem a ver com o passado. O que aprende não é um conjunto de regras lógicas; o que aprende é a ter intuição." 8 "Inteligencia artificial, sabiduría humana y justicia", in Notario del Siglo XXI, 117. 9 Acompanhamos José Maria Lasalle Ruiz, no citado artigo. 10 Entrevista ao diário espanhol ABC de 17 de maio de 2024, disponível aqui. 11 Declarações produzidas no IX Encontro de Direitos Reais, de Direito Registal Imobiliário e de Direito Notarial, Colégio da Trindade, Coimbra, 22 de maio de 2024.
quarta-feira, 6 de novembro de 2024

De volta ao passado!

O direito nasce para regulamentar às relações em sociedade. Quando crimes acontecem, o direito encontra uma forma de coibi-lo. Quando surgem novas relações sociais trazendo algum reflexo para o mundo jurídico, surge também uma demanda legislativa para regulamentar e proteger a vida social. No direito de família não é diferente. A CF/88, por meio do art. 226, prevê que "a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado." Ou seja, deve o Estado se preocupar em cuidar daquilo que é a base da sociedade. Este cuidado reflete na necessária e constante atualização legislativa para trazer ao mundo jurídico relações familiares que estão excluídas, garantindo a todas as famílias os exercícios dos meus direitos. Família consanguínea, cível, mosaico, anaparental, monoparental, socioafetiva ou homoafetiva. Todas elas, sem exclusão de nenhuma, são a base que fundamenta a sociedade. Neste ponto, cabe acrescentar que o Estado age, cuidando da sua 'base', como se fosse um rio que, em alguns pontos deixa suas águas, e em outros traz para si águas de outras fontes. Em algumas destas margens, o rio tende a se fortalecer por auxílio da natureza. Neste rio de atuações do Estado, surgem as correntezas do extrajudicial, cujas águas são fortes e preparadas para cuidar das relações humanas. Assim é o registro civil das pessoas naturais, que é responsável por registrar, publicizar e, entre outras importantes atividades, garantir o exercício dos direitos da pessoa humana. O registro civil das pessoas naturais vem ganhando força e destaque a cada dia, seja através de novas e robustas atribuições, seja através da contemplação da sociedade, que visualiza o quão real e importante são os atos ali praticados. Quando nasce um bebê, é o registro civil que anuncia este nascimento e prepara o Estado para preparar as políticas públicas para recepcioná-lo. Quando alguém morre, é este mesmo registro civil que comunica aos órgãos regulamentadores e emissores de documentos, cancelando-os e evitando que novas relações sejam constituídas com documentos de pessoas falecidas. Este mesmo registro civil, que dia após dia se fortalece e recebe novas atribuições, ganhou destaques nos últimos anos com o procedimento de alteração de prenome e gênero das pessoas transgêneros, reconhecimento de filiação socioafetiva, alterações de prenomes e sobrenomes dos maiores de idade e procedimentos envolvendo a união estável. É uma evolução nunca vista na história do extrajudicial, muito embora há muito prevista, já que os registradores civis são profissionais do direito, altamente capacitados para atuar em prol da desjudicialização e extrajudicialização. Não obstante, é importante esclarecer que a evolução que prosperava, parece vir à mingua no que toca ao procedimento de reconhecimento de filiação socioafetiva. Veja só. Hoje é perfeitamente possível o reconhecimento de filiação socioafetiva da pessoa maior de 12 anos de forma desjudicializada, por meio de um procedimento que inaugura com requerimento conjunto do pretenso pai ou pretensa mãe socioafetiva, autorização dos genitores biológicos, concordância do filho(a) socioafetivo(a), além da apresentação de provas robustas da presença da socioafetividade, por meio do trato familiar de pai/mãe e filho(a) e conhecimento público do estado de filiação.  Este procedimento, após preenchido todos os requisitos ora explicitados, é analisado, primeiramente, pelo representante do Ministério Público, que, deferindo, retorna ao cartório de registro civil para conclusão pelo oficial de registro civil e subsequente averbação à margem do assento de nascimento. Quando um procedimento de filiação é realizado, nasce um pai, uma mãe, um filho. O fim do progresso vem com a reforma do CC, cujo anteprojeto em discussão apresenta a temerária redação do art. 10, §2º "O reconhecimento de filiação socioafetiva de pessoa com menos de dezoito anos de idade será necessariamente feito por sentença judicial e levado a registro, nos termos deste código". É possível, de imediato, encontrar um erro grosseiro de redação, já que o reconhecimento de filiação, seja biológico, seja socioafetivo, é objeto de averbação à margem do registro de nascimento. Não há um registro isolado próprio para reconhecer filhos. O segundo grande equívoco está na vedação do reconhecimento socioafetivo de modo extrajudicial para os menores de dezoito anos. E ele se repete com outro artigo introduzido no anteprojeto: "art.1617-C, caput: "O reconhecimento de filiação socioafetiva de crianças, de adolescentes, bem como de incapazes, será feito por via judicial". Como aqui já brevemente explicado, o registro civil das pessoas naturais está preparado e já vem, desde meados de dois mil e dezessete, realizando inúmeros procedimentos de reconhecimento socioafetivo de adolescentes acima de doze anos. Todos de forma segura, rápida e eficiente (mais de 11 mil procedimentos foram realizados, conforme os números levantados pela Revista Cartórios com Você). Proibir a realização destes procedimentos de forma desjudicializada é exatamente o mesmo que negar à base da sociedade, a proteção estatal, a mesma tutelada e prevista no art. 226 da CF/88. Uma barreira surge nas correntezas do registro civil, enfraquecendo o rio que fortalece às relações familiares. Não é permitido ao direito regredir, ignorar a realidade das coisas como são. E mais que isso, enfraquecer instituições que estão preparadas para prosperar ao lado da sociedade. Fica aqui a torcida para que os deputados federais e senadores, por meio de suas comissões, reparem este mal e acrescentem no Código Civil justamente o Procedimento já (bem) existente para os reconhecimentos de filiação socioafetiva, deferindo a todos os maiores de 12 anos, as facilidades existentes no exercício dos seus direitos de forma desjudicializada.
"Dieu nous garde d'un qui pro quo d'apothicaire, et d'un et cætera de notaire" Provérbio francês "La voluntad de las partes es lingote, y la actividad del Notario es troquel" Rafael Nuñez Lagos Como visto anteriormente1, a diferenciação da fé pública notarial da registral ocorre a partir da função probatória atribuída ao notário, o qual é capaz de atestar fatos externos sobre os quais apõe a sua fé, não estando restrito à certificação de seu próprio acervo, donde ser a imediação - que se expressa em toda escritura pública, mas não nos atos registrais, pela fórmula "perante mim, notário"2- princípio eminentemente notarial.     No entanto, tal relevância da função probatória no sistema geral formado por títulos e registros não pode obliterar, embora às vezes o faça, inclusive perante os profissionais especializados da área extrajudicial, a atuação notarial enquanto jurista na confecção do próprio negócio jurídico - e não apenas conservador do documento que o contém. Assim, um segundo equívoco comum sobre a atividade notarial é enxergar o tabelião tal qual espécie de máquina fotográfica de um negócio totalmente conduzido pelas partes e por ele recebido passivamente para mera autenticação, numa lembrança do tabellio romano que apenas reduzia a escrito o contrato oral perante ele celebrado pelas partes3. Fosse tão somente probatória/conservatória a função notarial, então talvez pudesse ser substituída por equivalentes funcionais já existentes a exemplo da tão alardeada "blockchain" e outras tecnologias4. E já dizia Carnelutti, ainda na década de 50, "el notario es un documentador, un creador de documentos. Es cierto, pero no es sólo esto. De serlo, mañana podría quedar en nada."5 Em verdade, a eficácia da prova documental produzida pela escritura ocorre atualmente no momento de exaurimento da função notarial, estando ligada à forma escrita, ao protocolo das folhas dos livros e à sua organização em uma matriz que não circula senão na forma de cópia - ou, como no Brasil se pacificou chamar, "certidão"6. Todas essas características, embora fundantes da organização notarial do tipo "latino", não traduzem, por si só, a complexidade do sistema de transmissão no qual o notário é chamado a intervir7. Historicamente, é bem verdade, a função notarial estava ligada ao mero domínio da escrita, sendo o notário - ou no termo tradicional espanhol que nesse aspecto melhor reflete a atividade, "escribano" - aquele que dominava a "arte de redigir", em especial, em latim. Os aspirantes à profissão treinavam suas minutas na chamada Ars dictandi8, protótipos de escrituras nas quais exercitavam a utilização do latim em construções jurídicas ou não, formando linhas gerais de aprendizado do bem escrever na língua morta. Foi Bolonha que, a partir de seus grandes mestres, a exemplo de Salatiel ("Ars Notarie" - de 1242) e Rolandino ("Summa Ars Notarie" - de 1255), sedimentou a visão do notário feito profissional jurídico especializado que, não à toa, serviu de instrumento à nascente organização estatal e, em especial, da expansão da burguesia europeia9, tendo seus profissionais se espalhado por toda a Europa meridional mais ou menos nessa época10, chegando, em 1392, em seus pontos mais ao norte no continente11 e, desde então, nunca mais se retirado12. Com o prestígio que os grandes mestres de Bolonha vieram a angariar a partir do renascimento do Direito Romano e a fusão, por eles promovida, do Corpus Iuris com os direitos germânicos e locais, se formaram as bases do chamado "Direito Comum", o qual, por sua vez, pode ser tido por antecedente histórico de todo o Direito Privado mundial de viés europeu continental até hoje13. Especificamente em relação ao instrumento notarial e suas cláusulas, se os primeiros notários modernos, discípulos de Irnério, eram, tal qual seu mestre, glosadores, ainda presos ao reconhecimento possível do texto do Corpus recém redescoberto, junto da posterior escola dos comentadores vieram também as cláusulas notariais "criativas" que, basicamente, construíam artifícios jurídicos para permitir aquilo que a lei - em especial os cânones romanos - queria proibir. É nesse sentido que Nuñez Lagos nos diz que "Las llamadas 'cautelae' de los doctores medievales eran 'habilidades', 'maestrías' de pura técnica, travesuras en la redacción de documentos para lograr soluciones de equidad huyendo del rigor de las leyes prohibitivas. En el fondo había una fraude a la Ley, pero para lograr una solución moral. (...) Los maestros de las 'cautelae' fueron los Notarios. El arte notarial, desde su cátedra permanente de Bolonia, llegó a tener favor y respeto, y hasta inspiró pánico."14 Ora, desde esse ponto o notariado jamais perdeu sua função de jusperito redator do instrumento público e são inúmeras as contribuições dos notários a todo o Direito Privado que muitas vezes passam despercebidas a olhos menos atentos. A começar pela própria forma escrita dos negócios, pois, diferente do que comumente se imagina, não é a escritura pública um plus em relação ao documento privado, que teria surgido antes e mais naturalmente. Ao contrário, o instrumento público foi o paradigma da construção escrita do direito na esfera negocial, surgindo o instrumento privado posteriormente como um minus em relação à escritura, e tendo sido os notários os grandes responsáveis pela difusão da contratação, especialmente imobiliária, documentada em forma escrita15, donde ainda no século XVIII se definia o instrumento privado por referência àquilo que nele faltava para se tornar uma escritura pública: "Est igitur scriptura privata, illa, quae fit a non publicis personis et non habet per se authoritatem nisi adersarius eam confiteatur"16 Também a redação objetiva, que trata o negócio segundo a visão de um terceiro não participante das obrigações, e que, nesse sentido, contraria a prática romana de declarações subjetivas formalmente assumidas por cada parte dentro do contrato - na esteira da antiga "stipulatio" - foi obra de um específico notário, tendo sido defendida com sucesso por Rolandino como forma de demonstrar que o verdadeiro autor do documento não eram as partes, mas o notário17.  Igualmente, a declaração tradicional de transmissão pela qual se transfere "todo jus, posse, ação, domínio" remonta à confecção do Direito Comum dentro das escrituras medievais, aproximando, de um lado, o efeito obrigacional específico da forma declaratória do ritual de contratação romano, e, de outro, a entrega da coisa transmitida, progressivamente substituída nos costumes germânicos por elementos simbólicos como a mera entrega da escritura ao comprador - a propósito, uma das razões pela qual, até hoje, é costume se entregar o "traslado" da escritura ao comprador, e não ao vendedor ou a ambas as partes. Atualmente, essa cláusula tradicional remanesce como o modelo padrão de constituto possessório e, tamanha sua difusão, passou a constar inclusive em recente lei brasileira18. Ainda, a declaração de responsabilidade pela transmissão, fossilizada na tradicional formatação "fazer sempre boa a presente escritura, por si e seus sucessores", deriva do conhecimento notarial do processo germânico no qual era o suposto proprietário quem, uma vez desafiado em juízo, deveria demonstrar o seu domínio, o que se fazia em priscas eras pelo chamamento de seus anteriores transmitentes que se obrigavam a comparecer em juízo pela referida declaração, com a assunção de penas severas no caso de inadimplemento19. No formulário Rolandino: "promittens per se et suos heredes dicto emptori [a redação objetiva], pro se et suis heredius stipulanti litem vel conttroversian  (...) de dicta re seu parte ipsius aliquo tempore non inferre nec inferenti consentire; sed ipsam rem venditam tam in proprietate quam in possessione ei et suis heredibus ab omni homine et universitate LEGITIME DEFENDERE, auctorizare et desbrigare,(...) sub poena ..." Outrossim, se era possível proteger o comprador de eventuais direitos de terceiros, também era possível acautelá-lo e reduzir a responsabilidade natural do vendedor pela evicção que surgiu posteriormente nas fontes romanas, sendo esta uma das mais famosas "cautelas" notariais: "Era valida la renuncia si el renunciante ignoraba el alcance, las consecuencias de lo que renunciaba? La duda empezó respecto de la renuncia de la mujer casada al Senado-consulto Veleyano y se extendió, identitate rationis, a todas las renuncias de evicción y al juramento, dando lugar a una cautela en el otorgamiento: la certioratio."20. Também é tributária dessa renúncia "acautelada", da certioratio, o nosso atual art. 449 do Código Civil21. Se a renúncia a direitos deveria ser especificamente acautelada, por outro lado, o poder executivo do documento devia também ser inicialmente estipulado contratualmente, sendo a força executiva da escritura - protótipo de todos os demais títulos executivos "extrajudiciais" atualmente existentes - criada a partir da chamada "clausula guarentigia", pela qual as partes se obrigavam a comparecer em juízo para "confessar" o débito transcrito na escritura que, assim, ganhava a mesma força da sentença judicial. Era o "pactum de recipiendo praecepto iudicis ordinarii"22. No âmbito comercial, os notários espanhóis instrumentavam sociedades com limitação da responsabilidade de seus sócios mesmo antes de a lei prever, em tal país, tais tipos societários23, e, não à toa, aquela que foi, durante longo período, nosso único tipo societário unipessoal exigia, para sua constituição, o instrumento público24. No âmbito do direito familiar, ainda no Brasil Império, sob a égide da religião oficial estatal, notários do então diminuto povoado de São Paulo, que contava com não mais do que poucas dezenas de milhares de habitantes, já lavravam escrituras de "contratos de casamento"25 entre professantes de outros credos, visando dar alguma regulação jurídica formal a tais entidades familiares para aqueles que estavam impedidos de obter a chancela jurídica do casamento, muito antes de qualquer desenvolvimento doutrinário ou legal sobre a união estável. Em Portugal, as convenções antenupciais lavradas por notários forjaram regimes mistos de bens que se autonomizaram dos regimes tradicionais, ascendendo aos domínios de uma prática generalizada e conquistando a consagração da lei26. Enfim, pode-se dizer que os tabeliães de notas contribuem enormemente na elaboração do direito, havendo, mesmo, quem sustente que atos notariais constituem quase que uma fonte de direito. Nesse sentido, o notário português Luís Filipe Aviz de Brito27 pondera que, se os usos e costumes (que, via de regra, são práticas populares não-documentadas) se convertem em direito consuetudinário, desde que legitimados ("e sancionados pela opinio juris"), deve-se reconhecer que a cláusula notarial (muito mais precisa, por ser redigida e exarada por juristas profissionais), com peculiar razão, terá de caminhar na vanguarda dos usos e costumes, para elaboração de novas figuras jurídicas. Como acima relatado, vários são os exemplos marcantes de como as cláusulas espontâneas dos atos notariais introduzem, na ordem social, um "filtro jurídico" de bons costumes que, por sua vez, gera um direito novo. Sob a tutela dos notários, devido à competência/habilidade profissional e aos bons cuidados redacionais, criam-se verdadeiras figuras contratuais ou mesmo novos regimes que, dada a sua eficiência e utilidade, a lei escrita apressa-se a acolher. Em síntese, embora tenha sido a função meramente documental a responsável pela criação inicial do notariado, não se manteria a profissão se não tivesse evoluído, junto de toda a sociedade, para a sua especialização e a criação de conhecimentos próprios. A linha que separa o notário meramente documentador daquele profissional especialista e capacitado atual é, em certo sentido, a mesma que separa os requisitos do negócio como mera prova daqueles que o exigem como qualificada forma. Se para provar uma dada declaração, oral ou escrita, vários mecanismos analógicos e digitais podem ser utilizados com igual benefício, para a formalização jurídica adequada dos negócios é necessário que se construa um profissional especialista e capacitado, apto a, nas palavras de Carnelutti, "ser um intérprete"28, do ordenamento e da vontade, praticando um juízo análogo ao juízo judicial, segundo Satta29, mas em subsunção inversa: enquanto o juiz vai da norma ao caso concreto para repor o direito que foi violado, o notário vai do caso à norma para atender melhor a parte. E a escolha do tipo de ato, para cada tipo de cliente e caso, é a função tipicamente notarial: conhece teu cliente para lhe fornecer a melhor subsunção jurídico-negocial possível. É por essa razão que a escritura passa a ser exigida não mais com fins probatórios, mas com fins de acautelamento e controle profilático dos atos jurídicos mais adequados para o desenvolvimento consensual do direito, em outras palavras, como forma do negócio. É na passagem da prova à forma que se encontra a passagem do notário testemunha ao notário artesão jurídico. E em certa medida, desconhecer a função especializada do notário como profissional capacitado do direito é desconhecer não apenas a instituição notarial, mas o próprio histórico e desenvolvimento do Direito Privado. _________ 1 O nosso anterior 3 equívocos comuns sobre a função notarial: Semelhanças e diferenças entre a fé pública notarial e registral - Parte 1. Disponível aqui. Acesso em 18.10.2024. 2 Preciso sobre o tema: V. ADRADOS, Antonio Rodríguez. Princípios Notariais. Trad. Gabriela Saciloto Cramer. Diadema: JS Gráfica, 2022. p.87, para quem "A fórmula tradicional do 'Perante mim' persiste precisamente como expressão da imediação, embora para alguns sugira uma concepção passiva da função notarial, uma sobrevivência mesmo do notário-testemunha". 3 E já Carnelutti apontava para tal equívoco: "ser documentador es una parte de la profesión del Notario, a la cual, sin embargo, son encomendadas otras y más importantes funciones. Al Notario no se va solamente para hacer construir un documento que esté dotado de una cierta eficacia probatoria o, como nosotros decimos, de la fe pública; de él también nos servimos por otras razones." CARNELUTTI, Francesco. La figura juridica del notario. Conferência na Academia Madrilenha do Notariado. Maio de 1950. In: Teoría del Derecho Notarial. Lima: Gaveta Notarial, 2021. p. 123-149. 4 Nesse sentido, com uma visão simplista da atuação notarial, inclusive englobando notários e registros em uma mesma categoria e função, recaindo, no equívoco tratado no texto anterior, v.  DANTAS, Robinson Gamba; CARVALHO, Marcos; COSTA, Isac Silveira da. 'Você tem alguns minutos para ouvir a palavra da blockchain?". In: COSTA, Isac Silveira; PRADO, Viviane Muller; GRUPENMACHER, Giovana Treiger. Criptolaw. São Paulo: Almedina, 2020. p.35-67, para quem "ao custo de impor aos membros da comunidade a guarda dos dados, poderíamos viver em um mundo sem cartórios - e sem a cobrança das respectivas taxas". 5 CARNELUTTI, F. op. cit. p. 120. 6 Sobre os princípios organizadores da instituição e do documento notarial dados pela forma escrita, pelo protocolo e pela matricidade, v. novamente, ADRADOS, A. R. op. cit. p. 171. Foram a matricidade e o protocolo os responsáveis pela guarda dos documentos relativos à escravidão no país que não puderam, em decorrência de estarem atrelados a escrituras de outros tipos e negócios, ser incinerados na época do decreto do então Ministro da Fazenda Rui Barbosa, fazendo, assim, as escrituras notariais, hoje, uma das principais - se não a principal - fontes históricas primárias para estudo do tema. 7 Sobre a justificativa econômica para a intervenção notarial nos sistemas de transferência imobiliária e sua comparação com outros mecanismos de segurança reais  - e não meramente ideais - existentes no mundo comparado v. KASSAMA, Alexandre. Alienação fiduciária e forma pública: densidade dogmática e adequação funcional. 30.08.2023. Disponível aqui. Acesso em 01.08.2024. KASSAMA, Alexandre. Custos da escritura pública - e da falta dela: Ciência e senso comum na análise econômica do notariado - Parte 1. 08.05.2024. Disponível aqui. Acesso em 01.08.2024. Ainda XIMENES, Rachel Letícia Curcio; ALMEIDA, Tiago de Lima. Os mitos dos cartórios (de notas) no Brasil - e no mundo. 28.08.2024. Disponível aqui. Acesso em 22.10.2024. 8 NUÑEZ LAGOS, Rafael. Las "cautelae" y su epoca.In: Revista de Derecho Notarial. Jul-Dez. 1964. Madri:  Colégio Notarial de Madri, 1964. p.341-372. 9 Para uma ligação do início do desenvolvimento do mercado europeu com o desenvolvimento da profissão notarial, v. ARRUÑADA, Benito. The economics of Notaries. In: European Journal of Law and economics. Vol 3, 1996. p. 5-37. 10 V. NOGUEIRA, Bernardo de Sá. Tabelionato e instrumento público em Portugal. Génese e implantação (1212-1279). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008. E BARRIOS FERNÁNDEZ, Plácido. De escribanos a Notarios. Apuntes para una historia del notariado español. Madri: Basconfer, 2023. 11 Data em que os primeiros notários de formação bolonhesa passaram a integrar a "Worshipful Company of Scriveners of the City of London". Acesso em 22.10.2024 12 O que culminou, também, com a final transferência da faculdade de formação de notários daquilo que seria algo mais próximo à atual faculdade de letras (por isso "ars" notarie) para a de direito, em 1458. V.  NUÑEZ LAGOS, Rafael. op. cit.  p. 356. 13 V. CALASSO, Francesco. Introduzione al diritto comune. Milão: Giuffre, 1951. O Direito Privado assim moldado, por exportação europeia, chegou à maior parte da América e a muitos países africanos e mesmo asiáticos, entre eles o Japão e, mais recentemente, a China - países que, não por acaso, adotaram também o notariado latino. 14 NUÑEZ LAGOS, Rafael. Hechos y derechos en el documento publico. Madri: Instituto Nacional de Estudios Jurídicos, 1950. p. 254 15 V. GHENGINI, Riccardo. La forma notarile digitale. Milão: Wolters Kluver, 2022, p. 46, para quem a adaptação à contratação notarial digital requererá "un sforzo di creazione ed innovazione análogo a quello compiuto dal notariato del X e XI secolo, che operava in una società che considerava il contratto essenzialmente orale e il documento um mero mezzo probatorio (notitia): la tecnica di documentazione inventata ed applicata dai notai ha determinato il passaggio dal contratto orale al contratto scritto (charta)." 16 NUNEZ LAGOS, Rafael. Concepto y clases de documentos. Lima: Gaceta Notarial, 2013. p. 100, citando passagem de Nicoalu de Passeribus de 1728. 17 PASSAGGERI, Rolandino. Aurora. Com os comentários de Pedro de Unzola. Traduzido ao Espanhol por Víctor Vicente Vela e Rafael Nuñez Lagos segundo a versão publicada em 1485. Madri: Colégio Notarial de Madri, 1950 18 Art. 9º, §9º. Inciso II ("mandato irrevogável para representar o garantidor hipotecário, com poderes para transmitir domínio, direito, posse e ação, manifestar a responsabilidade do alienante pela evicção e imitir o adquirente na posse."), da Lei 14.711, de 30 de outubro de 2023. 19 NUÑEZ LAGOS, Rafael. Tres momentos del Título Notarial. Lima: Gaceta Notarial, 2013. p. 222 20 NUÑEZ LAGOS, Rafael. Los esquemas conceptuales del instrumento público. Lima: Gaceta Notarial, 2013. p. 178. 21 Art. 449. Não obstante a cláusula que exclui a garantia contra a evicção, se esta se der, tem direito o evicto a receber o preço que pagou pela coisa evicta, se não soube do risco da evicção, ou, dele informado, não o assumiu. 22 NUÑEZ LAGOS, Rafael. Hechos y derechos en el documento publico. p. 267. 23 NUÑEZ LAGOS, Rafael. El derecho notarial. Lima: Gaceta notarial, 2013. p. 72. 24 Art. 251 da Lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976. 25 Devo esta descoberta ao substituto da 1ª Tabeliã de Notas de São Paulo, Leonardo Marques Pacheco, quem me apresentou a tais achados notariais. 26 BENÍCIO, Hercules Alexandre da Costa. Responsabilidade civil do Estado decorrente de atos notariais e de registro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 31. 27 BRITO, Luís Filipe Aviz de. O notariado na elaboração do direito privado. Braga: Pax, 1966, p. XIII. 28 CARNELUTTI, op. cit. 29 SATTA, Salvattore. Poesia e veritá nella vita del notaio. p. 548.In: Vita Notarile: Studi problemi e lettere del notariato. Rivista di Diritto e pratica contrattuale e tributaria. Indice Generale. 1955. Palermo: Edizioni Fiuridiche Italiane. p. 543-550.
quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Indisponibilidade de bens - Parte II

Havia uma pedra no caminho A CGI e a CGJSP A Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo logo cuidou de regulamentar, no âmbito de suas atribuições e competências, as disposições contidas no decreto-lei 502/69, nascendo, então, o livro de "Registro de Notificações" expedidas pela CGI com a indicação das pessoas que teriam seus bens tornados indisponíveis. Nasceria em caráter confidencial, pois sem essa nota de sigilo a providência se frustraria pela prévia difusão de seu teor. Vale a pena conhecer na íntegra o ato normativo da Corregedoria bandeirante: Provimento 8/69 - Dispõe sobre atribuições dos Oficiais do Registro de Imóveis e dá outras providências. O desembargador Hildebrando Dantas de Freitas, Corregedor Geral da Justiça do Estado de São Paulo, no uso de suas atribuições, Considerando as disposições dos arts. 1º e 2º do decreto-lei 502, de 17/3/69 e a decisão proferida nos autos do proc. CG-31.903/69; Determina: Art. 1º  - Em cada Cartório do Registro de Imóveis do Estado de São Paulo será aberto um livro destinado ao "Registro das Notificações" expedidas pela. C.G.I., numerado em série crescente, a partir do 1. Art. 2º - Cada livro conterá termo de abertura e de encerramento assinados pelo juiz corregedor permanente que rubricará todas as folhas, formalidade que precederá a sua utilização. Art. 3º - Será organizado, obrigatoriamente, um índice geral, através de livro, facultada a utilização de fichas. Art. 4º - Recebida a notificação, o Oficial imobiliário procederá ao imediato registro, observada a ordem cronológica. Art. 5º - As notificações serão encadernadas em grupo de 200 e arquivadas em cartório. Art. 6º - O Oficial Imobiliário, recebida a notificação, cumprirá o disposto no art. 1º, inciso I, do decreto-lei 502-69, sob pena de providência de ordem disciplinar, sem prejuízo da sanção penal prevista no art. 1º, parágrafo único, do mesmo diploma legal. Publique-se, registre-se e cumpra-se. Remetam-se cópias aos MM. juízes corregedores permanentes dos Cartórios de Registro de Imóveis do Estado. São Paulo, 16/7/69. Hildebrando Dantas de Freitas, corregedor geral da Justiça1. Assim foi criado o livro cognominado "CGI", como ficou conhecido nas serventias paulistas. Nalgum momento da história cartorária chamaríamos o tal livro de "Cadastro Geral de Indisponibilidades", mas na verdade poucos sabiam o significado do acrônimo, que se referia ao órgão criado pelo Estado naquele tormentoso período.  Adveio em seguida o provimento CG 14, de 30/12/69, em que a estruturação do livro de "Registro de Notificações" ficou afinal estabelecida - certamente em virtude do advento do dec.-lei 48, de 18/11/66 e do dec.-lei 685, de 17/7/69, que tratava igualmente de indisponibilidade de bens de atingidos em processos de empresas em regime de liquidação extrajudicial (art. 1º). A redação das normas administrativas foi esta: "XII - Não podem ser efetuadas transcrições, inscrições ou averbações de documentos públicos ou particulares relativos aos bens confiscados ou de quaisquer atos ou contratos em que sejam interessadas pessoas naturais ou jurídicas, cujos bens tenham sido objeto de confisco (Decreto-Lei n. 502, de 1969; Provimento 8/69). XIII - Deve ser providenciada a abertura do Livro 'Registro de Notificações', a que se refere o provimento n. CG 8/69, para anotação de comunicações oriundas da C.G.I. e dos liquidantes de empresas em regime de liquidação extrajudicial (Decreto-Lei n. 685, de 17.7.1969)"2. As disposições relativas à indisponibilidade de bens se espraiariam pelas normas baixadas sucessivamente pela Corregedoria Geral de Justiça. Na bela consolidação empreendida na gestão do desembargador José Carlos Ferreira de Oliveira, e com base na legislação da época, cravou-se no art. 780:  "Não serão efetuadas transcrições, inscrições ou averbações relativas a bens confiscados, ou de quaisquer atos ou contratos em que sejam interessadas pessoas naturais ou jurídicas, cujos bens tenham sido objeto de confisco"3.   Aparentemente, terá escapado do compilador a disposição contida nos provimentos 8 e 14 de 1969. Entretanto, no bojo do processo CG 21.433/72 previu-se o registro das indisponibilidades, assim estabelecido: XXXII - Não podem ser efetuadas transcrições, inscrições ou averbações de documentos públicos ou particulares relativos aos bens confiscados, ou de quaisquer atos ou contratos em que sejam interessadas pessoas naturais ou jurídicas, cujos bens tenham sido objeto de confisco (decreto-lei 502/69; Prov. CG. 8/69 e 14/69). (...)  XXV - Deve-se ter em conta a indisponibilidade dos bens dos administradores, gerentes e conselheiros fiscais de sociedades sujeitas ao regime de liquidação extrajudicial, nos termos do Decreto-lei n.º 48, de 18-XI-66, até a definitiva apuração e liquidação de suas responsabilidades, observadas as disposições do decreto-lei 685/69 (Prov. CG. 14/69)4. A CGI seria extinta pelo decreto 82.961, de 29/12/78, em razão da revogação dos Atos Institucionais e Complementares pela EC 11/78 (art. 3º). O decreto 84.251, de 28/11/79, alteraria o decreto 82.961/78 para dispor que ficariam "canceladas as anotações referentes a medidas preliminares e acauteladoras (bloqueio de bens), determinadas pela extinta Comissão Geral de Investigações" (art. 2º). Livro de registro das comunicações relativas a diretores e ex-administradores de sociedades em regime de liquidação extrajudicial  Em 1980 vem a lume o roteiro das correições, alentado compêndio que organizava a matéria relativa às correições, propiciando aos magistrados orientação adequada e traçando um roteiro a ser observado nos trabalhos correcionais5. Foi o precursor da atual planilha de "Ata de Correição". Neste documento, prevê-se o livro das comunicações, referido no subtítulo 251, e suas disposições são as seguintes: 251. Livro de registro das comunicações relativas a diretores e ex-administradores de sociedades em regime de liquidação extrajudicial. O livro de registro das comunicações relativas a diretores e ex-administradores de sociedades em regime de liquidação extrajudicial, instituído em consequência do decreto-lei 685, de 17/7/69, deverá conter o registro de todos os ofícios da E. Corregedoria Geral da Justiça, ou dos liquidantes, comunicando os nomes das referidas pessoas, com a indicação da sociedade pertinente; Uma vez feito o registro próprio, as comunicações relativas a diretores e ex-administradores de sociedades em regime de liquidação extrajudicial, no verso das quais se lançará certidão referente ao ato praticado, serão arquivadas em ordem cronológica; O registro das comunicações relativas a diretores e ex-administradores de sociedades em regime de liquidação extrajudicial deverá ser dividido em colunas, uma para o número de ordem do registro; outra para a data; outra para o nome e a qualificação das pessoas e uma última para as averbações necessárias; As comunicações que alterem ou cancelem registros atinentes às comunicações relativas a diretores e ex-administradores de sociedades em regime de liquidação extrajudicial deverão ser simplesmente averbadas, à margem dos respectivos registros, não se justificando sejam objeto de novo registro; Todos os nomes constantes do livro deverão constar também do indicador pessoal (art. 180 da lei dos registros públicos); o caráter sigiloso daquelas comunicações não impede essa providência , diante do princípio da publicidade que rege os registros públicos em geral; A indisponibilidade de bens acaso existentes na comarca (ou no registro) deverá ser averbada à margem da transcrição ou na matrícula dos imóveis (art. 247 da lei dos registros públicos); Os registros e comunicações da CGI, abolido o livro especial, podem ser feitos no mesmo livro destinado ao registro das comunicações relativas a diretores e ex-administradores de sociedades. Vê-se que o livro de registro de notificações oriundas da CGI reputava-se abolido. A partir daí, todas as comunicações, sejam as anteriores, oriundas da CGI, sejam aquelas relativas às comunicações acerca de diretores e ex-administradores de sociedades, seriam lançadas no novo livro.  d) O advento da lei 6.216/1975 A redação original da lei 6.015/73, publicada em 31/12/73, não trazia qualquer disposição acerca da indisponibilidade de bens. Tampouco o regulamento de 1939. A inserção do artigo que dispõe sobre a indisponibilidade de bens veio no bojo da PL do Congresso Nacional (PLN 3/75), encaminhado por Ernesto Geisel, por intermédio do seu ministro da Justiça, Armando Falcão.6 O projeto converteu-se na lei 6.216/75, que alteraria, ainda na vacatio, a lei 6.015/73. Eis o dispositivo entranhado no corpo da lei: Art. 247 - Averbar-se-á, também, na matrícula, a declaração de indisponibilidade de bens, na forma prevista na lei. A parte final do artigo - na forma prevista em lei - dá ensanchas a que se possa discutir se a figura da indisponibilidade de bens poderia ser potencializada como meio oblíquo de constrição no processo executivo, tema ao qual voltaremos na parte II deste artigo. e) Espólio do regime militar Uma vez extinta a CGI, revogados, pela EC 11/78, o AI 5, pelo qual havia sido autorizado o confisco de bens decorrentes de enriquecimento ilícito no exercício de cargo ou função pública, e o ato complementar 42/69, tornando ineficaz o dec.-lei 359/68, ficariam "sem efeito as medidas acauteladoras para o confisco de bens previstas no art. 8º do aludido AI 5 e no Ato Complementar 42, medidas essas disciplinadas no dec.-lei 502, de 17/3/69, consistentes no embargo da disponibilidade dos bens mediante impedimento à sua transmissão ou oneração, através de anotações nos Registros de Imóveis"7. Entretanto, havia inúmeras situações em que o confisco efetivamente se concretizara e muitos bens objeto de registro foram tornados indisponíveis. Em face da superveniência dos referidos diplomas e declarações de inconstitucionalidade, a Corregedoria paulista provocou a Consultoria Geral da República que, em parecer aprovado pela presidência da república, responderia às questões formuladas pelo Judiciário paulista nos seguintes termos, in verbis: "Consultoria geral da república Parecer N-32, de 05/5/80. Assunto: Findou-se, ou não, a Comissão Geral de Investigações, que foi criada pelo dec. lei 359/68, mas declarada extinta, pelo dec. 82.961/78. Ementa: Extinguiu-se a CGI, pois que o dec. lei 359/68 veio a se tornar inconstitucional quando, revogados os atos institucionais e complementares, a Constituição da república recuperou a plenitude de sua vigência.  O surto posterior de diversas inconstitucionalidades do dec. lei 359/68 e do dec. lei 502/69  - sua revogação tácita, por contrários à CF/88. Atos praticados pela CGI; análise de sua eficácia após a vigência plena da Constituição, em 1/1/79. Nestes atos da CGI, distinguem-se os que criaram situações jurídicas acabadamente constituídas sob o regime dos atos institucionais e complementares, de outros, aqueles atos que estavam instituindo situações jurídicas, ainda em curso de formação do ato final de decreto de confisco pelo presidente.  Enquanto aqueles atos acabadamente constituídos permanecem juridicamente perfeitos, infensos à ulterior alteração da ordem jurídica e não apreciáveis pelo Poder Judiciário, entretanto os atos meramente cautelares, os que geraram situações jurídicas apenas em curso de formação do futuro confisco, estes encontram-se desconstituídos, por desamparo do dec. lei 359/68 e dec. lei 502/69, revogados por inconstitucionais. Aprovo. Em 12/5/80. (PR 521 - 80 encaminhado ao GM da PR em 13.5.80)"8. A decisão concluiu que deveriam ser canceladas as anotações de bloqueio de bens determinadas pela CGI, permanecendo indisponíveis os bens objetos de decretos de confisco por "atos acabadamente constituídos" que "permanecem juridicamente perfeitos, infensos à ulterior alteração da ordem jurídica". Os corregedores permanentes dos Cartórios de Registro de Imóveis, de ofício ou a requerimento de interessados, deveriam determinar o cancelamento das anotações deixando de subsistir o bloqueio de bens eventualmente averbado. Eis a conclusão: "Conclui-se, do exposto, deverem ser canceladas (...) as anotações concernentes às medidas preliminares e acauteladoras de bloqueio de bens, determinadas pela extinta CGl e efetuadas por instrução desta E. Corregedoria Geral da Justiça, ao transmitir aos Srs. Juízes de Direito Corregedores Permanentes dos Cartórios de Registro de Imóveis e de Notas, da Capital e das comarcas do interior do Estado, as comunicações da mencionada Comissão e o dispositivo do art. 2.º do Dec.-lei 502, de 17.3.69, para que nenhuma transação fosse celebrada envolvendo bens e pessoas físicas e jurídicas por ela expressamente arroladas.10 Esse regime de medidas acauteladoras em processo de confisco chegava ao seu termo final. A CGI, que deveria proceder ao exame sumário dos elementos de prova que o justificasse, não mais existe. f) O decreto-lei 685/69, a lei 6.024/74 e as indisponibilidades de bens O decreto-lei 48, de 18/11/66, disporia sobre a intervenção e a liquidação extrajudicial de instituições financeiras, conduzidas pelo Banco Central do Brasil, "nos casos em que se verificarem anormalidades na condução dos negócios sociais, inclusive por culpa ou responsabilidade dos dirigentes do estabelecimento". Faltava, todavia, prever o procedimento padrão para se evitar a dissipação patrimonial dos administradores, gerentes e conselheiros fiscais das sociedades sujeitas ao regime de liquidação extrajudicial. Surge, então, o decreto-lei 685, de 17/7/69 que, em seu art. 1º, disporia que os administradores, gerentes e conselheiros fiscais das sociedades sujeitas ao regime de liquidação extrajudicial ficariam "com todos os seus bens indisponíveis não podendo, por qualquer forma, direta ou indireta, aliená-los ou onerá-los, até final e definitiva apuração e liquidação de suas responsabilidades". O parágrafo único do art. 4º revezava que os registros deveriam ser procedidos no prazo de 15 dias pelos Oficiais dos Registros de Imóveis, "à vista da comunicação formal que lhes seja feita, em caso, pelo liquidante", isto é, pelo Banco Central do Brasil. O decreto-lei de 1969 seria expressamente revogado pela lei 6.024, de 13/3/74, que disporia sobre a intervenção e a liquidação extrajudicial de instituições financeiras, diploma atualmente em vigor. O quadro normativo relativo à indisponibilidade e inscrição nos Registros de Imóveis pode ser assim resumido: A indisponibilidade de bens alcança os administradores, gerentes, conselheiros fiscais das instituições financeiras em intervenção, em liquidação extrajudicial ou em falência. Podem ser atingidas pessoas que, a qualquer título, tenham adquirido por simulação bens de administradores.  Os titulares de bens considerados inalienáveis ou impenhoráveis não se sujeitam às restrições. Não se sujeitam às restrições os bens objeto de contrato de alienação, de promessa de compra e venda, de cessão de direito, "desde que os respectivos instrumentos tenham sido levados ao competente registro público, anteriormente à data da decretação da intervenção". A indisponibilidade é eficaz desde o ato que decretar a intervenção. Cabe ao interventor, ao liquidante ou escrivão da falência comunicar o gravame aos Registros Públicos.  Recebida a comunicação, os registradores ficam impedidos de praticar quaisquer atos de registro ou averbação de instrumentos públicos ou particulares. A partir de então, o Banco Central do Brasil inundaria as Corregedorias Gerais de Justiça dos Estados com ofícios comunicando a intervenção em instituições financeiras e noticiando a indisponibilidade de bens de seus administradores. As Corregedorias estaduais, por seu turno, encaminhariam às comarcas do estado dossiês (alguns sigilosos) aos magistrados diretores ou corregedores permanentes e estes os encaminhariam a cada oficial de registro de imóveis.  Eram dossiês densos, muitas vezes compostos de centenas de páginas, gerando um imenso caudal informações que desaguaria nos cartórios, depois de lavrado o ato correspondente no "livro de Registro de Notificações". Maria Helena Leonel Gandolfo nos dá a síntese do conjunto acima exposto: "De acordo com o decreto-lei 502, de 1969, a CGI - Comissão Geral de Investigações pode determinar a indisponibilidade de bens de empresas ou pessoas físicas que se achem sob investigação, como medida cautelar visando à proteção do patrimônio público. Os bens assim declarados 'indisponíveis' ou 'bloqueados' não podem ser vendidos, prometidos à venda, doados ou, por qualquer outra forma, transmitidos a terceiros.  Recebida a comunicação, através da Corregedoria Geral da Justiça ou do juiz corregedor permanente do Cartório de Registro de Imóveis, ao Oficial compete efetuar as anotações necessárias, inclusive no indicador pessoal, pois responde, civil e criminalmente, pelo registro que venha a fazer, da transmissão de bens indisponíveis.  No Estado de São Paulo, a Corregedoria Geral da Justiça instituiu um 'livro de Registro de Notificações', que tanto serve para o lançamento das comunicações da CGI como das enviadas pelos interventores de instituições financeiras em regime de liquidação, conforme disposição da lei 6.024, de 13/3/74.  A comunicação de indisponibilidade pode ser genérica, isto é, mencionar nomes das pessoas cujos bens são bloqueados, sem se referir diretamente a qualquer imóvel, caso em que todos os imóveis que aquelas pessoas possuam - ou venham a possuir - se tornam intransmissíveis. Pode, também, especificar imóvel ou imóveis determinados. Neste caso, o bloqueio só atinge estes imóveis, não afetando os demais, do mesmo proprietário.  Essa foi a orientação dada pela Corregedoria Permanente de São Paulo, mediante resposta ao Dr. Gilberto Valente da Silva a consulta formulada por um dos Cartórios sob sua jurisdição, depois de ouvir a respeito a própria CGI.  Portanto, uma vez recebida a comunicação de indisponibilidade de bens de uma pessoa, referindo-se a determinado imóvel não situado na circunscrição abrangida pelo Cartório, não há necessidade de proceder-se ao registro no livro de notificações. Nesse caso, arquiva-se a comunicação, sem qualquer anotação, uma vez que a própria CGI afirma que o bloqueio só atinge o bem mencionado no ofício. Tratando-se, porém, de indisponibilidade genérica (sem discriminar imóvel determinado) o registro deve ser feito no Livro mencionado, mesmo que a pessoa visada não possua imóvel registrado em seu nome, anotando-se, também, no indicador pessoal. M.H.L.G".11  Vimos que o roteiro das correições de Adriano Marrey indicava que o livro de Registro de Notificações da CGI havia sido "abolido" (letra "g" do item 251); entretanto, "os registros e comunicações da CGI poderiam ser feitos no mesmo livro destinado ao registro das comunicações relativas a diretores e ex-administradores de sociedades"... Não temos notícia da existência de ato formal de abolição do antigo livro de Registro das Notificações da CGI, soando-nos pouco razoável que, extinta a comissão e cancelados seus atos vestibulares de bloqueio e indisponibilidades, ainda se lavrasse no novo livro as ditas comunicações. Este hiato provocou consultas ao IRIB. Considerando-se que as averbações de indisponibilidade ou bloqueio de bens determinadas pela CGI ficaram sem efeito, o livro próprio para essas averbações deveria ser encerrado? Respondeu-nos o Instituto: "A maior parte dos Cartórios de Registros de Imóveis possui um único livro, tanto para a prática desses atos, como para o registro da indisponibilidade de bens imposta nas liquidações extrajudiciais de entidades financeiras, procedidas pelo Banco Central. Quem assim procedeu, deverá continuar escriturando esse livro com relação a estes últimos atos. Todavia, os que possuem dois livros poderão encerrar aquele destinado às anotações determinadas pela extinta CGI - Comissão Geral de investigações"12. Este período da história institucional é ainda muito pouco estudado. Somente conhecendo as origens do instituto da indisponibilidade de bens, conhecendo o seu desenvolvimento ao longo do tempo, será possível identificar a origem dos desvios e imperfeições reconhecidos, corrigindo os rumos e dotando o SREI de uma ferramenta útil e eficaz. Na parte seguinte deste artigo, vamos verificar como o sistema de indisponibilidade de bens foi informatizado no Estado de São Paulo e quais foram os impulsos que a Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo recebeu de alguns registradores, apoiados pela ARISP - Associação de Registradores Imobiliários de São Paulo. Veremos, a seguir, as novas ideias que plasmaram a concepção da nova CNIB - Central Nacional de Indisponibilidade de Bens. __________ 1 Provimento CG 8/1969, de 16/7/1969, DOJ de 18/7/1969, Des. Hildebrando Dantas de Freitas. Disponível aqui.  2 Provimento CG 14/1969, de 30/12/1969, Des. Hildebrando Dantas de Freitas. Disponível aqui.  3 OLIVEIRA, José Carlos Ferreira de. Consolidação de Normas da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo. 17.10.1973. Disponível aqui. 4 Processo CG 21.433/1972, São Paulo, parecer de 3/2/1972, Dr. José Haroldo de Oliveira e Costa, in Boletim da Associação de Serventuários de Justiça do Estado de São Paulo, n. 93, jan./abr. de 1972, pp. 109-110. Disponível aqui.  5 MARREY, Adriano. Coord. Roteiro das Correições. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. Disponível aqui. O Regimento das Correições no Estado de São Paulo foi estabelecido pelo Decreto 4.786, de 3 de dezembro de 1930, não revogado expressamente. 6 Mensagem 37, de 1975 (115/75 na origem), in Diário do Congresso Nacional de 30.4.1975, p. 855 et seq. 7 Processo CG 7.397/1973, São Paulo, dec. de 9/7/1980, DOJ 12/7/1980, Des. Adriano Marrey. Disponível aqui.  8 Diário da União de 13.5.1980, Seção I, p. 8.486. Disponível aqui.   9 Um exemplo prática da persistência de atos "juridicamente perfeitos, infensos à ulterior alteração da ordem jurídica" pode ser conferido pelo registro (transcrição) do confisco decretado por meio do Decreto 72.560, de 31/7/1973 (DOU de 7/8/1973), assinado pelo Presidente Emílio Garrastazu Médice e pelo Ministro Alfredo Buzaid. Os bens foram transcritos nesta Serventia em nome da União Federal e posteriormente alienados a particulares, com base no Decreto 79.155, de 25 de janeiro de 1977. 10 Processo CG 7.397/1973, cit.  11 GANDOLFO. Maria Helena Leonel. Indisponibilidade. Boletim do IRIB n. 16, setembro de 1978, p. 2. 12 Perguntas e respostas do IRIB in Boletim do IRIB n. 33, fev. 1980.
segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Indisponibilidade de bens - Parte I

Este artigo examina a história do instituto da indisponibilidade de bens no Brasil e suas repercussões no Registro de Imóveis. Inicialmente concebido para fins muito específicos - como o combate à corrupção e à improbidade administrativa durante a Ditadura Vargas e Regime Militar de 1964 -, foi gradualmente modificado, assumindo uma feição draconiana no processo executivo. Aponta-se a necessidade de revisitar o instituto e estabelecer critérios mais rigorosos para sua aplicação, a fim de evitar o bloqueio indiscriminado de bens e direitos e garantir a livre circulação de bens e riquezas. O artigo discute ainda o impacto da informatização do sistema, que levou a uma explosão no número de inscrições de indisponibilidade de bens, muitas das quais permanecem latentes e sem solução. Key words: CGI - Comissão Geral de Investigações - Regime Militar. Indisponibilidade de bens. CNIB - Central Nacional de Indisponibilidade de bens.  Os registradores acham-se diante de uma verdadeira avulsão de inscrições na Plataforma da CNIB - Central Nacional de Indisponibilidade de bens. Na data de hoje registramos mais de 2.4 milhões de inscrições na plataforma e mais de 3.3 milhões de pessoas atingidas, com 205.8 milhões de relatórios emitidos1. Como chegamos a estas cifras assombrosas? Terá havido uma distorção no sistema em razão do modelo adotado? Como este "gravame"2 heterodoxo converteu-se em ferramenta corriqueira no processo executivo, disputando e suplantando figuras tradicionais de arresto e penhora de bens? No contexto do encontro Indisponibilidade de Bens, promovido pela Fundação Arcadas, da Faculdade de Direito do Largo São Francisco3, Celso Fernandes Campilongo destacou: "A decretação de indisponibilidade de bens possui enorme virulência. É medida drástica. Tem consequências patrimoniais devastadoras. Por isso, deve ser usada com moderação. Não se pode perder de vista que a intrínseca dose de coerção e violência da indisponibilidade não deve ser percebida apenas como reparação de dano causado à sociedade. Ela é, antes disso, consequência de violação à lei. Adequar o direito ao interesse público não é algo que possa ser feito à margem do direito, com sanha inquisitória e proporções desequilibradas"4. Mais recentemente, Moacyr Petrocelli bem observou que o instituto foi banalizado e urge que o instituto seja revisitado com a fixação de parâmetros e estabelecimento de critérios consentâneos com o Direito brasileiro para a utilização da ferramenta, que deve ser sempre excepcional. E conclui: "Não é demais lembrar que à luz do princípio da livre circulação das riquezas, os bens em geral devem permanecer in commercium. Somente em hipóteses mui excepcionais, autorizadas expressamente por lei e mediante ordem fundamentada da autoridade competente, admite-se que bens determinados sejam retirados do comércio, tornando-se indisponíveis por seus titulares".5 Com razão o registrador paulista. A gravosidade do bloqueio patrimonial, muitas vezes decretado em decorrência de obrigações de bagatela - ou teratológicas, como as originadas de pequenas dívidas trabalhistas que gravam e embaraçam todo o patrimônio de construtoras ou de bancos. Tais ordens acabam por criar empecilhos e obstáculos injustificáveis para a regular atividade de empresas e instituições. A eletronificação das comunicações produziu a explosão de inscrições e o crescimento inesperado da base de dados com a avultada ocorrência de indisponibilidades que remanescem no sistema num estado de latência. Ou os gravames recidivam a prenotação (quando feita na postagem original na CNIB) ou reagem quando ingressam os títulos em que os atingidos adquirem bens ou direitos. Muitas destas inscrições remanescem no limbo do sistema sem solução. Não há administração racional deste cemitério de inscrições. A modernização do sistema visou um objetivo: racionalização das comunicações. Ao longo do tempo, formaram-se alentados dossiês produzidos especialmente após o advento da Lei 6.024/1974, multiplicados sucessivamente pelas corregedorias estaduais, pelos corregedores permanentes e diretores do fórum e por fim por registradores de cada comarca brasileira. O modelo era moroso, ineficiente, oneroso, complexo. Não raro havia falhas de comunicação e problemas de interpretação das ordens ou decisões do Banco Central do Brasil. Não havia coincidência nos índices e acervos dos cartórios brasileiros. Além disso, havia serventias criadas muito posteriormente aos primeiros diplomas e que não possuíam a memória das indicações pretéritas. Há algumas pistas para identificar o ponto de viragem deste instituto outrora consagrado a finalidades muito diversas e específicas - e elas podem revelar o percurso sinuoso que se robusteceu no auge do regime militar de 1964 e se foi enraizando na legislação e, especialmente, espraiando-se no seio da jurisdição. Mirando a figura do bloqueio ou indisponibilidade de bens numa perspectiva histórica e crítica, pode-se chegar à conclusão de que o sistema deve ser balanceado por medidas corretivas a cargo da Corregedoria Nacional de Justiça. Neste opúsculo introdutório, cingimo-nos ao nascedouro do instituto e na parte complementar vamos enfrentar os problemas concretos decorrentes da implantação da plataforma eletrônica (CNIB). Finalmente, à guisa de conclusão, vamos sugerir algumas medidas para eventual correção de rumos na recepção e tratamento das ordens judiciais postadas nas plataformas eletrônicas. Indisponibilidade de bens - excurso histórico a) Ditadura Vargas, tribunais de exceção e a CCA Antes mesmo da irrupção do movimento político-militar que se instaurou no país a partir de 1964, o Governo Provisório, que se seguiu à revolução de 1930, criaria um tribunal de exceção ("tribunal especial") dedicado a instaurar processos para julgamento de crimes políticos, funcionais "e outros que serão discriminados na lei da sua organização".6 Para apuração de crimes ou contravenções relacionados à aplicação ou ao uso indébito ou irregular dos dinheiros ou haveres, advieram diversos decretos que visavam coibir a "prática de improbidade contra a fortuna pública".7 O Tribunal especial, criado em 1930 e reorganizado em 1931 previa o sequestro de bens como medida assecuratória8 e consideraria nulos de pleno direito, em relação à Fazenda Pública, "todos os atos de alienação, oneração, ou desistência de qualquer bem, direito ou ação, dos responsáveis pela gestão ou aplicação de dinheiros públicos, inclusive membros do Congresso Nacional, ou dos Governos Federal, Estaduais ou Municipais, no período do governo que determinou a Revolução, no que venham a frustrar no todo ou em parte as indenizações a que possam ser obrigados, nos termos deste decreto e mais disposições aplicáveis".9 Para a efetividade dos processos, previu-se a "indisponibilidade de bens" das pessoas investigadas e processadas.10 Em suas consideranda, o Decreto 19.630/1931 declarava que continuava expressamente proibida "a alienação, ou oneração, de quaisquer bens, moveis, ou imóveis, ações, ou direitos pertencentes às pessoas" a que se referia o Decreto 19.440/1930 (arts. 9º, 12 e 43). Para disposição de bens imóveis atingidos exigia-se a expedição de alvarás pela autoridade competente.11 Em fins de 1931, seria criada a Comissão de Correição Administrativa, que tinha por objetivo proceder à correição dos atos da administração pública, sugerindo às autoridades competentes a aplicação de medidas e sanções previstas no Decreto 20.424/1931.12 Tratava-se de um tribunal de exceção criado para julgar e punir o uso indevido ou irregular dos dinheiros ou haveres públicos e todo ato ou prática de improbidade contra a fortuna pública. A dita Comissão funcionaria até 1934.13 A ideia de confisco e indisponibilidade de bens não era, portanto, uma novidade e a bandeira de moralização da administração pública, livrando-a da nódoa da corrupção, seria agitada na etapa seguinte da república.14 b) Regime Militar de 1964 A história se repetiria em 1964 - e ela seria lembrada nas palavras proferidas por Jarbas Passarinho na momentosa sessão do Conselho de Segurança Nacional que deliberaria a decretação do AI-5. Disse o então ministro do Trabalho e da Previdência Social que via com "certa alegria" que se falasse em confisco de bens daqueles que enriqueceram ilicitamente, invertendo o ônus da prova. "Neste ponto", disse ele, "parece-me que se deveria repetir a revolução de 1930, quando se deu a esses homens o ônus de provar que os bens lhe pertenciam de direito".15 Mobilizados sob a ideia motriz de combater a subversão e a corrupção, os militares agitariam a mesma bandeira de moralização dos costumes políticos. Castelo Branco organizaria, no início do movimento militar, o famoso "Livro Branco", que reuniria provas de corrupção no governo anterior, mas este documento nunca veio a lume, tornando-se "letra morta" - provavelmente porque "seria preciso admitir o envolvimento de militares nos episódios de corrupção que o pretenso livro deveria relatar".16 As sementes lançadas anteriormente acabaram por germinar nesta nova sazão autoritária com a sucessão de diplomas legais que visavam coibir práticas de malversação de recursos públicos. A criação da Comissão Geral de Investigações (CGI), nascia nos primeiros meses do regime militar com o advento do Decreto 53.897, de 27/4/1964. O ato tinha por finalidade regulamentar a investigação sumária prevista no § 1º dos artigos 7º e 10º do Ato Institucional n. 1, de 9/4/1964. Esta primeira iniciativa se deu sob a direção do Comando Supremo da Revolução, então chefiado por Costa e Silva. A CGI era composta por representantes da Marinha e do Exército, tendo como seu presidente o marechal Estevão Taurino de Resende, que teria proferido a célebre frase que ficaria gravada nos anais da história daquele período: "O problema mais grave do Brasil não é a subversão. É a corrupção, muito mais difícil de caracterizar, punir e erradicar"17. O móvel que justificava o impulso governamental e fez surgir o bloqueio ou indisponibilidade de bens era a improbidade administrativa e a corrupção - e logicamente o combate à subversão. Todavia, esta primeira comissão teria vida curta e logo seria extinta pelo Decreto 54.609, de 26/10/1964 (art. 1º). Mais tarde, o AI 5, de 13/12/1968, previu que o Presidente da República poderia, "após investigação, decretar o confisco de bens de todos quantos tenham enriquecido, ilicitamente, no exercício de cargo ou função pública" (art. 8º). Para produzir os elementos de investigação, a CGI seria recriada, agora no âmbito do Ministério da Justiça, pelo Decreto-Lei 359, de 17/9/1968, com a "incumbência de promover investigações sumárias para o confisco de bens de todos quantos tenham enriquecido, ilicitamente, no exercício de cargo ou função pública". O Decreto-Lei 457, de 7/2/1969, reforçaria que competia à CGI "promover investigações sumárias para o confisco de bens" (art. 1º). Novamente, tratava-se de um verdadeiro tribunal de exceção.18 Paralelamente, no Estado de São Paulo, seria criada a Comissão Estadual de Investigações, instituída no âmbito da Secretaria da Segurança Pública, com finalidades análogas à CGI19. O Decreto-Lei 359 seria alterado pelo Decreto-Lei 446, de 3/2/1969, e, mais adiante, pelo Decreto-Lei 760, de 13.8.1969, que trataria do processo sumário de confisco. Assim, os atos de aquisição e alienação de bens e direitos por quem tivesse se locupletado e enriquecido ilicitamente por desvio do patrimônio público (art. 8º do AI 5/1968, Ato Complementar 42, de 27 de janeiro de 1969 e arts. 6º e 11 do Decreto-lei referido) seriam declarados nulos de pleno direito, alcançando, inclusive, os bens que se achassem em posse de terceiros de boa-fé, assegurado o direito de regresso (art. 8º do DL 359/1968). Com a declaração de nulidade, publicado por meio de decreto presidencial no Diário Oficial, os Oficiais de Registro de Imóveis deveriam promover a transcrição em nome da pessoa jurídica de direito público, sob pena de prevaricação. Eis a redação do art. 5º do DL 359/1969: Art. 5º Encerrada a investigação, se a Comissão concluir pela existência de enriquecimento ilícito, proporá ao Presidente da República a expedição de decreto, com a especificação dos bens a serem confiscados e dos atos de alienação ou oneração de bens a serem declarados nulos. § 1º Publicado o decreto no Diário Oficial, os registros competentes, no prazo de sessenta dias, providenciarão, de ofício, a transcrição dos bens em nome da pessoa jurídica de direito público em favor da qual haja sido decretado o confisco, remetendo-lhe as respectivas certidões. § 2º A inobservância do disposto no parágrafo anterior configurará crime de prevaricação. Decorridos mais de uma década, a CGI seria afinal extinta, no final do governo Geisel, pelo Decreto 82.961, de 29/12/1978, em razão da revogação dos Atos Institucionais e Complementares pela Emenda Constitucional 11/1978 (art. 3º), como veremos mais abaixo. Como lembra Falcão, "mexendo com tanta gente graúda", os processos originados na CGI mergulhariam "no sono do túmulo da Secretaria-Geral do Conselho de Segurança Nacional".20 A CGI e os cartórios Os cartórios de Registro de Imóveis, desde muito cedo, enfrentaram o problema da inscrição dos atos que decretavam o confisco e a indisponibilidade de bens. Contudo, somente a partir do advento do Decreto-Lei 502, de 17/3/1969, que os Ofícios Prediais seriam obrigados a manter um cadastro sigiloso21, de caráter preparatório, organizado com vistas a "separar bens que assegurem, no futuro, a plena execução do ato de confisco". Rezava o seu artigo 1º: Art. 1º Tão logo seja decretado o confisco de bens pelo Presidente da República, os órgãos mencionados nos itens abaixo não poderão: I - Os Registros de imóveis, fazer transcrições, inscrições ou averbações de documentos públicos ou particulares relativos aos bens confiscados, ou de quaisquer atos ou contratos em sejam interessados pessoas naturais ou jurídicas, cujos bens tenham sido objeto de confisco; (...) Parágrafo único. A violação do disposto no artigo 1º deste Decreto-lei tornará o infrator passível do crime previsto no artigo 319 do Código Penal [prevaricação], além da perda do cargo. Art. 2º A Comissão Geral de Investigação poderá, pelo seu Presidente, se assim julgar conveniente e durante o curso da investigação sumária, notificar aos órgãos mencionados no artigo 1º deste Decreto-lei da existência do processo de confisco e determinar, desde logo, as providências contidas nesse dispositivo. Pelo Decreto 64.203, de 17/3/1969, seria aprovado o Regulamento da CGI. As disposições relativas aos Registros Imobiliários se acham nos artigos 34 e 35, disposições análogas ao disposto no art. 1º Decreto-Lei 502, de 17/3/1969.22 Os cartórios de Registro de Imóveis ficavam impedidos, sob pena de perda do cargo por crime de prevaricação, de praticar quaisquer atos (transcrições, inscrições, averbações) relativamente aos bens confiscados ou bloqueados no curso da investigação. Em face de tão gravosas consequências, alguns Oficiais sentiam-se inseguros acerca da extensão das determinações emanadas das autoridades e consultavam o juízo da corregedoria permanente.23 Além disso, qual seria a extensão do sigilo que guardava as determinações de indisponibilidade? Afinal, os cartórios deveriam expedir certidões dos atos de registro, quando instados. A certidão, após mencionar a existência, ou não, de ônus de qualquer natureza deveria "acrescentar, sem nenhum prejuízo da quebra do sigilo, proveniente do caráter confidencial do documento, que ditos bens são indisponíveis por força de ato do Governo Federal". Afinal, os Registros Públicos, "precisamente por serem públicos, não possuem segredos. Tudo o que neles se trata é de acesso ao público (arts. 16 e segs. [da LRP]), pois de outra forma seria impossível atingir a finalidade de segurança e eficácia dos atos jurídicos, que está na sua essência (art. 1º). Quem vai negociar um imóvel tem o direito de ser informado das restrições acaso incidentes na disponibilidade. Para esse fim é que a repartição existe".24 A fim de promover diligências, sindicâncias, exames ou investigações, visando a apurar a prática de enriquecimento ilícito, como previsto no artigo 8º do AI 5/1968 e Ato Complementar 42/1969, a CGI criaria Subcomissões Gerais de Investigações, cujas instruções foram aprovadas pela Resolução Colegiada n. 23, de 11 de abril de 197325, que entraria em vigor a partir de 11 de maio do mesmo ano. A partir de então, os cartórios passariam a receber a visita de investigadores que buscavam obter, sempre de forma sigilosa, informações sobre os investigados. Assim previa o art. 31 da Resolução 23/1973: Art. 31 - Sempre que, no curso da Investigação Sumária, forem apurados indícios de aumento patrimonial, sem idoneidade financeira, a Subcomissão deverá incluir nos autos uma análise das mutações patrimoniais do indiciado, confrontadas com a receita por ele obtida em cada ano. Parágrafo único  - O estudo das variações patrimoniais será realizado em face de dados informativos da Secretaria da Receita Federal do Ministério da Fazenda, dos Registros de Imóveis, dos Registros de Comércio e de outras fontes idóneas. Finalmente, após as investigações, discutida a matéria em plenário, o Presidente submeteria as conclusões à apreciação do colegiado, seguindo-se a votação do relatório final. A Subcomissão deveria concluir pela existência ou inexistência de enriquecimento ilícito (art. 39); no caso positivo, deveria apresentar "proposta de confisco", devendo observar o seguinte: c)  - individualizar, para confisco, os bens pertencentes ao indiciado, juntando certidões do Registro de Imóveis, quando for o caso; d)  - discriminar os atos de alienação e de oneração de bens imóveis a serem declarados nulos, na forma da lei, juntando as correspondentes certidões do Registro de Imóveis. As visitas aos Cartório eram feitas por "agentes credenciados" que diligenciavam a obtenção de informações sobre o patrimônio imobiliário de pessoas arroladas em listas e fichas padronizadas, especialmente preparadas pelos órgãos de informação26. [A CGI e a CGJSP - continua parte II] __________ 1 Dados disponíveis aqui. Acesso em 26.8.2024. 2 Sobre a ocorrência da expressão "gravame", v. JACOMINO, Sérgio. CRUZ, Nataly.  Ônus, gravames, encargos, restrições e limitações. São Paulo: Migalhas Notariais e Registrais, 10.11.2021. Disponível aqui. 3 Curso Indisponibilidade de Bens. Fundação Arcadas, da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, Comissão de Direito Notarial e Registral da OAB - São Paulo, com o apoio do Irib - Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, do CNB-CF - Colégio Notarial do Brasil e do NEAR-lab. As entidades uniram esforços para apresentar aos interessados um painel rico e multifacetado acerca dessa figura que ganha cada vez maior proeminência no Direito registral brasileiro. Acesso aqui. 4 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Indisponibilidade de Bens: entre o Direito, a Política e a Economia. São Paulo: Observatório do Registro, 4.10.2021, disponível aqui. 5 RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. Da Indisponibilidade de Bens no Registro de Imóveis. São Paulo: IRIB, 2024, p. 12-3.  6 Decreto 19.398, de 11 de novembro de 1930, que instituiu o Governo Provisório da República e previu os tribunais especiais para julgamento de crimes políticos, funcionais e outros (art. 16). 7 Decreto 19.440, de 28 de novembro de 1930. Este diploma organizaria o Tribunal Especial, posteriormente revogado pelo Decreto 19.719/1931; Decreto 19.575, de 7 de janeiro de 1931, que dispunha sobre as atribuições dos procuradores especiais. 8 Decreto 19.719, de 20 de fevereiro de 1931, art. 11 e parágrafo único do art. 47. O referido decreto  reorganizava o Tribunal Especial. 9 Decreto 19.719, de 20 de fevereiro de 1931, art. 46. 10 Decreto 19.630, de 27 de janeiro de 1931. Estabeleceu a indisponibilidade de bens das pessoas processadas pelo Tribunal Especial. 11 "Nas escrituras que se lavrarem, para a dita alienação, ou oneração, serão transcritos os alvarás expedidos pela autoridade competente, autorizando essas transações" (art. 6º do Decreto 19.630/1931). 12 Decreto 20.424, de 21 de setembro de 1931. Neste decreto reiterava-se a disposição acerca do confisco de bens (letra "d" do art. 6º) pela "aplicação, uso indevido ou irregular dos dinheiros ou haveres públicos (...); e, em geral, todo ato ou prática de improbidade contra a fortuna pública. CAMARGO, Angélica Ricci. Ministério da Justiça e Negócios Interiores: um percurso republicano (1891 - 1934). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2015, pp. 30-31. 13 Decreto 23.803, de 25 de janeiro de 1934, que extinguiu a Comissão de Correição Administrativa. 14 Posteriormente, ainda no período Vargas, houve algumas disposições legais que visavam coibir e sancionar o crime de locupletamento ou enriquecimento ilícito de que resultava prejuízo à Administração Pública. É o caso do Decreto-Lei 3.240/1941, que previa o sequestro dos bens e a hipoteca legal em favor da Fazenda Pública (n. 1 e 2, § 2º, do art. 4º); art. 128 do CPP. No período do Governo de Juscelino Kubitschek: Lei 3.164, de 1º/6/1957; Lei 3.502, de 21/12/1958. V. SERPA LOPES, Miguel Maria de. Tratado, Vol. IV. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961, p. 199. 15 Ata 43ª sessão do Conselho de Segurança Nacional realizada a 13/12/1968 no Palácio das Laranjeiras, Rio de Janeiro, Estado da Guanabara. 16 STARLING, Heloísa Maria Murgel et. ali. Ditadura Militar, in Corrupção - Ensaios e Críticas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p. 252. Vide igualmente: SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo - 1964 - 1985. São Paulo: Paz e Terra, 1994, p. 84, n. 16. FICO, Carlos. Como Eles Agiam - Os Subterrâneos da Ditadura Militar: Espionagem e Polícia Política. Rio de Janeiro: Record, 2001, pp. 45 et seq. e p. 149 passim.   17 FALCÃO, Armando. Tudo a Declarar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p. 310. 18 KNACK, Diego. Ditadura e Corrupção. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2018, pp. 20 e 88. 19 Decreto-Lei n. 6, de 6 de março de 1969. A dita Comissão estadual seria extinta pela Lei 2.034, de 11 de julho de 1979. 20 FALCÃO, Armando. Op. cit. p. 312. 21 "Embora de existência pública e conhecida no período em que foi criada", diz KNACK, "a atuação da CGI era secreta - diferentemente dos procedimentos judiciais convencionais - e colocava os acusados debaixo de toda sorte de constrangimentos: intimações, repetidos depoimentos em quartéis, desconhecimento das peças do processo, entre outros tipos de coação. O "sistema CGI", como era chamado todo o conjunto de CGI e SCGIs, funcionou durante dez anos e terminou extinto no final do governo Geisel, por conta do processo de abertura política". KNACK, Diego, op. cit. p.  20. 22 Decreto 64.203 de 17 de março de 1969, retificado e publicado sucessivamente no Diário Oficial da União de 20/3/1969 (p. 2391, col. 2) e de 25/3/1969. Acesso aqui. 23 V. Processo 1VRPSP 4/1979, j. 16/2/1979, Dr. Gilberto Valente da Silva. Disponível aqui. 24 Ap. Civ. 583/1977, Santos, j. 14/10/1977, rel. Acácio Rebouças. CONFISCO - Processo - Comunicação sigilosa da Comissão Geral de Investigações (CGI) aos Cartórios do Registro de Imóveis, para deixar indisponíveis os bens de quem está sendo investigado - Natureza e extensão do sigilo - Necessidade de os Cartórios mencionarem, nas certidões que lhes forem pedidas sobre esses imóveis, a existência da indisponibilidade temporária, por força de determinação superior. Disponível aqui. 25 Resolução Colegiada n. 23, de 11 de abril de 1973. Disponível aqui. 26 Vide exemplos colecionados e mantidos pelo Registro de imóveis de São Paulo, omitidos os nomes dos investigados. Disponível aqui. 
A LRP - Lei de Registros Públicos, ao tratar da usucapião extrajudicial, disciplina o procedimento quando há impugnação ao pedido. A redação original, dada pela lei 13.105/15, determinava que, havendo impugnação, o registrador de imóveis deveria remeter os autos ao juízo competente, pois a partir de então o procedimento deveria ser obrigatoriamente judicial, cabendo ao requerente emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum.  O legislador, no entanto, entendeu que somente a impugnação "justificada" poderia afastar a via extrajudicial. De fato, a nova redação decorrente da lei 14.382/22 estabelece que o Oficial de Registro de Imóveis deve inadmitir a impugnação injustificada, cabendo ao interessado suscitar dúvida em face da decisão do registrador, nos termos do art. 198 da LRP. Para facilitar a análise, abaixo se reproduz o § 10 do art. 216-A da LRP na redação original e na redação atual: Redação original dada pela lei 13.105/15 Redação dada pela lei 14.382/22 § 10. Em caso de impugnação do pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, apresentada por qualquer um dos titulares de direito reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, por algum dos entes públicos ou por algum terceiro interessado, o oficial de registro de imóveis remeterá os autos ao juízo competente da comarca da situação do imóvel, cabendo ao requerente emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum. § 10. Em caso de impugnação justificada do pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, o oficial de registro de imóveis remeterá os autos ao juízo competente da comarca da situação do imóvel, cabendo ao requerente emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum, porém, em caso de impugnação injustificada, esta não será admitida pelo registrador, cabendo ao interessado o manejo da suscitação de dúvida nos moldes do art. 198 desta Lei.   A pergunta que se faz é: o que seria impugnação injustificada? A resposta não consta da LRP nem do CNN/ CN/CNJ-Extra - Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça - Foro Extrajudicial. Aliás, o CNN está desatualizado em relação à nova redação da LRP, pois ainda estabelece o seguinte: Art. 411. A existência de ônus real ou de gravame na matrícula do imóvel usucapiendo não impedirá o reconhecimento extrajudicial da usucapião. Parágrafo único. A impugnação do titular do direito previsto no caput poderá ser objeto de conciliação ou mediação pelo registrador. Não sendo frutífera, a impugnação impedirá o reconhecimento da usucapião pela via extrajudicial. Art. 412. Estando o requerimento regularmente instruído com todos os documentos exigidos, o oficial de registro de imóveis dará ciência à União, ao Estado, ao Distrito Federal ou ao Município pessoalmente, por intermédio do oficial de registro de títulos e documentos ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestação sobre o pedido no prazo de 15 dias. § 1.º A inércia dos órgãos públicos diante da notificação de que trata este artigo não impedirá o regular andamento do procedimento nem o eventual reconhecimento extrajudicial da usucapião. § 2.º Será admitida a manifestação do Poder Público em qualquer fase do procedimento. § 3.º Apresentada qualquer ressalva, óbice ou oposição dos entes públicos mencionados, o procedimento extrajudicial deverá ser encerrado e enviado ao juízo competente para o rito judicial da usucapião. [...] Art. 415. Em caso de impugnação do pedido de reconhecimento extrajudicial da usucapião apresentada por qualquer dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes, por ente público ou por terceiro interessado, o oficial de registro de imóveis tentará promover a conciliação ou a mediação entre as partes interessadas. § 1.º Sendo infrutífera a conciliação ou a mediação mencionada no caput deste artigo, persistindo a impugnação, o oficial de registro de imóveis lavrará relatório circunstanciado de todo o processamento da usucapião. § 2.º O oficial de registro de imóveis entregará os autos do pedido da usucapião ao requerente, acompanhados do relatório circunstanciado, mediante recibo. § 3.º A parte requerente poderá emendar a petição inicial, adequando-a ao procedimento judicial e apresentá-la ao juízo competente da comarca de localização do imóvel usucapiendo. (sem grifos no original) Apesar de o CNN estar desatualizado, não há dúvida de que a norma constante do § 10 do art. 216-A da LRP entrou em vigor em 28/6/22, data da publicação da lei 14.382, conforme art. 21 da referida lei, razão pela qual é preciso definir o que é impugnação injustificada ao pedido de usucapião extrajudicial. Em Minas Gerais, o Código de Normas estadual ainda não foi alterado para contemplar essa questão, mas, na parte referente à retificação de área, foi feita análise do que é uma impugnação sem fundamento, o que pode ser aplicado, por analogia, à usucapião: Art. 916. Considera-se infundada a impugnação:  já examinada e refutada em casos iguais ou semelhantes pelo juiz de direito com jurisdição em Registros Públicos ou, onde não houver vara especializada, pelo juízo cível ou pela Corregedoria-Geral de Justiça;  em que o interessado se limite a dizer que a retificação causará avanço em sua propriedade sem indicar, de forma plausível, onde e de que forma isso ocorrerá;  que não contenha exposição, ainda que sumária, dos motivos da discordância manifestada;  que ventile matéria absolutamente estranha à retificação;  que o oficial de registro, pautado pelos critérios da prudência e da razoabilidade, assim reputar.  Em São Paulo, as Normas Extrajudiciais de Serviço da Corregedoria do Tribunal de Justiça já contemplavam, anteriormente à alteração na redação do § 10 do art. 216-A da LRP, a hipótese de impugnação injustificada na usucapião. Prestigiando a qualificação do registrador de imóveis e a importância do procedimento extrajudicial, as referidas normas determinam que seja julgada pelo registrador a fundamentação da impugnação, com afastamento daquela claramente impertinente ou protelatória, caso em que prosseguirá no procedimento extrajudicial caso o impugnante não recorra no prazo de 10 dias.  Ainda conforme as normas de São Paulo, tendo o registrador entendido que a impugnação é injustificada, somente em caso de recurso do impugnante serão os autos remetidos ao juiz competente para julgamento de plano ou após instrução sumária, cabendo ao juiz examinar apenas a pertinência da impugnação. Cabe ao juiz decidir se o caráter da impugnação é meramente protelatório ou completamente infundado. Havendo qualquer indício de veracidade que justifique a existência de conflito de interesses, a via extrajudicial se torna prejudicada, devendo o interessado se valer da via contenciosa, sem prejuízo de utilizar-se dos elementos constantes do procedimento extrajudicial para instruir seu pedido, emendando a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum. Abaixo são reproduzidas as normas de São Paulo: 420.2. Consideram-se infundadas a impugnação já examinada e refutada em casos iguais pelo juízo competente; a que o interessado se limita a dizer que a usucapião causará avanço na sua propriedade sem indicar, de forma plausível, onde e de que forma isso ocorrerá; a que não contém exposição, ainda que sumária, dos motivos da discordância manifestada; a que ventila matéria absolutamente estranha à usucapião. 420.3. Se a impugnação for infundada, o Oficial de Registro de Imóveis rejeitá-la-á de plano por meio de ato motivado, do qual constem expressamente as razões pelas quais assim a considerou, e prosseguirá no procedimento extrajudicial caso o impugnante não recorra no prazo de 10 (dez) dias. Em caso de recurso, o impugnante apresentará suas razões ao Oficial de Registro de Imóveis, que intimará o requerente para, querendo, apresentar contrarrazões no prazo de 10 (dez) dias e, em seguida, encaminhará os autos ao juízo competente.  420.4. Se a impugnação for fundamentada, depois de ouvir o requerente o Oficial de Registro de Imóveis encaminhará os autos ao juízo competente.  420.5. Em qualquer das hipóteses acima previstas, os autos da usucapião serão encaminhados ao juízo competente que, de plano ou após instrução sumária, examinará apenas a pertinência da impugnação e, em seguida, determinará o retorno dos autos ao Oficial de Registro de Imóveis, que prosseguirá no procedimento extrajudicial se a impugnação for rejeitada, ou o extinguirá em cumprimento da decisão do juízo que acolheu a impugnação e remeteu os interessados às vias ordinárias, cancelando-se a prenotação. A 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo, em maio de 2023, em dúvida suscitada pelo Oficial do 11º Registro de Imóveis da Capital, ratificou a decisão do Oficial, rejeitando as impugnações e o recurso apresentados, autorizando que o procedimento extrajudicial pudesse ter regular prosseguimento. Abaixo se reproduz, em parte, a referida decisão: No caso em tela, ambas as impugnações são no sentido de que S. M. é a proprietária, a qual exerce posse mansa e pacífica sobre o bem desde que o recebeu por sucessão. Entretanto, não vieram acompanhadas de qualquer evidência neste sentido. Note-se que não se comprovou nem ao menos a alegação de que o imóvel está alugado, o que seria bastante simples mediante apresentação de contrato e recibos de aluguel, ou de que são os proprietários os responsáveis pelo pagamento dos tributos incidentes sobre ele, o que poderia se dar pela apresentação dos comprovantes de quitação. Já a parte suscitada demonstrou, por meio de ata notarial, ter assumido a posse do terreno após a aquisição de imóveis vizinhos no ano de 2008 (fls. 73/84). Na ata em questão, há referência sobre apresentação de contas de água, luz e telefone em nome da parte interessada no período de setembro de 2008 a agosto de 2021, além do lançamento de IPTU para o ano de 2022, e sobre a constatação pelo tabelião de uso do terreno pela empresa requerente para a prática de suas atividades, inclusive com fotos. Há que se confirmar, portanto, como infundadas as impugnações na medida em que genéricas e desprovidas de qualquer suporte probatório. Note-se, ainda, que a parte recorrente ventila matéria estranha à usucapião, sustentando irregularidade no procedimento extrajudicial e necessidade de perícia. De fato, o imóvel está bem identificado, não havendo qualquer dúvida quanto à sua delimitação (fls. 73/84 e 85/88). A contratação noticiada pela parte suscitada, outrossim, não se deu com os proprietários: o requerimento é claro no sentido de que, após a aquisição de imóveis vizinhos, a empresa requerente assumiu a posse da área em questão e passou a utilizá-la com animus domini (fls. 59/72), o que se confirma pelas fotos citadas (fls. 79/84). Não bastasse isso, constata-se que não há qualquer irregularidade ou invalidade a ser reconhecida no procedimento extrajudicial, que ainda não se encerrou: alguns dos proprietários puderam ser notificados, mas outros ainda não (fls. 02/03 e 103/126); a tentativa de conciliação foi corretamente realizada entre a coproprietária que impugnou tempestivamente o pedido e a parte suscitada, sem qualquer prejuízo para qualquer dos interessados. Diante do exposto, ratifico a decisão do Oficial, rejeitando as impugnações e o recurso apresentados, de modo que o procedimento extrajudicial possa ter regular prosseguimento. A diferença entre as normas de São Paulo e o que veio estabelecer a nova redação do art. 216-A da LRP é que, conforme a lei, no caso de o registrador decidir que a impugnação é infundada, o interessado deverá suscitar dúvida, ou seja, o caminho conforme a lei não é mais a apresentação de recurso. O restante da norma de São Paulo é aplicável à nova realidade, de modo que, no julgamento da dúvida, cabe ao juiz decidir apenas se o caráter da impugnação é meramente protelatório ou completamente infundado. Se o juiz entender que a impugnação é justificada, a via extrajudicial não mais será viável, devendo o interessado se valer da via contenciosa. Em conclusão, mais uma vez foi determinada a desjudicialização, sendo atribuído ao registrador de imóveis que decida sobre a impugnação, desconsiderando aquela que reputar injustificada. É o que estabelece a nova redação dada pela lei 14.382/22 ao § 10 do art. 216-A da LRP. O interessado que não se conformar deverá suscitar dúvida em face da decisão do registrador, nos termos do art. 198 da LRP. O CNN/ CN/CNJ-Extra - Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça - Foro Extrajudicial e os Códigos de Normas dos Estados deverão ser atualizados para contemplar essa inovação, que prestigia a qualificação do registrador de imóveis e a importância do procedimento extrajudicial. ___________ 1 CORREGEDORIA Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça. Provimento Nº 149 de 30/08/2023. Disponível aqui. Acesso em: 29 set. 2024. 2 TRIBUNAL de Justiça de Minas Gerais e CORREGEDORIA GERAL de Justiça de Minas Gerais. Provimento Conjunto nº 93 da Corregedoria-Geral de Justiça de Minas Gerais. Disponível aqui. Acesso em: 29 set. 2024. 3 CORREGEDORIA GERAL da Justiça de São Paulo. PROVIMENTO Nº 58/89. Disponível aqui. Acesso em: 29 set. 2024. 4 MAHUAD, Luciana Carone Nucci Eugênio. Processo nº: 1032941-74.2023.8.26.0100. Disponível aqui. Acesso em 29 set. 2024.
1. Resumo A cláusula de compensação pecuniária por tempo de casamento ou de união estável configura uma prefixação de alimentos compensatórios, que possuem natureza jurídica indenizatória. É cabível cobrança de alimentos compensatórios suplementares no caso de insuficiência, no caso concreto, da prestação prefixada. A cláusula é devida mesmo fora do regime da separação de bens, vedado, porém, que o ex-consorte credor fique, ao final, com patrimônio superior ao que receberia no regime da comunhão universal. Eventuais alimentos compensatórios adicionais a esse teto é excepcional e devem ser pleiteados judicialmente mediante prova de justa causa. Não é devida a compensação pecuniária por tempo de relacionamento na hipótese de o ex-consorte devedor ter caído em situação de penúria ou na de o valor pecuniário impor-lhe grave peso patrimonial em virtude de sua decadência financeira ao longo da convivência more uxorio. É nula cláusula em sentido contrário. 2. Introdução É ou não legítimo estabelecer que o casal adote o regime da separação de bens com uma "compensação pecuniária" a cada determinado tempo de casamento ou de união estável? Trata-se de cláusula que tem se tornado comum, especialmente em hipóteses em que um dos cônjuges possui vasto patrimônio e não pretende que haja comunicação dele com o outro consorte. Quanto à data de pagamento, pode-se estabelecer o momento do fim da relação (ex.: separação de fato, divórcio, morte etc.) ou o fim do ciclo temporal estabelecido (ex.: a cada ano). Exemplo: A cada ano de casamento, a esposa terá direito a R$ 10.000,00, a ser pago pelo marido ou por seu espólio quando do fim casamento. 3. Cláusula atípica em pacto antenupcial ou em contrato de convivência Entendemos que a cláusula de compensação pecuniária por tempo de relacionamento é válida. Cuida-se de um exemplo de cláusula atípica, porque não decorre do Direito de Família. Essa cláusula que estabelece um valor prefixado de "alimentos compensatórios" versa sobre uma prestação de natureza jurídica indenizatória. Não se trata de cláusula típica do Direito de Família, porque, nesse âmbito, apenas se admite a escolha de regras de comunicação de bens por meio de regime de bens. Nas precisas palavras de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, "por regime de bens, entenda-se o conjunto de normas que disciplina a relação jurídico-patrimonial entre os cônjuges, ou, simplesmente, o estatuto patrimonial do casamento"1. A comunicação de bens envolve a formação de um condomínio de "mãos juntas", unindo o casal na prosperidade ou na desventura. Assim, se o casal vier a perder o bem por qualquer motivo (ex.: uma excussão judicial), nada haverá a partilhar ao final da relação. Tudo isso decorre da ideia central do Direito de Família em reconhecer que há um "esforço comum" do casal no crescimento ou na decadência patrimoniais. Com exceção do regime da separação legal de bens em razão de uma construção jurisprudencial com base em princípios jurídicos2, esse "esforço comum" é uma presunção absoluta nos regimes de bens que prevejam a comunicação: não se admite prova em contrário. De fato, no Direito de Família, há uma solidariedade natural entre os cônjuges, solidariedade essa que envolve verdadeiros serviços prestados sem caráter monetário. Seria até estranho se o Direito de Família se baseasse na monetarização dessa solidariedade. Imagine, por exemplo, um casal em que a esposa concentre os trabalhos do lar e da família, ao passo que o marido ficasse livre para investir nas próprias atividades profissionais.   Seria exótico pensar em a esposa monetarizar cada serviço de cuidado prestado, seguindo uma tabela de preços como esta: R$ 200,00 por qualquer prato de comida elaborado (valor esse que seria acrescido de R$ 100,00 a título de taxa de urgência caso se trate de uma canja de galinha feita ao marido em situação de doença); R$ 3 mil mensais pelos serviços de lavagem de roupa; R$ 1,5 mil mensais pelos serviços de transporte escolar dos filhos; R$ 1,5 mil pelos serviços de gestão administrativa das questões dos filhos; R$ 1 mil diários pelo serviço de "coaching" prestados mediante palavras de ânimo; Direito de Família não é compatível com essa monetarização de serviços. Ele é baseado na solidariedade familiar. Se alguém pretende contratar prestadores de serviço, cabe-lhe valer-se das figuras do Direito Contratual ou do Direito do Trabalho. A verdade é que, se fôssemos monetarizar cada conduta de solidariedade familiar, chegaríamos a cifras surreais de dinheiro, ainda mais se levarmos em conta encargos trabalhistas e a natureza bem personalizada do trabalho. A verdade é que não há como monetarizar a solidariedade familiar, porque, como diz o ditado popular, o amor não tem preço. 3. Natureza de "alimentos compensatórios" prefixados Em suma, a cláusula que, no regime da separação de bens, fixa um valor pecuniário a cada período de tempo de casamento é uma prefixação de "alimentos compensatórios". Os alimentos compensatórios são prestação de natureza indenizatória devida ao ex-consorte no final do casamento quando ele vier a ficar em uma situação patrimonial brutalmente inferior ao do outro. Como lembra Flávio Tartuce, os alimentos compensatórios é uma "construção desenvolvida no Brasil por Rolf Madaleno, a partir de estudos do Direito Espanhol e Argentino"3. Em outro artigo, defendemos que esses alimentos compensatórios também são cabíveis quando o ex-cônjuge tiver sofrido um "apagão profissional" por longo tempo para se dedicar aos trabalhos de cuidado, ainda que sua situação patrimonial não fique brutalmente inferior ao do outro ex-consorte4. Mas esse caso excepcional deve ser visto com muito cautela pelo juiz no caso concreto. Pense, por exemplo, em um casamento que durou 30 anos, com a mulher se dedicando exclusivamente aos trabalhos de cuidado. Com o divórcio, a mulher fica com um patrimônio de duzentos mil reais. O marido, que, com o apoio familiar, conseguiu passar em um alto concurso público, seguirá com prosperidade remuneratória. Em situação como essa, caso o juiz não fixe pensão alimentícia vitalícia ao ex-cônjuge, o caso é de pensar em uma prestação compensatória adicional para essa mulher que sofreu um brutal apagão profissional. Não importa aí se o casal havia adotado ou não o regime da comunhão universal de bens, pois os alimentos compensatórios servirão como justa compensação pelo "apagão profissional" de um ex-consorte às custas do qual o outro conseguiu alcançar estabilidade profissional. Quando se estipula um valor pecuniário a ser pago a cada período de tempo de casamento ou de união estável, estamos diante de uma prefixação de alimentos compensatórios, o que é plenamente lícito. 4. Questões adicionais Três questões, porém, merecem reflexão. 4.1. Teto para a compensação compensatória, compensação "suplementar", condicionalidade da cláusula Em primeiro lugar, é ou não cabível a "compensação por tempo de relacionamento" fora do regime da separação de bens? Entendemos que sim, mas com uma restrição: o ex-consorte, ao final, não poderá ficar com valor superior ao que obteria se tivesse casado no regime da comunhão universal de bens. Não poderia, por cláusula matrimonial ou convivencial, fixar nenhum tipo de compensação que exceda ao máximo que o Direito de Família admita em matéria de regime de bens. O único modo de exceder esse teto seria mediante alimentos compensatórios fixados pelo juiz de modo muito excepcional naquela hipótese que já tratamos acima. 4.2. Teto para a compensação compensatória, compensação "suplementar", condicionalidade da cláusula Em segundo lugar, o juiz pode ou não fixar alimentos compensatórios suplementares ao que foi prefixado a título de "compensação pecuniária por tempo de relacionamento"? Entendemos que sim, porque essa cláusula apenas estabelece um valor presumido de compensação, o qual serve como valor mínimo de alimentos compensatórios. Se, no caso concreto, verificar-se a insuficiência desse valor diante da dinâmica adotada ao longo do casamento, o juiz pode fixar alimentos compensatórios suplementares. Pense em um casamento que durou 30 anos, com a mulher dedicando-se integralmente aos trabalhos de cuidado e com o marido crescendo profissionalmente ao sopro desse suporte familiar. Suponha que tenha sido estipulado alimentos compensatórios de R$ 10.000,00 por ano, e o regime adotado tenha sido o da separação de bens. Com o divórcio, imagine que o marido tenha ficado com um patrimônio particular de milhões de reais. Não parece adequado que essa mulher apenas fique com R$ 300.000,00 de alimentos compensatórios, especialmente se lhe for negada pensão alimentícia vitalícia. Temos por devido o arbitramento de alimentos compensatórios suplementares aí. Trata-se de regra de ordem pública, fruto da vedação ao abuso de direito e ao enriquecimento sem causa bem como do princípio da solidariedade familiar. 4.3. Condicionalidade da cláusula Em terceiro lugar, indaga-se: a compensação pecuniária por tempo de relacionamento é ou não devida na hipótese de o ex-consorte devedor ter caído em situação de penúria ou na de o valor pecuniário vir a impor-lhe grave peso patrimonial em virtude de sua decadência financeira ao longo da convivência more uxorio? Entendemos que não. É que, ao casar e adotar o regime da separação de bens com uma cláusula de "compensação pecuniária por tempo de relacionamento", o consorte milionário pode não ter antevisto que o Infortúnio haveria de cruzar seu futuro, reduzindo-o à escassez.  Nesse quadro, perguntamos: seria adequado permitir que, com o fim do casamento ou da união estável, o ex-consorte devedor seja mais ainda afundado patrimonialmente com o pagamento da "compensação pecuniária por tempo de relacionamento"? Entendemos que não. Os alimentos compensatórios, sejam os prefixados por cláusula, sejam os arbitrados judicialmente, pressupõem que o ex-consorte devedor ficou em situação patrimonial mais vantajosa. Se o ex-consorte devedor naufragou patrimonialmente, trata-se de azar a ser compartilhado pelo outro. Afinal de contas, o instituto dos alimentos compensatórios foi desenvolvido como um fator de correção a injustiças causadas pela escolha de um regime de bens que não veio a refletir a realidade assumida na dinâmica do casamento. Os alimentos compensatórios não são uma remuneração por trabalhos prestados. São um fator de correção para compensar o ex-consorte prejudicado com um regime de bens incompatível com a dinâmica assumida pelo núcleo familiar. 5. Advertência final Cabe uma advertência final. No geral, tudo quanto foi exposto acima gira em torno de relacionamentos de perfil mais tradicional, em que um dos consortes (geralmente a mulher) assume os trabalhos de cuidado e sofre apagão profissional em prol do outro consorte. Nesses casos, o instituto dos alimentos compensatórios serve como fator de correção para eventual injustiça no caso concreto. Para os perfis tidos por mais modernos, em que ambos os consortes mantêm autonomia profissional e compartilham ou terceirizam os trabalhos de cuidado, entendemos não ser cabível qualquer tipo de intervenção adicional para a fixação de alimentos compensatórios. Não importa se um dos consortes prosperou financeiramente e outro, não. A desventura profissional do ex-consorte não é atribuível à sua dedicação ao núcleo familiar, e sim à sua própria sorte. Seja como for, mesmo nesses casos, nada impede que os consortes estipulem "compensação pecuniária por tempo de relacionamento" em nome da autonomia privada. Mas, além de não ser cabível quaisquer alimentos compensatórios suplementares, há de respeitar o teto daquilo que o ex-consorte receberia se tivesse adotado o regime da comunhão universal. ________ 1 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: direito de família, volume 6. São Paulo: Saraivajur, 2024. 2 "1. Nos termos da jurisprudência do STJ, comunicam-se os bens adquiridos na constância do casamento celebrado sob o regime de separação de bens, desde que comprovado o esforço comum para a aquisição. Precedentes." (STJ, AgInt nos EDcl no REsp n. 1.764.933/ES, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, 4ª turma, julgado em 24/6/24, DJe de 26/6/24). 3 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 23, p. 601. 4 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Economia do Cuidado e Direito de Família: alimentos, guarda, regime de bens, curatela e cuidados voluntários. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Maio 2024 Disponível aqui.
Passando à margem da discussão sobre a legalidade da cláusula de renúncia à condição de herdeiro, entre e cônjuges e companheiros, tenho por objetivo neste texto fazer comentários muito breves sobre a registrabilidade dos pactos que contemplam tal cláusula. Tive oportunidade de escrever mais amplamente sobre o tema, em trabalho publicado em Portugal1, e que também integra a 3ª edição do livro Noções Fundamentais de Direito Registral e Notarial2. Em recente decisão, de 1º/10/243, o CSM do Estado de São Paulo, decidiu, por maioria, pela registrabilidade do pacto no registro imobiliário, no livro 3, tendo a ementa os seguintes termos: "Registro de Imóveis - Escritura pública de pacto antenupcial que fixa o regime da separação convencional de bens - Cláusula que prevê a renúncia recíproca ao direito sucessório em concorrência com herdeiros de primeira classe, conforme previsão do art. 1.829, I, do CC - Desqualificação pelo Oficial e dúvida julgada procedente, sob o argumento de infringência ao art. 426 do CC, que veda contrato cujo objeto seja herança de pessoa viva. Controvérsia doutrinária acerca da validade da renúncia antecipada ao direito sucessório concorrencial Validade da renúncia defendida por parte da doutrina, que não vislumbra transgressão a nenhum dispositivo legal (arts. 426, 1.784 e 1.804, parágrafo único, todos do CC). Distinção entrepacta corvina e renúncia antecipada à herança, que não tem como objeto disposição sobre o patrimônio de pessoa viva Discussão sobre a legalidade da renúncia antecipada de herdeiro necessário à legítima, antes da abertura da sucessão, que somente seria possível de lege ferenda. Cônjuges devidamente advertidos, por ocasião da lavratura da escritura, a respeito da controvérsia do tema e possibilidade de invalidação futura da cláusula Registro no livro 03 do RI obstado em razão de uma única cláusula, impedindo que o pacto como umtodo surta efeitos perante terceiros Validade da renúncia antecipada será avaliada na esfera jurisdicional se a sociedade e o vínculo conjugal terminarem pela morte de um dos cônjuges e se houver concorrência na sucessão Registro do pacto essencial para que o regime da separaçãoconvencional de bens, em sua totalidade, tenha eficácia em face de terceiros. Registro do pacto não significa adesão à legalidade da cláusula de renúncia antecipada, aberta a via jurisdicional para discussão dos interessados, após a abertura da sucessão. Distinção entre a amplitude da qualificação do registrador para o registro constitutivo de direitos reais e para o registro de pacto antenupcial, para fins de eficácia perante terceiros. Apelação provida para determinar o registro do pacto antenupcial" (grifamos).  O acórdão aborda aspectos importantes e faz relevantes afirmações. Vale destacar o ponto em que analisa a amplitude da qualificação do registrador no caso. Para além disso, o risco para a segurança jurídica no rechaço de um registro por eventual nulidade de uma cláusula em um pacto antenupcial que, ao fim e ao cabo, sequer é esssencial. O relator, em seu voto, após discorrer sobre as controvérsias em torno da validade da cláusula de renúncia à condição de herdeiro, afirma quanto à negativa do registro: "a decisão administrativa em caráter normativo se anteciparia à discussão que eventualmente será travada na esfera jurisdicional no momento da abertura da sucessão"; "não é demasia ingressar na amplitude do poder qualificador do oficial de registro de imóveis, ao analisar pactos antenupciais que terão acesso ao livro 03. Em atribuição que se distancia de suas funções usuais tanto é que a inscrição é efetuada em livro auxiliar destinado a atos que não dizem respeito a imóvel matriculado (art. 177 da lei 6.015/73), negaria o registro do pacto antenupcial, impedindo que toda a avença e não só a cláusula questionada produza efeitos erga omnes"; "o pacto antenupcial, lavrado com todas as cautelas e informações possíveis, deve ser registrado na serventia imobiliária. (.) o registro não significa a chancela judicial à validade da cláusula, mas tão somente que não se deve negar eficácia perante terceiros ao pacto antenupcial, até que em momento e na esfera própria a questão da nulidade eventualmente seja arguida e decidida na esfera jurisdicional". Entendo bastante acertada a decisão, a lamentar apenas que não tenha sido proferida por unanimidade, e especialmente, que tenha decorrido da negativa de um registrador à prática do ato, ensejando a suscitação da dúvida. Como tive oportunidade de apontar, no texto publicado, não pode ser óbice à habilitação para o casamento, ou ao registro no livro 3 do Registro de Imóveis, a cláusula em questão, pactuada livremente pelos nubentes, dentro do sua liberdade de contratar - a validade da cláusula, como bem esclarecido pelo acórdão, não deve ser verificada pelo registrador imobiliário (como também não deve ser pelo registrador civil). Para produção de efeitos futuros, sua validade deve ser analisada à luz do direito vigente no momento do óbito de um dos cônjuges, e em eventual arguição por um interessado. Inicialmente, a apresentação de óbices ao registro invade seara que, no caso, é exclusiva do notário - a inserção da cláusula, e sua eventual nulidade (apenas da cláusula, e não do pacto), não tem qualquer reflexo no registro civil do casamento ou no registro do pacto, para fins publicitários, no registro imobiliário. O notário, instado a lavar uma escritura de pacto antenupcial, ou pacto patrimonial, na qual as partes solicitem que se insira cláusula de renúncia à condição de herdeiro, deve lavrar o ato notarial, com inserção nas escrituras que os nubentes foram orientados sobre todas as consequências da adoção do regime, inclusive quanto aos aspectos sucessórios. Diante da discussão doutrinária e jurisprudencial quanto à nulidade, o notário poderá praticar o ato, enquanto intérprete e aplicador do direito, respondendo pela solução jurídica aplicada, a ser adotada após orientação das partes sobre todas as circunstâncias envolvidas e clara opção destas, a ser expressada no ato notarial.        Dentro desse contexto, em que a atividade notarial do tabelião, profissional do direito, se exerce com independência jurídica e imparcialidade, no acolhimento da vontade das partes, devem ter em conta os notários, primeiramente, a autonomia de vontade das partes. A autonomia de vontade das partes deve ir ao encontro da liberdade de interpretação do tabelião, que deve praticar os atos que entender estarem dentro de um contexto de legalidade. Em termos práticos, partilhando do entendimento de que não há nulidade na cláusula, deve o tabelião inserir nas escrituras de pacto antenupcial e patrimonial, a cláusula de renúncia recíproca à condição de herdeiro. Feita tal qualificação pelo tabelião, e não sendo a cláusula essencial aos pactos antenupciais, não devem os registradores civis e imobiliários avançarem com qualificação sobre a validade da mesma. Em boa hora veio a decisão, mas como já afirmado, decorrente de uma qualificação que, com a devida vênia, acaba por desmerecer a qualidade de profissionais do Direito reconhecida legalmente aos delegatários. O reconhecimento não deve vir apenas de fora, mas, principalmente, de dentro da profissão. O registrador, em hipóteses como a ventilada, ao qualificar positivamente os títulos, estará prestigiando a independência jurídica dos notários. Especificamente, e sucintamente, sobre a atuação dos registradores, entendo que: Quanto ao RCPN, examinará o registrador civil, quando for o caso, o pacto antenupcial no curso do processo de habilitação para o casamento. Caso não exista qualquer vício no pacto, no que concerne aos requisitos referentes ao casamento, cabe ao registrador civil prosseguir no processo de habilitação, com posterior celebração do casamento e lavratura do registro em livro próprio (livro B - art. 33, II, da lei 6.015/73), com as indicações sobre o pacto nos termos do inciso VII do art. 1.536 do CC. Isso porque não releva para o registro civil o exame de cláusulas que digam respeito aos direitos sucessórios entre cônjuges. Os efeitos patrimoniais do casamento, durante a sociedade conjugal, estarão definidos e preservados. É certo que a cláusula de renúncia à condição de herdeiro poderá vir a ser discutida, diante das controvérsias existentes. Ainda que venha a ser considerada inválida, o pacto antenupcial não será alcançado integralmente pela declaração de invalidade da cláusula, como se vê do teor do art. 1.655 do CC, inserido no capítulo que trata do pacto antenupcial: "É nula a convenção ou cláusula dela que contravenha disposição absoluta de lei". O entendimento pela nulidade, no caso, se restringiria à cláusula em discussão, mantendo-se hígido o pacto quanto ao regime de bens adotado. Portanto, não deve o registrador civil recusar a prática dos atos referentes ao casamento. Passando ao registro imobiliário, encontramos previsões de registro e averbação do pacto antenupcial nos arts. 167, I, 12; 167, II, 1; 178, V; e 244 da lei 6.015/73. Determina a legislação o registro do pacto no livro 3, Registro Auxiliar, e sua averbação nas matrículas dos imóveis que pertençam aos cônjuges (tanto dos imóveis que constituem bens particulares, quanto dos comuns). O CC condiciona o registro do pacto antenupcial no Registro Imobiliário, no livro 3, para a produção de efeitos com relação a terceiros4. A lei 6.015/73, no art. 244, cuida dos atos a praticar no registro imobiliário5.      O pacto antenupcial é ineficaz se não lhe seguir o casamento (art. 1.653 do CC). Assim, só terá acesso ao registro imobiliário se tiver acontecido o casamento. O oficial do registro civil, no exercício do seu mister, já examinou o pacto, no processo de habilitação para o casamento, e lavrou o assento do matrimônio. O registrador imobiliário, ao ser provocado para a prática de atos em que o título, em sentido formal, seja o pacto antenupcial, deve exigir comprovação do casamento, a demonstrar a eficácia daquele. No exame do título, não deve o registrador imobiliário, pelas mesmas razões que o registrador civil, qualificá-lo negativamente. Os atos praticados no registro imobiliário, relativos aos pactos antenupciais, têm como finalidade dar publicidade aos mesmos, garantindo produção de efeitos em relação a terceiros, e alcançando assim a segurança jurídica dinâmica. Já realizado o casamento, e não sendo nulo o pacto, eventual discussão sobre cláusula que verse sobre também eventuais direitos sucessórios (pois pode haver patrimônio ou não por ocasião do passamento de cada um dos cônjuges), não há de obstar seu acesso ao registro imobiliário. O tema está bastante vivo, e precisamos, como  notários e registradores, atender aos anseios da sociedade, solucionando as questões no âmbito dos serviços notariais e registrais, sem o chamamento do Poder Judiciário - reservado para, apenas, quando absolutamente indispensável. Assim valorizaremos nossa condição de profissionais do Direito. ________ 1 SOUZA, Eduardo Pacheco Ribeiro de. Renúncia à condição de herdeiro entre cônjuges e companheiros: A atuação notarial na lavratura dos pactos antenupciais do contexto legislativo atual e seus reflexos no registro imobiliário. Estudos em homenagem a Sérgio Jacomino. Organizadores: Alfonso Candau, Ivan Jacopetti do Lago, Madalena Teixeira, Margarida Costa Andrade, Mónica Jardim e Rafael Vale e Reis. - Coimbra, PT: Gestlegal, 2022. 2 SOUZA, Eduardo Pacheco Ribeiro de. Noções Fundamentais de Direito Registral e Notarial. São Paulo: Saraiva, 3ª edição, 2022. 3 Apelação Cível 1000348-35.2024.8.26.0236, da Comarca de Ibitinga, relator Desembargador Francisco Loureiro. 4 Art. 1.657: "as convenções antenupciais não terão efeito perante terceiros senão depois de registradas, em livro especial, pelo oficial do Registro de Imóveis do domicílio dos cônjuges". 5 Art. 244 - "as escrituras antenupciais serão registradas no livro 3 do cartório do domicílio conjugal, sem prejuízo de sua averbação obrigatória no lugar da situação dos imóveis de propriedade do casal, ou dos que forem sendo adquiridos e sujeitos a regime de bens diverso do comum, com a declaração das respectivas cláusulas, para ciência de terceiros".
O direito à identidade Aprendemos logo no início da faculdade que onde há sociedade, há Direito, e vice-versa. Trata-se de uma relação inescapável. Sendo assim, e considerando que a sociedade está em constante mudança (evolução?), o Direito também muda constantemente. Uma das principais mudanças pelas quais passou o Direito Civil nos últimos tempos, agora já não mais representando novidade a ninguém, é a chamada despatrimonialização. Sobretudo por conta da supremacia da dignidade da pessoa humana, prevista como princípio supremo em diversas constituições do Ocidente, no pós-guerra, inclusive a brasileira, o Direito Civil deixou de dar ênfase às situações patrimoniais. Uma dessas marcas é a previsão de um tópico exclusivo para tratar dos direitos da personalidade no CC/02. Esses direitos deixaram de ser tutelados apenas indiretamente, por meio da imposição de sanções civis ou penais a ofensas ou ameaças a eles, como ocorria sob a égide do CC/16, e passaram a ser previstos e, consequentemente, tutelados de forma direta, preferencialmente de modo preventivo. Consoante lição de Menezes Cordeiro, condicionamentos histórico-culturais determinam a possibilidade de serem isolados atributos da personalidade. 1 Por vezes, como sabemos, esses condicionamentos levam à positivação de certos direitos, como ocorreu com os direitos ao nome e à vida privada no CC/02. Outras vezes, eles não permitem que se chegue a esse ponto, de tal modo que o reconhecimento de um direito da personalidade depende da aceitação da ideia de que certo atributo possa ser tutelado, independentemente dessa positivação. No Brasil, aparentemente, prevalece a noção de que existe norma que permite a tutela a personalidade como um todo. Maria Celina Bodin de Moraes, por exemplo, diz que o art. 1º, inc. III, da CF/88, a que nos referimos acima, é justamente a cláusula geral dos direitos da personalidade. 2 Fernanda Cantali, por sua vez, afirma que o art. 12 do CC é a norma que prevê o direito geral da personalidade. 3 Sob esse prisma, o direito à identidade pode ser extraído do nosso sistema jurídico como um direito da personalidade. Não apenas o direito à identidade com viés publicista, para fins de controle e organização do Estado, como é o caso do nome, mas outros aspectos dessa identidade, como é o caso da identidade religiosa, enquanto visão de mundo (Weltanschauung) que ela também representa. A propósito, vale mencionarmos uma lição de Charles Taylor, professor emérito de Filosofia e Ciência Política na Universidade de McGill, acerca da identidade de que estamos tratando: "Minha identidade é definida pelos compromissos e identificações que proporcionam a estrutura ou o horizonte em cujo âmbito posso tentar determinar aquilo que endosso ou a que me oponho. Em outros termos, trata-se do horizonte dentro do qual sou capaz de tomar uma decisão". 4 Um caso emblemático de identidade religiosa  Em virtude das limitações deste espaço, vamos nos limitar a dizer que a identidade religiosa é uma das espécies de direito à identidade porque representa justamente uma visão de mundo, consoante mencionamos acima, ou seja, uma lente através da qual a pessoa pensa e toma as suas decisões. Dito isso, examinemos, à guisa de exemplo, o caso envolvendo a "Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura", doravante denominada apenas "associação", e as "Católicas pelo Direito de Decidir", doravante chamada apenas "coletivo". A associação ajuizou ação objetivando impedir os integrantes do coletivo de usarem justamente o termo "católicas", uma vez que defenderiam a descriminalização e legalização do aborto. Em suma, como elas não seriam católicas, não poderiam autointitularem-se desse modo. Em primeira instância, o processo foi extinto por ilegitimidade ativa, visto que a referida associação não teria legitimidade para postular isso em juízo; somente a autoridade eclesiástica o teria. Julgando a apelação interposta pela referida associação, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo deu provimento ao recurso 5 para, no mérito, proibir o supracitado coletivo de utilizar o termo "católicas", pois estariam fazendo uso dele de forma abusiva, nos termos do art. 187 do CC. Reproduzimos abaixo breve trecho da ementa apenas para facilitar a compreensão do leitor: "EMENTA: AÇÃO DECLARATÓRIA - ASSOCIAÇÃO - Abstenção do uso da expressão "Católicas" no nome - Atuação e finalidade da associação requerida que revelam PÚBLICA E NOTÓRIA incompatibilidade com os valores adotados pela associação autora e pela Igreja Católica de modo geral - Violação à moral e bons costumes, havendo evidente contrariedade ao bem e interesses públicos, valores expressamente tutelados pela LEI DOS REGISTROS PÚBLICOS (Inteligência do artigo 115 da lei 6.015/73, que inclusive veda o registro de ato constitutivo de pessoa jurídica em tais circunstâncias) - Preservação de tal nome em associação que para além de ferir notoriamente o Direito Canônico, se traduz em inegável desserviço à sociedade, não interessando a quem quer que seja a existência de grupo com nome que não corresponda a sua autêntica finalidade - Incidência do art. 5º da LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO DIREITO BRASILEIRO, segundo o qual na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum - Violação, ademais, ao artigo 7º do DECRETO Nº 7.107/2010, segundo o qual A REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL ASSEGURA, NOS TERMOS DO SEU ORDENAMENTO JURÍDICO, AS MEDIDAS NECESSÁRIAS PARA GARANTIR A PROTEÇÃO DOS LUGARES DE CULTO DA IGREJA CATÓLICA E DE SUAS LITURGIAS, SÍMBOLOS, IMAGENS E OBJETOS CULTUAIS, CONTRA TODA FORMA DE VIOLAÇÃO, DESRESPEITO E USO ILEGÍTIMO - Liberdade de expressão que não estará minimamente prejudicada, podendo a associação requerida defender seus valores (inclusive o aborto) como bem entender, desde que utilize nome coerente, sem se apresentar à sociedade com nome de instituição outra que adota pública e notoriamente valores flagrantemente opostos - Titular de direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes que também pratica ato ilícito (ARTIGO 187 DO CÓDIGO CIVIL)." A decisão chamou a atenção de vários operadores do Direito, tanto que foi objeto de artigo escrito neste mesmo site em 4/11/20. Em artigo intitulado "No Estado laico, juiz não pode atuar como intérprete da fé", Maíra Fernandes teceu críticas à decisão tomada. Mas o caso não terminou por aí. Foi interposto novo recurso e em 30/8/22 o STJ reverteu o julgamento acima para reafirmar o entendimento do juízo de primeiro grau, isto é, que a associação não tem mesmo legitimidade para ajuizar a ação postulando o não uso do termo "católicas". Destacamos, novamente, um trecho da ementa do julgado para a melhor compreensão do leitor: "5. Na hipótese dos autos, carece a parte autora de legitimidade ativa na medida em que inexiste qualquer relação jurídica de direito material entre as partes que justifique o ajuizamento da presente ação, sendo certo que, ao menos a partir do exame abstrato das alegações deduzidas na inicial, quem teria, em tese, ligação direta com o direito material deduzido em juízo não seria a associação de fiéis, mas a própria organização religiosa, que é pessoa jurídica de direito privado autônoma e titular da própria esfera jurídica, nos termos do inciso IV, do art. 44, do Código Civil." 6 Na sequência, outro artigo sobre o tema foi publicado neste site, a demonstrar que se trata de matéria relevante no âmbito jurídico Uma breve reflexão a partir do julgado Esse caso nos permite pensar um pouco sobre o direito à identidade enquanto direito da personalidade. Segundo Appiah, as identidades coletivas constroem os rótulos dos quais nos apropriamos e a partir dessa apropriação construímos aquilo se incorpora à nossa identidade individual. Dito isso, ele questiona se seria possível aceitar que apenas os próprios titulares da identidade pudessem defini-la. Por exemplo, somente negros poderiam definir o que é ser negro (significado do rótulo e suas circunstâncias)? 7 A sua resposta é negativa. Por primeiro, pois o reconhecimento alheio é sempre fonte de significado (problema externo). Por segundo, pois ainda que se aceitasse isso, o problema não restaria substancialmente resolvido, visto que os titulares da identidade precisariam do reconhecimento dos demais titulares (problema interno). E se houvesse divergência entre esses titulares? 8 Expurgados alguns que certamente não poderiam utilizar o rótulo porque não se adequariam ao conceito da maioria, o problema passaria a ser entre essa maioria e a outra minoria remanescente, e assim sucessivamente. É um círculo vicioso que conduziria a um esvaziamento do rótulo. Sendo assim, malgrado possa haver conflito interno entre os pretensos titulares do rótulo que se pretenda tratar, no caso, de cunho religioso, não seria dado a alguns, ainda que componham a maioria, simplesmente definir quem e por que alguns devem integrar o grupo. Cuida-se de um dilema que poderíamos chamar de "bacamartiano", em homenagens ao médico psiquiatra do famoso livro de Machado de Assis, O Alienista, que de tanto internar as pessoas no manicômio que havia criado, acaba esvaziando a cidade. Conclusão Uma das principais características dos direitos da personalidade é que eles, em geral, segundo a doutrina, têm natureza erga omnes; são considerados absolutos. Entenda-se: geram obrigação passiva universal, assim como ocorre com os direitos reais. Ocorre que, no caso de certas espécies de direito à identidade, nomeadamente aquelas ligadas à supracitada visão de mundo, pode não haver exclusividade na titularidade do direito ao uso de determinado rótulo. Devem ser aceitas divergências internas entre os variados integrantes do grupo, somente sendo cabível cogitar de abuso de direito ligado ao direito à identidade, como é o caso da liberdade de expressão conectada ao direito à identidade religiosa, se ele é absolutamente claro e induvidoso 9. Do contrário, todos devem ter lugar de fala. ___________ 1. CORDEIRO, António Menezes. Tratado de direito civil. 5. ed., rev. e atual.: Pessoas. Lisboa: Almedina, 2019, v. IV, p.107. 2. BODIN DE MORAES, Maria Celina. Ampliando os direitos da personalidade. Na medida da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 125. 3. CANTALI, Fernanda. Direitos da personalidade: disponibilidade relativa, autonomia privada e dignidade humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 94/95. 4. TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção da identidade moderna. Tradução Adail. U. Sobral e Dinah de A. Azevedo. São Paulo: Loyola, 1977, p. 44. 5. Brasil. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo - Apelação Cível n. 1071628-96.2018.8.26.0100 - 2ª Câmara de Direito Privado - rel. Des. José Carlos Ferreira Alves - j. 20/10/2020. 6. Brasil. Superior Tribunal de Justiça - Recurso Especial n. 1.961.729-SP - 3ª Turma - rel. Minª. Nancy Andrighi. j. 30/08/2022. 7. APPIAH, K. Anthony. The ethics of identity. New Jersey: Princeton University Press, 2005, p. 64/65. 8. APPIAH, K. Anthony. The ethics of identity. New Jersey: Princeton University Press, 2005, p. 106/110. 9. "São facilmente criticáveis aquelas concepções que, para salvar a noção de direito subjetivo, identificam, no poder da vontade que se exprime de forma arbitrária e absoluta, o princípio; e, nos limites, a exceção. Por exemplo, quem é proprietário de um terreno só pode construir a determinadas distâncias da rua e das estradas; (...) O enfoque não é correto. No vigente ordenamento não existe um direito subjetivo - propriedade privada, crédito, usufruto - ilimitado, atribuído ao exclusivo interesse do sujeito, de modo tal que possa ser configurado como entidade pré-dada, isto é, preexistente ao ordenamento e que deva ser levada em consideração enquanto conceito, ou noção, transmitido de geração em geração. O que existe é um interesse juridicamente tutelado, uma situação jurídica que já em si mesma encerra limitações para o titular. Os chamados limites externos, de um ponto de vista lógico, não seguem a existência do princípio (direito subjetivo), mas nascem junto com ele e constituem seu aspecto qualitativo. O ordenamento tutela um interesse somente enquanto atender àquelas razões, também de natureza coletiva, garantidas com a técnica das limitações e dos vínculos. Os limites que se definem externos ao direito, na realidade não modificam o interesse pelo externo, mas contribuem à identificação da sua essência, da sua função". (PERLINGIERI, Pietro. Perfis de Direito Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.121)
Para além do § 1º do art. 1º da lei 9.492/97, a recém editada Resolução CNJ 547/24 fez inserir, em caráter definitivo, o protesto da CDA - Certidão de Dívida Ativa - no contexto macro de recuperação do crédito tributário inadimplido. Com ela, os tabelionatos de protesto passam a desempenhar papel de grande relevância no cenário da arrecadação e cobrança da dívida ativa tributária e não tributária, em todas as esferas da administração pública do país. Mas há uma questão delicada a ser enfrentada em futuro bem próximo. Um pequeno elefante na sala que, em breve, não passará mais despercebido: o exercício privado da atividade púbica desempenhada pelos Tabelionatos e a necessidade de sobrevivência dos entes delegados através de uma justa e adequada remuneração pelos serviços efetivamente prestados e pela reconhecida eficiência nos resultados alcançados através do seu trabalho. Antes, porém, duas premissas precisam ser estabelecidas: a primeira delas, referente ao caráter altamente "desjudicializante" do protesto de títulos e, a segunda, relacionada ao que um tabelionato de protesto definitivamente NÃO É: empresa de cobrança remunerada através do êxito (circunstancial) no recebimento do crédito. Quanto à primeira das premissas, pode-se afirmar, sem sombra de dúvidas, que não há nenhuma atividade extrajudicial que seja mais desjudicializante do que o protesto de títulos. Explica-se: uma vez intimado o devedor e não tendo sido paga a dívida no tríduo legal, lavra-se o protesto e, a partir daí, a única alternativa que remanesce ao credor é o ajuizamento de uma ação de cobrança ou de execução extrajudicial. A constatação, portanto, é óbvia e necessária: a cada título que é quitado em um Tabelionato de Protesto corresponderá, necessariamente, menos uma ação judicial deflagrada para a cobrança desse crédito. Repita-se: cada dívida paga é menos um processo emperrando a já assoberbada máquina judicial. Desta forma, os Tabelionatos de Protesto do país seguem firme ao lado do Poder Judiciário na verdadeira cruzada para reduzir o estoque alarmante de processos no país e reduzir a taxa de congestionamento do Judiciário. A parceria, na exata dicção da Resolução CNJ 547/2024 e do que ela propõe, nunca esteve tão forte, o que é motivo de orgulho para todo o seguimento. A segunda das premissas, porém, é: os tabelionatos de protesto não atuam como empresas de cobrança, vale dizer, não são remunerados por percentuais aplicados sobre o total arrecadado (em média de mercado que oscila entre 20% e 30% do valor recebido). Tabelionatos desempenham atividade pública, porém em caráter privado. Não há taxa de "êxito" ou taxa de "sucesso" no seu rol de serviços. São remunerados por emolumentos, que são integralmente devidos na exata medida em que todo o procedimento previsto em lei tiver sido observado pelo Serviço Delegado. Se o cartório desempenhou toda a sua função, se observou todo o procedimento que a lei lhe exige, deve ser portanto integralmente remunerado por isso, independentemente do pagamento pelo devedor. Quem deve assumir o "risco" da inadimplência é o credor e a empresa de cobrança eventualmente contratada por ele, não o ente delegado, que nada tem com isso. Esta segunda premissa traz uma consequência inafastável e que deve representar uma mudança na visão e na forma como o trabalho desempenhado pelos tabelionatos de protesto deve ser visto: Se não é o ente delegado que cria/constitui o título, se não é ele quem escolhe a forma de cobrança (call center, "negativação" direta ou qualquer outro meio), se não é o cartório que mantém uma base de dados atualizada e "higienizada" sobre os devedores, se o cartório não tem, enfim, NENHUMA ingerência sobre a formação do título ou como e quando ele vai ser cobrado, não faz nenhum sentido lógico ou jurídico que o serviço efetiva e integralmente prestado somente seja remunerado SE o devedor efetuar o pagamento da dívida. Essa é a forma de atuação de empresas de cobrança que, repita-se, optam por assumir o risco de prestar o serviço sem receber por isso, mas assim agem por cobrarem percentuais robustos sobre o êxito eventualmente alcançado. Cartórios de protesto não são empresas de cobrança e, por desempenharem atividade pública, têm seus emolumentos fixados em lei, que devem ser pagos quando o serviço for prestado. Há uma doutrina inteira de Direito Administrativo a sustentar a tese... A questão assume contornos ainda mais dramáticos quando se está a tratar especificamente da cobrança de créditos públicos, vale dizer, do protesto das Certidões de Dívida Ativa, objeto da Resolução CNJ 547/2024. Por inúmeras razões, dentre os quais a alta carga tributária do país (e sempre crescendo), a natureza de "rejeição social" da norma que obriga ao pagamento de impostos, além (principalmente) da péssima gestão que fazem as Fazendas Públicas (com raras e honrosas exceções) sobre os créditos que têm a receber, o índice de pagamento de CDAs no protesto é baixíssimo. Repita-se uma vez mais: por culpa exclusivamente do credor, não tendo o tabelionato de protesto nenhuma ingerência sobre os procedimentos administrativos prévios de cobrança deste crédito tributário. Se o Conselho Nacional de Justiça, diante das circunstâncias apresentadas, vê como alvissareira a utilização do protesto ao invés da execução fiscal, tendo em vista que o protesto apresenta, nestes casos, uma média de 20% de recuperação face ao percentual de êxito de uma execução fiscal (em torno de 2%), o fato é que, se para o ente público recuperar 20 em cada 100 títulos é motivo de júbilo, para o Tabelionato de Protesto significa dizer que em cada 100 serviços integralmente prestados, em 80 deles o trabalho foi feito de forma absolutamente gratuita. Todo o custo da operação, em 80 (!) de 100 casos, foi integralmente assumido pelo Tabelionato de Protesto, na tentativa de recuperar o crédito público (de toda a sociedade), incrementar a arrecadação pública (de toda a sociedade) e diminuir os processos em curso na Justiça. Mas por que deve fazê-lo de forma gratuita, se o serviço foi integralmente prestado? Por que somente os Tabelionatos de Protesto devem prestar gratuitamente seus serviços se toda a sociedade é beneficiada? A inserção dos Tabelionatos de Protesto na esteira da recuperação do crédito tributário traz ainda um outro paradoxo. Todos os personagens envolvidos no ciclo de cobrança dos créditos tributários, desde o seu nascedouro (lançamento tributário) até os últimos esforços para o seu recebimento (processo de execução) são devidamente remunerados através de verba orçamentária própria, independentemente do sucesso ou insucesso, da eficiência ou ineficiência do seu trabalho dedicado à arrecadaçao. Absolutamente nenhuma dessas personagens depende da adimplência do contribuinte para receber os valores que lhes são devidos pelo seu justo trabalho. A título ilustrativo, os Secretários de Fazenda, os servidores públicos administrativos das Secretarias (e outros órgãos de arrecadação) não dependem do efetivo pagamento do tributo para serem remunerados pelo seu trabalho. As Procuradorias, seus Procuradores (Federais, estaduais, municipais, autárquicos etc.) e seu quadro funcional igualmente não dependem do efetivo pagamento do tributo pelo contribuinte. Os Magistrados e os serventuários da justiça afetos aos processos de execução fiscal não dependem, igualmente, do pagamento do tributo para terem acesso à justa remuneração pelo trabalho de excelência que prestam. A pergunta que remanesce (já a essa altura óbvia) é: por que apenas o tabelionato de protesto, que desempenha atividade pública, vai receber os seus emolumentos apenas SE E SOMENTE SE o contribuinte efetuar o pagamento da dívida? Titulos com baixíssimo índice de recuperação têm sido apresentados a protesto por órgãos públicos ávidos por colocarem fim aos inúmeros processos de execução fiscal pendentes. Apesar de a Resolução CNJ 547/24 não condicionar a extinção da execução ao prévio protesto (não confundir com o fato de o protesto ser requisito para NOVAS execuções), o fato é que, a título de exemplo, no Rio de Janeiro, Tabelionatos de Protesto receberam CDAs contra as empresas Mesbla, Ultralar e Arapuã. São situações reais, concretas, que estão longe de constituirem mera exceção ou esgarçamento da regra. O afã de se extinguirem execuções fiscais leva necessariamente à apresentação de títulos (CDAs) que se apresentam irrecuperáveis, fazendo com que os Tabelionatos de Prostesto tenham altos custos operacionais e, apesar de desempenharem integralmente a sua atividade, apesar de prestem integralmente o seu serviço, não recebam nenhum tipo de remuneração por isso. Não existe gratuidade sem fonte de custeio. Não se pode exigir o trabalho gratuito de quem quer que seja, esperando-se que aquele percentual (ínfimo) de recebimento compense todo o trabalho que foi desenvolvido e entregue de forma gratuita. Não existe recebimento "condicionado" de emolumentos. Comparativamente, os Registros Civis de Pessoas Naturais, os chamados "ofícios da cidadania", são obrigados por lei a fornecer gratuitamente inúmeras certidões de nascimento e óbito, além de diversos outros atos que praticam em benefício dos mais necessitados. Um belo trabalho desempenhado por estes entes delegados. Mas para fazer frente a estas gratuidades, foram criados, em todo o país, fundos de compensação, fundos de ressarcimento para estes atos gratuitos. E é assim que deve ser. Não custa lembrar e repetir à exaustão: Não existe gratuidade sem fonte de custeio. O legislador, ao criar gratuidades, não pode exigir que aqueles que desempenham atividades em caráter privado, assumam todos os encargos financeiros para permitirem que aquele serviço seja prestado. É exatamente isso que está agora acontecendo com os Tabelionatos de Protesto, com sua saúde e sua viabilidade financeira seriamente comprometidas, por estarem assumindo a cobrança estatal dos créditos públicos, através do protesto da Dívida Ativa, sem a devida e correspondente remuneração por isso. A situação, especialmente em pequenos cartórios do interior do país, pode se revelar bastante grave. É preciso refletir muito seriamente sobre essa questão ou ela, como um monstro, nos engolirá a todos. O elefante está na sala. E crescendo..
"Siendo un oficio el de escribano, sin el cual andaría la verdad por el mundo a sombra de tejados, corrida y maltratada; y así dice el eclesiástico: in manu Dei prosperitas hominis, et super faciem scribae imponet honorem suum" Miguel de Cervantes Há uma confusão recorrente, em especial para quem não tem familiaridade com temas ligados aos serviços extrajudiciais, entre a fé pública notarial e a registral. Em decorrência da filiação comum dos "órgãos da fé pública" 1ao mesmo dispositivo constitucional2, bem como da estruturação rudimentar dada por uma mesma norma organizadora3, as duas funções aparecem muitas vezes amalgamadas no cognome comum de "cartórios". Contribui para tal situação, o fato de o art. 52 da lei 8.935/94, ao organizar as competências registrais e notariais, ter garantido a algumas especialidades registrais a continuidade de exercício, em alguns estados da federação, de certas funções notariais, donde ser possível, por exemplo, no Estado de São Paulo, praticar o ato de reconhecimento de firmas - tipicamente notarial - junto aos registradores civis.  Aos olhos do cidadão incauto, qualquer cartório, seja aquele onde se casa e se registram filhos, seja aquele onde se assinam escrituras e se fazem testamentos, teria as mesmas atribuições. O fato de se poder reconhecer firmas em ambos assim o comprovaria. E não há que se negar que o reconhecimento de firma é, por metonímia, a representação do serviço supostamente prestado por todos os cartórios e especialidades frente à população em geral, como se o fim último de todos os cartórios fosse tão somente o reconhecimento de firmas - paradoxalmente, ato que vem se tornando cada vez mais subsidiário no dia a dia notarial, a despeito de iniciativas de mercado e de especialidades registrais que procuram desenvolver seus próprios produtos concorrentes com as mesmas funções. Esse tipo de confusão leiga é, todavia, eventual e surpreendentemente, reproduzida também no próprio mundo jurídico especializado, por seus operadores e reguladores, os quais deveriam ser, ao contrário, os primeiros a velar pela coerência do sistema extrajudicial.  É salutar, assim, de quando em quando, descer aos princípios e estruturas formadores das diferentes instituições para afastar ideias que exsurgem "fora do lugar" e que acabam por gerar mais confusão e perplexidade, em detrimento das próprias funções que, bem diferenciadas, prestam um "output" mais eficiente. Apesar de herdeiras de um arcabouço normativo comum no país, a atividade registral e a notarial em muito se diferem, muito antes da própria existência de sua ordenação em solo brasileiro.  É exatamente essa diferença secular, tributária de um desenvolvimento histórico longevo, que conforma cada instituição, e que, nas palavras de Reinhard Zimmermann, citando Savigny, faz com que não haja algo como uma "autonomous human existence entirely isolated from the past", pelo que "we cannot freely fashion our own existence, including our laws"4. Nesse sentido, a história da função notarial é, em grande medida, a história da diferenciação entre as provas testemunhal e documental. O gérmen da fé pública notarial se encontra, nos primórdios, no processo probatório judicial, tendo sua eficácia intrinsecamente vinculada ao desenvolvimento da prova documental que, pouco a pouco, veio a substituir as declarações testemunhais de seus autores. Pode se traçar os albores de tal evolução na constituição LXXVI de Justiniano5, diferenciando os documentos particulares dos documentos produzidos ante o tabellio romano, sendo este último alcunhado de "abuelito" do notário moderno6.  Em referida constituição se estatui que o documento privado deveria ser firmado por testemunhas, em número mínimo de 3, e que, em caso de contestação, deveriam ser tais testemunhas chamadas a depor em juízo, demonstrando, assim, que a fé do documento privado não seria maior do que aquela que merecessem as pessoas - partes e testemunhas - que o firmassem. Em outras palavras, o limite da força probatória do documento privado se dava nos mesmos exatos limites da capacidade da prova testemunhal que o defendesse. Por sua vez, embora o documento notarial também devesse ser firmado por testemunhas, já apontava o ato do imperador que, morto o notário que confeccionou a escritura, e não tendo sido assinada por testemunhas, ainda assim deveria receber alguma fé. É, por assim dizer, a ancestral da fé pública notarial. Pouco a pouco, a confiança do aparato estatal judicial sai da pessoa responsável pela realização do documento e se transfere à função pública de produção de documentos, e, nesse momento, em específico, com a objetivação da função frente à pessoa, tal confiança recai sobre o documento público produzido no exercício da referida função. Tanto notários quanto, posteriormente, registradores têm uma qualidade em comum consistente em produzir documentos com o selo da fé pública, o que significa que os documentos atestados no exercício de tais funções fazem prova por si bastante - "prova plena", dirá o art. 215 do CC em relação às escrituras públicas -, não necessitando de outros meios de prova para atestar aquilo que a própria lei determina que seja considerado conforme o estado em que atestado por tais funcionários no exercício de suas funções.  Ora, não haveria qualquer sentido em se organizar todo um aparato estatal com a função especial de se fornecerem informações confiáveis - "fé pública" -, se a autoridade judicial pudesse a qualquer momento afastar essa informação com base em uma livre valoração que não tomasse previamente para si a específica questão de se negar, no caso concreto, a presunção de legitimidade de tais documentos. Um juiz que simplesmente ignora um documento produzido com fé pública, sem antes destruir a fé pública de tal documento em decisão adequada e especificamente fundamentada, não está decidindo contra o funcionário, pessoa que o produziu, mas, sim, contra a própria lei que atribuiu a tal documento eficácia especial7.  A organização notarial e registral permite que situações de direito nem sempre imediatamente observáveis na realidade física das coisas - e assim, por exemplo, a propriedade, em contraposição à posse - possam receber respostas rápidas e confiáveis por meio do documento notarial ou registral - por ex. a matrícula do imóvel.  Embora possuam a mesma função e eficácia - fato que talvez seja o gérmen de toda a confusão -, a fé pública registral e a fé pública notarial possuem diversas estruturas, objetos e modos de atuação. E é da adequada coordenação entre ambas que o sistema extrai o melhor de suas qualidades. Em relação à estrutura, a fé pública notarial opera segundo a clássica regra do visis et auditis suis sensibus. O notário só dá fé daquilo que vê e ouve por seus próprios sentidos. Em comparação ao processo de cognição judicial, que é retrospectivo e se faz de forma mediada, tomando o juiz conhecimento do caso a partir de documentos produzidos por outras pessoas e fatos por outras testemunhas presenciados, a cognição notarial é sempre simultânea ao acontecimento e imediata aos fatos. Trata-se do princípio da imediação8, o qual, junto da forma e do protocolo,"han hecho al notariado"9. Segundo Rafael Nuñez Lagos, "al Derecho Notarial incumbe más que ningún otro el principio de la inmediación. La presencia física, directa, inmediata de las personas (comparecencia) y de las cosas (exhibición), es la base del Derecho Notarial"10.  A imediação enquanto base da fé pública notarial remonta novamente à fase romana, na qual a contratação ritualística solene se dava de forma oral perante o notário que era então encarregado de reduzir a escrito, em especial a partir da fase pós-clássica, os exatos termos daquilo que viu e ouviu acontecendo a sua frente. É nesse sentido que as escrituras eram redigidas, até a alteração promovida em Bolonha por Rolandino11, na primeira pessoa:"Eu, fulano de tal, prometo...". Em síntese, em princípio, todas as "escrituras" eram, na verdade, atas, e as atas formam a base da fé pública notarial até hoje. Mesmo após toda a longa evolução histórica que trouxe o notário do papel de narrador privilegiado para o de verdadeiro consultor jurídico e confeccionador do negócio escriturado, toda escritura conserva ainda muito de ata. Assim, na clássica abertura "saibam quantos a presente virem, que na data de..., em..., compareceram...", tem-se, nada mais, do que uma pequena ata ainda narrativa dos fatos que darão base ao contrato na parte ulterior e negocial das escrituras. Nesses termos, se em toda escritura existe uma parte "ata", por óbvio, não pode lavrar escrituras, quem não é capaz de confeccionar atas. Por sua vez, a fé pública registral se dá especificamente sobre o próprio acervo do registrador. Este não presencia os fatos narrados nos títulos que publica (leia-se, registra). A certidão do ato registral é uma certidão sobre o que foi inscrito e se encontra nos livros registrais, não sobre o fato narrado no título a ele apresentado para tal inscrição, que ele sequer presenciou. A imediação é princípio notarial, não registral, e disso decorrem as diferentes formas de operacionalização das fés públicas. Essa específica diferença é bastante clara, por exemplo, na forma como se registram fatos - não negócios - na tábula registral. Nenhum registrador civil precisa presenciar os nascimentos que publica em seu livro "A", nem tampouco tem qualquer contato com os fatos que ocasionam o óbito devidamente inscrito no livro "C". Toda a fé pública dos livros de registro civil indicados se baseia em títulos que sejam adequadamente confiáveis e controlados - a declaração de nascido vivo e a declaração de óbito - mas que não foram produzidos pelo registrador. Em sentido diverso, nenhum notário poderia jamais atestar o nascimento de uma pessoa se não o presenciasse por seus próprios sentidos. É dessa presença imediata do notário frente aos fatos, mas apenas mediata do registrador por meio de seus registros, que Vicente de Abreu Amadei declara que "em sede de fé pública - desculpem-me os Registradores - mas a primazia é dos Notários, pois neles, mais do que em qualquer outro profissional, a fé pública é seu princípio, seu meio e seu fim. (...) Os Tabeliães - e só eles - têm vocação testemunhal; os Registradores, não.12"  É certo que tanto o registro imobiliário, quanto o tabelionato de notas estão destinados à segurança jurídica, mas não do mesmo modo. Nos dizeres de Ricardo Dip, "o notário dirige-se predominantemente a realizar a segurança dinâmica; o registrador, a segurança estática; o notário, expressando um dictum - conselheiro das partes, cujo actum busca exprimir como representação de uma verdade e para a prevenção de litígios; de que segue sua livre eleição pelos contratantes, porque o notário é partícipe da elaboração consensual do direito; diversamente, o registrador não exercita a função prudencial de acautelar o actum, mas apenas a de publicar o dictum, o que torna despicienda a liberdade de sua escolha pelas partes: o registrador não configura a determinação negocial.13"  Essa é, em síntese, a base do sistema de "título e modo", no qual a instância que publica os títulos, não é aquela que os confecciona. Tampouco a instância que confecciona os títulos tem poder para, sozinha, trazer a eles os efeitos específicos da publicidade registral14. Da adequada interação entre ambas as instâncias surgem externalidades positivas que vão por sua vez às raízes de todo o sistema, justificando, por exemplo, que o notário seja de livre escolha do cidadão, mas o registro vinculado15.  Ademais, em um sistema em que os vícios eventuais do título transcendem à tábula registral - diga-se, um registro "causal" -, não sendo a publicidade suficiente para sanar defeitos não expressos no registro, avulta a importância de que o momento de formação do título, não presenciado pelo agente de sua publicidade (o registrador), seja especialmente protegido de eventuais contestações futuras - exatamente, o papel do notário. De nada adiantaria se ter um bom registro em termos de publicidade se os títulos publicados fossem, intrinsecamente, contestáveis. A separação de funções e diferentes formas de fé pública conformam, assim, não apenas a atividade individual de cada especialidade, mas todo o sistema em que imbricados os notários e registradores. As confusões conceituais que eventualmente surgem na matéria, trazendo aos registradores funções intrinsecamente notariais, ou ao contrário, aos notários funções publicitárias, são, mais do que uma questão individual de cada especialidade "atacada", um desmonte de um sistema estruturado e finamente sintonizado que, no limite, se reverte em prejuízo a toda a população. Compreendidas, de forma apropriada, as similitudes e distinções entre as atividades notariais e de registro, bem se perceberá a vocação notarial para a viabilização de prazo de reflexão aos declarantes e para o aconselhamento tendente a reduzir assimetrias informacionais; ao passo que a vocação registral está mais ligada à publicização de atos e à viabilização de que terceiros tenham conhecimento sobre uma determinada situação jurídica. ___________ 1 Como na referência clássica: ALMEIDA JR. João Mendes. Orgams da Fé Pública. In: Revista da Faculdade de Direito de São Paulo. Vol. V. p. 7 a 114 e vol. VI, p. 7 a 113. São Paulo: Espíndola, Siqueira & Campos, 1897. 2 Art. 236 da Constituição Federal. 3 Lei 8.935/94 - "Lei dos Notários e Registradores" 4 ZIMMERMANN, Reinhard. Roman Law, Contemporary Law, European Law. The Civilian Tradition Today.  Oxford: Oxford University Press, 2001. p.109 5 Entre outros temas afeitos ao dia a dia notarial, já apontava referida norma que "Non enim ita quis scribit iuvenis et robustus, ac senex et forte tremens", traçando a dificuldade em se manter o mesmo padrão de assinatura ao longo da vida, bem como a necessidade de maiores cuidados formais para os instrumentos firmados pelos iletrados - passando as testemunhas de 3 para 5 -, cuidado esse, contudo, que só seria exigido, no caso de contratos com valor superior a uma libra de ouro.  6 NUÑEZ LAGOS, Rafael. Hechos y Derechos en el instrumento público. Madri: Instituto Nacional de Estudios Jurídicos, 1950. p.81 7 V. FALCÃO, Alcino Pinto. Parte Geral do Código Civil. Rio de Janeiro: José Konfino, 1959. p.269.  8 V. ADRADOS, Antonio Rodríguez. Princípios Notariais. Tradução de Gabriela Saciloto Cramer. Diadema: JS Gráfica, 2023. p. 87-98. 9 NUÑEZ LAGOS, R. El derecho notarial. Lima: Gaceta Notarial, 2013. p. 36 10 Idem, ibidem. 11 PASSAGGERI, Rolandino. Aurora. Com os comentários de Pedro de Unzola. Traduzido ao Espanhol por Víctor Vicente Vela e Rafael Nuñez Lagos segundo a versão publicada em 1485. Madri: Colégio Notarial de Madri, 1950. 12 AMADEI, Vicente de Abreu. A fé pública nas notas e nos registros. In: YOSHIDA, Consuelo Ytasuda Moromizato; FIGUEIREDO, Marcelo; AMADEI, Vicente de Abreu. Direito Notarial e Registral avançado. São Paulo: RT, 2014. p.35-53. p. 49-50  13 DIP, Ricardo. Querem matar as notas? In: Registros Públicos e Segurança Jurídica. Porto Alegre: Safe, 1998, pp. 95-96. 14 O que é matizado, contudo, no protesto de títulos, uma ata notarial com efeito publicitário. 15 V. ARRUÑADA, Benito. The economics of Notaries. In: European Journal of Law and economics. Vol 3, 1996. p. 5-37.
1. Introdução Neste artigo, apontamos estes três parâmetros a serem observados para a flexibilização do direito real de habitação vidual1, previsto no art. 1.831 do CC: Proteção do viúvo de avançada idade;  Proteção a longos relacionamentos conjugais ou convivenciais; e  Proteção do viúvo diante de caprichos dos demais herdeiros. Para facilitar, transcrevemos o referido dispositivo: Art. 1.831. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar. A reflexão vem em momento oportuno. É que, na terça-feira passada (24/9/24), fruto de elevada sensibilidade e da vasta experiência que singularizam os ministros da 3ª turma do STJ, nasceu interessantíssimo julgado sobre o tema (STJ, REsp 2.151.939/RJ, 3ª turma, relatora ministra Nancy Andrighi, j. 24/9/24). O julgado tratou de uma situação absolutamente excepcional de flexibilização do referido direito vidual, a demonstrar que, por vezes, o magistrado precisa imprimir interpretação restritiva a dispositivos pelo fato de a lei dizer mais do que queria (plus dixit quam voluit).  O caso foi relatado pela experiente ministra Nancy Andrighi e contou com a adesão unânime dos igualmente experientes ministros Humberto Martins, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro. À vista disso, é extremamente conveniente aprofundar o debate sobre a mitigação do direito real de habitação vidual, especialmente para afastar eventual ilação que leitores mais eufóricos e incautos poderiam tirar no sentido de que o STJ teria infertilizado esse instituto. A esses mais afoitos reportamos uma advertência feita pela ministra Nancy Andrighi durante o seu voto. Após realçar que a flexibilização feita no caso é absolutamente excepcional, fruto das particularidades do caso concreto, a ministra alertou, in verbis: .... eu procurei gravar e fixar bem a excepcionalidade. Para não dizerem que eu estou rechaçando o direito de habitação, (...) eu repeti na ementa duas vezes [a excepcionalidade]. Logo, na excepcional situação examinada, deve-se flexibilizar o direito real de habitação em favor dos herdeiros2.  Passamos a expor os parâmetros a serem observados para a flexibilização do direito real de habitação vidual, levando em conta o recente julgado do STJ. Além da leitura do julgado e de acompanhar a sessão de julgamento, consultamos o inteiro teor dos autos para maior precisão da base fática julgada pelo STJ. Por fim, embora não seja o foco deste artigo, apontamos que, em casos de flexibilização do direito real de habitação vidual, parece-nos absolutamente necessário respeitar o ambiente de dúvida jurídica razoável. Desse modo, somente após a decisão judicial definitiva, é que se poderá invocar qualquer efeito decorrente de posse de boa-fé. Sobre o tema, reportamo-nos a outro artigo nosso3.  2. Parâmetros para a flexibilização do direito real de habitação vidual De modo extremamente excepcional, o direito real de habitação vidual pode ser flexibilizado quando, à luz das particularidades do caso concreto, não coadunar com seu caráter humanitário e social.  É preciso verificar cada caso concreto, pois o afastamento do direito real de habitação vidual é excepcionalíssimo. Não se pode esvaziar hermeneuticamente o texto do art. 1.831 do CC banalizando essa flexibilização, sem que haja uma mudança legislativa efetiva4. Entendemos que três parâmetros devem ser levados em conta:  Proteção do viúvo de avançada idade;  Proteção a longos relacionamentos more uxorio; e  Proteção do viúvo diante de caprichos dos demais herdeiros. O parâmetro da proteção do viúvo de idade avançada veda a mitigação do direito real de habitação quando o viúvo tiver idade avançada, independentemente da condição financeira sua ou dos demais herdeiros.  Para tal efeito, consideramos pessoa de idade avançada aquela com idade superior a 55 anos. Isso, porque essa idade é fruto da média aritmética de três referências legislativas indicativas de idade avançada: a idade mínima do viúvo para a vitaliciedade da pensão por morte5, a idade mínima para aposentadoria6 e a idade indicada pelo Estatuto da Pessoa Idosa7. Trata-se da idade em que a pessoa presumidamente já reclama maior estabilidade patrimonial por conta do próprio ciclo natural da vida. De fato, a proteção da pessoa de idade avançada não é apenas por razões patrimoniais, mas também emocionais e psicológicas. Afastar o direito real de habitação do art. 1.831 do CC para sujeitar uma pessoa de avançada idade ao transtorno de ter de buscar uma nova moradia contraria o próprio caráter humanitário desse direito. Não é razoável acrescer a uma pessoa de idade avançada já combalida pela perda do cônjuge mais uma dor: a de ter de sair da casa em que vivia.  Além disso, considerando que o direito real de habitação se extingue com a morte e tendo em vista a expectativa de vida média dos indivíduos, a verdade é que esse direito do viúvo não representará grande peso aos demais herdeiros. Diferente seria se o viúvo fosse jovem.  Por fim, temos ainda de levar em conta que estamos a tratar de sucessão mortis causa: os demais herdeiros nada estariam a receber se o falecido tivesse sobrevivido mais tempo. Não é razoável forçar interpretação restritiva do art. 1.831 do CC para beneficiá-los em detrimento de quem viveu mais intimamente com o falecido até seu último dia, dedicando-se com trabalhos de cuidado em seu favor. Aliás, a própria conservação do imóvel deve também ser atribuído a esse trabalho invisível (o trabalho de cuidado) exercido pelo viúvo, ainda mais quando se tratar de mulher, que ainda cumula as tarefas de cuidado na prática social brasileira.  O segundo parâmetro é o da proteção a longos relacionamentos more uxorio (conjugais ou convivenciais), segundo o qual não se deve flexibilizar o direito real de habitação do art. 1.831 do CC quando o viúvo tiver mantido um longo relacionamento com o falecido.  Consideramos longo relacionamento aquele com mais de 21 (vinte e um) anos. Isso, porque, presumidamente nesse lapso de tempo, o casal terá dedicado os seus maiores esforços em prol da família, com eventual criação de filho. O tempo de 21 anos é tomado emprestado da legislação previdenciária, que estima essa idade como parâmetro para extinção da pensão devida a filhos menores do casal8.  Nesses casos, é irrelevante se o viúvo tem ou não condições financeiras de arcar com outra moradia.  Isso, por dois principais motivos. De um lado, o direito real de habitação do art. 1.831 do CC protege o vínculo afetivo com um local que guarda memórias profundas da família. Nas palavras de Flávio Tartuce, citado pela ministra Nancy Andrighi, esse direito resguarda o "vínculo afetivo e psicológico estabelecido pelos cônjuges ou companheiros com o imóvel em que, no transcurso de sua convivência, constituíram não apenas uma residência, mas um lar" (voto neste julgado: STJ, REsp 2.151.939/RJ, 3ª turma, relatora ministra Nancy Andrighi, j. 24/9/24). De outro lado, o direito legal é um reconhecimento da sua longa dedicação ao falecido e ao lar. Essa dedicação, inclusive, pode ter colaborado até mesmo para o falecido ter conseguido preservar ou conquistar o patrimônio. De fato, os trabalhos de cuidado não podem ser desprezados pelo direito das sucessões, dentro do paradigma atual de prestígio à economia do cuidado9. Eventual desventura financeira dos demais herdeiros - que presumidamente decorre de suas escolhas ou de sua falta de sorte - não pode ser invocada para derrubar o direito de quem, por longos anos, às custas de sacrifícios pessoais, dedicou-se ao cuidado mais íntimo do falecido.   O terceiro parâmetro é o da proteção do viúvo diante de caprichos dos demais herdeiros.  À luz desse parâmetro, a flexibilização do direito real de habitação não deve acontecer quando os demais herdeiros dispuserem de situação financeira confortável ou quando esses herdeiros estiverem em situação de vulnerabilidade por conta de uma escolha por uma vida de poucas responsabilidades (como no caso de filhos que desprezaram as oportunidades de estudos e de trabalho que receberam de seus pais por preferirem um caminho de menor responsabilidade).  Isso, porque não soa condizente com a equidade forçar uma interpretação restritiva do art. 1.831 do CC para beneficiar o capricho dos demais herdeiros em detrimento do viúvo. É irrelevante se o viúvo também está em condições financeiras confortáveis. Esse parâmetro dialoga com o princípio da proteção simplificada do luxo10, com o princípio de amparo às pessoas vulneráveis11 e com os primados de autonomia privada. 3. Compatibilidade da jurisprudência do STJ com os três parâmetros de flexibilização do direito real de habitação vidual O STJ caminha no sentido acima, conforme o único julgado do STJ que flexibilizou o direito real de habitação (STJ, REsp 2.151.939/RJ, 3ª turma, relatora ministra Nancy Andrighi, j. 24/9/24).  Não é possível generalizar nada, porque só há um julgado do STJ, e a 4ª turma ainda haverá de se manifestar. Seja como for, enxergamos que o referido julgado indica um pendor do STJ em seguir os três parâmetros que indicamos acima.  Nesse julgado, por unanimidade, os ministros rejeitaram o direito real de habitação vidual sobre um imóvel de classe média12 em que a viúva residia com o falecido.  A viúva era uma jovem senhora de 52 anos que não tinha filhos e que havia ficado com uma expressiva e vitalícia pensão por morte (o falecido era procurador Federal) após 16 anos de casamento.  O único bem financeiramente relevante no espólio era esse imóvel, adquirido pelo falecido por herança no curso do casamento13. Com isso, o STJ beneficiou os dois únicos filhos do falecido, que ficaram com a propriedade plena da integralidade do imóvel14. Eles não dispunham de imóvel próprio e viviam de aluguel com os 5 netos (ainda menores de idade à época do falecimento). Foi decisivo, no julgamento, o fato de, ao tempo da abertura da sucessão, tanto o fato de os filhos estarem em situação patrimonial vulnerável quanto o fato de a viúva ser uma jovem senhora com uma pensão vitalícia elevada e com idade próxima aos filhos unilaterais do falecido. Em princípio, como o direito real de habitação só se extinguiria com a morte da viúva, os filhos do falecido dificilmente fruiriam efetivamente do bem que receberam por herança. Entendemos que a flexibilização do direito real de habitação vidual aí observou os três parâmetros que defendemos: (1) a viúva não era pessoa de idade avançada, ou seja, não tinha mais de 55 anos; (2) o seu casamento durou menos de 21 anos; e (3) os demais herdeiros estavam em situação de vulnerabilidade financeira sem que tenha havido capricho deles. __________ 1 A palavra "vidual" significa relativo a viuvez. 2 Fala da ministra durante a sessão de julgamento às 2h21min deste vídeo. Disponível aqui.  3 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Dúvida jurídica razoável como excludente de responsabilidade civil, de enriquecimento sem causa e de outros remédios contra ilícitos civis: comentários a um julgado do STJ. In: Revista IBERC, v. 3, n. 1, p. 1-19, jan-abr de 2020-P. Disponível aqui. 4 A propósito de eventual mudança legislativa, o Anteprojeto de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/24) sugere que o referido dispositivo passe a ser textual em condicionar a subsistência do direito real de habitação do viúvo à sua incapacidade financeira em custear uma moradia digna sem prejuízo do próprio sustento. O texto sugerido é este: Art. 1.831. Ao cônjuge ou ao convivente sobrevivente que residia com o autor da herança ao tempo de sua morte, será assegurado, qualquer que seja o regime de bens e sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação, relativamente ao imóvel que era destinado à moradia da família, desde que seja o único bem a inventariar. § 1º Se ao tempo da morte, viviam juntamente com o casal descendentes incapazes ou com deficiência, bem como ascendentes vulneráveis ou, ainda, as pessoas referidas no art. 1.831-A caput e seus parágrafos deste Código, o direito de habitação há de ser compartilhado por todos. § 2º Cessa o direito quando qualquer um dos titulares do direito à habitação tiver renda ou patrimônio suficiente para manter sua respectiva moradia, ou quando constituir nova família. Disponível aqui. 5 44 anos (art. 222, VII, "6", da lei 8.112/90; art. 77, § 2º, V, "6", da lei 8.213/91). 6 62 anos para mulher e 65 anos para o homem, o que dá uma média de 62,5 anos (art. 40, III; art. 201, § 7º, I, da CF). 7 60 anos (art. 1º da lei 10.741/03). 8 Art. 77, § 2º, II, da lei 8.212/91; art. 221, IV, da lei 8.112/90. 9 Para aprofundamento: Para aprofundamento: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Economia do Cuidado e Direito de Família: alimentos, guarda, regime de bens, curatela e cuidados voluntários. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, maio 2024. Disponível aqui. 10 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. O princípio da proteção simplificada do luxo, o princípio da proteção simplificada do agraciado e a responsabilidade civil do generoso. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Dezembro/2018 (Texto para Discussão nº 254). Disponível aqui. 11 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Princípio do amparo às pessoas vulneráveis no Direito Civil. Disponível aqui. 12 Tratava-se de um imóvel no famoso bairro Glória, Rio de Janeiro. 13 Dados obtidos dos autos: data do óbito: 15/9/04; Data de nascimento da viúva, do falecido, do filho1 e do filho2: 22/7/52, 21/8/36, 31/1/84 e 13/10/65. Data do casamento: 20/1/88.  14 A Corte de origem não reconheceu direito hereditário à viúva sobre o imóvel, apesar de ela ser casada no regime da comunhão parcial de bens. Adotou entendimento superado do art. 1.829, I, do CC.
Trataremos, de modo objetivo, do que designamos de princípio do amparo às pessoas vulneráveis no Direito Civil. Entre o forte e o fraco, a liberdade escraviza, e o Direito liberta. Essa é uma frase atribuída a Henri Dominique Lacordaire e dá a entender que, para grupos sociais mais vulneráveis, o Direito precisa intervir para protegê-los e até ajudá-los. Essa preocupação está no fundamento do Direito Civil brasileiro por meio do que chamamos de princípio do amparo às pessoas vulneráveis. Como qualquer princípio, ele passa por balanços de ponderação ao chocarem com outros princípios, como o da autonomia privada, tudo de modo a encontrar uma solução justa no caso concreto. Esse princípio consiste em que o Direito deve, sempre que possível e com razoabilidade, proteger e ajudar as pessoas vulneráveis nas relações jurídicas, neutralizando eventual abuso por parte de terceiros em condições pessoais vantajosas e contrabalançando as limitações impostas pelas situações de vulnerabilidade. É claro que esse princípio não se destina a fomentar a irresponsabilidade ou a infantilização das pessoas a pretexto de vulnerabilidade, mas apenas a, com razoabilidade, municiar essas pessoas com instrumentos jurídicos que compensem as dificuldades decorrentes da vulnerabilidade. Nos últimos anos, o Direito Civil, em conjunto com outros ramos, tem lançado os olhos para esse princípio com mais intensidade, do que dão exemplo as várias leis especiais destinadas à garantia dos direitos de pessoas vulneráveis. Do princípio em pauta decorrem diversas consequências práticas no Direito, como estas: O Ministério Público, na condição de fiscal da lei (custos legis), tem o dever de agir em favor de grupos mais vulneráveis em diversas situações, como no caso de pessoa incapaz; A tutela coletiva de direitos por meio dos instrumentos da lei de ação civil pública (lei 7.347/85), como o ajuizamento de feitos para obtenção de decisões de indenização por dano moral coletivo ou de cessação de infrações etc; No caso de pessoas indígenas, o Estatuto da Pessoa Indígena (lei 6.001/73) estabelece diversas regras destinadas à sua proteção; No caso de combate a racismo, há diversas investidas legislativas. Uma delas é a lei 7.716/89, que prevê, como crime, condutas discriminatórias resultantes da raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional; Para a proteção à mulher diante de violência doméstica e familiar, a lei Maria da Penha (lei 11.340/06) estabelece um rito processual multidisciplinar destinado a garantir uma medida protetiva; Verbas trabalhistas, tributários e de investimento na forma da lei 6.858/80 podem ser objeto de pagamento direto. Em outras palavras, não dependem de prévio procedimento judicial ou extrajudicial de inventário ou de arrolamento, o que facilita o acesso dos herdeiros mais vulneráveis a bens essenciais à sua sobrevivência; No caso de internação psiquiátrica de pessoas com transtornos mentais, a lei 10.216/01 assegura garantias mínimas para evitar abusos. Uma dessas garantias é a de, no caso de internação involuntária, o Ministério Público tem de ser notificado para fiscalizar (art. 8º, § 1º); O ordenamento disponibiliza diversos institutos de amparo para viabilizar que pessoas vulneráveis possam praticar atos da vida civil com a maior segurança possível. É o caso, por exemplo, da tutela, curatela, guarda, tomada de decisão apoiada e poder familiar. Há diversas leis destinadas à proteção de pessoas mais vulneráveis em relações contratuais, de modo a prevenir abusos contra elas pela parte mais forte. É o caso do Código de Defesa do Consumidor (lei 8.078/90), da lei do inquilinato (lei 8.245/91), da lei de incorporação imobiliária (lei 4.591/64) etc. Há vários outros exemplos. Deixamos apenas estes, com o objetivo de ilustrar a progressiva preocupação do ordenamento jurídico em efetivar uma sociedade mais justa, que proporcione aos grupos mais vulneráveis uma proteção proporcional e razoável.
O objetivo deste artigo é, de modo sucinto, tratar do que chamamos de princípio da estabilização das situações jurídicas no Direito Civil. A identificação de princípios ou regras fundamentais do Direito Civil são úteis para definir lugares comuns (topoi) que ancoram o legislador, a jurisprudência, a academia e os profissionais do Direito e que colaboram a manter a coerência das soluções jurídicas. Passemos a expor o princípio. O Direito prestigia a segurança jurídica e, consequentemente, a estabilização das situações jurídicas. É excepcional a permissão de desfazimento dessas situações. Trata-se do princípio da estabilização das situações jurídicas. Daí decorrem diversas consequências. Focaremos esse princípio no âmbito do Direito Civil. No caso de situações jurídicas criadas por ato de uma pessoa, a regra geral é a irretratabilidade: a pessoa não pode voltar atrás de sua conduta. Trata-se de regra resumida no brocardo latino electa una via altera non datur (eleita uma via, não é dado alterá-la)1. No jargão popular, a hipótese é espelhada por expressões idiomáticas como "ajoelhou, vai ter de rezar" ou "desceu no play, vai ter de brincar". A retratabilidade é exceção. Além disso, mesmo no caso de invalidade ou ineficácia do ato jurídico, a regra é a tentativa de preservação dos efeitos práticos do ato jurídico, conforme o princípio da conservação do negócio jurídico (um princípio conectado ao princípio da conservação do negócio jurídico). Também decorrem do princípio da estabilização das situações jurídicas as hipóteses de regularização de irregularidades por força do transcurso do tempo ou até mesmo de conceitos abertos, como a boa-fé, a socioafetividade, a prescrição etc. Há diversos exemplos, inclusive em outros ramos do Direito. No Processo Civil, citamos a preclusão consumativa, que impede que a parte refaça um determinado ato processual. Se ela interpôs um recurso, não pode ela querer substituir esse recurso por outro com argumentos adicionais, ainda que o prazo recursal não tenha se esgotado. No Direito Administrativo, há a famosa teoria do fato consumado (também chamada de teoria da consolidação da situação de fato) a desaconselhar o desfazimento de atos administrativos irregulares que, no caso concreto, já tenha consolidado alguma situação fática. No Direito Civil, citamos estes exemplos: escolhido um objeto nas obrigações de dar coisa incerta ou alternativas com cientificação da outra parte (fase da concentração), é vedado alterar o objeto, salvo consentimento da outra parte. O texto do Código Civil é silente, mas a doutrina é pacífica nesse ponto. O fundamento é o princípio da estabilização das situações jurídicas; o herdeiro não pode voltar atrás da aceitação nem da renúncia à herança por força do art. 1.812 do CC; ao celebrar um contrato, a pessoa não pode desfazê-lo por sua mera vontade unilateral, salvo nos casos de permissão legal, ainda que implícita, da lei (resilição unilateral; art. 473, CC), observado eventual dever de pagar multa compensatória ou indenização; as várias aplicações do princípio da conservação do negócio jurídico, como a conversão substancial do negócio jurídico (art. 170, CC), a conversão formal (art. 183, CC), a redução do negócio jurídico (art. 184, CC) e a substituição de fundamento do ato de vontade (tema que detalhamos em outro artigo2). a prescrição e a decadência são exemplos também de estabilização de situações jurídicas diante da inércia do titular de um direito ou de uma pretensão pelo transcurso do tempo. os diversos corolários da boa-fé objetiva, como a proibição do venire contra factum proprium, também respaldam a censura a condutas que contrariam a expectativa gerada por condutas anteriores da pessoa. o usucapião e a costumeira edição de leis de regularização fundiária retratam a estabilização de situações fáticas de ocupações irregulares em razão do transcurso do tempo, da função social e de outros valores jurídicos. ________ 1 Com o mesmo significado, são usuais os seguintes brocardos: electa una via non datur regressus ad alteram ou electa una via non datur recursus ad alteram. 2 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Considerações sobre os planos dos fatos jurídicos e a "substituição do fundamento do ato de vontade". Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, fevereiro/2020 (Texto para discussão nº 270). Disponível aqui.
Resumo Para facilitar ao leitor, resumimos, em tópico, as principais ideias deste artigo: 1. DIVÓRCIO EXTRAJUDICIAL COM FILHO INCAPAZ OU NASCITURO: só pode ocorrer após as questões conexas do filho incapaz ou do nascituro terem sido resolvidas previamente na via judicial (art. 34, § 2º, Resolução nº 35) (capítulo 2.1.). 1.1. Apesar de essa solução tender a ficar em desuso, trata-se daquilo que o CNJ, dentro do quadro legal atual, considera possível disciplinar por ato infralegal. 1.2. Convém o legislador avançar para afastar a exigência de prévia solução judicial das questões conexas dos filhos incapazes e permitir a solução extrajudicial das questões conexas do filho quando houver manifestação favorável do Ministério Público. 2. ESCRITURA PÚBLICA DE DECLARAÇÃO DE SEPARAÇÃO DE FATO: é título hábil para averbação no assento de casamento e em outros registros públicos ((arts. 3º e 52-A e seguintes da Resolução nº 35). A omissão nessa averbação não pode prejudicar terceiros de boa-fé que, confiando nos registros públicos, ignorem a separação de fato (capítulos 2.2.1. e 2.2.2.). 2.1. Pode tratar de questões conexas do casal (partilha de bens e alimentos entre os consortes separados de fato). 2.2. A separação de fato pode ser provada por outros meios, sem, porém, ensejar averbação no assento de casamento ou em outros registros públicos. 2. ESCRITURA PÚBLICA DE DECLARAÇÃO DE RESTABELECIMENTO DA SOCIEDADE CONJUGAL: é título hábil para averbação no assento de casamento, se tiver havido previamente a averbação da separação de fato (arts. 52-B e 52-C da Resolução nº 35). A omissão nessa averbação não pode prejudicar terceiros de boa-fé que, confiando nos registros públicos, tenha considerado o casal separado de fato (capítulo 2.2.3.). 3. INVENTÁRIO EXTRAJUDICIAL COM TESTAMENTO: só é cabível se a sentença definitiva da ação do testamento tiver autorizado expressamente (art. 12-B da Resolução nº 35) (capítulo 3.1.). 3.1. Tendo em vista o prazo de 2 meses para a instauração do inventário (art. 611, CPC), cabe aos interessados ou instaurar o inventário judicial (e, com o término da ação do testamento, migrar para a via extrajudicial na forma do art. 2º da Resolução nº 35), ou obter uma tutela de urgência do juízo da ação do testamento para a instauração do inventário extrajudicial. 3.2. Se as partes tiverem se esquecido de pedir a autorização do juízo da ação do testamento, a saída é postulá-la no próprio processo judicial de inventário e partilha (art. 2 da Resolução 35) ou, se não houver, em um procedimento atípico de jurisdição voluntária (art. 719, CPC). 3.3. A exigência de prévia autorização do juízo da ação do testamento merece vir a ser suprimida posteriormente por nova lei. O CNJ, porém, a manteve, porque, dentro da elevada prudência de seus Conselheiros, essa foi a solução possível dentro dos limites legais atuais. 4. INVENTÁRIO EXTRAJUDICIAL COM INTERESSADO INCAPAZ: depende de dois requisitos adicionais: (1) manifestação favorável do MP, ou, no caso de impugnação dele ou de terceiro, decisão de juízo em procedimento jurisdicional; e (2) partilha cartesiana em cada bem integrante do espólio (art. 12-A da Resolução nº 35) (capítulo 3.2.). 4.1. O CNJ atuou dentro do que era viável nos limites do poder regulamentar, neste momento histórico. Convém o legislador avançar, para afastar o segundo requisito adicional (o da falta de margem de manobra na partilha). 5. ALVARÁ EXTRAJUDICIAL DE VENDA DE BENS: só pode ocorrer para custeio das despesas de transação do inventário e da partilha e depende de prestação de garantia pelo inventariante (art. 11 da Resolução nº 35) (capítulo 3.2.). 5.1. O CNJ atuou dentro do que era viável nos limites do poder regulamentar, neste momento histórico. Convém o legislador avançar, para permitir o alvará extrajudicial para pagamento de outras dívidas do espólio e para permitir aos herdeiros dispensar a garantia. 1. Introdução Recentemente, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) fez o que foi viável dentro dos limites do poder regulamentar, alterando a Resolução nº 35/2007 por meio da Resolução nº 571/2023. Fê-lo sob a proatividade de um dos mais destacados Corregedores Nacionais de Justiça da história - o Min. Luis Felipe Salomão - e ao abrigo das mais brilhantes composições de Conselheiros presididos pelo prolífico Min. Luís Roberto Barroso. O CNJ, dentro dos limites delineados pela legislação atual, avançou na extrajudicialização dos clássicos procedimentos escatológicos dos Direitos de Família e das Sucessões, nomeadamente os que versam sobre: divórcio, separação de fato, extinção da união estável e inventário e partilha. No Direito de Família, os limites legais são dados pelo art. 733 do Código de Processo Civil (CPC)1, que admite os referidos procedimentos extrajudiciais se o casal moribundo não tiver nascituro nem filho incapaz. No Direito das Sucessões, a fronteira infralegal é delineada pelo art. 610 do CPC2, que disponibiliza a via extrajudicial do inventário e partilha quando inexistir estes dois elementos: testamento ou interessados incapazes. Como regras básicas de hermenêutica ensinam, a lei, por vezes, pode dizer menos do que queria ("minus scripsit quam voluit"), pois a infinitude da casuística nem sempre é captada ex ante pelo legislador. A correção e o esclarecimento interpretativos da lei podem ser feitos por meio de ato infralegal, caso das supracitadas resoluções do CNJ. Com notável prudência, o CNJ avançou bastante na extrajudiciais ao alterar a Resolução nº 35. Desde logo, indagamos: o CNJ poderia ter avançado mais? Entendemos que foi muito prudente a solução da Corte Administrativa nesse momento histórico e talvez, no futuro, possa-se encontrar amparo para maiores avanços na regulamentação. Mas a verdade é que o bastão para novos avanços está atualmente nas mãos do legislador, que deveria expandir as fronteiras da extrajudicialização dos supracitados procedimentos dos Direitos de Família e das Sucessões. 2. Avanços na extrajudicialização dos Procedimentos Escatológicos de Direito de Família No Direito de Família, passamos a destacar os principais avanços do CNJ nos referidos procedimentos extrajudiciais. 2.1. Divórcio ou extinção da união estável com filhos incapazes ou nascituro O divórcio ou a extinção da união estável podem ser realizados mesmo quando houver nascituro ou filhos incapazes, com uma condição: as questões conexas dessas pessoas vulneráveis já têm de estar resolvidas na via judicial (art. 34, § 2º, Resolução nº 35). Estamos a nos referir às questões de alimentos e de guarda (incluindo visitação) dessas pessoas vulneráveis. De fato, quando tratamos de divórcio ou extinção da união estável, temos 3 tipos de questões jurídicas envolvidas: (1) a questão principal, que diz respeito à mudança do estado civil; (2) a questão conexa do casal, que alude à partilha dos bens e aos alimentos entre os ex-consortes; e (3) a questão conexa dos filhos incapazes, que se reporta à guarda e aos alimentos dos filhos. Acrescemos que filhos incapazes aí envolvem não apenas os incapazes por menoridade, mas também os maiores incapazes, por força do art. 1.590 do Código Civil - CC3. O avanço foi importante e foi obtido ao sopro da notável prudência do CNJ no presente momento histórico. O CNJ fez o que era razoável dentro dos limites do poder regulamentar. Infelizmente, porém, entendemos que haverá pouca utilidade prática quotidiana nessa opção. É que, como os consortes têm de se socorrer da via judicial para tratar das questões conexas relativas aos filhos incapazes, a eficiência aconselhá-los-á a pegar carona nessa via para resolver as demais questões. Afinal de contas, não faz sentido deixar a questão principal (o divórcio ou a extinção da união estável) e as questões conexas do casal (partilha e alimentos) à espera do término do procedimento judicial prévio de interesse dos filhos incapazes. Seja como for, aplaudimos a solução do CNJ, que foi a viável dentro do quadro legal atual neste momento histórico. Apesar da provavelmente baixa aplicação prática, esse avanço do CNJ é um sonoro alerta para o legislador apressar-se em eliminar as travas legais à extrajudicialização nesse ponto. 2.2. Escritura Pública de Declaração de Separação de Fato e Escritura Pública de Restabelecimento da Sociedade Conjugal 2.2.1. Separação de direito vs separação de fato e separação (de direito) judicial vs separação (de direito) extrajudicial Antes de expor os avanços do CNJ, é preciso tomar cuidado ao tratar das nomenclaturas envolvendo o instituto da separação. Na prática, observamos haver certa confusão no uso das expressões. De um lado, quanto à natureza, a separação pode ser dividida em duas espécies: separação de direito e separação de fato. A separação de direito é a dissolução formal da sociedade conjugal por meio de um ato jurídico-formal. O STF entendeu que a separação de direito foi revogada pela Emenda à Constituição nº 66, ressalvadas as separações de direito anteriores à decisão do STF (STF, Tema nº 1.053). A separação de fato: é a dissolução informal da sociedade conjugal por meio da cessação, de fato, da convivência more uxorio (que também pode ser chamada de comunhão plena de vida, expressão utilizada no art. 1.511 do CC). Essa separação de fato ocorre quando o casal deixa de, na prática, compartilhar plenamente a vida. Essa cessação da convivência pode acontecer por conduta espontânea do casal (ex.: um dos cônjuges sai "de casa") ou por eventual decisão judicial. Quando se trata de uma decisão judicial, esta geralmente ocorre em duas hipóteses principais: (a) uma decisão cautelar ou definitiva conhecida como separação de corpos, expressão forense mencionada pelo art. 1.562 do CC; ou (b) uma decisão de medida protetiva de afastamento do lar, com fundamento na Lei Maria da Penha. De outro lado, a separação de direito (e não a separação em geral!) pode ser classificada em duas espécies quanto à sua constituição: (1) separação judicial: quando a separação de direito se constitui por uma decisão judicial; e (2) separação extrajudicial: quando a separação de direito se constitui por uma escritura pública. Ambas as hipóteses não mais subsistem à vista da supracitada decisão do STF (STF, Tema nº 1.053). Como se vê, atualmente existe apenas a separação de fato, que é um ato jurídico-informal, e não um ato jurídico-formal. A principal utilidade prática da separação de fato é que ela faz cessar os efeitos do regime de bens. Assim, se o casal se separou de fato, não haverá mais comunicação de bens que vierem a ser adquiridos por qualquer dos consortes separados. Trata-se de aplicação analógica do art. 1.576 do CC, que atecnicamente apenas se refere à separação judicial. Diante disso, para evitar litígios futuros, é conveniente que a data da separação de fato esteja devidamente comprovada, por ser o marco temporal a partir do qual não haverá mais comunicação de bens. A prova dessa data pode ser feita por qualquer meio (conversa de whatsapp, testemunhas etc.). Todavia, é conveniente que haja uma prova mais estável e unívoca. Quando a separação de fato decorre de uma decisão judicial (como a de separação de corpos ou de medida protetiva de afastamento do lar), a prova estável e unívoca é esse ato formal do Poder Judiciário. Quando, porém, a separação de fato deriva de conduta espontânea do casal (ex.: o consorte "saiu de casa"), é preciso certa margem de criatividade para buscar provas estáveis e unívocas a fim de reduzir riscos de litígios futuros. É nesse contexto que está um dos recentes avanços normativos do CNJ, que trata da Escritura Pública de Declaração de Separação de Fato, sobre a qual discorreremos mais abaixo. 2.2.2. Escritura Pública de Declaração de Separação de Fato O CNJ disciplinou a Escritura Pública de Declaração de Separação de Fato. Veja que se trata de uma declaração de separação de fato, pois ela apenas atesta um fato que já pode ter ocorrido: a restauração da convivência more uxorio do casal. Essa escritura é título hábil para os registros públicos (Registro Civil das Pessoas Naturais e o Registro de Imóveis, por exemplo) e para outras instituições públicas ou privadas pertinentes (arts. 3º e 52-A e seguintes da Resolução nº 35). Na prática, a referida escritura poderá lidar com todas as questões conexas do casal (partilha de bens e alimentos), à semelhança do que se dá com o divórcio extrajudicial. Prova disso é que as partes, entre outros documentos, têm de apresentar prova da titularidade dos bens do casal a serem partilhados (art. 52-B4). Além disso, a referida escritura poderá ser averbada no assento de casamento, de modo a publicizar a situação de separação de fato. Não há obrigatoriedade na averbação, embora ela seja aconselhável para fins de publicidade a terceiros. A omissão nessa averbação não pode prejudicar terceiros de boa-fé que, confiando nos registros públicos, ignorem a separação de fato Em princípio, nada impede que o casal faça um instrumento particular de declaração de separação de fato. Todavia, esse título não será averbável no assento de casamento, porque a Resolução do CNJ exige escritura pública. Também nada impede que o casal deixe de celebrar qualquer instrumento para atestar a separação de fato. Todavia, essa conduta poderá gerar futuros litígios para comprovação, por outros e-mails, da data da separação de fato. Esse tipo de litígio pode acontecer especialmente se, com base nas regras do regime de bens do casamento, algum dos cônjuges separados de fato vir a pleitear a comunicação de algum bem adquirido pelo outro. Cabe um alerta: em regra, a Escritura de Separação de Fato não é cabível quando existirem filhos incapazes ou nascituro do casal (art. 52-B, "h"). Entendemos, porém, que, apesar do silêncio da Resolução nº 35, é cabível a aplicação analógica da exceção prevista para o divórcio extrajudicial no § 2º do art. 34: é cabível a escritura pública de declaração de separação de fato se as questões conexas do filho já tiverem sido resolvidas judicialmente. Nesse sentido, indaga-se: por qual razão o casal faria uma Escritura de Separação de Fato, e não uma de Divórcio? A resposta está na questão principal envolvida: o estado civil. Quando o casal opta pela separação de fato, é por que eles apenas querem "dar um tempo" do casamento, para refletir se realmente querem romper ou não o vínculo matrimonial. Se eles quiserem restaurar a sociedade conjugal, não haverá necessidade de celebrar um novo casamento; basta o casal voltar a, de fato, conviver de modo more uxorio. A restauração da convivência more uxorio é chamada de restabelecimento da sociedade conjugal. Trata-se de expressão que é plenamente extensível para a separação de fato, apesar de ter sido tradicionalmente utilizada em caso de separação de direito. Afinal de contas, ambos os tipos de separação representam a ruptura da sociedade conjugal. 2.2.3. Escritura Pública de Declaração de Restabelecimento da Sociedade Conjugal No caso de separação de fato, a sociedade conjugal, ou seja, a convivência more uxorio (ou a comunhão plena de vida) cessou de fato. O casal está apenas casado "no papel": há apenas o vínculo matrimonial. Popularmente, isso ocorrerá quando o marido ou a esposa "sai de casa". Para restabelecer a sociedade conjugal, basta o casal voltar a, de fato, ter a convivência more uxorio. Popularmente, é quando o marido ou a esposa "volta para casa". Trata-se, pois, de um fenômeno fático. O casal pode comprovar esse restabelecimento da sociedade de fato por qualquer meio. Uma das opções é a Escritura Pública de Declaração de Restabelecimento da Sociedade Conjugal (arts. 52-B e 52-C da Resolução nº 35). Destacamos o verbete "declaração", porque essa escritura apenas atesta um fato que já pode ter ocorrido: o ato tem efeito meramente declaratório. Embora os arts. 52-B e 52-C da Resolução não tenha utilizado esse verbete, recomendamos seu uso pelos tabeliães na escritura para realçar a natureza declaratória do ato. Se o casal tiver averbado a separação de fato no assento de casamento, a averbação do restabelecimento da sociedade conjugal só poderá ocorrer mediante Escritura Pública de Declaração de Restabelecimento da Sociedade Conjugal. Cabe ao casal promover essa averbação para fins de publicidade a terceiros. A omissão nessa averbação não pode prejudicar terceiros de boa-fé que, confiando nos registros públicos, tenha considerado o casal separado de fato. Seja como for, ao menos no âmbito do cartório de notas, é dever do próprio tabelião anotar, na anterior escritura pública de separação de fato, a lavratura da escritura de restabelecimento da sociedade conjugal (art. 52-D). 3. Avanços na extrajudicialização dos Procedimentos Escatalógicos de Direito das Sucessões No Direito das Sucessões, passamos a destacar os principais avanços do CNJ nos referidos procedimentos extrajudiciais. 3.1. Inventário extrajudicial com testamento Quando o falecido houver deixado testamento, é obrigatória a ação judicial de abertura, confirmação, registro e cumprimento desse testamento, a qual chamamos apenas de ação do testamento (arts. 735 a 737, CPC). O objetivo é sujeitar o testamento a uma fiscalização judicial que descarte riscos de fraudes (ex.: testamentos falsos) e ateste a validade e a eficácia do testamento (ex.: o testamento ter observado as formalidades legais, não ter incorrido em caducidade, ruptura, desrespeito à legítima etc.). Paralelamente a isso, dentro do prazo de 2 meses do falecimento, o inventário tem de ser iniciado (art. 611, CPC). Daí se indaga: é cabível o uso da via extrajudicial para o inventário e partilha nessa hipótese de testamento? O CNJ só a admite se a sentença transitada em julgado naquela ação do testamento tiver autorizado ou tiver declarado extinto o testamento (por inexistência, invalidade ou ineficácia) (art. 12-B da Resolução nº 35). Portanto, as partes interessadas não podem se esquecer de pedir, na petição inicial da ação de testamento, a autorização para utilizar a via extrajudicial para o inventário. Parece-nos que a razão de ser dessa exigência feita pelo CNJ é que o juízo da ação do testamento teria mais condições de avaliar se o caso concreto envolveria maiores riscos de burlas à vontade do testador se o inventário se processasse fora da supervisão judicial. Há dois problemas práticos. O primeiro é para cumprir o prazo de 2 meses para a abertura do inventário (art. 611, CPC), considerando que a ação do testamento pode vir a demorar. Não há dispositivo expresso na Resolução sobre isso. Nessa hipótese, entendemos há duas opções. A primeira é instaurar o inventário judicial dentro do prazo e, com o advento da sentença definitiva da ação de testamento, pedir a extinção do inventário judicial para se valer da via extrajudicial (art. 2º da Resolução nº 35). A segunda opção é obter do juízo da ação do testamento uma tutela de urgência para autorizar, ainda que precariamente, a instauração do inventário por meio de escritura pública. Convém que o juízo autorize a nomeação de inventariante e a prática de todos os atos necessários à partilha, sem, porém, autorizar a conclusão desta enquanto não sobrevier o trânsito em julgado da ação de testamento. Na prática, porém, notadamente nos Estados em que não há multa administrativa por atraso na abertura do inventário, antevemos que prevalecerá a informalidade quando as partes quiserem a via extrajudicial: as partes aguardarão o término da ação do testamento, ainda que venha a extrapolar o prazo do art. 611 do CPC. O segundo problema prático é que as partes podem ter se esquecido de pedir a autorização para o juízo da ação de testamento. Nesse caso, entendemos que as partes podem pedir essa autorização no próprio processo judicial de inventário e partilha (art. 2 da Resolução 35) ou, se não houver, em um procedimento atípico de jurisdição voluntária (art. 719, CPC). A solução acima foi a que o CNJ, dentro de seu elevado grau de prudência neste momento histórico, pôde avançar. Esperamos que, em um futuro breve, o legislador avance não apenas na extrajudicialização do inventário e partilha, mas também no procedimento de abertura e confirmação do testamento. É que este procedimento deveria poder ser realizado por escritura pública mediante manifestação favorável da instituição incumbida de velar pelos interesses dos vulneráveis: o Ministério Público - MP. Com isso, eliminaríamos uma redundância desnecessária: a intervenção judicial quando o Ministério Público e o tabelião de notas são favoráveis. Lembramos que o tabelião também é profissional do Direito (art. 2º, Lei nº 8.935/1994). Quiçá, em outro momento histórico, esse avanço poderá até vir por ato do CNJ, caso o legislador siga omisso. 3.2. Inventário extrajudicial com interessado incapaz Conforme art. 12-A da Resolução nº 35, se houver herdeiro ou meeiro incapaz, o inventário e partilha extrajudicial dependerá de dois requisitos adicionais: (1) a manifestação favorável do MP, que é a instituição incumbida fiscalizar os interesses dos incapazes (art. 127, Constituição Federal - CF; art. 178, II, CPC); e (2) partilha cartesiana em cada bem integrante do espólio (=falta de margem de manobra na partilha). Em relação ao primeiro requisito adicional, se o MP discordar ou se houver impugnação de terceiro interessado, o caso deve ser encaminhado ao juízo competente. Temos que aí não se está a falar do juízo correcional em um procedimento administrativo, e sim do juízo em um procedimento jurisdicional. Isso, porque a própria Resolução é expressa quando alude à via administrativa (ex.: art. 12, § 2°, Resolução 35). Entendemos, ainda, que o parecer ministerial é exarado antes da subscrição da escritura por todos os interessados, com base em minuta enviada pelo tabelião. Com o parecer favorável, o tabelião concluirá a escritura, acrescentando a notícia do parecer ministerial, arquivando o parecer e coletando as assinaturas das partes. No tocante ao segundo requisito adicional, não há margem de manobra ao herdeiro incapaz na partilha dos bens na via extrajudicial. Em outras palavras, necessariamente, na partilha extrajudicial, o herdeiro incapaz terá de ficar com uma fração ideal sobre cada bem do espólio, vedada qualquer compensação. Por exemplo, se o falecido tiver deixado dois herdeiros (um capaz e outro incapaz) e dois apartamentos (de valores iguais), o herdeiro incapaz necessariamente ficará com 50% de cada um dos apartamentos. É vedado que, na escritura de partilha, o herdeiro incapaz fique com um apartamento, e o outro herdeiro fique com o outro apartamento. Com essa solução, o CNJ impede que seja utilizada a regra da máxima comodidade dos coerdeiros e do viúvo na partilha dos bens, prevista no art. 648 do CPC. A razão de ser da restrição é a de que, sem a intervenção judicial, haveria maior risco de o herdeiro incapaz, ao final da partilha, ficar em uma posição desvantajosa. Afinal de contas, é sabido que muitos bens, apesar de formalmente terem uma determinada expressão econômica à luz de uma avaliação pericial, são de difícil liquidação ou de deterioração ou desvalorização rápidas. Imagine, por exemplo, o espólio seja composto de um carro avaliado em R$ 500.000,00 e de um apartamento de R$ 500.000,00. Há dois herdeiros: um incapaz e outro capaz. É intuitivo que o carro é um bem pouco vantajoso para o herdeiro incapaz: além de ser um bem que rapidamente desvaloriza, há pouca utilidade prática ao herdeiro que sequer tem autorização estatal para dirigir. A solução do CNJ acima foi a que os seus Conselheiros entenderam viável dentro do figurino legal atual. Talvez, em outro momento histórico, o CNJ possa encontrar apoio para avançar mais. Seja como for, entendemos que cabe ao legislador eliminar o segundo requisito adicional acima: o da falta de manobra para o herdeiro incapaz na partilha. Isso, porque o Ministério Público é a instituição vocacionada à tutela do interesse dos incapazes. Parece-nos desnecessário ser redundantes ao exigir a intervenção judicial, ainda mais porque, segundo se sabe da praxe forense, é muito raro que - ao menos, em matéria de partilha de bens envolvendo menores - os juízes adotem solução diversa da preferida pelo Ministério Público. Além disso, a solução de formar condomínio tradicional sobre todos os bens do espólio pode criar entraves burocráticos desnecessários até contra o herdeiro incapaz. Pense, por exemplo, que o espólio seja composto de dois apartamentos, de igual valor: um na Alemanha, outro no Brasil. Há dois herdeiros: um herdeiro é incapaz e mora no Brasil; o outro é capaz e vive na Alemanha. Em situação como essa, a regra da máxima comodidade da partilha (art. 648, CPC) recomendaria o herdeiro incapaz ficar com o imóvel no Brasil, dada a maior facilidade de sua gestão para ele sem os transtornos próprios da gestão transnacional de bens. Várias outras hipóteses poderiam ser cogitadas. O ponto é que, se o Ministério Público entende vantajoso para o herdeiro incapaz uma determinada partilha, parece-nos que o legislador deveria afastar a necessidade de intervenção judicial. 3.3. Alvará Extrajudicial de Venda de Bens É comum o espólio ser composto apenas de bens diversos de dinheiro. Isso representa um problema operacional, porque, se os herdeiros não se dispuserem a desembolsar dinheiro do próprio bolso, a concretização do inventário e partilha será inviável por falta de dinheiro para pagar as despesas de transação. Chamamos de despesas de transação as necessárias à conclusão do inventário e partilha, como os honorários advocatícios, emolumentos, tributos etc. A solução é a alienação de bens do espólio para, com o dinheiro obtido, pagar as despesas de transação. Para alienar bens do espólio, o inventariante precisa de uma autorização (a que chamaremos de "alvará"). Esse alvará pode ser judicial, se tiver decorrido de decisão judicial, ou extrajudicial, quando decorrer de escritura pública. O alvará extrajudicial dá-se por escritura pública nos termos do art. 11-A da Resolução nº 35. A escritura pública exige consentimento unânime dos demais herdeiros e só pode ser realizada para uma finalidade: o custeio das despesas de transação do inventário e partilha. A escritura deverá vincular o dinheiro obtido com a venda ao custeio das referidas despesas. Além disso, o inventariante tem o dever de prestar garantia de que, no caso de malversação das verbas obtidas com a alienação, reembolsará o espólio. Diante disso, há dois grandes problemas práticos a enfrentar. Em primeiro lugar, indaga-se: o alvará extrajudicial poderia ocorrer para pagamento de dívidas do próprio espólio, sem relação com a formalização do inventário e partilha (ex.: dívida de um empréstimo bancário não pago pelo falecido)? A resposta é negativa, porque o art. 11-A, I, da Resolução nº 35 não as contemplou. Cabe aos herdeiros obterem um alvará judicial para tanto. Em segundo lugar, pergunta-se: os herdeiros, de modo unânime, poderiam dispensar o inventariante de prestar garantia no âmbito do alvará extrajudicial? A resposta é negativa, porque o art. 11-A, VI, da Resolução nº 35 não deu essa margem de manobra. Cabe aos herdeiros buscar a via judicial para obter um alvará sem exigência de garantia do inventariante. Como se vê, o alvará extrajudicial possui esses dois pontos que o podem tornar desinteressante para as partes, o que as remeterão para a via judicial. Foi a solução que o CNJ entendeu viável dentro dos limites legais, neste momento histórico. Entendemos que cabe ao legislador, com urgência, avançar e eliminar esses dois entraves, pois não nos parece razoável obrigar a intervenção judicial para lidar com atos de disposição patrimonial feitos com amparo na unanimidade dos interessados. A tendência é a atuação do juiz ser meramente a de chancelar a vontade dos interessados. Quiçá, se o legislador se mantiver inerte, o CNJ - em outro momento histórico - possa vir a encontrar suporte para, por ato infralegal, eliminar esses entraves. ___________ 1 Art. 733. O divórcio consensual, a separação consensual e a extinção consensual de união estável, não havendo nascituro ou filhos incapazes e observados os requisitos legais, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições de que trata o art. 731 . § 1º A escritura não depende de homologação judicial e constitui título hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras. § 2º O tabelião somente lavrará a escritura se os interessados estiverem assistidos por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial. 2 Art. 610. Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial. § 1º Se todos forem capazes e concordes, o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública, a qual constituirá documento hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras. § 2 o O tabelião somente lavrará a escritura pública se todas as partes interessadas estiverem assistidas por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial. 3 Art. 1.590. As disposições relativas à guarda e prestação de alimentos aos filhos menores estendem-se aos maiores incapazes. 4 Art. 52-B. Para a lavratura da escritura pública de declaração de separação de fato consensual, deverão ser apresentados: a) certidão de casamento; b) documento de identidade oficial e CPF/MF; c) manifestação de vontade espontânea e isenta de vícios de não mais manter a convivência marital e de desejar a separação de fato; d)pacto antenupcial, se houver; e) certidão de nascimento ou outro documento de identidade oficial dos filhos, se houver; f) certidão de propriedade de bens imóveis e direitos a eles relativos; g) documentos necessários à comprovação da titularidade dos bens móveis e direitos, se houver; h)inexistência de gravidez do cônjuge virago ou desconhecimento acerca desta circunstância. (incluido pela Resolução n. 571, de 26.8.2024)
segunda-feira, 16 de setembro de 2024

A complexidade do júizo notarial nas "novas" atas

A autenticação de fatos é atividade intrínseca à prestação dos serviços notariais. Quando um tabelião de notas reconhece como verdadeira a assinatura aposta na sua presença em um documento, ele autentica um fato. Da mesma forma, quando certifica que a reprodução de um documento confere com o original ou quando constata objetivamente um determinado acontecimento e o descreve em uma ata notarial, tornando-o perene.1   A lavratura de ata notarial é ato de competência exclusiva do tabelião de notas, com previsão expressa na lei que regulamentou os serviços notariais e de registro - lei 8.935/94. Contudo, é possível afirmar que a comunidade jurídica despertou para a ata notarial quando a lei que instituiu o CPC - lei 13.105/15 -, a incluiu como um meio de prova típico, conforme o artigo 384: "A existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião". A esta ata notarial, a doutrina estrangeira atribui o nome de "ata de constatação", pois é exatamente isso que o tabelião faz, ele constata um fato e o consigna em um instrumento público, revestido de valor probante cuja veracidade e autenticidade somente é afastada por declaração judicial de falsidade (art. 427, CPC), incumbindo à parte que a arguir o ônus probatório (art. 429, CPC). A ata de constatação pode ter por objeto qualquer fato (acontecimento) objetivamente percebido pelo tabelião de notas, que o traduzirá na forma escrita com a estrutura gramatical de uma narrativa. Não é à toa que a ata notarial é referida como uma "fotografia em palavras", afinal, a partir da captação dos sentidos, o notário apurará um fato e, sequencialmente, o descreverá em palavras, arquivando o instrumento em livro próprio, tudo isso sem a emissão de juízos de valor2. Ainda assim, é de salientar a inequívoca subjetividade, própria da condição de ser de cada indivíduo, que proporciona a produção textual com nuances distintas a partir de uma mesma constatação, caso dois tabeliães sejam chamados para presenciar o mesmo fato. A doutrina sinaliza diversos exemplos de situações passiveis de aferição pelos sentidos do notário, como: a existência ou o conteúdo de uma mensagem publicitária; a verificação do estado de imóveis, no caso de o locatário não honrar as prestações locatícias e o abandoná-lo; o uso indevido de imagem; disposições em assembleias societárias e condominiais; a demissão de funcionário;  a abertura forçada de cofre particular.3Como é perceptível, objeto da ata notarial pode variar, no entanto, sempre será um fato (ou ato-fato) jurídico captado e descrito pelo notário, através dos seus sentidos.4 Todas essas atas, de algum modo, fazem parte do conoscere dos operadores do Direito. Mas, as atas notariais vão além da mera descrição objetiva de fatos. Amparada nos ensinamentos estrangeiros, a doutrina brasileira identifica diferentes espécies de atas notariais, como a "ata de presença", "ata de notificação", "ata de subsanação" e a "ata de notoriedade". Compreender a distinção entre elas é fundamental, especialmente a partir do momento em que a legislação passou a prevê-las em certos procedimentos. O primeiro caso é a usucapião extrajudicial, introduzida no ordenamento jurídico pelo Código de Processo Civil. O legislador trouxe, como primeiro requisito para requerimento junto ao registro de imóveis, a ata notarial de atestação da posse. Na sequência, a Lei 14.382/22 disciplinou o procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial, e a ata notarial figura como requisito para provar o pagamento do preço e a mora na obrigação de outorga ou recebimento do título de propriedade. Mais recentemente, a lei 14.711/23 incluiu um novo artigo na lei 8.935/94 e deu competência expressa aos tabeliães de notas para lavratura de atas de certificação do implemento ou frustração das condições negociais. Em todos esses procedimentos, as atas notariais não são de constatação, porque a tarefa do tabelião de notas transcende a mera constatação objetiva de um fato. Nessas atas haverá um o juízo notarial, sim, que envolve a apuração sobre a realidade de um fato ser considerado certo em determinado contexto, para, então, certificá-lo. No caso da usucapião extrajudicial, a ata notarial tem por finalidade atestar o exercício da posse, com as características necessárias e durante determinado período de tempo. Para isso, é indispensável que ao tabelião de notas seja fornecido os elementos suficientes, aqui compreendidos por documentos, depoimentos de vizinhos, confrontantes, diligências no local e, em suma, tudo para que se forme o convencimento de que aquele fato (posse) é certo naquele contexto e por aquele período de tempo (o necessário de acordo com a espécie de usucapião). Esse é conteúdo a ser atestado. Até porque não é possível uma constatação objetiva de posse pretérita, e toda posse que legitima usucapião, é pretérita. Enquanto na ata de constatação, espécie mais conhecida e amplamente utilizada, o tabelião de notas consigna de forma objetiva os fatos que foram por ele presenciados ou as evidências observadas, como a presença de pessoas em determinados locais, o conteúdo de páginas na internet, mensagens de texto ou o estado físico de bens e imóveis, na ata de notoriedade ou certificação, a atuação notarial envolve um processo mais aprofundado de investigação, análise e decisão. Diferentemente do que acontece na ata de constatação, na ata de certificação, é inequívoco o juízo de valor pelo tabelião de notas, e por isso é fundamental a compreensão pelo advogado que representa o interessado no procedimento de que os elementos probatórios apresentados são decisivos para que a finalidade da ata notarial seja alcançada. No caso da ata de certificação do implemento ou frustração das condições ou outros elementos negociais, a atividade notarial pode alcançar um impacto ainda maior, definindo os rumos da relação contratual sem a necessidade de atuação do Poder Judiciário. Nela, o notário realiza um juízo valorativo acerca do direito, o que demandará uma análise técnica e jurídica minuciosa, condizente com os fundamentos balizadores da função notarial (de caráter jurídico, preventivo, pacificador, imparcial, público, rogatório e técnico da atividade notarial).5 Com efeito, a fim de se extrair todo o potencial existente nas atas notariais, é preciso compreender que o papel do tabelião de notas vai além da verificação, autenticação e documentação de fatos objetivos - limitação histórica que se explica, em parte, por sua recente descoberta pela comunidade jurídica. Os novos procedimentos que iniciaram com a usucapião extrajudicial no Código de Processo Civil expandem os horizontes da ata notarial, trazendo-lhes novos contornos, inclusive com funções mais analíticas e valorativas. Nessas "novas atas", como as de notoriedade, o notário exerce uma função que se aproxima de um juízo técnico, no qual sua interpretação e análise dos fatos têm consequências diretas para a segurança jurídica dos atos praticados. A confiança depositada no tabelião de notas pelo legislador reflete uma expectativa de que ele seja capaz de manejar complexidades jurídicas com precisão e imparcialidade, afinal "el registro notarial consagra la seguridad preventiva mediante formalismos que garantizan la validez de los contratos y propician un ambiente de confianza para la actividad económica"6. A responsabilidade do tabelião é garantir que as atas reflitam fielmente os fatos e condições, certificando, em certos casos o próprio direito, minimizando riscos de litígios e incertezas jurídicas. A evolução do direito notarial exige um alto nível de conhecimento técnico e jurídico, para o desempenho das funções com a diligência e competência necessárias. A ampliação das espécies de atas notariais e a complexidade a algumas delas intrínsecas refletem as demandas sociais e jurídicas contemporâneas. Não se trata de mera extensão das antigas práticas, mas, com efeito, de uma reconfiguração do próprio conceito de juízo notarial, exigindo dos tabeliães de notas uma atuação cada vez mais qualificada e multidimensional. Isso reforça a sua presença como um garantidor da segurança jurídica e da efetividade dos atos e negócios jurídicos na sociedade moderna. ________ 1 FERREIRA, Paulo Roberto Gaiger. LEONARDO, Felipe Rodrigues.Ata Notarial - Doutrina, Prática e Meio de Prova. 2. ed. rev, ampl. E atual., Salvador: Editora JusPodivm, 2020, pp. 161. 2 GUÉRCIO NETO, Arthur Del; GUÉRCIO, Lucas Barelli Del. Teoria geral do direito notarial e registral. CASSETTARI, Christiano (Coord.). 1 ed. Indaiatuba, SP: Foco, 2023.  3 FERREIRA, Paulo Roberto Gaiger. LEONARDO, Felipe Rodrigues.Ata Notarial - Doutrina, Prática e Meio de Prova. 2. ed. rev, ampl. E atual., Salvador: Editora JusPodivm, 2020, pp. 200-201. 4 BRANDELLI, Leonardo. Atas Notariais. In: SILVA NETO, Amaro Moraes et. al. Ata notarial. BRANDELLI, Leonardo (Coord.). Porto Alegre: Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, 2004, pp. 45-47. 5 BRANDELLI, Leonardo. Teoria Geral do Direito Notarial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, pp. 127-133 6 GUTIERREZ CABAS, Willy. El notario de Fe pública como garante de la seguridad jurídica preventiva en los documentos notariales. Rev. Jur. Der., La Paz,  v. 11, n. 16, p. 129-142,  jun.  2022. Acesso em:  26  ago.  2024.
sexta-feira, 13 de setembro de 2024

SINTER 2.0: A ressurreição de um fantasma

O texto aborda os desafios da modernização do Registro de Imóveis no Brasil, destacando a implementação da DOI-WEB e a volta do SINTER. A falta de integração entre sistemas, a redundância de cadastros e a dependência de processos arcaicos são obstáculos a serem superados. A criação do SINTER, embora centralizadora, pode auxiliar na apuração do valor de referência dos imóveis, mas sua efetividade dependerá da cooperação entre as instituições envolvidas. Introdução O processo de modernização do Registro brasileiro tornou-se acidentado e seus resultados ainda pífios e insuficientes. Fiquemos num só exemplo: a nova DOI-WEB, prevista na Instrução Normativa 2.186, de 12/4/24, da RFB - Receita Federal do Brasil. Eis a curiosa solução avant la lettre da futura LC que hoje tramita no Congresso Nacional e que integra o plexo da reforma tributária.1 Nesta nova modalidade de DOI, os cartórios são convocados a interagir com o órgão estatal por intermédio de plataformas de WebService que deverão ser concebidas pelas próprias serventias extrajudiciais e/ou por seus proxies registrais. Outra alternativa, oferecida pelo órgão fazendário, seria prover informações por intermédio de página disponibilizada pela própria RFB. Entretanto, muitos dos dados que agora são exigidos pelo órgão não se acham disponíveis nos sistemas tradicionais dos cartórios - e isto por uma razão bastante singela: são elementos não previstos e exigidos pelo art. 176 da LRP. Para completar o bloco de declarações, será necessário coletar elementos de várias fontes e promover a inserção manual na plataforma estatal - ou em bloco, no formato JSON.2 O certo é que haverá um retrabalho (em regra manual) para a complementação de informações de acordo com o novo layout da DOI-Web, salvo se houver um algoritmo inteligente para racionalizar o processo de formação da planilha informativa. O elenco de dados obrigatórios se acha especificado no documento publicado pela RFB - Manual de Operações - DOI.3 No item 8 - campos do arquivo JSON - encontra-se a especificação do registro, com a indicação dos campos tornados obrigatórios. A especificação do conjunto de dados não deixa de representar uma indução tendente a reestruturar o próprio sistema ontológico do registro de Imóveis brasileiro. A modelagem dos dados, que nasce de uma instância extrarregistral, não se acha coordenada com a especificação do próprio SREI, que tarda lamentavelmente. Este descompasso é ruinoso para todos os órgãos e instâncias envolvidos. O § 3º do art. 1º e art. 7-A da LRP preveem a "escrituração por meio eletrônico", fazendo pressupor a existência de um registro inteiramente eletrônico que ainda não existe. A especificação do SREI, estabelecida no ano de 20124 e recomendada pelo CNJ em 20145, não passou da POC (prova de conceito) levada a efeito em 20196. Sem uma base estruturada do SREI, pergunta-se: de onde virão os dados exigidos pela RFB de modo que o SREI possa interagir de maneira eficiente com a Fazenda Federal por meios eletrônicos? De quais fontes serão extraídos os dados? Como vimos, os dados exigidos pela administração tributária não se acham elencados como requisitos legais obrigatórios para a prática dos atos de registro (art. 176 da LRP). Como conciliar os dados exigidos pela RFB com os gerados no âmbito do próprio registro? Como estruturar os dados espraiados de forma narrativa (inc. I do art. 231 da LRP) nas matrículas e em fontes acessórias dos cartórios? Eis a ressureição do velho SINTER - Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais, redivivo pelo decreto Federal 11.208, de 26.9.22, que criou o CIB - Cadastro Imobiliário Brasileiro (art. 5º), regulamentado pela IN RFB 2.030, de 24/6/21, e pela IN RFB 2.186, de 12/4/24. Regulamentação premonitória de LC que ainda não existe. O SINTER é um cadastro imobiliário com a ambição de abarcar e conciliar aspectos cadastrais e jurídico-reais de todo o território brasileiro, substituindo-se, em parte, aos próprios municípios na gestão e ordenação territoriais. O projeto em tramitação prevê a recriação, em grande estilo, do SINTER, atraindo e concentrando dados em sua usina informacional. Busca-se criar referências objetivas para apurar e divulgar o valor de referência dos bens imóveis, dados que deverão ser divulgados e disponibilizados no SINTER. Entretanto, como se fará isto? Responde-nos o projeto: "para fins de determinação do valor de referência, os serviços registrais e notariais deverão compartilhar as informações das operações com bens imóveis com as administrações tributárias por meio do Sinter" (art. 251 do projeto aprovado na Câmara). Coerentemente com o modelo centralizado da reforma tributária, o PLC 68/2024 consolida o CIB - Cadastro Imobiliário Brasileiro no âmago da administração federal (inc. III, § 1º do art. 43 do PLC). Os serviços notariais e registrais deverão, no prazo de 12 meses, adequar seus sistemas "para adoção do CIB como código de identificação cadastral dos bens imóveis" ("b", I, art. 266). Fosse um modelo de coordenação entre duas instituições reconhecidamente singulares - Cadastro e Registro - ambas intercambiando dados, seria uma ideia extraordinária. Entretanto, parece que a RFB constrói um espelho do Registro, com a chave geral do sistema - CIB -, com a qual se abrem as portas para os dados registrais concentrados no órgão estatal. Novas demandas - velhas soluções - novos desafios Neste cenário, antevê-se o fenômeno já apontado por mim: dão-se soluções anacrônicas a demandas digitais que se originam da sociedade da informação. Na impossibilidade de utilizar as ferramentas tecnológicas concebidas para dar respostas eficientes a tais exigências, tendemos a resolver os novos problemas e desafios com processos arcaicos, disfuncionais, sabendo-se, de antemão, que a solução passaria, simplesmente, pela assimilação de novas tecnologias, reservando aos humanos tarefas muito mais dignas e importantes. Em suma: novas demandas - velhas soluções - novos desafios. O SREI tarda e este descompasso marginaliza o sistema registral do processo de digitalização da sociedade brasileira. Redundância informativa Por fim, o Conselho Nacional de Justiça, por sua Corregedoria Nacional, vem de instituir um canal direto de comunicação entre os registros prediais e a administração pública municipal, a fim de informar as mudanças de titularidades de imóveis e municiá-los com dados recolhidos dos registros prediais. Diz a norma que os dados "serão anonimizados pelo CNB/CF e pelo ONR, quando de seu recebimento, antes de qualquer tratamento estatístico" (§ 7º do art. 184-A da CNN/CN/CNJ-EXTRA). Como disse alhures, ou bem o ato normativo trata do envio de dados para os municípios ou cuida da geração de dados estatísticos, lembrando-se que os dados eventualmente necessários para a atualização cadastral da administração municipal não devem ser anonimizados. A propósito registrei em recente artigo: "O apoio do Registro Imobiliário na 'atualização cadastral dos contribuintes das Fazendas Municipais' (art. 4º da Resolução CNJ 547 de 22/2/24) é típica atividade de coordenação entre o cadastro e registro, ideia propugnada e defendida há décadas pelos registradores.7 O Provimento CNJ 174/24 foi feliz em estabelecer como se dará o 'intercâmbio de dados estruturados entre as serventias extrajudiciais e as municipalidades' (§ 6º do art. 184-A do CNN/CN/CNJ-Extra), fazendo presumir que a relação a ser construída é P2P (peer-to-peer), sem a concentração de dados em centrais eletrônicas extrarregistrais (proxies registrais), sabendo-se, de sobejo, que a concentração de dados em plataformas extrarregistrais é sempre problemática e os episódios de ataques hacker lamentavelmente tornaram-se bastante comuns. Data is the new oil - rezam os cânones da economia digital. Além disso, a expressão intercâmbio pode (na verdade deve) ser interpretada no sentido de reciprocidade na entrega da informação, uma via de mão dupla. Muitos dados albergados na administração pública são igualmente relevantes para aperfeiçoar o registro, favorecendo a mais perfeita coordenação entre o registro e o cadastro.8 Seja como for, espera-se que os responsáveis pela redação do manual técnico para especificação dos dados e padrão da API levem em consideração a necessidade de se preservar a privacidade na troca de informações, somente possível pelo uso de criptografia assimétrica".9 De fato, os municípios poderão acessar as bases de cada unidade com o uso da chave privada do agente responsável (certificado digital). Os dados serão criptografados na origem (serventias) com o uso da chave pública do agente. Com isso preserva-se, ponta a ponta, a privacidade dos dados pessoais. Entretanto, não deixa de ser impressivo o fenômeno de redundância informativa no âmbito de vários cadastros, sejam eles municipais, estaduais ou federais, mantidos e suportados pela administração pública.10 Com a iminente criação do CIB, do qual os cartórios serão um ramal ancilar, deveríamos concretizar o que há décadas se propugna - a interconexão entre cadastro e os registros públicos. Apocalípticos e integrados Há mais de dez anos escrevíamos sobre os perigos representados pelo SINTER. A iniciativa da RFB nascia com uma clara ambição: instituir o registro de imóveis eletrônico previsto na Lei 11.977, de 7/7/09. O esboço do decreto trazia consignado em sua epígrafe o seguinte dístico: "Regulamenta o Sistema de Registro Eletrônico e institui o Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais - SINTER".11 Os objetivos que inauguraram o SINTER acham-se bem assentados e consagrados no documento - Projeto Rede de Gestão Integrada de Informações Territoriais12, que fundamentava o esboço do decreto regulamentador. As discussões acerca do SINTER, travadas no âmbito do IRIB e do CNJ - com a oposição de alguns setores da própria atividade13-, visavam reconduzir o tema ao leito natural da interconexão entre o registro de direitos e o cadastro imobiliário técnico multifinalitário. Afinal, havia o precedente exitoso da infraestrutura criada pela Lei 10.267/01, marco legal que promoveu a sincronia entre ambas as instituições - o cadastro e o registro de direitos - criando uma infovia virtuosa e de mão dupla. Na mesma época divulgávamos um pequeno estudo acerca das transformações sofridas pelos paradigmáticos sistemas registrais francês e belga, descontinuados e assimilados pela administração fazendária de seus países.14 Era uma advertência lançada à reflexão dos registradores, acautelando-os para os possíveis cenários que ainda se desenham no horizonte. A tokenização de ativos e garantias imobiliárias e a blockchain, as reformas constitucionais que abrem espaço para regulação pelo Banco Central de registros de garantias (PEC 65), esses fenômenos devem ser percebidos como tendências e impulsos de transformação do ecossistema de registro de direitos.15 O esvaziamento de atribuições de notários e registradores não é novidade e bastaria o exemplo do RTD, que vem progressivamente perdendo atribuições para outros órgãos. Aproveitando-nos do mote de Umberto Eco, o que a muitos pode soar uma advertência alarmista ("apocalíptica") e a outros, simplesmente mais prudentes, as notícias do front podem servir de preciosos elementos para reflexão e estudos e, quiçá, provocar mudanças estratégicas e oportunas. Conclusões O ecossistema notarial e registral acha-se em processo de profundas transformações, algumas disruptivas, o que não significa que sejam necessariamente proveitosas; disrupção pode vir a ser simplesmente ruptura da tradição, destruição do edifício da fé pública. A RFB e a Corregedoria Nacional de Justiça poderiam ser provocadas pelo ONR ou mesmo pelo IRIB (ou por qualquer das várias entidades que pululam por aí) para implementar processos de intercâmbio de informações entre os órgãos públicos de maneira mais eficiente, menos onerosa e, se possível, cumprindo as normas e orientando-se a princípios consagrados na tradição do nosso Direito. O novo SINTER poderá ser uma ferramenta útil para a dificuldade histórica de apuração do valor real das transações imobiliárias, mas não deve assimilar dados que não são necessários para a realização de seus propósitos originais de administração tributária, controle aduaneiro e gestão de informações econômico-fiscais. Resta-nos aguardar para ver como o sistema se articulará com todas as instituições, agentes e atores envolvidos, e, especialmente, como serão construídas as infovias que permitirão o intercâmbio racional e inteligente entre todos eles. __________ 1 PLC 68/2024. Institui o Imposto sobre Bens e Serviços - IBS, a Contribuição Social sobre Bens e Serviços - CBS e o Imposto Seletivo - IS e dá outras providências. 2 JSON (JavaScript Object Notation) é um código e linguagem utilizados para troca de dados entre sistemas e máquinas. Ele é amplamente utilizado para transmitir dados estruturados entre um servidor e um aplicativo web, assim como para armazenar dados de forma organizada. Referência aqui. 3  Disponível aqui. 4 Vide SREI - especificação aqui. 5 Recomendação 14/14, de 2/7/14, Cons. Guilherme Calmon. Dita recomendação foi revogada pelo Provimento 180/24, o que nos pareceu inteiramente descabido, já que toda a especificação do SREI, atualmente em desenvolvimento no ONR - Operador Nacional do SREI, baseia-se inteiramente na documentação original da qual fará parte integrante e indissolúvel. A própria documentação atualmente produzida colocará em evidência tal fato. Acesso aqui. 6 Para uma visão panorâmica do trabalho desenvolvido, acesse aqui. 7 Tive ocasião de editar um livro seminal sobre o assunto: CARNEIRO, Andrea Flávia Tenório. Cadastro Imobiliário e Registro de Imóveis. Porto Alegre: IRIB/safE, 2003. A partir da década de 1990, os registradores passaram a colaborar com os estudos sobre a interconexão entre os registros e os cadastros, firmando convênio com a Universidade Federal de Santa Catarina, sob a coordenação do pranteado mestre Prof. Dr. Jürgen Philips e, posteriormente, na Federal de Pernambuco, sob a coordenação da Profa. Dra. Andrea Carneiro. Para conhecer esta bela história de cooperação interinstitucional, indico o documentário GEOirib - 20 anos. Disponível aqui. 8 O exemplo paradigmático é a lei do Georreferenciamento dos imóveis rurais (lei 10.267/01) em que se estabelece o intercâmbio de informações entre os cartórios e o INCRA. 9 JACOMINO, Sérgio. A IA e o Registro de Imóveis. Pequenas digressões vestibulares - Parte I. São Paulo: Observatório do Registro, 2024, disponível aqui. 10 No ano de 2015 o TCU enfrentava o problema de profusão de cadastros de imóveis rurais entre as várias instâncias do Governo Federal. V. Acórdão TC 011.713/2015-1 que trata da governança de solos em áreas não urbanas e critica a grande quantidade de legislações sobre o tema e vasta gama de instituições governamentais dispersas sem clara delimitação de funções. Disponível aqui. 11 REZENDE, LuÍs Orlando Rotelli. TREVISAN, Antônio Carlos. Projeto Rede de Gestão Integrada de Informações Territoriais. Anexo I - Proposta de Minuta do Decreto de Regulamentação do Sistema de Registro Eletrônico. Brasília: RFB, 18/4/2013. Disponível aqui. 12 Vide os documentos vestibulares e estruturantes do SINTER, projeto iniciado no ano de 2013. Disponível aqui. 13 Cfr. rico painel crítico no dossiê disponível aqui.  14 JACOMINO, Sérgio. Registros de documentos - crônica de uma morte anunciada. São Paulo: Observatório do Registro, 9/12/2013. Disponível aqui. 15 A PEC 65 assombra a ANOREG-BR e CNR, que lançaram nota à imprensa em que manifestam suas preocupações com a ampliação das "as atribuições do BACEN incluindo funções típicas do Estado, atualmente exercidas por notários e registradores". Segundo as entidades, a "hipótese de o BACEN assumir funções delegadas aos notários e registradores, essenciais para a garantia da segurança jurídica e proteção dos direitos de propriedade, ameaça a confiança pública em sua atuação como autoridade monetária, em um momento no qual ela está colocada em xeque". Disponível aqui. [mirror].
1. Brevíssima referência histórica sobre o Registro Civil1 A necessidade de se saber quem são as pessoas, qual é o seu nome, a sua filiação, o seu estado civil e o seu último momento na vida - o óbito - foi sentida desde a antiguidade. Mas, é no Direito Romano que os especialistas identificam o berço do Registro Civil, atualmente em vigor nos países europeus e latino-americanos da civil law. De fato, no Direito Romano já se previam determinadas inscrições públicas sobre o estado da pessoa, ainda que com um fim meramente estatístico e militar. Para o demonstrar, basta recordar o episódio do nascimento de Jesus Cristo que, diz-se, só aconteceu em Belém porque um Imperador Romano havia determinado um recenseamento, para saber quantas eram as pessoas nascidas - e quais as suas particularidades -, naquele remoto recanto do seu Império. Depois da oficialização da religião cristã e durante a Idade Média e Moderna o Registro Civil foi ficando, praticamente em toda a Europa, a cargo da Igreja. Consequentemente, os não católicos foram, naturalmente, excluídos dos registros eclesiásticos. Tal realidade, com o passar dos séculos, passou a ser vista como uma fragilidade do Registro Civil ou como uma falha das monarquias, que não providenciavam um serviço de Registro Civil aos não católicos. Os ideais iluministas, em oposição ao poder absoluto dos monarcas e da igreja católica, advogavam, como se sabe, a rutura entre a religião e o Estado e conduziram a que despontasse a convicção de que os direitos decorrentes do nascimento, do casamento e do óbito tinham de surgir, modificar-se, transmitir-se e extinguir-se independentemente da religião professada pelos indivíduos, devendo de ser o Estado a promover, para efeitos jurídicos, a constatação de tais factos, através de órgãos próprios. Tal ideia, como se sabe, acabou por vingar com a Revolução Francesa2, tendo-se, então, determinado que a função do Registro Civil tinha de ser pública, pertencendo ao Estado ou aos municípios, pois apenas um sistema sob incumbência do Estado seria capaz de garantir o acesso de todos os cidadãos ao Registro Civil e aos direitos dele decorrentes, independentemente da religião professada. Em Portugal, foi com o decreto de 16/5/1832, que o Registro Civil conheceu a primeira providência legislativa. Através dele o Estado reconheceu a vantagem de tornar extensiva a todos os indivíduos a prática da Igreja relativamente aos católicos, subordinando a realização do registro a princípios jurídicos uniformes, que assegurassem a sua regularidade e fiscalização. A este decreto seguiram-se outros diplomas elaborados com objetivo de secularização do Registro Civil. No entanto, o Registro Civil em Portugal só foi oficialmente instituído, após o fim da Monarquia (ou com a implantação da República), pelo Código do Registro Civil de 18/2/1911. O mesmo ocorreu no Brasil, onde a proeminência da Igreja Católica e a sua boa organização administrativa conduziu a que fosse a única responsável pelo Registro Civil - cujos assentos eram realizados nos livros paroquiais - durante todo o período colonial. Mantendo tal competência, em exclusividade ou não, mesmo após a independência, até 1888. Em virtude da laicização do Estado, em 1888, foi publicado o decreto 9.886, o qual fez cessar os efeitos civis dos registros eclesiásticos dando origem ao Registro Civil destinado à certificação do nascimento, casamento e óbito. Portanto, quer em Portugal quer no Brasil, no século XIX, tornou-se evidente que o Registro Civil tinha de ser parte integrante da potestas do Estado sobre a população. E, até à atualidade, é manifesto que o Estado Português e o Brasileiro continuam a encarar o Registro Civil como parte da sua soberania, uma vez que é ele - o Registro Civil - que fixa autenticamente a individualidade jurídica de cada cidadão e serve de base aos seus direitos. 2. Da Relevância do Registro Civil O Registro Civil faz parte da vida de todos. Os fatos mais importantes da existência humana - do nascimento com a aquisição da personalidade civil, à morte, que é o último momento da existência da pessoa natural, perpassando pelos fatos mais relevantes da trajetória dos indivíduos, como o casamento e eventuais alterações do estado da pessoa (emancipação, medidas de apoio a maior acompanhado, etc.), apenas são reconhecidos juridicamente se forem publicitados pelo Registro Civil e só podem ser devidamente comprovados através dos seus assentos e averbamentos. Em consequência, o exercício da cidadania depende do Registro Civil. De fato, sem registro de nascimento, uma pessoa, oficialmente, inexiste para o Estado - como coloca em evidência uma ONG angolana, intitulada Handeka, no seu projeto "Sem Registro, Não Existo". Só com o registro de nascimento uma pessoa passa a existir juridicamente e a poder exercer a sua cidadania. Quem não tem registro de nascimento não pode obter diversos documentos, tais como o NIF ou CPF, a carteira de trabalho, o número de segurança social, o cartão de eleitor. Consequentemente, vê-se privado da possibilidade de exercer os direitos e de cumprir os deveres que aos mesmos estão associados (de trabalhar; de contribuir com parte dos seus rendimentos para a segurança social e para o Estado em geral, de beneficiar dos sistemas de ensino e de saúde públicos, bem como de reforma ou aposentadoria). Acresce que sem registro de nascimento uma pessoa não pode abrir conta num banco, nem adquirir imóveis. Por fim, quem não existe no Registro Civil não tem liberdade de locomoção, pois, pelo menos, não se pode ausentar para o exterior do país onde nasceu. Ora, a liberdade de locomoção ou de movimento constitui a primeira forma de liberdade física que o ser humano teve de conquistar - a ela opõe-se à prisão. Recordamos ainda que o Registro Civil é o suporte que garante a efetividade de direitos constitucionalmente consagrados, tais como: À identidade pessoal (abrangendo a identidade de gênero), à filiação, à capacidade civil, à maternidade e à paternidade, à tutela da família, ao casamento. Em síntese, para cada pessoa, individualmente considerada, o Registro Civil representa o veículo de acesso ao "mundo dos direitos". Mas, o Registro Civil não assume relevância apenas individual, sendo inquestionável a sua importância para o Estado. O acabado de afirmar é inegável quando se tem presente que a população é o primeiro elemento de um Estado, desde logo, porque não é possível conceber um sem população. Acresce que qualquer Estado necessita de informações sobre a sua população para, adequadamente, gizar e concretizar políticas públicas. Por fim, recordamos que a existência de não registados gera desigualdade social, econômica, cultural, política, etc. e, portanto, consubstancia um problema da sociedade, o mesmo é dizer, do Estado. Ainda a propósito da importância do Registro Civil, cumpre referir que nas últimas décadas, em virtude do fenômeno da desjudiciarização, múltiplos processos e procedimentos deixaram de ser da competência do Poder Judiciário e passaram a ser dos cartórios do Registro Civil, com evidentes ganhos quanto à acessibilidade, simplificação procedimental, celeridade e efetividade, sem que fosse descurada a segurança jurídica, necessária à tutela dos interesses em causa. De fato, sob fio condutor da efetividade social3, muitos e importantes papéis passaram a ser desempenhados pelo Registro Civil: O reconhecimento voluntário de paternidade, a realização de casamentos homoafetivos, a alteração do nome próprio e/ou do sobrenome, a alteração do sexo mencionado nos documentos, etc. Ora, o que mais se destaca nestas novas atribuições, sem desprestigio das demais que compõem o expediente dos serviços de Registro Civil, é que promovem a liberdade de se ser o que se é, bem como, a igualdade de todos, entre si e perante o Estado, assim combatendo o preconceito e a discriminação. Em suma, estas novas atribuições do Registro Civil sobressaem porque asseguram ou realizam, efetivamente, a dignidade humana! Porque assim é, não se pode questionar a potencialidade de os serviços de Registro Civil virem a assumir novas competências. 3. Três antigas questões a propósito do Registro Civil: A) Por que razão o valor acrescentado pelo Registro Civil não se evidencia de forma notória? - Em face das vantagens proporcionadas pelo Registro Civil, numa primeira reflexão, tende-se a considerar estranho o fato de Este ser subvalorizado. Não obstante, a resposta à questão colocada - Por que razão o valor acrescentado pelo Registro Civil não se evidencia de forma notória? - é simples: A mais-valia gerada pelo Registro Civil é subvalorizada porque é um dado adquirido! Explicitemos o afirmado, com uma comparação: A baixa de Lisboa está toda ela assente em grandes vigas de madeira enterradas a grande profundidade. Sem estas vigas invisíveis tal parte da cidade afundar-se-ia. E, no entanto, a generalidade das pessoas que por ela passeia ou que nela vive não têm real consciência da importância vital de tais vigas. O mesmo acontece com o Registro Civil! Enquanto existe quase que não se não se dá conta dele, se faltasse todos notariam! B) O Registro Civil deve continuar a cargo do Estado? - Tendo em conta todo o exposto, a resposta a esta questão parece-nos inequivocamente afirmativa. Mais, na nossa perspectiva, a prestação de serviços de Registro Civil deve competir exclusivamente ao Estado, não devendo ser repartida com entidades privadas.4 Designadamente, tendo em conta a imensa base de dados existente nos serviços de Registro Civil e a imperiosa necessidade de a mesma ser gerida de modo muito cauteloso. A propósito do acabado de defender, recordamos que Arnold Toynbee5, um dos historiadores europeus mais importantes do século XX, escreveu como na Alemanha e no regime de Hitler, os judeus foram sistematicamente isolados da vida económica e política, antes de serem eliminados fisicamente, e como tal só foi possível por o regime ter beneficiado da informação que proporcionava um sistema "eficiente" de Registro Civil - em pouco tempo foi possível identificá-los, determinar, com precisão, o número das suas propriedades e empresas, tendo-se, assim, iniciado a perseguição econômica com a publicação de leis que os proibia de, por exemplo, exercer medicina, enfermagem ou advocacia, subscrever seguros, constituir empresas ou aceder à propriedade. Um ano foi suficiente, naquela época, para conseguir centralizar toda a informação sobre os judeus e empreender a perseguição. É claro que não foi a perfeição do Registro Civil germânico que esteve na base da espoliação dos judeus. Todos sabemos que a verdadeira causa esteve na doutrina que os considerava seres a exterminar. Mas, o exemplo revela a enorme importância da base de dados existente nos serviços de Registro Civil e a necessidade de ela ser utilizada de modo extremamente prudente, maxime em um século no qual os dados são o novo petróleo, mas, ou por isso, se tornou inegável o direito fundamental à proteção dos dados pessoais.  C) Devem determinados atos do Registro Civil ser gratuitos? Como anteriormente afirmamos, o Registro Civil garante o acesso de todas as pessoas  ao "mundo dos direitos", promove a liberdade de se ser o que se é, a igualdade de todos - entre si e perante o Estado -, combatendo o preconceito e a discriminação e realizando, efetivamente, a dignidade humana! Ora, assim sendo, a gratuidade, reduzindo o sub-registro e a informalidade, é imprescindível para cada pessoa em si e por si, para a sociedade e para o Estado. Sendo, para nós, tal incontestável, também consideramos inquestionável que sempre que as funções registais não sejam exercidas directamente pelo Estado, mas por entidades privadas em regime de delegação ou concessão, estas devem receber a contraprestação correspondente à sua actividade, devendo a gratuitidade ser assegurada a expensas do Estado, o mesmo é dizer, de todos os seus cidadãos.6 4. Alguns desafios do Registro Civil na Atualidade No mundo pós-moderno e globalizado ocorreu e ocorre um fenómeno de convergência entre a evolução da tecnologia e a modificação do direito substantivo aplicável ao Registro Civil. Tal fenômeno caracteriza-se por duas particularidades: Grande amplitude; Extrema rapidez. Quanto à evolução da tecnologia, escusamos de tecer qualquer comentário, pois é um facto inegável. A propósito das mudanças do direito substantivo aplicável ao Registro Civil limitamo-nos a recordar: a admissibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo7; o reconhecimento de efeitos à união de facto/união estável; o reconhecimento do direito à mudança do nome próprio e do sobrenome; o reconhecimento do direito a ver alterada a menção do sexo feita nos documentos; a admissibilidade da gestação de substituição/"barriga de aluguer".8 A evolução da tecnologia impõe um Registro Civil Digital - como já existe, por exemplo, na Suíça, na Estónia e na Rússia  -, no entanto, inegavelmente, envolve riscos, tais como: Erros de transcrição; fraude; possibilidade de "hackeamento". As mudanças no direito substantivo, por seu turno, têm, necessariamente, de ser espelhadas no Registro Civil, mas, como se sabe, ambas podem ser indevida e abusivamente utilizadas.  Designadamente: ¾ a mudança do nome próprio em um País e do sobrenome em um outro pode verificar-se com o intuito de dificultar a identificação. ¾ a mudança da menção do sexo nos documentos pode, em abstrato, ocorrer para se  obter gratuitamente a alteração do nome (assim, onde a mudança de nome próprio tem um custo, mas a mudança da menção do sexo e nome é gratuita) ou porque se intenta cometer violência de gênero e por ela não ser punido ou, ainda, porque se pretende garantir que em caso de prisão se cumprirá pena em um instituto prisional feminino. Em face do acabado de afirmar são, inequivocamente, múltiplos os desafios com que se depara o Registro Civil na atualidade. Acresce que, temos por certo, muitos outros reptos surgirão. A título de mero exemplo, basta recordar o facto de a abordagem binária estar a ser repudiada tendo já conduzido a que: ¾ A Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, através da Resolução 2.191 (2017), apelasse aos Estados Membros do Conselho da Europa, no que diz respeito aos estado civil e ao reconhecimento legal de género, que assegurem - sempre que as classificações de gênero sejam utilizadas pelas autoridades públicas - que esteja disponível, para todas as pessoas (incluindo as pessoas intersexuais que não se identificam nem como homens nem como mulheres), um leque de opções de marcadores de gênero. Sugerindo, em consonância com o que tem vindo a ser defendido na comunidade internacional, como alternativa à criação de marcadores não-binários, vir a tornar-se opcional, para todos, o registro do sexo nos assentos de nascimento e noutros documentos de identidade. ¾  A ordem jurídica Alemã  introduzisse a "categoria" diversificado ou diverso (cfr. § 22 (3) Personenstandgesetz). ¾ Em março de 2024, no Brasil, fosse emitida uma certidão de nascimento declarando que a pessoa é intersexo. __________ 1 Por todos, vide: Carlos Ferreira de Almeida, Publicidade e Teoria dos Registos, Coimbra, Almedina, 1966, pág. 137 e ss.; J. Seabra LOPES, Direito dos Registos e do Notariado, 3.ª edição, Almedina, 2005, p. 37 e ss.; Donato Sarno, Storia dei Registri dello Stato Civile, Halley Editrice, 2010; Hércules Aghiarian, Da constitucionalização da atividade notarial e registral. In Moderno Direito Imobiliário, Notarial e Registral. São Paulo: Quartier Latin, 2011; Mouteira Guerreiro, Manual de Registo Civil, da Identidade Civil e da Nacionalidade, Almedina, 2023, p. 25 e ss. e Noções Básicas de Registo Civil, in Temas de Registos e de Notariado, Almedina, Janeiro de 2010, pág. 137 e ss.; Marcelo gonçalves Tiziani, Uma Breve História do Registro Civil na Antiguidade, disponível in: https//jus.com.br/artigos/42691/uma-breve-historia-do-registro-civil-na-antiguidade, consultado a 1 de Julho de 2024. 2 Recordamos que no art. 7, Título II, da Constituição Francesa de 1791, podia ler-se: A lei considera o matrimônio como um contrato civil. O Poder Legislativo estabelecerá para todos os habitantes, sem distinção, o modo em que se constatarão os nascimentos, matrimônios e falecimentos e designará os oficiais públicos que receberão e conservarão os atos. 3 Efetividade traduz-se na junção de eficácia e de eficiência, pois representa a capacidade de se fazer uma coisa (eficácia) da melhor maneira possível (eficiência), atingindo os objetivos visados, que geram impactos sociais ou individuais. 4 Questão diversa é a de saber as funções registais devem ser exercidas directamente pelo Estado - como ocorre, por exemplo, em Portugal e em Espanha - ou, ao invés, por entidades privadas em regime de delegação ou concessão - como acontece no Brasil. Isto porque, quer numa hipótese quer noutra, a ordenação dos Registros é da competência exclusiva do Estado, sendo inquestionável a natureza pública dos Registros. 5 ARNOLD TOYNBEE, La Europa de Hitler, Sarpe,1985, p. 119 e 120. 6 Por todos, vide: José Renato Nalini, Registro Civil das Pessoas Naturais: usina de cidadania. In: DIP, Ricardo Henry Marques (Org.). Registros Públicos e Segurança Jurídica. 1. ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1998. 7 Recorde-se que na Grécia, o casamento entre pessoas do mesmo sexo apenas foi legalmente admitido a15 de Janeiro de 2024. 8 Sublinhe-se que, por exemplo, em França, o artigo 16-7 do Código Civil, ainda proíbe qualquer acordo relativo à gestação de substituição.
No ano de 1946 duas decisões foram publicadas no Diário Oficial da Justiça do dia 17/9 (p. 3). Ambas versavam sobre a modernização do sistema de lavratura de atos notariais. As representações foram feitas pelo 15º Tabelionato da Capital e pelo Tabelião Vampré. No Processo CG 4.063 (15 TN) requeria-se autorização para o uso de máquinas de escrever especiais (Elliot-Fischer) para lavrar escrituras em livros de notas. O corregedor geral, des. Amorim Lima, autorizaria o emprego da técnica, "desde que a tinta seja indelével e a impressão seja feita diretamente no livro, sem danificar a encadernação". Já no Processo CG 4.071, no pedido formulado pelo Tabelião Vampré, seria negada a autorização para lavratura dos atos notariais em folhas avulsas. "Há grandes inconvenientes na lavratura de notas em papéis avulsos, para encadernação posterior", diz o mesmo corregedor. A melhor solução estaria no emprego de máquinas de impressão direta, conforme já autorizado. As duas decisões marcam um importante momento de renovação dos meios tecnológicos postos à disposição dos notários brasileiros. Militão Antônio dos Santos, que foi escrevente habilitado do 22º Tabelionato da Capital de São Paulo (depois serventuário, cargo no qual se aposentou pelo IPESP) escreveu opúsculos muito interessantes na décadas de 50. Ademar Fioranelli me presentou o "Coisas de Cartórios", edição de junho de 1951, muito caprichada. Há nele uma dedicatória ao Dr. Daphnis de Freitas Valle, antecessor do querido Ademar. Diz ele nesta preciosidade: "Muitos dos atuais Serventuários e escreventes ainda se recordam dos velhos tempos em que, nos cartórios, os traslados de escrituras, as certidões, públicas-formas, e todos os atos processuais só podiam ser manuscritos. Lembram-se, também, de quanto tempo e esforço foi necessário para que as vantagens e a perfeição do serviço mecanografado pudessem dominar o velho preconceito de que, para autenticidade e segurança daqueles instrumentos notariais e papeis judiciais, os mesmos só deveriam ser escritos do próprio punho dos Serventuários ou de seus escreventes e copistas. Entretanto, apesar do progresso alcançado nos tabelionatos de notas, por motivos vários, a lavratura de escrituras e procurações continua, como antigamente, a ser feita do próprio punho. Por se tratar de atos que só podem ser lavrados em livros, devendo, estes, por determinação legal, serem abertos, rubricados e encerrados pelo Juiz competente, tem sido mais difícil, quanto a eles, a generalização da mecanografia. Surgem, porém, aos poucos, graças à inteligente iniciativa de alguns Serventuários progressistas, novas ideias para modernização daquele serviço". (SANTOS, Militão Antônio dos. Coisas de Cartórios. São Paulo: Ed. Autor, junho de 1951, p. 53). _________ Militão cita duas decisões cujas íntegras podem ser acessadas na Kollemata. Disponível aqui.