COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas

Política, Direito & Economia NA REAL

Enfoque político, jurídico e econômico.

Francisco Petros
terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Governar sem verdades e mentiras sagradas

"Tente viver como se fosse manhã".Zaratustra, Nietzsche  A democracia não é apenas um "sistema" ou "forma" de tornar concreta a política. A democracia pode ser analisada e exercida sob diferentes enfoques vez que, na qualidade de fenômeno social (pólis), permite diferentes angulações sobre a convivência entre os "agentes políticos de determinada sociedade. A necessidade de "sucessão" no exercício do poder político é das mais desafiadoras faces da democracia na atualidade: sem sucessão não há democracia, pois é desta que deriva a liberdade de escolha daqueles que exercem o Poder Político. Sem liberdade a democracia não pode materialmente existir. Afinal, é o escrutínio dentro da dinâmica social que cria as condições para a escolha de quem governa. Por outro lado, a corrupção está entre as distorções mais relevantes da democracia pois que o processo de sucessão pode ser mitigado ou destruído e o escrutínio social passa ser negativamente condicionado pelo envolvimento dos cidadãos com os empoderados - o Brasil sabe bem disso. A primeira derivada da corrupção leva a um interesse público destroçado. Sempre. Os primeiros  e singelos dois parágrafos deste artigo servem apenas para nos lembrar de que o esgarçamento eleitoral de 2022 ocorreu pela polarização entre dois candidatos que expressaram em menor medida a formação de correntes de opinião pública com fronteiras balizadas pela natural diversidade e pluralidade democrática (da esquerda à direita do espectro político) e muito mais a luta por meio do voto (graças!) entre os que acreditaram que a perspectiva de sucessão democrática não poderia ser arrebentada por um governo autoritário e, quiçá, ditatorial ou, face à esta possibilidade, pelos que acreditaram que a corrupção poderia destruir a expectativa de um Estado minimamente republicano. Claro que se trata de uma simplificação que, neste momento histórico de nosso país, faz todo o sentido. (Voltamos aos bancos escolares em matéria democrática). A diferença microscópica de votos entre Lula e Bolsonaro (1,8% dos votos) materialmente não simboliza per se o acirramento da disputa eleitoral. Significa, isso sim!, o fracasso de nossa democracia como expressão de que a neutralização dos "inimigos da democracia" via o voto universal poderia falhar. Não foram poucos eleitores dispostos a trocar a democracia pela ilusão da corrupção derrotada. De outro lado, foram outros muitos que disponibilizaram os seus votos para barrar um regime autoritário. Esta terrível constatação é facilmente identificável por aqueles que vivenciaram a eleição. Deveria sê-lo também pelos que ganharam a eleição, não é mesmo? É certo que os modelos baseados exclusivamente no tal do "mercado" não são fonte infindável de asseguração de que a democracia será sempre vitoriosa. Veja-se o caso da China que se estruturou como uma "economia de mercado", mas de facto é uma ditadura autocrática, dita comunista. O "mercado" pode viver sem a democracia, mas felizmente o contrário não é possível. Afinal, o escrutínio do voto livre repousa sobre direitos fundamentais insuperáveis, como o direito de consumir e investir livremente e no livre trânsito das ideias e expressões culturais. No mundo moderno, a restrição ao mercado decorre dos limites à sobrevivência e preservação da natureza, na maior igualdade social, no respeito às diversidades humanas e do meio ambiente e assim vai. As externalidades modernas tomaram conta de nossas preocupações maiores. A corrupção muito provavelmente não será extinta. Todavia, é obrigação de quem governa mitigar, ou mesmo, eliminar os meios propulsores da corrupção. Há compêndios volumosos que tratam deste tema. É dispensável a titulação de PhD para entender e dar vazão às boas práticas políticas e sociais em prol da redução da corrupção. No sentido do que acima escrevo, em suma, tivemos em 2022 (i) uma escolha de governo com estreiteza mínima de votos em face da polarização política, (ii) a rejeição dicotômica de um candidato em face das práticas de corrupção em suas administrações anteriores e de outro candidato que tentou (e tenta) pregar e agir contra a democracia e (iii) a vitória por uma margem de votos irrisória para justificar a glorificação do vencedor. Os termos da vitória eleitoral do governo vindouro deveriam motivá-lo à uma postura serena, mesmo que arrojada, em prol da renovação da política, das melhores práticas de governo e da inovação criativa e ética no trato da coisa pública. A legitimação da nova administração, do ponto de vista material e não somente eleitoral, depende da criação de excelentes expectativas a começar por aquilo que quase criou uma ruptura política. O combate à corrupção, ao clientelismo, ao patrimonialismo, à timocracia desprovida das virtudes na gestão da coisa pública. Tendo sido à vitória do novo governo promovida pelas suas virtudes democráticas por que as destroçar no reavivamento de seus desvios históricos? Aqui não se faz juízo de valor sobre as razões desta imagem histórica, justa ou injusta, de quem quer que seja. Referimo-nos exclusivamente à necessária percepção de que é preciso atuar naquilo em que o distinto povo desconfia e quer ver corrigido. Vê-se que a formação e estruturação da administração do candidato vencedor carece de cuidados com as cavidades e abismos nos quais pode tropeçar e levar a todos. Mal dizer, a título de ilustração, sobre a necessidade de uma âncora fiscal ou de uma gestão inovadora e escorreita do orçamento não é bom começo para quem desconfia de que o risco-país vai subir e pode estragar a festa da democracia. Mesmo para mudar as linhas mestras de uma política fiscal que se considera superada é necessário buscar apoio na sociedade e justificar a nova ordem fiscal. Se não há sabedoria no tal do "mercado" não pode faltá-la a quem não quer sacrificar a Política face ao tal do "mercado". Da mesma forma, não é bom sinal empoderar políticos e tecnocratas sem que se vislumbre ex ante a possibilidade de estes cuidem bem dos interesses mais profundos e legítimos da sociedade. Frentes amplas na formação de governos não deixam de requerer a estreiteza frente às más práticas com a res publica, bem como, a visão estratégica para que o país saia deste atoleiro econômico, social e político no qual todos estamos metidos. Sacrificar a Lei das Estatais, mesmo que se deseja melhorá-la, não é bom passo na longa caminhada. A perda de poder simbólico é enorme. O tal do "mercado" forma preços e variações de valor a partir de expectativas. A política forma expectativas a partir de fatos. A sociedade está vendo, desde a eleição, os fatos ao tempo em que forma as suas expectativas. Não se pode errar na saída sob pena de jogarmos o país nas mãos dos que estão dispostos a sacrificar a democracia em uma troca injustificada por uma nova ética autoritária. Por fim, creio que cabe relembrar que, nas escolhas dos que vão governar, a ingratidão aos apaniguados talvez seja uma virtude, no uso não-literal da profética e irônica sentença do grande Charles De Gaulle.  Um bom Natal a todos e um feliz ano novo.
quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Não há teto para a inovação

Inovação se tornou mecanismo essencial para combinar apoio da sociedade e das estruturas do Estado. Na superfície da política brasileira vê-se o pesaroso rumo das discussões sobre o orçamento de 2023. Mais que o "teto de gastos" o que está em jogo é a consistência interna e externa da política fiscal e os seus efeitos sobre as possibilidades de desenvolvimento do Brasil. A "herança maldita" do governo do ex-capitão vai muito além da constatação de que a única ferramenta consistentemente usada por Paulo Guedes e seus Chicago caps é a "tesoura" para cortar gastos de forma atabalhoada para, assim, cumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal. Se no futuro o "teto" é um risco possível, no presente ele é a própria realidade. Seja qual for o desfecho das discussões parlamentares sobre o "teto", o certo é que as possibilidades econômicas do próximo governo estão sob forte escrutínio face ao desastre econômico deixado pelo desmonte bolsonarista. A conjugação da necessidade de uma (i) regra fiscal crível e efetiva, bem como, de uma (ii) política monetária e cambial que sustente as possibilidades de crescer e desenvolver o Brasil indicam que a saída política para os problemas brasileiros tem de ser robusta. Sabe-se que Lula tem de formar uma frente ampla no Congresso para viver e sobreviver nos próximos quatro anos. De outro lado, a gestão comezinha e banal do poder não levará o país a lugar nenhum: se os meios de se fazer política no Brasil são disfuncionais o que obriga o presidente da República a atuar com base em conchavos, de outro lado, as ambições e planos da gestão merecem conceitos com excelência e operação efetiva. Em pleno século XXI não adianta atuar com base na nossa tradição oligárquica e clientelista. No sentido do que se provoca nos parágrafos acima, é preciso que a nova administração não perca a capacidade de alavancar formas inovadoras para o país. Para tanto, é preciso que uma visão moderna de governo comece a transpassar o dia a dia da administração, dos mecanismos de governo, os sistemas de controles e o estímulo ao desenvolvimento sustentável. O setor público no Brasil está recheado de regras que de facto ainda não protegem o Estado, mas são capazes de enrijecê-lo a ponto de retirar agilidade e flexibilidade, algo incompatível com a modernidade. O maior prêmio de quem atua no setor público é fazer tudo conforme as regras, sem que necessariamente se atinja um resultado ao menos razoável. Assim, nós não vamos a lugar nenhum. É verdade que o clientelismo e a corrupção contribuem em larga medida para que no Direito Público se presuma a má-fé (e não a boa-fé) como princípio que guia as normas. Em lugar de iniciativas modernizantes o Estado contribui para a propagação do atraso. Isso precisa mudar em vista dos desafios do mundo moderno. O caminho da inovação estatal e governamental depende, é claro, da maior ou menor excelência da elaboração sobre o que se deseja fazer. Isto vai além de "programas e propostas" vez que depende de um compromisso primevo com os resultados a alcançar. A título de ilustração, pode-se construir uma série de elementos que podem ajudar a modernizar a ação governamental: (1) A agenda política tem de ser construída à luz da agenda de ações de governo. A identificação entre ambas é a força motriz da transformação processual na forma de agir. (2) A agenda do país tem de ser contemporânea com a dinâmica internacional, num processo contínuo de identificação de oportunidades e tarefas a serem desenvolvidas. (3) As contradições internas e a desorganização política precisam ser diagnosticadas e tratadas para serem alinhadas com os objetivos de inovação do governo. Tão importante quanto as reformas é a adoção de uma agenda prioritária para tal inovação. Reformas positivas com efeitos retardados são menos úteis do que reformas possíveis com resultados imediatos; (4) Agendas inovadoras são muito baseadas na adoção de novas técnicas e tecnologias, as quais em si não têm conteúdo ético e valores políticos e sociais. Assim sendo, toda inovação tem que adicionar tais valores nos seus propósitos. A priorização das camadas mais pobres nestes processos, por exemplo, é essencial. (5) Eliminar as fragilidades institucionais e dar feições modernas ao aparato do Estado é condição sine qua non para compatibilizar desenvolvimento econômico e social em novos padrões. As formas organizacionais e jurídicas das instituições têm de ser revisadas, sobretudo em termos de drives e objetivos. À independência e ao equilíbrio dos poderes do Estado deve ser somada a interdependência de objetivos confluentes entre eles. (6) Um Estado inovador necessariamente tem de ser escoltado por novas lideranças, atualizadas e competentes. Não se trata apenas de tema relacionado ao "estilo" e a "aparência" do primeiro escalão do governo, mas, sobretudo preparadas para os novos formatos institucionais do Estado. Ademais, a capacidade de liderar é essencial ao tempo em que precisam ser empoderados para o exercício do poder. "Diversidades" são necessárias, mas não suficientes para verdadeira renovação da administração. Os elementos acima não são, por óbvio, um rol exaustivo. Representam alguns predicados necessários para que governos se tornem inovadores e inseridos na nova era que vivemos. Neste contexto, sem inovação, a administração do Estado terá crescente carência de desempenho e eficiência. Especificamente no caso do Brasil, país que teve as eleições mais extremadas de sua história, uma das formas para engrandecer a legitimidade política do governo eleito é construir um ambiente público inovador e preparado para elevar a velocidade no atendimento das necessidades sociais e da formulação e execução das políticas públicas de forma mais madura do ponto de vista dos objetivos e, especialmente, dos resultados. Inovar impede que a ação dos agentes públicos e privados seja dicotômica e/ou com objetivos diversos e por vezes não-cooperativos. Com efeito, a fixação comum dos objetivos deriva em mitigação de riscos e menores custos financeiros, sociais e políticos. Num mundo cada vez mais complexo, na existência de crises sistêmicas (e.g. transição energética, mudanças climáticas, rupturas geopolíticas), a inovação se tornou um mecanismo essencial para combinar apoio da sociedade e das estruturas do Estado, notadamente da classe política, para legitimar as ações governamentais o que, por sua vez, minimiza a radicalização dos agentes políticos e da própria sociedade. Para tanto é preciso ir além dos pactos políticos necessários ao exercício do poder e investir em novas lideranças capazes de engendrar equivalente transformação cultural, econômica e social. Estamos no século XXI, para além das (importantes) discussões sobre teto alto ou baixo.
quarta-feira, 16 de novembro de 2022

O "recado" do mercado e a demanda dos excluídos

Economia é uma disciplina social que ganhou contornos científicos conforme foi estilizada ao longo do século passado por modelos com a aparência cada vez mais hermética porquanto matemática se tornou. Todavia, se tem uma coisa certa é que a distância entre muitos temas da disciplina econômica e a realidade deixa muito a desejar. Exemplo evidente diz respeito aos efeitos da quantidade e velocidade da moeda sobre a inflação. Por diversas razões, sabe-se que esta relação não faz sentido há algum tempo, muito embora significativo arcabouço teórico-matemático tenha sido erigido ao redor desta "escola" e os monetaristas tenham adquirido nos anos 1970 ares de profetas. O nosso ministro da Economia Paulo Guedes foi propagador desta ideia que deu de frente com o muro da singela realidade.  Há, porém, certos postulados econômicos que foram sendo consolidados ao longo do tempo vez que demonstraram conexão razoável (mesmo que não plena e perfeita) com os fatos e fenômenos econômicos. Um destes postulados diz respeito à necessidade de equilíbrio fiscal no longo prazo. De forma sumária, verifica-se que o valor presente dos fluxos de superávits primários (resultado da diferença entre receitas e despesas do governo antes do pagamento dos juros da dívida pública) tem de guardar razoável equilíbrio com o endividamento público real (deflacionado pelo nível de preços). Com efeito, se a expectativa for a de que os superávits fiscais futuros cairão, as expectativas serão de aumento de endividamento e consequente incremento do risco de inadimplemento. Há dúvidas se o equilíbrio fiscal tem significativo efeito direto sobre a inflação, mas há certo consenso que as expectativas são afetadas pela percepção sobre a política fiscal o que indiretamente afeta o nível dos preços (inflação). Ora, a despeito de se tratar de relevante ponto de partida para a lógica relacionada às expectativas, é preciso reconhecer que o equilíbrio fiscal, assim como a disciplina econômica, tem natureza política. (Aliás a "economia" perdeu no Ocidente o aposto "política" por causa da disputa ideológica entre marxistas e liberais ingleses vez que os primeiros usavam generalizadamente o termo e os liberais resolveram "extingui-lo" nos seus escritos). Em sendo "político" o tema fiscal, é preciso ter em mente que a formação do superavit (déficit) fiscal depende das escolhas que são feitas pela sociedade, por meio de seus representantes no Congresso Nacional, em relação à origem das receitas e a destinação dos gastos públicos. Em princípio, se espera que tais escolhas sociais intermediadas pelos políticos guardem racionalidade de, pelo menos, duas espécies: (i) que sejam utilizados critérios socialmente isonômicos (critério político de eficiência) entre mais ricos e mais pobres e (ii) que a aplicação e arrecadação dos recursos em despesas e investimentos seja fiscalmente sustentável - o endividamento não pode se elevar de forma desalinhada com o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). Feitas estas considerações iniciais, vamos aos eventos da semana passada. No mercado financeiro e de capital brasileiro houve uma sólida e forte reação ao discurso do Presidente eleito Lula, quem afirmou em discurso que os gastos sociais (e.g. aumento do salário-mínimo, Bolsa-Família, Farmácia Popular) a serem efetivados via uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) não obedeceriam ao critério do "teto de gastos" que é uma das formas legais de controlar os dispêndios fiscais. Os preços das ações e títulos financeiros despencaram fruto de uma "deterioração das expectativas". Comentários abertos de agentes do mercado tratavam de um "recado" dos investidores ao presidente eleito e ao PT. Parece-me que o tema não está somente relacionado à comunicação de lado a lado, muito embora se possa avaliar que o discurso do presidente eleito tenha sido mais informal que o adequado para alguém que já é o eleito. Teria faltado prudência nas escolhas das palavras e na avaliação das consequências. Todavia, prefiro situar o tema dos gastos sociais no contexto de uma dissonância cognitiva coletiva. Vejamos. Não me parece razoável imaginar que os agentes do mercado financeiro possam inferir que os gastos propostos não são "eficientes" segundo o critério da isonomia, entre os mais abastados e os mais necessitados. Parece-me que a natureza dos gastos é legítima e o seu total (R$ 175 bilhões) não causaria um buraco estrondoso no endividamento público. Afinal, o orçamento do ano que vem está com uma previsão conservadora de 2% de queda na arrecadação federal (excetuando-se estados e municípios). O número é muito pessimista. Se não houver queda o dispêndio a maior cairá a zero. Se cair metade do esperado, o aumento de gasto será de R$ 75 bilhões. Se a gasolina não for mais desonerada (o que isonômico do ponto de vista ambiental), o déficit adicional será de R$ 100 a 120 bilhões. Ou seja, em muitas hipóteses o gasto pode não ser causador de grandes abalos econômicos quando sabemos que o abalo social será enorme. Então tudo bem? Absolutamente, não! Se o tema da sustentabilidade fiscal tem de levar em conta a justiça distributiva, de outro lado, é necessário uma reforma tributária e financeira profunda para criar um ambiente fiscal hígido que permita a ampliação da isonomia social juntamente com a estabilidade do endividamento público.  Para tanto, a revisão de onde (não) gastar e onde (não) arrecadar tem de ser profunda. Isto deve incluir, muito provavelmente, a menor tributação do consumo e do investimento e o aumento da tributação sobre a renda e a riqueza. O Brasil tem de caminhar para uma tributação mais justa e republicana. Sabidamente as relações capitalistas não têm natureza cooperativa. O ganho de um, no geral, significa a perda de outro. Ocorre que, no Brasil e no mundo, faz-se urgente a construção de uma sociedade resiliente, promotora da inclusão, redutora da desigualdade social e atacante das fontes das injustiças sociais. Isto apenas poderá ser efetivo dentro de um ambiente de sustentabilidade social, ambiental e de governança pública e privada. O discurso de Lula pode não ter convergido para a necessária transparência e equilíbrio fiscal. Todavia, o "recado" do mercado não é convergente com o entendimento de que sem um mundo inclusivo e mais justo não haverá desenvolvimento, mas sobrará obscurantismo e barbárie. A dissonância cognitiva me parece evidente e o debate de uma pobreza digna de um Bolsa-Família.
quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Frente ampla num horizonte estreito

"Bem sabes: a primeira vez que respiramos o arVagimos e berramos". (Rei Lear, W. Shakespeare) A vitória do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva no segundo turno das eleições abre um novo espaço político para os próximos quatro anos, mesmo que ainda não saibamos com razoável precisão os caminhos que serão trilhados para que seja um governo de sucesso. Do ponto de vista da História muito ainda terá de ser desvendado em relação a este pleito de 2022 e ao processo político nesta última década. Também é essencial que se tenha claro que o denominado bolsonarismo teve expressiva vitória ao aglutinar na extrema direita do Brasil grande parte do centro político, especialmente o PSDB. Os números eleitorais no Estado de São Paulo e a presença de grande número de parlamentares próximos ao ex capitão evidencia o tamanho dos avanços do bolsonarismo, um movimento originalmente desorganizado que ganhou contornos nítidos ao redor dos conservadores, dos evangélicos, de parte relevante das Forças Armadas e policiais e do agronegócio. Há novas identidades que foram criadas no no entorno do atual presidente, com força política suficiente para impor derrotas acachapantes em diversas áreas do eleitorado do Centro-Sul do Brasil. Isso tudo, a despeito do ex capitão ter sido o primeiro incumbente a ser derrotado pós-adoção da reeleição. Na Europa e nos EUA, o avanço da extrema direita se deu em função das mudanças, para pior, na economia e, especialmente, no aumento da desigualdade social pela perda de vigor do Estado do Bem-Estar Social. No Brasil, foi a ausência de mudanças a principal causa do avanço da extrema direita. O diagnóstico inicial do novo presidente em relação ao processo eleitoral e à sua própria vitória foi precisa: o novo governo não será petista porque não pode ser petista. Foi, isso sim, a "Frente Ampla" que venceu a eleição, especialmente se considerada a margem de votos de 1,8% que levou Lula à presidência, a mais baixa de todas as eleições presidenciais - somos um país dividido econômica, social e regionalmente. Neste sentido, não se pode prever que o candidato eleito possa implementar um programa político que se distancie do centro no qual gravitam as forças democráticas que o apoiam. Além do prudencial apoio parlamentar que Lula almeja alcançar, é muito razoável esperar uma condução conservadora na economia o que, por sua vez, conterá a velocidade e profundidade das tão esperadas reformas, sobretudo as sociais. Não haverá mais um "presidencialismo de coalizão", mas um "presidencialismo possível" - o sistema político do Brasil ainda carece de correções estruturais. Do ponto de vista imediato, a permanente campanha eleitoral do atual presidente vai deixar um rombo relevante nas finanças do governo e de terceiros: dos saques dos depósitos do FGTS ao Bolsa-Brasil, passando pelo orçamento secreto e o empréstimo consignado, a conta é imensa, mesmo que ainda não se saiba o porte - seriam R$ 100 bilhões? A adoção de uma "estratégia emergencial" para cumprir o programa de governo, especialmente em relação aos mais pobres, especialmente o Bolsa-Família, Farmácia Popular e aumento do salário-mínimo, requererá enorme esforço político e congressual o qual diluirá adicionalmente o poder político do eleito. No Congresso Nacional não há neófitos quando se pretende amealhar entre R$ 150 e 200 bilhões. A Frente Ampla em formação também permitirá que haja um arejamento, em termos ideológicos, econômicos e sociais, das políticas públicas que serão adotadas. O Presidente eleito tem afirmado que não poderá repetir as suas administrações anteriores. Além das condições políticas serem completamente diferentes daquelas que prevaleciam entre 2003-2010, é evidente que as transformações tecnológicas, sociais, antropológicas, econômicas e assim por diante, alteraram o mundo e o país. Pode-se afirmar com certa segurança que as transformações do eleitorado também derivam deste processo. Dados das pesquisas eleitorais também evidenciam que os desmandos e a corrupção foram fortemente associados ao PT e ao novo Presidente. Esta constatação também precisa se tornar uma referência para a nova administração que terá de ser muito rigorosa em relação aos temas da ética pública, corrupção e quaisquer eventos escandalosos, inclusive em relação ao Erário. A sociedade, justa ou injustamente, é mais intolerante com Lula e o PT em relação ao tema relativamente, por exemplo, a aceitação do "orçamento secreto", "pedalas fiscais" e outros malfeitos ocorridos no curso da administração do atual presidente. Ademais, o "Mensalão" e "Petrolão" foram muito presentes na campanha eleitoral e serão relembrados em caso de novos incidentes no próximo governo. Também requererá muita atenção ao próximo governo a questão da comunicação. A transformação digital na forma e no conteúdo informacional alteraram significativamente a relação do governo com a população, dentre outras tantas. Aqui, será preciso que se pense sobre como se pode pensar a comunicação a partir de novos valores que permitam que a fragmentação dos meios possa atender aos fins democráticos. Se no passado a esquerda intentava a mudança dos marcos da mídia no Brasil, agora a missão política não é regular as grandes redes de televisão, mas convencer os usuários das redes sociais daquilo que é verdade factual em vista das narrativas e realidades criadas. Do ponto de vista psicossocial este tema é vital vez que as redes permitem movimentos de massa jamais vistos, organizados na forma e completamente duvidosos no conteúdo. A mobilização bolsonarista após o resultados das eleições são simbólicas e retratam uma mudança estrutural que terá de ser enfrentada. No campo internacional, Lula terá de reerguer, mesmo que de forma diferente, o policentrismo da política externa, buscando o diálogo junto ao centro do capitalismo mundial (o que ironicamente inclui a China comunista), bem como, transversalmente, alinhando-se às agendas nas quais países emergentes e subdesenvolvidos podem propor e participar do delivery negociado. No tema do aquecimento do clima, do ambientalismo e do comércio internacional, o Brasil tem um lugar para exercer certo poder e isto foi completamente abandonado pelo ex capitão e seus napoleões perdidos. Lula é figura relevante no mundo, sobretudo na Europa. Terá aí o seu melhor espaço para exercer no curto prazo este poder e, quiçá, obter bons resultados. Por fim, a maior dificuldade de Lula será exercer o governo sem que a cisão política do país o atinja e/ou contamine. Para reunificar o país talvez tenhamos de esperar um período bem mais longo e que ainda não é possível estimar razoavelmente. De toda a forma, o novo presidente terá de recolocar as instituições republicanas no lugar e, ao eliminar as disfuncionalidades dos poderes estatais, não incorrer no aumento da insegurança jurídica e institucional. Infelizmente, o bolsonarismo invocou para o seu ringue boa parcela das funções e instituições que tem de zelar pela legalidade democrática. Este processo originou excessos em todos os poderes, o que revela riscos de inconstitucionalidades. Além disso, devemos lembrar que a legalidade pode ser expressa em normas e princípios, mas a harmonia depende essencialmente dos líderes dos poderes. O bolsonarismo deixou a institucionalidade em frangalhos e com ela o próprio país e sua democracia. Lula terá de ser impecável nesta reconstrução republicana, acima de si e de seu governo. A eleição de Lula é uma esperança para o Brasil. Não resta dúvida. Todavia, a vitória agora terá de ir bem além daquela sobre o medo.  
segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Como nunca neste país

A polarização não é propriamente entre a esquerda e a direita, mas entre a democracia e o autoritarismo. O resultado da corrida presidencial no próximo dia 30/10/2022 é incerto, não apenas pelo que demonstram as pesquisas de opinião, mas, sobretudo, em função do relativo desconhecimento sobre os efeitos da disseminação das fake news provocarão (ou não) sobre os eleitores somados aos desempenhos dos candidatos nos debates televisivos. A mídia reflete o andamento eleitoral sem que seja capaz de dirimir o tema para que o leitor possa se inteirar sobre as tendências em curso. Observado o ambiente, não é razoável elaborar conjecturas sobre o futuro imediato, sendo possível ter uma leitura interpretativa e crítica sobre o futuro mediato. A grande novidade é que o bolsonarismo conquistou solidez parlamentar e consistência de sua linguagem na campanha eleitoral, mesmo que isto tenha sido construído sobre o pântano das fake news e uma gestão governamental sem grandes conquistas. Conforme elaboramos em nosso último artigo ("A vulnerabilidade tomou conta do segundo turno" ), "o bolsonarismo permanecerá como a frente mais homogênea e preponderante na divisão do poder político". Ou seja, a conquista eleitoral do atual presidente e seus apoiadores é significativa e consistente, mesmo que diante de uma vitória oposicionista no segundo turno. É necessário que o cenário político do país seja avaliado face à "insurgência" do ex-capitão contra o status dos valores políticos, culturais, religiosos e sociais, bem como, a demanda reprimida e interessada das elites por um liberalismo caboclo que estranhamente combina a aspiração de mais liberdade de iniciativa com a preservação de interesses privados dentro do Estado grande. Depois do longo período de reconhecimento amplo dos valores e direitos fundamentais consolidados na Constituição de 1988, ingressamos em 2018 em novo momento no qual os fatos políticos começaram a concretamente conspirar contra os preceitos constitucionais. Da crise institucional que emergiu em meados da década passada passamos a um ambiente de enorme vulnerabilidade nas atuais eleições. O bolsonarismo se oferece e se constitui como uma espécie de antibiótico contra a desordem que de muitas formas ele mesmo cria e dá propulsão. O ativismo deste movimento é bastante saliente, conforme demonstram o vigor das manifestações de seus adeptos. Até o presente, está claro que o ativismo a partir de causas genéricas e desconexas, mesmo que absurdas do ponto de vista de suas causas e consequências, é a principal razão de ser do bolsonarismo. De agora em diante, este movimento político começa a expressar com mais clareza e melhor elaboração as suas antipatias e intolerâncias. Interessante que, se no passado a práxis deste tipo de movimento radical era militar, agora a violência é praticada a partir do denominado mundo virtual e em rede. Dentre as elaborações políticas do bolsonarismo, três se destacam: o moralismo dos costumes, a religião como forma de expressão política e a aversão radical a um "socialismo imaginário". Vale notar que estas construções ou ideias não foram moldadas de forma articulada e com a observância da consistência e coerência internas. Muito menos se identifica a existência de documentos e manifestos a validar e corroborar o pensamento e a ideologia do movimento. De fato, estamos diante de um "sistema de crenças" que usam, ao invés das armas, a difusão de falsas notícias e que pretende subjugar os que não concordam com o seu "modo de ser" por meio da tomada das instituições do Estado. Vale ressaltar que as Forças Armadas foram pouco a pouco submetidas a este processo nos últimos quatro anos, via a intervenção direta ou por meio da sua utilização direta no exercício do governo civil. O contraste da forma de ação política do bolsonarismo frente aos meios tradicionais de coerção autoritária (violência, por exemplo) é que esta coerção não se dá pelo desencadeamento aberto à ordem, mas pelo uso, em geral, da própria estrutura institucional e jurídica. De agora em diante, com o apoio reforçado e consistente no Congresso, o atual presidente terá mais "armas" para agir. Nenhuma dúvida disso. Com efeito, a representação política deve ser minorada pelo engrandecimento da figura presidencial, a supervisão dos poderes aparelhada pelos seus apoiadores e os princípios fundamentais relativizados pelo moralismo, religiosidade e libertarismo caboclo. Os ritos e procedimentos não devem ser completamente institucionais, mas cada vez mais personificados pelo líder do movimento. O reconhecimento dos contornos e cenários acima distintos não parece ser claro aos eleitores do próximo domingo, em geral, e aos do bolsonarismo, em particular. Todavia, os elementos radicais deste movimento estão absolutamente disponíveis: (i) a ofensividade aos seus opositores que não são considerados "adversários", mas "inimigos", (ii) a preferência dos apoiadores por um Estado autoritário, (iii) a não-aceitação do pluralismo e da diversidade da nação, (iv) a valorização da diferença e não da igualdade, (v) a transformação da realidade factual em um mundo virtual estilizado por slogans e narrativas, (vi) a propagação de factoides e mentiras, dentre os principais. Não faz sentido buscar equivalência simétrica entre o bolsonarismo de agora e o fascismo ou nazismo do passado. O Brasil é outro país e o contexto histórico bem diferente. De outro lado, o bolsonarismo não impede que se retire o foco sobre a sua essência de sorte a verificar a sua natureza. Considerada a crise política em torno da democracia ao redor do globo, é revelador o que aconteceu nos EUA sob Donald Trump, por exemplo. Não se trata claramente de um movimento autoritário? Há semelhanças com o Brasil? Da mesma forma, a linguagem do ex-capitão em relação ao STF ou os seus comícios no sete de setembro não aproximam o presidente do que ocorreu no fascismo? A prática de seus nomeados às posições de Estado (STF, MPF, agências, estatais, etc.) e de seus apoiadores no parlamento não é conivente e submetida ao interesse pessoal do presidente?  O uso dos recursos do Estado não serve aos interesses do presidente? Ninguém pode sublimar os erros da oposição, de esquerda ou direita, ao bolsonarismo. Sem dúvida, houve práticas nefastas e graves e em desacordo com a Lei em outras administrações da atual oposição. Ademais, a relativamente frágil oposição ao bolsonarismo e a subestimação das transformações econômicas e sociais do país em seus programas políticos também são causas diretas para o que ocorre neste processo eleitoral e que se propagará nos próximos anos. Ocorre que estamos diante de verdadeiro impasse a partir da formação de uma aglomeração política mais consistente e organizada que pode conspirar gravemente contra os princípios democráticos e os direitos fundamentais - como dissemos acima, este processo pode ser inclusive construído por meio dos procedimentos legais necessários à sua realização. A polarização não é propriamente entre a esquerda e a direita, mas entre a democracia e o autoritarismo. Este retrocesso já contempla o primeiro passo que foi a vitória significativa do bolsonarismo nas eleições parlamentares e o seu efeito será maior ou menor se e quando se formar uma maioria no próximo dia 30 que possa mitigar e eliminar os riscos autoritários. A radicalização ganha dinâmica. É preciso barrá-la.    
sexta-feira, 14 de outubro de 2022

A vulnerabilidade tomou conta do segundo turno

A "crise institucional" crônica e corrosiva já demonstra que há evidente vulnerabilidade dos poderes Por mais que se deseje afastar a ideia de "ruptura" do cenário político-eleitoral, temos de admitir que a possibilidade de uma quebra da ordem institucional é concreta, quiçá provável. Neste sentido, é razoável aceitar que o bolsonarismo teve significativa vitória neste primeiro turno. A quantidade de governadores eleitos e aqueles que provavelmente serão eleitos, somados aos parlamentares sufragados pela força-motriz originária do próprio presidente dão a dimensão exata desta vitória. Por óbvio, o fato de o ex-presidente Lula estar na liderança das pesquisas do segundo turno, bem como, o fato de que vários governadores que o apoiam podem ser eleitos relativizam, por ora e até o segundo turno, a percepção da vitória do bolsonarismo. Mesmo se confirmada a vitória do ex-metalúrgico no segundo turno, o bolsonarismo permanecerá como a frente mais homogênea e preponderante na divisão do poder político. As razões mais visíveis e estruturais (e, também, estruturantes) para o aumento do poder bolsonarista derivam de alguns aspectos. Vejamos. O governo bolsonarista sempre procurou desvincular o poder sobre o Estado das instituições. No primeiro mandato, o ex capitão exerceu o papel de iconoclasta do ordenamento jurídico e institucional do país. Pregou contra o Judiciário, mas também sobre os fundamentos mais cotidianos e essenciais da democracia, do direito à saúde às políticas ambientais, passando pelos costumes e identidades das minorias. O resultado desta estratégia é espetacular: a construção do apoio popular ao atual presidente minorou, senão eliminou, qualquer expectativa de que os valores democráticos e os direitos fundamentais estivessem acima de tudo e de todos. O bolsonarismo não tem limites claros. O efeito da escolha popular em prol do bolsonarismo faz com que a sua estratégia em relação ao propósito de minar o processo eleitoral e limitar os direitos civis, o que inclui necessariamente o aumento de sua influência concreta sobre o Judiciário, tem chance muito razoável de ter sucesso. Se antes, o bolsonarismo foi barrado pela sua própria desorganização política (e.g. fragmentação partidária, falta de um projeto político abrangente), agora pode prosperar enquanto efeito das conquistas eleitorais de 2022. Processos políticos como este, ocorridos em outros países no passado (e.g. Alemanha e Itália) ou no presente (e.g. Hungria e Polônia) ensinam que as mudanças ocorrem sob holofotes moralistas e por uma espécie de guerra cultural que esconde a desigualdade econômica e social sob o manto de uma ideologia que agrega o povo em torno de ideias sem relação com a realidade, digamos, "objetiva". Todavia, sempre vale a ressalva de que processos que são estruturalmente semelhantes nunca se espelham exatamente. O slogan "Deus, Pátria, Família" associado a outros movimentos de extrema direita, tem a proposição clara de dissociar o povo da realidade temporal. No dizer do historiador Timothy Snyder1, "se acharmos que o futuro é uma extensão automática da boa ordem política, não precisamos indagar que ordem é essa, por que é boa, como se sustenta e como pode ser aperfeiçoada". Outro tema relevante da vitória bolsonarista decorre do fato de que, pela primeira vez, o presidente, realmente se interessou pela formação de uma maioria parlamentar. O volumoso apoio que recebeu nas urnas deve tê-lo feito perceber que sua mensagem foi acostada em boa parcela da sociedade. Seus adeptos sufragaram candidatos apoiados diretamente pelo presidente e rejeitou aqueles que ele rejeitou. Está aí a evidência de que a utilidade das fake news é muito maior do que pensava. Ademais, pode-se interpretar que a vitória do ex capitão veio e virá em camadas: primeiro vem o sucesso do proselitismo moral, depois a revolução concreta. Entre estas duas camadas existe a destruição institucional e jurídica, cujo grau dependerá da maior ou menor adesão social num eventual segundo mandato. No campo econômico, o atual presidente está disposto a se acomodar no modelito liberal. Não necessariamente estamos a falar do atual ministro da Fazenda, mas de qualquer força ou pessoa que possa atrair robusto apoio das elites para o seu projeto. Nesse sentido, a desmobilização do Estado enquanto agente econômico essencial é clara. A privatização e desregulamentação não são temas "políticos" no uso clássico do termo. De fato, ganham forte e renovada conotação ideológica. A adesão das elites ainda é tímida na aparência, mas não tão vagarosa quanto se pode imaginar. A reconstrução da imagem internacional do Brasil também pode ser derivada desta ideologia integracionista e liberal. Certamente, os temas sociais e ambientais são limites a esta possibilidade, mas vale não subestimar o pragmatismo das relações entre Estados. Observados e designadas as tendências acima, vamos ao segundo turno. Parece bastante claro que a vitória do bolsonarismo consolidou a ideia de que a disputa do segundo turno não pode ser classificada ou conceituada como sendo homogênea do ponto de vista democrático: as duas ideias de Estado e de governo das candidaturas são opostas do ponto de vista da democracia. O bolsonarismo essencialmente não é legalista. Já há inúmeras provas de que a ordem institucional e jurídica se constituiu em empecilho à realização plena dos objetivos preconizados pelo atual presidente. Não é necessário um rol extenso de exemplos. Basta uma rápida visita aos sistemas de busca da internet. Ademais, os chamados do atual presidente aos seus apoiadores são bastante distantes da via pacífica daqueles que acreditam na democracia - não há uma "lei superior" a conter os instintos políticos (e primários) dos seus agentes, mesmo que parte do eleitorado tenha exercido o "voto útil". Além da questão da legalidade, temos de levar em conta que a "crise institucional" crônica e corrosiva que vivemos já demonstra abertamente que há evidente vulnerabilidade dos poderes diante do bolsonarismo. O exemplo mais evidente diz respeito à contenção responsiva que o Judiciário exerce às fake news e aos abusos nas redes sociais que evidencia que as consequências nefastas destas não são barradas. As próprias manifestações do atual presidente servem mais para esconder a verdade do que revelá-la para o eleitor. A mentira ganhou contornos científicos, de fato. Feitas as breves considerações sobre o que opõe o bolsonarismo à democracia pode-se afirmar com segurança que o que será decidido no próximo dia 30 de outubro é se a vitória do bolsonarismo nestas eleições será parcialmente contida ou se mergulharemos na incerteza e instabilidade institucional. Restará, ainda, tomar conhecimento se o eleitor sabe o que está em jogo. __________ 1 T.Snyder, Na contramão da liberdade (2018), pp.23, São Paulo: Editora Schwarcz.
quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Para além das eleições

"Nunca devemos nos esquecer de que o futuro não é totalmente nosso, nem totalmente não nosso, para não sermos obrigados a esperá-lo como se estivesse por vir com toda a certeza, nem nos desesperarmos como se não estivesse por vir jamais". (Epicuro). A eleição do próximo dia 2 de outubro de 2022 ficará marcada como a mais extremada da história brasileira. Não precisamos realizar uma reflexão profunda para adentrarmos a esta conclusão. O resultado do pleito, para além da escolha popular em relação ao primeiro mandatário, mostrará o país cindido social e economicamente e, assim, estará refletida politicamente esta dura verdade. Triste e perigoso cenário. A missão do próximo presidente e dos congressistas será a de atrair o país para o centro político, seja de direita ou de esquerda, conservadores ou progressistas. A tarefa será árdua, observados os três pilares. Vejamos. O primeiro pilar diz respeito à economia. A situação fiscal brasileira tem de ser avaliada não somente com base nos riscos relacionados com o crédito público - a avaliação do "risco país''. De fato, o "teto de gastos" será muito provavelmente ajustado pelo novo governo, não apenas para satisfazer às necessidades conjunturais e fáticas do difícil momento, mas, sobretudo, para satisfazer demandas encomendadas no processo eleitoral ainda em curso. A insatisfação imediata da população, sobretudo dos mais desfavorecidos, implicará em correspondente perda de apoio político no curto prazo, o escasso capital necessário à negociação com a futura base governamental junto ao Congresso Nacional. Se o "tal do mercado" avaliar o rompimento do teto de forma ortodoxa, a frustração será imediata (e errada). A política forja a economia. Não há como fugir desta máxima. De toda a forma, este "furo do teto" não poderá ser o "padrão" da condução econômica. Se o for, a frustração momentânea pode se tornar de fato um risco, cujos efeitos políticos serão graves. Disciplina e boa gestão fiscal são virtudes na concepção e execução da política econômica, mesmo quando a visão dogmática tenha de ser abandonada em certos momentos. Vale lembrar que a próxima administração estará sujeita a um banco central nomeado pelo atual Ministro da Fazenda e o pelo ex capitão, aspecto relevante em caso de vitória de Lula. A taxa de juros no Brasil é a mais elevada do mundo e seus efeitos duvidosos. Todavia, ainda conta com forte apoio no segmento financeiro que "forma a opinião" em relação ao tema. Em caso de inconsistências fiscais, a taxa de juros será usada como amargo e duvidoso remédio contra o Erário esbanjador. O segundo pilar diz respeito aos riscos sociais. A situação é crítica e não deve ser subestimada. A desigualdade em termos de renda e de condições (presentes e futuras) é o mais importante empecilho para o desenvolvimento econômico do país - um erro de avaliação comum é restringir o debate político à economia. A pobreza espalhada e a ausência de formação educacional e técnica das crianças e jovens, tornará o país atolado no seu próprio subdesenvolvimento. Aqui o que cabe ao próximo Congresso e ao futuro Presidente da República é engendrar uma "revolução no campo social". O atraso é enorme e será ainda mais profundo se não houver aceleração das reformas sociais e a adoção de planos ousados nos campos da educação, novos padrões tecnológicos para a incorporação dos jovens à vida profissional, o combate inteligente e determinado à criminalidade, uma boa política habitacional que inclua a erradicação das favelas, a vitalização da saúde e assim por diante. É preciso que o tema social se torne verdadeiramente estratégico e não apenas sujeito às intempéries políticas, especialmente no que se refere às subvenções, por vezes eivadas de interesses politiqueiros e eleitorais. Aqui também cabe o alerta de que a corrupção precisa de enforcement concreto e efetivo. O tema foi muito "batido" na campanha eleitoral, mas nada se falou sobre como enfrentá-la. Trata-se, juntamente com a regressividade tributária, do maior "ruído" do processo econômico. Distorce relações e aumenta custos, além da destruição dos valores políticos e sociais. O terceiro pilar relevante diz respeito à radicalização política do Brasil. Inicialmente cabe dizer que a atração do povo para o "centro político" não pode ser fruto da "pacificação" promovida pelas elites econômicas e políticas. A radicalização, essencialmente, deriva da imensa desigualdade social, da ausência de organização política da sociedade, da falta de educação formal e ética e da deterioração da democracia enquanto "valor" em função da descrença em relação às autoridades e instituições do Estado. Logo, a "pacificação por cima" representa a opção histórica e equivocada do país: acordos políticos que não atacam as causas na raiz. É preciso enfrentá-las para deixar a direita radical sem oxigênio social e político. O atual governo, se derrotado, deixará uma parcela substantiva de radicais espalhados pelo corpo social. É preciso criar empatia democrática e real com este segmento político, sob pena de submeter o país a uma tensão permanente em torno desta radicalização. As dificuldades na Europa e nos EUA são alertas evidentes: a radicalização é global e umbilicalmente relacionada com o aumento vergonhoso da desigualdade social. Também no que se refere à radicalização é preciso voltar à esfera legislativa e verificar se o ordenamento jurídico serve à contenção e repressão das atividades dos radicais. Neste sentido, é preciso retirar da cena as distorções funcionais de instituições, dentre os quais, o Ministério Público, a CGU, a AGU e o próprio STF. A segurança jurídica requer que todos cumpram os seus papéis face ao ordenamento formal, mas também aos interesses materiais dos princípios democráticos e de Direito. O que acima se argumenta, de forma resumida, é urgente. Não se pode enfrentar a crise brasileira sem vigor e sem operar diretamente sobre a grave crise institucional, econômica, social e política. A desorganização partidária e as distorções institucionais, que paradoxalmente evitaram que o ex capitão avançasse no caminho da ruptura democrática, precisam ser sanadas. Não se pode avançar com a quantidade e qualidade dos partidos políticos brasileiros. Ou se faz uma reforma partidária séria, forjada por legítimos interesses da sociedade, ou jogaremos o próximo presidente no mesmo processo político que não intermedia soluções, mas que origina crises, de forma permanente. A sobrevivência de nossa democracia e o desenvolvimento do país dependerão no longo prazo do desempenho do próximo governo. A ruptura institucional tem de ser radicalmente afastada e será preciso que o núcleo estratégico do próximo governo e o Congresso Nacional se unam em prol dos graves desafios. Os votos do próximo domingo não podem ser frustrados. A pena será pesada. Para todos e não apenas para o governo que começa a nascer.
sexta-feira, 9 de setembro de 2022

O Dia da Independência e o assombro bolsonarista

A preferência normativa e institucional do povo brasileiro pela democracia está risco. O Sete de Setembro, transformado e travestido pelo ex-capitão que nos governa, demonstrou a natureza reacionária do bolsonarismo. A imensa desigualdade social, fruto da falta de direitos básicos relacionados à saúde, à educação, à previdência social, à renda justa e à cultura é a raiz da atual radicalização política. Não podemos nos afastar desta realidade sob pena de não alcançarmos o entendimento sobre o momento. Por sua vez, neste contexto, o que o presidente promove é a ficção, a mentira, a dissimulação, formas de transportar os seus apoiadores e simpatizantes para um universo de falsa sublimação da realidade com base no ódio contra inimigos imaginários. O bolsonarismo inverte a máxima de Von Clausewitz no clássico "Da Guerra": a política é a extensão da guerra. O Dia da Independência foi mais um dia deste espetáculo deplorável. Sob a óptica bolsonarista, o cidadão marginalizado é integrado ao sistema econômico, político e social a partir de uma narrativa ficcional. O ex-capitão, mentiroso contumaz, nada promete, apenas diverte a sua plateia à base de fake news, da terra plana à ineficácia das vacinas, passando pela ideia de que "a história pode se repetir". Infelizmente, esta farsa tornou-se estratégia política e o Dia da Independência foi uma de suas expressões. Esta "linguagem estratégica" do bolsonarismo opera em dois planos. O primeiro sobre a realidade como ela é. Usa a Constituição Federal e a ordem jurídica e institucional para cobrar respeito ao Estado Democrático de Direito, como no caso da defesa dos empresários que estariam dispostos a financiar as aventuras reacionárias do ex-capitão. O plano para financiar as operações do bolsonarismo em sete de setembro não implicaria em nenhum descumprimento constitucional, segundo o presidente. O uso da ordem vigente dá o revestimento da legalidade ao presidente que de fato a despreza. De outro lado, aquele que usa a Constituição para defender apaniguados é também o que falsamente levanta dúvidas e falsas inquietações sobre o processo eleitoral. Para tanto, além de afirmar categoricamente sobre fraudes eleitorais, convoca as Forças Armadas a apoiá-lo no intento de criar instabilidade perante o TSE e o STF. Não se trata, como se sabe, de uma criação qualquer, mas forçar a polarização institucional como forma de identificar quem está ao seu lado e quem são os inimigos. O bolsonarismo opera a partir deste tipo de ambiente e ações que, em princípio, parecem contraditórios: usa a ordem institucional para se defender e a mentira para atacar esta mesma ordem. No dizer de George Orwell em "1984". "duplipensar significa o poder de manter duas crenças contraditórias em sua mente e aceitar as duas". Um outro plano a ser analisado a partir dos comícios bolsonaristas do Dia da Independência, é a reação da mídia e dos analistas em relação aos fatos. A mídia não bolsonarista, ao que parece, tem se esmerado em "mostrar o absurdo presidencial" com a intenção de que a audiência perceba o perigoso ser político em ação, mentiroso, arrogante e reacionário. O ex-capitão, uma vez exposto, seria "revelado" ao público. Ocorre que a cosmovisão do bolsonarismo está baseada, como observado acima, pela percepção da realidade a partir da lente da fantasmagoria. O ex-capitão age para desmoralizar conceitualmente a independência da mídia e, com efeito, cria a suspeição que impede que a audiência avalie o ex-capitão em função de seus atos, mas, isto sim, pela figura redentora que ele representa. Qualquer história que sobre ele se conte não altera a imagem do personagem político que ele representa aos olhos de seus seguidores - vale salientar que não à toa ele é chamado de mito. Os órgãos de mídia passaram o Dia da Independência, "contando os absurdos" do presidente na expectativa de que ele se revelasse à plateia. O que de fato ocorreu é que o ex-capitão apenas ofereceu o espetáculo que dele se esperava, com suas mentiras, grosserias e aberrações. Algo muito parecido com Donald Trump na campanha eleitoral de 2016 nos EUA que deslizava as mentiras para o público com o objetivo de diverti-lo. Diante de um eventual erro ou embate com a mídia, Trump construía uma longa narrativa que lhe fosse favorável - acabou por ganhar o pleito eleitoral. Por que seria diferente no caso do ex-capitão? Para controlar e ampliar a sua base, o bolsonarismo precisa do inimigo, mesmo que isso seja construído pela mais genuína mentira - a verdade nem sempre é boa para a audiência. A saída, neste momento imediato, para esta cilada midiática depende de muitos aspectos, mas certamente "falar dos fatos" e não do "personagem" é algo que deva ser considerado. Assim, não se permite que a visão distorcida da realidade possa ser meio de promoção de um líder mentiroso. A realidade factual, nua e crua, é a forma de não permitir que o "caos" se torne a prática usual da política. O bolsonarismo tem método reacionário, mas não tem programa claro. Isto precisa ser ressaltado para que não se forme um "vácuo" na realidade a ser preenchida pela narrativa e não pela verdade factual. Por fim, é preciso que se tome por premissa deste momento que a preferência normativa e institucional do povo brasileiro pela democracia está risco. O sistema representativo está obscurecido por suas próprias práticas pouco republicanas o que permite a personificação falsamente redentora do ex-capitão. Somente a reversão das políticas públicas em favor de maior igualdade e desenvolvimento podem cessar a tendência autoritária do momento. No curto prazo, é preciso que a oposição e a sociedade, especialmente a mídia, desmoralizem a percepção de uma legitimidade baseada na mentira e na existência de inimigos internos e externos. É hora de retirar do espetáculo seu principal ator e colocá-lo, de forma natural, sob o escrutínio democrático. É momento de confronto democrático e não de conciliação com o reacionarismo.
Defender o Estado Democrático de Direito requer, desde já, a proposição para os impasses do país A polarização no processo eleitoral está consolidada. A ilusão da terceira via esvazia-se com rapidez. Não propriamente porque não possa existir (ou ter existido) o legítimo desejo (e direito) da recusa aos projetos do ex sindicalista ou o do ex-capitão. Em verdade, seria desejável que houvesse maior renovação na política brasileira. Não apenas os nomes são "velhos" como os seus programas e proposições requerem obrigatório aggiornamento para conciliar os interesses mais intestinos da sociedade. No século XXI, merecemos melhor política para os desafios brasileiros e mundiais - a dependência econômica e cultural do país não é somente um problema fundamental e histórico de nossa sociedade. No tempo atual, estamos encalacrados com desafios globais como as alterações climáticas, os processos migratórios, as novas demandas sociais de gênero e raça e assim por diante. O que ocorreu, no meu entender, com a denominada "terceira via" foi que a ausência de ação política oposicionista e permanente nos últimos anos não motivou a sociedade para buscar novas alternativas para a profunda crise econômica e social nas quais estamos mergulhados. Ademais, a pandemia ceifou milhares de vidas não apenas como fruto dos efeitos do vírus COVID-19, mas também pela adesão tardia e tímida do governo federal às políticas públicas necessárias ao combate desta tragédia. Em artigo publicado pelo Migalhas em 30/9/21, escrevi: O marco temporal das eleições do ano que vem não deve impedir o início da construção de um processo politicamente relevante para que possamos voltar a sonhar e para sairmos do pesadelo que tomou o país como nunca dantes. A terceira via só virá se houver ação política. O resto é conchavo de gabinete desprovido de capacidade transformadora.1 Sem deitar raízes na representação e ação política alternativas não há como ser originada a "terceira via". Foi neste contexto que o eleitorado se voltou para as estruturas políticas "disponíveis" e "visíveis" - nenhuma outra via exerceu o seu papel político. Os dois candidatos, nas duas pontas da disputa eleitoral, constituem a realidade objetiva. São eles que, muito provavelmente, falarão e serão escutados até o fim do pleito que definirá o próximo presidente da República e a composição do Congresso Nacional, a suportá-lo ou confrontá-lo. Conforme já escrevi em artigos anteriores, a gênese do bolsonarismo inclui o golpismo. Já o golpe de Estado, propriamente dito, depende da oportunidade. Para evitá-lo, a sociedade e parte substantiva das instituições do Estado recentemente se mobilizaram. O ato pró-democracia nas Arcadas do Largo de São Francisco e o discurso de posse do ministro Alexandre de Moraes na presidência do TSE simbolizam ações políticas de natureza republicana que ergueram muros para evitar a invasão da barbárie - infelizmente, não são muralhas. A vigilância que o ministro Alexandre de Moraes e o TSE estão a exercer sobre grupos radicais que estão associados ao atual presidente da República e as medidas coercitivas adotadas nessa direção são essenciais à luta contra o fascismo que está a ameaçar a sociedade e a República. Embora ainda não saibamos se tais medidas do TSE têm o revestimento da completa legalidade e regularidade, do ponto de vista exclusivamente político, o enfrentamento aos radicais é essencial. Contudo, esteja claro, não se pode degradar a rule of law. Temos de estar atentos sobre este tema. Considerado o cenário polarizado do atual momento e a defesa ainda insuficiente da ordem legal e democrática pela sociedade, vale explorar outro aspecto desta eleição a partir de seguinte indagação: serão os votos dados a quaisquer dos candidatos suficientes à legitimação destes enquanto presidente da República? Para aguçar a provocação intelectual que escorrega da questão, gostaria de citar o brilhante e saudoso José Guilherme Merquior (1941-1991) quem escreveu magnífica reflexão sobre "legitimidade" no seu (terceiro) doutoramento (em sociologia, no caso) na London School of Economics: "Nem o tempo, nem a natureza, nem a força, nem o poder econômico produzem um direito genuíno e uma obrigação válida. Por conseguinte, a fonte de toda autoridade legítima deve se encontrar noutra parte: exprime-se em um pacto espontâneo, única forma determinada, não pelo medo meramente disfarçado de voluntária obediência, mas pelo sentido do interesse comum".2 Este extrato do texto de Merquior refere-se ao "pacto espontâneo" originado nas eleições a partir das quais a legitimidade decorre e é colocada em contraposição àquela que é imposta pelo medo e pela obediência involuntária que por sua vez, são consequências de quebras da ordem institucional. Esta posição de Merquior, como se pode verificar, é teórica e prescritiva na medida em que está baseada na visão de que os sistemas políticos (e democráticos) e suas instituições construídas a partir de tais sistemas funcionem para cumprir os seus sentidos finalísticos, os denominados interesses comuns da sociedade. Do ponto de vista concreto, esta campanha eleitoral de 2022 escancara as fragilidades institucionais do Brasil e, sobremaneira, demonstra que a modulação sub capitalista, oligárquica e patrimonialista engessaram a forma e a representação concreta daqueles que elegem. A classe política está longe do povo e há visível paralisia na promoção de políticas públicas que reduzam as desigualdades sociais e econômicas. A estagnação não é mais uma situação conjuntural, mas o registro das debilidades estruturais do Brasil. O desequilíbrio em termos de renda, riqueza e possibilidades se tornou tão grandioso que não se pode mais requerer "liberdade econômica" porquanto o Estado não cumpre sequer seu papel básico em prol da igualdade mínima. Neste contexto, afora os riscos imediatos que o bolsonarismo impõe à legitimidade oriunda das urnas (exceto, se ele mesmo for o eleito), o próximo mandatário, seja quem for, terá de recuperar com relativa rapidez maior identidade ao binômio "igualdade social e liberdade para o progresso econômico". As fórmulas falsamente liberais para empurrar a economia para frente esbarram na falta de vontade dos representantes do povo em reconstruir um Estado que seja inclusivo e mais justo. De outro lado, o corporativismo e a visão distorcida do papel estatal, ainda presente na esquerda atrasada, podem mergulhar o país ainda mais no padrão de baixa produtividade e má distribuição de renda e riqueza. Defender o Estado Democrático de Direito diante da atual urgência requer, desde já, a proposição concreta e realista para os impasses econômicos e sociais do país. Os indicadores econômicos sofríveis, os sociais deploráveis e a corrida política dos dois atores do jogo político precisam inspirar a salvação da legitimidade que será originada nas urnas em outubro próximo. A eventual falha neste aspecto imporá risco ao país, mas também ao próprio eleito. __________ 1 Disponível aqui. 2 Rousseau e Weber - Dois estudos sobre a Legitimidade. P.20. Rio de Janeiro: Editora Guanabara. 1990.
terça-feira, 9 de agosto de 2022

A natureza do bolsonarismo inclui o golpe

A ilegalidade e a ação contra o ordenamento político e institucional são essenciais à estratégia reacionária e populista  Caminhamos para o evento eleitoral mais importante deste século para o Brasil. A definição do novo presidente pelo povo brasileiro e a configuração das forças políticas que o apoiarão deve moldar a prática política pelos próximos anos, quiçá décadas. O que estamos a assistir nos últimos três anos e meio é o perigoso espetáculo do atual ocupante do Palácio do Planalto que cotidianamente avança no controle do Estado e faz do enfraquecimento das instituições a sua principal estratégia para permanecer no poder. Vê-se que o uso daquilo que se denominava de "máquina pública" é aberta: instituições como o Ministério Público, as políticas e os órgãos de segurança já estão com evidente limitação em suas funcionalidades em franco desacordo com a natureza e estrutura sedimentada dos checks and balances. Nas Forças Armadas e forças de segurança auxiliares, os ruídos em relação ao seu papel e os caminhos que tomarão não são nada desprezíveis. No Judiciário já se verifica que os indicados do ex capitão para o exercício da judicatura já cumprem seus papéis frente às intenções do bolsonarismo.A independência dos poderes está sob risco. Harmonia, em verdade, nunca houve na atual administração. Como sabemos, num ambiente recheado de fake news, os fatos e dados são substituídos pelas narrativas que obstaculizam a visão sobre os acontecimentos "reais" e jogam o debate para um plano incompatível com a história e os processos sociais: cria-se uma espécie de mitologia moderna dentro de um padrão imaginário direcionado para crises e pequenas rupturas que, ao final, podem levar ao desmoronamento institucional. O mito do momento é que há uma conspiração eleitoral que passa pelas urnas eletrônicas o que pode fazer com que o ex capitão não seja sagrado presidente. O processo histórico é constituído de fatos que engendram processos que fazem a marcha à frente das sociedades, para o bem e para o mal. Ocorre que num ambiente desprovido de conexão com a mais objetiva realidade e, considerada a imensa desigualdade social vigente no Brasil (assim como em outros lugares), os fantasmas e as construções narrativas podem se transformar em processo incontrolável contra a democracia e a legitimidade eleitoral. Aqui vale notar que o que se registra das manifestações e discursos do ex-capitão são narrativas incrementais contra a democracia por meio de uma ação política consistente muito embora tenha a aparência de arroubos ocasionais. Na cena política percebe-se que mesmos os agentes mais importantes ligados ao bolsonarismo não fazem distinção razoável entre as ações de seu líder e as verdadeiras razões que as motivam. Este é o caminho fácil para que o plano imaginário do ex-capitão flutue por entre as massas e as motivem a agir contra a democracia. O fato não é novo: Hitler, Mussolini, Stálin e mais recentemente Donald Trump se utilizaram de mentiras abertas, repetidas intensamente, para forjarem realidades que resultaram em ações de seus aliados contra as instituições. A forma pode variar, mas o objetivo é o mesmo: conspirar contra a democracia. A reação da sociedade brasileira tem sido razoável: por cima da profunda desorganização da política partidária brasileira, os abaixo-assinados e as manifestações estão sendo realizadas para paralisar o processo mitológico do ex-capitão. Todavia, é preciso alertar que o presidente da República ainda não produziu uma crise de larga envergadura para testar a solidez da defesa social. As multidões que apoiam o atual presidente ainda não demonstraram se o pensamento do líder foi transportado e sedimentado na mente delas a ponto de motivar uma ação política antidemocrática e contra as instituições. Para os apoiadores do atual presidente não há propriamente adversários, mas inimigos. Em sendo assim, a demonização dos políticos e a radicalização do debate entre o "bem" e o "mal" cai perfeitamente no molde ideológico do reacionarismo do atual governo. O bolsonarismo acima de todos e o ex-capitão acima de tudo. A política serve, do ponto de vista principiológico, à pacificação dos extremos no sentido de que adversários não podem ser inimigos. Não à toa, ao ex-capitão os acordos políticos não passam de arranjos momentâneos em vista de um futuro redentor no qual ele reinará acima das forças políticas. Trata-se do bonapartismo caboclo. Esta é a essência de seu proselitismo e de sua política. A companhia de "generais de pijamas" e a incorporação das Forças Armadas ao processo político é essencial à estratégia vez que estes gravitam acima da sociedade e de seus representantes. Basta ver a curiosa e perigosa participação do Ministério da Defesa na "legitimação" das urnas eleitorais: a dubiedade de suas "iniciativas técnicas" serve à manutenção das dúvidas criadas (sem fundamento) pelo presidente da República. Subestimar este tipo de fato é erro crasso. A vigilância da sociedade não deve ser apenas permanente. Precisa ser efetiva. Falar em "pacificação", neste sentido, é incompatível com a defesa da democracia. A ilegalidade e a ação contra o ordenamento político e institucional são essenciais à estratégia reacionária e populista. De fato, a visão antidemocrática considera as barreiras institucionais e o estado de direito como meios de proteção ao "inimigo", aquele ser ou entidade que tem de ser excluído, aquele que impede a redenção populista deve ser extirpado. A ação ilegal ganha o contorno de virtude que glorifica o imaginário patriótico e, até mesmo, religioso.  É por isso que o ódio aos órgãos da mídia e ao STF, por exemplo, ocupa privilegiada posição no discurso oficial. Da mesma forma, a "esquerda" é tratada como "o mal". Não é possível fazer previsões consistentes diante de um ambiente conspiratório como o atual. Todavia, é elevada a probabilidade de que seja tentada uma via de constrangimento ou derrubada às instituições do Estado. O falso debate sobre as urnas eletrônicas é o rastilho de pólvora que está sendo desenhado na direção do paiol da democracia. A natureza do bolsonarismo é reacionária. A sua manifestação apenas precisa da ocasião. Estado de Direito já!
A campanha eleitoral brasileira caminha mal como mal caminha o país. A disputa é binária e todos os sintomas advindos das pesquisas eleitorais indicam que assim será em primeiro turno e, a depender do resultado deste, no segundo turno. Os fundamentos eleitorais e políticos da disputa entre o ex capitão que ocupa o Planalto e o ex metalúrgico que já o ocupou são os mesmos de 2018. O Brasil não parece ter evoluído para qualquer alternativa viável que não sejam os dois candidatos que "falam com o povo". O imenso "vazio político", a ausência de ideologias com mínima solidez e a falta de propostas viáveis para alterar o curso do atraso brasileiro são os fatores que propiciam as condições essenciais para que as eleições deste ano sejam binárias. A denominada "terceira via" não passa de arremedo estratégico calcado na oportunidade (existente) de que uma boa parte do eleitorado aceitaria uma "alternativa" aos dois candidatos que lideram as pesquisas. Todavia, esta oportunidade teria de estar enraizada em um projeto político visível ao distinto eleitor: tudo, nesta hora do país, parece improvisado e destoante em relação aos anseios concretos da população - política não se faz somente no momento eleitoral. Em um país fragmentado em classes sociais tão díspares e uma concentração de renda de países subdesenvolvidos, como acreditar em lideranças arraigadas ao regionalismo, patrimonialismo e corporativismo? O povo está longe do debate político e considerada a possibilidade de uma terceira via o resultado é cristalino: segundo as pesquisas de institutos sérios, cerca de 70% de quem vota no ex capitão e no ex metalúrgico que assim permanecerá até o final do pleito. Trata-se da racionalidade soberana do eleitor. De outro lado, o mosaico das alianças políticas regionais para fins eleitorais chega a superar em gênero e grau até mesmo a fragmentação congressual e dos estados. Com efeito, o próximo presidente, seja quem for, terá de fatiar e lotear o seu governo baseado em um algoritmo político que não conseguirá alavancar qualquer projeto político que retire o Brasil da barafunda em que está metido. O jogo político que é não-cooperativo desde a redemocratização elevou a sua própria irracionalidade: agora os pedaços do Congresso não formam sequer um mosaico que seja identificável. Não bastasse a incerteza sistêmica que estas eleições trarão para a política e os apoios partidários, há a crise institucional. As piores expectativas em relação às instituições republicanas levariam a concluir que o Brasil poderia registrar múltiplas disfuncionalidades que criariam lentidão e disformidades na consecução concreta das políticas do Estado e do governo. Ocorre que o cenário está muito mais agravado que poderia se supor: vivemos um completo desrespeito pelas instituições republicanas que nos levam a concluir que o cenário atual é completamente imprevisível. A título de ilustração, vejamos: o Judiciário atua além da natural passividade deste Poder, os militares opinam abertamente sobre urnas eletrônicas e assuntos eleitorais, o Congresso despeja bilhões e bilhões em programas claramente eleitorais, temos um "orçamento secreto" sustentado pela situação e oposição (vejam só!), cuja aberração conspira contra o mais básico princípio da transparência e publicidade, o Executivo interveem nas estatais para fazê-las atuar em prol de seu projeto, os órgãos de controle ambiental estão destroçados, a política externa é capenga e flerta com regimes autoritários e assim vai. As instituições da República não estão apenas em "frangalhos", no uso do termo consagrado durante a ditadura militar: de fato, estão a serviço de projetos político-eleitorais que se constituem em uma espécie de superestrutura dissociada dos interesses econômicos e sociais. Os frangalhos viraram quebra-galhos, eventualmente, permanentes. Mais impressionante deste processo continuado de enfraquecimento institucional é a relativa indiferença das elites econômicas perante este cenário extremamente desolador. Os riscos de deterioração ainda maior do cenário superam, e muito, a expectativa de maior estabilidade no curto e médio prazo. As eleições usualmente trazem turbulências e inquietações, mas também expectativas de alterações positivas no curso da economia e da política. As eleições de 2022 prometem mais desalento que soluções. Neste sentido, os candidatos mais bem posicionados no processo eleitoral se comportam como heterônimos. Os autores do roteiro eleitoral se distanciam do éthos e não se sabe exatamente o que é programa e o que mera pirotecnia imagética. Neste sentido, o debate sobre costumes, religião, o "bem e o mal", os temas identitários e outros elementos distorcidos de retórica ganham projeção desproporcional. Os candidatos, despersonalizados de si mesmo podem alçar voos mais elevados em relação à realidade mais concreta, mas o resultado da eleição pode acabar num grande cataclisma frente à inflação, à crítica situação fiscal, aos desafios ambientais e energéticos, à integração do país nas cadeias produtivas, ao atraso educacional e tecnológico e assim por diante. Há mais: o armamentismo civil é um estímulo ao servilismo à violência, inclusive à eleitoral. As lições históricas ensinam que os eleitores não podem mandatar líderes sem fiscalização e contrapesos. Somente a assunção de responsabilidade perante o país e o mundo pode nos tirar deste perigoso caminho que estamos a vislumbrar, seja para as eleições vindouras, sejam para o governo que virá. Infelizmente, os fatos foram substituídos pelas versões. A hipocrisia, a inimizade, a corrupção, o nepotismo, o patrimonialismo, o clientelismo e as fake news precisam ser enfrentados não apenas pelo eleitor, mas sobretudo pelos cidadãos. O enfraquecimento da democracia é a contradição da nossa capacidade de fazermos história, de nossa aptidão para abrir picadas e avenidas e, assim, construirmos mudanças. Sempre haverá tempo para esta tarefa. Todavia, por ora, o trabalho está a se tornar cada vez mais pesado e penoso. Os graus de liberdade estão a cada dia menores. Olhe ao seu redor e verá.
terça-feira, 31 de maio de 2022

Genivaldo e a asfixia do momento

Nos dados estatísticos seu assassinado estaria inscrito na categoria de homem pobre, vítima de criminosos fardados. Fosse a violência um serviço ou produto lícita e economicamente comercializável, o Brasil seria líder mundial no setor, senão pelos números absolutos, pelo menos no que tange à consistência e ao seu "processo de produção". Pode-se afirmar, inclusive, que a violência é antropologicamente um dos principais fatores que contribuíram e contribuem para a dinâmica social no Brasil. A Constituição de 1988 é farta no estabelecimento dos direitos humanos como um dos alicerces fundamentais da convivência social e para a racionalidade do funcionamento das instituições do Estado brasileiro. De fato, as previsões indicativas do aparato constitucional são ainda anseios e não virtudes praticadas no cotidiano social. Ao contrário, no Brasil a violência foi historicamente presente nas relações políticas, econômicas e sociais e a ordem institucional jamais foi capaz de controlá-la. O que predomina no Brasil é a permissividade licenciada pela injustiça social profunda, sobretudo em relação aos jovens pobres e negros, e pela repressão ilegítima dos aparelhos do Estado que, por sua vez, é aceita como "parte da solução" diante do caos da violência no Brasil. A pobreza e a miséria são as principais matérias-primas para o carrossel cada vez mais veloz da violência. Os dados da criminalidade e de condições de vida têm certo atraso na sua apuração, mas é claramente possível concluir que as condições gerais de vida, sobretudo nas áreas urbanas são determinantes do nível de criminalidade. Dados como o IDH - Índice de Desenvolvimento Humano, expectativa de tempo de estudos, crianças fora do ensino primário, renda pessoal, dentre outros, são excelentes proxies para medir a relação entre violência e condições de vida. De uma forma geral, verifica-se nos estudos disponíveis na academia sobre o tema que a violência tem relação estatística direta e substancial com o nível econômico e social. Estados e municípios que apresentaram crescimento per capita da renda, tiveram redução dos níveis de violência. Todavia, somente políticas públicas mais amplas, que vão da escolaridade até políticas de repressão e punição dos crimes, são capazes de reduzir a violência num contexto de distribuição de renda. Neste sentido, o Estatuto do Desarmamento e a campanha do desarmamento de 2004, por exemplo, foram excelentes políticas que contribuíram para o declínio da violência na primeira década do novo milênio. Tempos que estranhamente parecem distantes. Já a morte em Sergipe de Genivaldo de Jesus Santos, 38 anos, pode ser facilmente catalogada na categoria de abusos comumente realizados pelas autoridades de repressão ao crime.  Homem pobre e com problemas psiquiátricos foi brutalmente asfixiado publicamente pelos policiais da Polícia Rodoviária Federal, entidade que conta com enorme prestígio perante o ex-capitão que nos governa. Ele não cometeu crime algum, não tinha antecedentes e apenas estava sem capacete no momento da abordagem pelos policiais. Não está o ocorrido na categoria de ilícitos perpetrados por pessoas pobres que acabam ingressando nas fileiras dos criminosos, os organizados e os não organizados. Nos dados estatísticos seu assassinado estaria inscrito na categoria de homem pobre, vítima de criminosos fardados e agentes do monopólio legítimo da violência. Sou daqueles que acreditam que a adoção de medidas repressoras e injustas contra as pessoas mais pobres no Brasil não têm explicação ou motivação específica. São consequências, digamos, "inatas" de uma sociedade acostumada à prática da violência contra aqueles que considera como "seres inferiores". Trata-se de uma espécie de "racismo" - quando não é isso no estado puro - oriundo de nossa formação social escravocrata. Grande parte da sociedade brasileira, embutida neste ambiente de generalizada violência adere à visão de que é "natural" que se possa fustigar os mais pobres na simples presunção de que eles são criminosos. E tem mais: sob o manto de que, diante da existência de criminalidade espalhada no corpo social, torna-se justo que a população se arme e que a prática da justiça seja substituída pela vingança. Para os vingadores do Brasil, nada mais natural que os "possíveis responsáveis" por crimes possam ultrapassar todos os limites: a lei sequer é obedecida e a permissão é para a crueldade e a perversidade. De resto, sabem que a Justiça Estatal lhes é mãe enquanto para as vítimas é madrasta. Igualmente é natural para os "vingadores" que não seja reconhecido o caráter, digamos "político" de fatos como o assassinato de Genivaldo. Para estes a análise sociológica e econômica dos crimes não pode, de qualquer forma, ser parte do entendimento da barbárie que vivemos. Independente ou não dos fatos, as mortes bárbaras no Brasil são essencialmente entendidas como "acidentes de trabalho" dos agentes armados e vingadores. Talvez os gendarmes não tenham sido eficientes na visão disseminada pelos vingadores, mas diante da total impessoalidade com que os fatos são analisados e entendidos, não se vê nas mortes dos pobres algo incabível e, sequer, desproporcional. Sob a liderança do ex-capitão que nos governa, o drama se acentua ainda mais. Afinal, a aposta da comunicação dele é propagar a versão geralmente aceita de que somente a vingança, pessoal ou institucionalizada é capaz de redimir a sociedade. A responsabilização de agentes públicos para o ocupante do Planalto, é a exceção à regra:  a lei está abaixo da própria ação repressora injusta. É indesejada a conclusão de que a violência do Brasil é profunda e é cultural e está impregnada desde a fundação desta Terra, neste triste trópico. A verdade é que Genivaldo é mais um personagem a aflorar de sua própria miséria para desmascarar a fachada de que vivemos em verdadeiro Estado Democrático de Direito. O atual presidente da República, neste contexto, é um manipulador vulgar da lógica mais elementar e que, face ao seu papel político, nos demonstra que, afora a ausência da prevalência da lei, a civilização está em risco. Ou talvez nunca tenha chegado por aqui.
"Ser conservador é, preferir o familiar ao estranho, preferir ao que já foi tentado ao experimentar, o fato ao mistério, o concreto ao possível, o limitado ao infinito, o que está perto ao distante, o suficiente ao abundante, o conveniente ao perfeito, a risada momentânea à felicidade eterna" Michael J. Oakeshot (1901-1990) Em recente e agradável jantar entre três amigos, em lugar onde a vista de 360º abrangia a Lagoa Rodrigo de Freitas a Praia do Leblon, o Cristo Redentor e, as franjas da Rocinha caindo sobre a Gávea, um amigo meu, intelectual, professor prestigiado e brilhante advogado contava sua passagem pela Mantiqueira mineira para fugir da pandemia que nos atormenta, juntamente com a esposa, também professora universitária. O sítio em que ficou é localizado no município de Campanha de 16 mil habitantes. Trata-se de uma antiga freguesia fundada em 1752 que sedimentou muitas tradições, dentre as quais a estada de Euclides da Cunha que ali escreveu as primeiras linhas de Os Sertões. É também o lugar onde nasceu o senador e ex-ministro do TCU Alfredo Valadão (1873-1959), o ex-ministro do STD Américo Lobo (1814-1903) e o grande médico e higienista Vital Brazil Mineiro da Campanha - isso mesmo, Vital tinha no nome a citação explícita da cidade em que nasceu. No período em que permaneceu em Campanha, o jovem intelectual e professor foi aos poucos convivendo com o povo daquela terra. Conversa daqui e de lá começou a perceber que se tratava de um povo ordeiro, marcado pela fé manifestada aos domingos na Matriz e voltados para os trabalhos mais corriqueiros e simples da vida serrana. A diversão era a cerveja de final de dia nos (poucos) bares do lugarejo. Mais interessante de tudo é o marcado conservadorismo dos viventes de Campanha. Mesmo que os traços mais liberais de nosso tempo já tenham chegado por ali, os temores das famílias versam sobre a possibilidade de uma gravidez indesejada da filha solteira, os trajes mais arrojados dos jovens e as separações escandalosas dos casais. Ou seja, um povo conservador nos costumes, mesmo diante do acesso relativamente livre e fácil das redes sociais. Além disso, a visão de mundo é quase que restrita à própria perspectiva pessoal, à visão drummondiana de que a vida é aquela, seca e mordaz, sem que se possa fazer muito além. Em Campanha, o ex-capitão que nos governa, recebeu nas eleições de 2018 55,13% dos votos válidos contra 44,87 de Haddad. A descrição da experiência do amigo foi ouvida sob os primeiros lampejos do excelente vinho e da comida generosa e deliciosa. Depois de cuidadoso silêncio na mesa, o outro amigo soltou esta: Campanha não é mais conservadora que Olaria! O amigo comensal é advogado, dotado de rara inteligência e uma organização mental que rasga até a lógica mais helênica. Combina o sólido conhecimento jurídico com a aura de bom entendedor da alma brasileira mais profunda, do samba à crônica rodriguiana. Seu lado mais irracional é a de torcedor xiita do rubro negro carioca o que nos divide em vista do brilho da "estrela solitária" botafoguense. Ele nasceu em Olaria e ali formou a sua alma mais profunda, solidificada pela evolução proveitosa e de sucesso na vida profissional e pessoal. Enfim, sabe das cousas. Olaria é um bairro histórico da zona norte do Rio de Janeiro, sede de residências que parecem que no todo estão a cercar o estádio da rua Bariri pertencente ao Olaria Atlético Clube, fundado em 1915 e campeão da série C do Campeonato Brasileiro de 1981, seu maior título. Se parcas são as suas vitórias, o amor pelo clube dos quase 70 mil habitantes do bairro não é pouco. O time é uma espécie de amálgama da identidade dos que lá nascem e vivem. O amigo advogado, que estudou na UERJ onde o outro amigo hoje ensina, contou-nos que em Olaria as pessoas são de um conservadorismo avassalador, o que contrasta com a imagem de um bairro com bares boêmios onde ainda se ouve boa música, além dos ecos da Imperatriz Leopoldinense, do vizinho Bairro de Ramos. Vários personagens ilustres moraram por ali: Pixinguinha, Paulinho da Viola, Vanderlei Luxemburgo e a cantora Iza. Conta o amigo que quando estudava há 20 anos na UERJ um professor seu engraçou-se com uma estudante e moradora de seu bairro e, depois de certo tempo, passou a namorá-la. O assunto correu dentre a moçada do Direito da UERJ e, de um em um, o assunto chegou à Olaria. Certo dia, o professor resolveu levá-la em casa, ocasião em que poderia conhecer a família da moça. A simples ida de um namorado "da cidade" para Olaria tornou-se um evento que repercutiu nas cercanias da casa da estudante de Direito, das velhas senhoras aos mais jovens. O advogado lembra dos olhares fixos das pessoas por entre os pequenos vãos das janelas das casas quando da chegada do carro do professor com a moça no banco de passageiros à casa da estudante. Diz ele que esta forma conservadora de ver a vida pouco mudou desde aqueles anos de estudantes. As pessoas, no geral, permanecem apegadas aos velhos modos e costumes em ver a vida, a despeito das abrangentes e múltiplas modificações socioeconômicas, culturais e antropológicas da sociedade. Pesquisas acadêmicas indicam que nas eleições de 2018, os eleitores passaram a reagir mais às ideologias e a correlação entre voto e ideologia passaram a ser muito mais que em eleições anteriores, muito embora não se possa concluir que os brasileiros se tornaram especialistas em ideologia ou estão dispostos a uma "guerra cultural", como alguns podem imaginar. Estudo de Mario Fuks e Pedro Henrique Marques1 mostram que "eleitores que, na escala ideológica, se identificam com a direita e que estão mais preocupados com a "ordem", nos costumes e na segurança, votaram de acordo com esses valores". Adicionalmente, "a ideologia da direita que emergiu e se reorganizou nos últimos anos não tem uma direção unívoca no caso das questões econômicas, sendo muito mais salientes suas posições em relação à segurança pública e aos costumes". O corolário de muitas análises realizadas depois da eleição do ex-capitão indica que os eleitores com posições mais conservadoras apresentaram maior probabilidade de votar no candidato com quem compartilham valores e não propriamente, e.g., em função de variáveis tipicamente econômicas. Pode-se afirmar com relativa segurança que o contexto social e a visão de mundo que o cerca têm influência decisiva nas votações, sobretudo as majoritárias. O político que fala ao eleitor dentro de seu contexto vivencial toca muito mais que em relação aos temas mais abrangentes e que versam sobre a realidade social e econômica mais ampla. A questão da identidade com o eleitor e sua vida cotidiana ganhou, a partir do bolsonarismo de 2018, uma dimensão muito mais arraigada do que aquela que se imaginava até aquelas eleições. A questão da igualdade econômica e do apoio a um Estado voltado para o bem-estar comum está consolidada no eleitorado. Todavia, os costumes ganharam dimensão renovada e importante. Aí reside grande força do bolsonarismo. O que demonstra que não é hora para o autoelogio e muito menos para rememorar feitos e grandezas pessoais e de governos anteriores. A hora é de buscar com humildade o eleitorado moderado, este que está abandonado e perdido em meio aos turbilhões que tem vivido. Como ensina Jairo Nicolau em "O Brasil dobrou à direita - Uma radiografia da eleição de Bolsonaro em 2018", "o improvável acabou acontecendo. Ele (o ex-capitão) saiu de seu nicho e avançou sobre o tradicional eleitorado moderado do país, vencendo em todos os Estados das regiões Sul e Sudeste, conquistando os eleitores de alta escolaridade e os moradores dos bairros de maior renda do país". André Singer afirma que "talvez o que o lulismo tenha desativado, entre 2006 e 2014, não fosse tanto o direitismo em geral, mas o conservadorismo popular, em particular". Assunto a ser retomado, diz ele. Campanha (MG) e Olaria (RJ), talvez possam ser exemplos, facilmente observáveis, de conservadorismo. Lição de amigos que fazem parte da vida rara e inteligente deste país. __________ 1 Disponível aqui.
"Não almejar nem os que passaram nem os que virão. Importa ser de seu próprio tempo".Karl Jaspers1 A caracterização do atraso no Brasil sempre esteve ligada à ideia do subdesenvolvimento econômico, da industrialização inexistente ou imperfeita e da ausência de capacidade de competitividade externa de suas exportações, especialmente de produtos industriais. Embora de diferente forma, observado o paradigma tecnológico do início deste século, esta interpretação sobre a realidade do país permanece intacta. Todavia, a complexidade social e política do Brasil adicionou novos e não necessariamente bons componentes que estão a influir decisivamente na consecução do atraso no qual estamos enfurnados.  A profunda ignorância, aparente e funcional, das massas, fruto da sedimentação do descaso secular com a educação formal e para a cidadania, bem como, o aumento consistente da desigualdade entre as classes sociais, resultaram em um atraso quádruplo: econômico, tecnológico, social, cultural. Aqui, a separação entre o "econômico" e "tecnológico" é proposital. Além de a nossa economia ser retardatária diante do paradigma industrial anterior aos processos digitais (a denominada indústria 4G), não possuímos capacidade de gerar tecnologia de ponta, de forma geral, sequer em ambientes experimentais e acadêmicos, de forma plena. Os processos de inovação ficam parados ou são mal absorvidos nas manufaturas e em outros processos produtivos de serviços e bens. Este atraso quádruplo tornou-se politicamente mais grave e paradoxal com o advento da liberdade política desde o fim do regime militar em 1984. A confluência entre o voto livre com o atraso social sempre foi terreno fértil para o populismo político. Sem a ocorrência de verdadeira revolução transformadora burguesa que solidificasse inclusivamente as classes sociais em níveis de renda e vida mais humanas e razoáveis, as soluções paradigmáticas das elites políticas sempre oscilaram historicamente entre a restrição do voto (e da democracia) pelos regimes autoritários ou pelo populismo, às vezes "modernizador". Do ponto de vista das instituições políticas e do ordenamento jurídico, o caminho percorrido após o fim do regime militar foi oscilante e passou a ser, neste momento, inquietante. Enquanto a Constituição Federal de 1988 avançou em termos de direitos individuais e políticos, o excesso de emendas constitucionais tornaram o debate e o andar da política inconsistente ou irracional para que fossem construídas as políticas e as melhores escolhas para o desenvolvimento integral do país. Prova disso é a elevada variação do crescimento do Produto Interno Bruno que decorre da ausência de fortaleza nos fundamentos estruturais do país. Ademais, a desfiguração da política no Executivo e no Legislativo, observado ao longo dos últimos trinta anos foi, talvez, o movimento mais consistente que se verificou na história recente. Se no regime militar a promessa institucional do parlamento foi o retorno da democracia, mesmo por parte da base política das administrações militares (a ARENA), no caso do advento da Constituição de 1988 verificou-se o "vazio institucional" resultante da inefetividade parlamentar para construir um projeto (ou projetos") abrangentes para a sociedade brasileira. De fato, este processo distanciou a cada eleição a legitimidade eleitoral da legitimidade política: apesar das eleições serem a fonte do mandado, o exercício concreto e proveitoso do poder político para o povo foi se perdendo ao longo dos anos. A autoridade tornou-se escassa na desorganização política do parlamento e a relação com o Executivo passou a ser oportunística. As tensões entre ambos se relacionam cada vez mais com os interesses próprios da classe política, sem correspondência com as fricções e demandas oriundas do corpo social de um país atrasado e desigual. Do ponto de vista econômico, o crescimento perdeu tração fruto da ausência de um projeto ou de um debate no qual poderia se formar uma consciência comum para o país se modernizar no contexto dos novos paradigmas tecnológicos mundiais. Se no passado, as posições dos articuladores da política econômica se dividiam entre aqueles que acreditavam num planejamento mais centralizado (que sempre foi majoritário desde Vargas) e os liberais de velha cepa, a partir de 1988 a dinâmica se transformou em projetos incompletos de desenvolvimento, cujos efeitos sempre foram mitigados pelas relações entre o Executivo e Legislativo e, mais adiante, a partir da década de 2000, pelo Judiciário, cada vez mais interventor no processo político, econômico e social. Talvez o único consenso que se formou consistentemente foi o reconhecimento da necessidade se ter uma moeda mais estável fruto do sucesso incontestável do Plano Real. De resto, as visões sobre a necessidade de instituições sólidas do Estado para garantir as regras do jogo capitalista são cada vez mais fragmentadas e o debate não ultrapassa os fatos cotidianos e as querelas endogenamente formadas na própria elite política. O país está acostumado à crise institucional e política permanente, como se fosse um destino irremediável, mesmo que trágico. As próximas eleições em outubro de 2022 podem se tornar um importante marco da crise institucional na qual estamos metidos. Os fundamentos da Constituição de 1988 estão sob especial escrutínio vez que o regramento daquele pacto político não parece ser, ao mesmo tempo, o guia e o limite da construção da democracia brasileira. De fato, os avanços formais contidos na Constituição estão sendo inviabilizados pelo exercício continuado do embate institucional. Este conflito não é novo e não foi inaugurado pelo atual presidente, diga-se. Exemplo disso, são os dois impeachments presidenciais deste a promulgação da Constituição e o excesso de modificações no texto constitucional para atender demandas políticas e institucionais de cada hora. Porém, não resta dúvida de que o primeiro mandatário da nação, desde 2019, contribui decisivamente para que a crise institucional tenha se tornado aberta e evidente para que se possa abrir espaço político para uma ordem política e institucional autoritária e antidemocrática. Até agora o enfraquecimento da democracia formal por parte do ex capitão não teve o esperado sucesso dos ocupantes do Poder Central. Enquanto o atual presidente se empenha (com sucesso) na ocupação dos espaços que lhe permitem o controle do Estado, ele ainda não logrou desmoralizar e demonizar o processo eleitoral que está sob fogo cerrado de seu grupo político - por ora, a ameaça é não reconhecer o resultado das eleições deste ano. Da mesma forma, a sua plataforma política não conseguiu tornar o seu projeto autoritário em uma concreta redução ou eliminação dos mais basilares princípios e direitos da civilização atual. Mesmo que por meio de uma ideologia mal elaborada sobre questões identitárias e de direitos humanos, o atual mandatário não viabilizou a divisão social necessária ao seu projeto antidemocrático. Vale notar que são os princípios e direitos fundamentais constantes na nossa Constituição de 1988 aqueles que melhor estão sedimentados na sociedade brasileira, em todas as classes sociais. Não parece algo ocasional o insucesso do mandatário atual do país. Chama atenção também que as pressões exercidas pelo ocupante da cadeira presidencial sejam feitas abertamente, sem qualquer reserva institucional quando não além da própria legalidade. Apesar da solidez social na defesa dos direitos fundamentais, o atual presidente da República consegue tornar mais rarefeito o Estado Democrático de Direito. O enfraquecimento das leis ambientais, das normas de controle da corrupção e da improbidade administrativa são provas inequívocas de que os acostados no Palácio do Planalto têm um projeto consistente para deixar a sociedade mais frágil para atingir objetivos mais elevados no sentido de uma sociedade mais fechada e de um Estado autoritário. Junte-se a isso o fato de que o ex capitão conseguiu tornar débil e controlável o Ministério Público e, com efeito, as leis mais frágeis sequer atingem os detentores do Poder Político. Se no passado a efetividade do Ministério Público era contestada pelos seus próprios desacertos, por ora, a sua passividade se tornou forçosamente institucional. A gravidade do tema, interessante notar, sequer faz parte da reação institucional promovida pelo Judiciário. O assunto adormece solitário na análise de poucos observadores da cena institucional e política brasileira. Considerado o fato de que o atual presidente da República carece de maiores virtudes enquanto estrategista, a promoção de seu projeto autoritário acabou por tropeçar na política partidária. Uma ironia da história. Como outros presidentes desde a inauguração da Nova República, o atual ocupante do Planalto não percebeu o quanto a fragmentação, corrupção, deformação institucional dos partidos políticos era uma significativa barreira para a consecução de seu projeto autoritário. Sendo o bolsonarismo um movimento sem causa definida e clara, nenhum partido absorveu algum viés ideológico oriundo da eleição do ex capitão. Até mesmo o PSL que elegeu o presidente, partido inexistente de fato até 2018, acabou por ser desprezado no projeto do atual governo. Nem sequer as multidões reunidas em torno dos discursos confusos do líder, mesmo que perigosos, receberam as recomendações necessárias para se aglutinarem politicamente. Nem mesmo um "movimento popular" em torno do chefe deste movimento foi conseguido. Ganhou a sociedade com esta desorganização. Um paradoxo relevante. De todo modo, o ex capitão aprendeu que o voto na urna tem característica de um "ato de fé", baseado na imagem, eventualmente, sofista diante da realidade concreta. Os fins nem sempre importam. De outro lado, o STF ocupou o vácuo de poder deixado pelo Legislativo o qual é fragmentado e imbuído de seus próprios interesses corporativos, na fiscalização e na imposição de limites democráticos e institucionais à atual administração. A centralidade adquirida pelo Judiciário neste contexto é daquelas distorções que são sinais evidentes da enfermidade institucional em que vivemos, mas que nesta hora se mostrou providencial. Ao se tornar de fato um ator político, o STF sofre da parte do governo o combate de quem vê à frente um limite senão uma barreira. Não tem, por certo, o ocupante do Executivo a preocupação com a institucionalidade, mas sim com os impedimentos ao seu projeto. Aqui também vale ressaltar que a existência da pandemia, reforçou o papel do STF na medida em que a sua intervenção também resvalou para o tema do federalismo. Foi a Suprema Corte aquela capaz de repor aos municípios e estados o poder normativo e operacional para fornecer vacinas contra a pandemia do vírus sars-covid, bem como, para legitimar os programas necessários ao controle sanitário da expansão da contaminação. Ao regular concretamente o "direito de ir e vir", bem como, as garantias e as obrigações em relação à vacinação, o STF minou diretamente o uso do poder do ex capitão para praticar aberto negacionismo sanitário e científico. De outro lado, a CPI da Covid, obra do Senado Federal, mostrou e demonstrou as aberrações cometidas pelo governo federal em relação à pandemia. Seus resultados indicam que houve um excesso de, pelo menos 300 mil mortes por negligência e incompetência da atual administração federal no tratamento do tema da pandemia. Assusta o fato de que as reações sociais posteriores às divulgações da CPI tenham sido tão modestas frente à gravidade dos fatos. Eis mais um sinal da falta da vitalidade institucional do Legislativo, com o apoio explícito de seus líderes na Câmara Federal e no Senado Federal. Na sociedade, por sua vez, prevaleceu a apatia e o cansaço com os acontecimentos de Brasília. As distorções e a crise das instituições do Estado brasileiro, como as apontadas de forma exemplificativamente acima, são sinais graves do ponto em que nos encontramos no momento. O questionamento da legitimidade política e institucional no Brasil não se dá somente pelas dúvidas imaginárias e sem evidências objetivas que o ex capitão levanta em relação ao processo eleitoral. Ocorre, muito mais, pelo afastamento da sociedade em relação ao que se discute no Parlamento brasileiro, pela promoção diabólica do ocupante do Palácio do Planalto contrária à democracia, pelos ataques à mídia (e a sua credibilidade na apuração e comunicação dos fatos), pela fragilização do ordenamento jurídico e do principal pilar de sua fiscalização, o Ministério Público, bem como, em face da comunicação direta com as multidões para estimulá-las ao ódio político e social, bem como a um exercício libertário em relação a micropoderes de certos grupos (caminhoneiros, policiais, evangélicos pentecostais, etc.). Estas constatações são verificadas em cada etapa e tempo do atual governo. Desde o início do mandato verifica-se a pregação consistente e, na maioria das vezes, competentes para o atingimento de seus objetivos antidemocráticos. O mais consistente é que os ataques contra as instituições têm sido cada vez mais graves, em ondas que muitos julgam ocasionais e desorganizadas - será? O discurso demonizado contra a política e os políticos do início do mandato é, no atual momento, extensivo a quase todos os pilares institucionais e democráticos. No contexto acima, as eleições de outubro de 2022 não serão majoritárias e proporcionais, do ponto de vista de sua essência. De fato, serão plebiscitárias. Os eleitores, conscientes ou não disso, não tratarão das possibilidades democráticas de o país se desenvolver integralmente, na economia, nos temas sociais, culturais e tecnológicos. A aposta do bolsonarismo é derivada da crença em uma comunicação metódica pela qual a melhor forma de não haver discussão é lançar argumentos que não são passíveis de ser verificados no momento da receptação da informação para justificá-los em relação a um futuro impreciso onde não se sustenta a memória do eleitor. Este método serve para desmoralizar o adversário ("inimigo"), bem como, para criar uma ideia que pareça interessante ao receptor. Esta é a razão pela qual o bolsonarismo pode dispensar os acólitos mais eruditos que querem apoiá-lo - Paulo Guedes é figura deformada e risível do governo. Dentre os elementos atraídos pelo ocupante do Planalto destaca-se a ideia de que a "mídia organizada" é mentirosa e carregada de interesses próprios. Para tanto, montou uma engenhosa máquina de fake news e atuação nas redes sociais que é um imenso sucesso - cabe aqui o reconhecimento pleno. Sem ter compreendido completamente o sentido da sociedade em rede, no uso do termo de Manuel Castells, o ex capitão entendeu completamente as possibilidades e efeitos desta "admirável rede". Enquanto isso, os seus opositores caminhavam nas trilhas da tradição midiática de dantes. A desmontagem da credibilidade da mídia tradicional, mesmo que incompleta, é preocupante vez que a desmontagem de um noticiário minimamente crível não foi seguida por alguma alternativa razoável de combate às fake news. Diga-se, enfim, que isto é fenômeno mundial e não somente brasileiro. O Brasil passa por um período muito especial de sua história. Não temos propriamente uma polarização entre interesses explicitamente postos. Estamos diante dos dilemas originários e estruturantes da nossa formação histórica, política e social. O atraso da economia e da sociedade não consegue ser mais superado pelas estruturas institucionais e políticas do país. A inflexão antidemocrática que o atual governo representa é concretamente a aceleração das tendências construídas historicamente e, notadamente, desde a redemocratização dos anos 1980s. Observado todo o período e relativizados fatos em vista dos novos paradigmas sociais e econômicos, o Brasil está muito aquém de suas potencialidades. O fracasso estratégico do país é evidente. A disfuncionalidade do parlamento para elaborar políticas e emanar leis para a modernização do país é cristalino. Do inconveniente bipartidarismo reinante no governo militar acabamos na completa fragmentação política que se constitui em uma plutocracia eivada de interesses próprios e distantes da participação social. Os ritos parlamentares pouco a pouco perderam seu sentido inovador em relação aos fatos e atos políticos e depurador de interesses para se tornarem meio de barganha (não política) de partidos e políticos. A interação com o Executivo não é realizada em vista de mediana racionalidade e funcionalidade em relação às matérias em discussão. Ocasionalmente, se registra saltos legislativos à frente, na direção do futuro que, posteriormente, são mitigados por outros atos e fatos que nos trazem ao passado. A reforma previdenciária foi mitigada pelos aumentos do funcionalismo público, a reforma política desembocou no fundo milionário partidário estatal, a Lei de Responsabilidade Fiscal é mitigada por "orçamentos secretos". Mesmo do ponto de vista institucional verificam-se muitas dúvidas sobre os processos de impeachment e o funcionamento das CPIs, estas últimas, elementos essenciais para a fiscalização pela minoria das atividades do governo em vigor. Sem capacidade decisória, mas com capacidade de veto, o Parlamento é, do ponto de vista de sua funcionalidade política, esvaziado. É valorizado patologicamente para que não exerça a sua função de controle e sancionamento ao Executivo. O elemento catalizador destes dois polos, um disfuncional que lhe retira a ação e outro que lhe joga na passividade, resulta em aberto e inescrupuloso clientelismo e patrimonialismo. Os eleitores por meio do voto universal, por sua vez, carecem da necessária educação política para exercer seus direitos e veem-se distantes do Parlamento e sem condições de influir. Quebrado o elo de representação, resta ao distinto povo, a interpretação dos fatos em torno de um imaginário de que em Brasília sobram gatunos e gente pouco interessada nas coisas públicas. Não à toa, a classe política tem das piores avaliações populares em termos de credibilidade dentre as instituições brasileiras. É deste ambiente de descrença e desentendimento do papel institucional dos poderes republicanos que, sem grande inteligência política, o ex capitão engendrou seu projeto perigoso no cenário brasileiro. Sem as habilidades de Hugo Chávez, para citar um personagem que rejeita, mas com quem tem semelhanças inegáveis, ele acabou por reunir elementos altamente atraentes para encantar parcela substantiva do eleitorado e para atrair certos interesses da elite que se acostaram ativamente no seio do poder concreto do bolsonarismo. O melhor exemplo é o agronegócio. Para suprir o vazio político de um parlamento representativo ao modelo de gestão e às posições políticas do bolsonarismo o ex capitão chamou as Forças Armadas. A adesão inicial foi realizada pela sentada em cargos anteriormente destinados aos civis. A justificativa para tal era a "eficiência e honestidade" da tropa frente aos desmandos dos civis. Todavia, esta adesão encontra-se atualmente muito mais disseminada nas fileiras castrenses. Generais de certa reputação o apoiam abertamente e as ideias do ex capitão, mesmo que primárias, são bem recebidas pelos estados-maiores das Forças Armadas. Também já se verifica da parte das Forças Armadas certa liberdade para criticar o STF e seus ministros. O "aparelhamento" do Estado pelos fardados também permite a ampliação da rede de informações do governo e atrai com mais rapidez as ações necessárias à defesa do governo. Os tropeços que vez ou outra ocorrem são insuficientes para que se chegue à conclusão de que a estratégia adotada não alcança em suficiência os resultados esperados pelo Planalto. Vale notar, adicionalmente, que as Forças Armadas permanecem no topo das pesquisas sobre a credibilidade popular nas instituições. A obsessão do ex capitão por segurança também chama atenção. Além de contar com os fardados para seu projeto político, o presidente atual aparelhou todas as polícias que estão sob seu manto institucional, da Federal até a Rodoviária, bem como, valoriza os órgãos de inteligência que agora voltam a estar espalhados até pelas empresas estatais. Vale ressaltar que este aparelhamento é tratado na cúpula do governo com o status de projeto, mesmo que não de forma explícita. Não é, está claro, um projeto de Estado. É um projeto do bolsonarismo. E ainda resta a pergunta ainda sem resposta: está em formação uma "polícia política"? Na comunicação social o sucesso do ex capitão é inegável. A sua capacidade de comunicação direta com o povo é muito desenvolvida e a sua imagem de "gente simples" e "comum", associada à imagem de um "paizão" das causas populares, encontra poucos similares na política brasileira, guardadas as proporções e virtudes, em Vargas, Adhemar de Barros, Jânio e Lula. O potencial da soma de fake news e um "bom ator" não é desprezível. Do ponto de vista econômico a mutação do atual governo para o populismo aberto está a caminho. A simples verificação do papel que o Ministro Paulo Guedes teve no início do governo e a sua atual atuação avalizadora de medidas populistas e que conspiram contra a estabilidade monetária e fiscal indicam que a probabilidade de o populismo prevalecer completamente num eventual segundo mandato do ex capitão é muito elevada. Estranha a entidade do "mercado" não perceber ou temer esta perspectiva. A intervenção descabida e desmensurada no mercado de combustíveis, os aumentos salariais do funcionalismo público, a defesa, populista e dissociada de racionalidade econômica e social, de políticas de renda aos necessitados são algumas das indicações suficientes de que não estamos diante de um Estado do bem-estar, mas de um projeto populista de direita. O que se escreve acima a partir de extratos da realidade política que vivemos é apenas para evidenciar o caráter excepcional da conjuntura política atual. O anormal tomou conta da cena política e nos acostumamos a relativizar os fatos cotidianamente verificados sem que seja abarcado para fins de análise a construção em andamento. Mesmo que o projeto antidemocrático e autoritário do atual governo fracasse, para quem o enxerga hoje caberia a ação política porquanto não se pode conviver com ele. A supressão das liberdades e o desrespeito às instituições são sementes que jamais originam boas cepas. Não sabemos se a "virada à direita" promovida pelo atual presidente da República é uma mudança estrutural do eleitorado brasileiro. O que se sabe é que uma parcela entre 15% e 25% do eleitorado gravita em torno de um bolsonarismo, ainda carente de ideias e ideais em suficiência para caracterizar um movimento político marcante. De todo modo, o categórico é que a eleição plebiscitaria que teremos em outubro de 2022 terá fortes contornos populistas. Não se pode imaginar que em meio à provável colisão de ofensas e mentiras frente ao eleitorado sem educação política possa resultar na disputa entre dois projetos para o Brasil. Aqui não precisa ser cientista político para constatar esta realidade. A divisão entre a socialdemocracia "de centro direita" (PSDB) e a socialdemocracia sindical "de centro esquerda" (PT) ficou no passado. Se naquelas ocasiões não houve disputa calcada em projetos políticos consistentes dada a fragmentação política, agora devemos nos esquecer dos projetos e nos concentrarmos nos fatos, nos detalhes, nas micro estratégias. Esta é a realidade, aqui é que chegamos. Este é o resultado de nosso fracasso: escolheremos entre propagandistas. Examinado o fundo do tema, as eleições de 2022 já estão pautadas pelo bolsonarismo. Iludem-se os que acreditam, em oposição ao ex capitão, que a escolha do povo será essencialmente feita com base na história pregressa dos candidatos, nos seus projetos e nos seus apoiadores. Estes serão detalhes do processo eleitoral. Não a sua essência. O que importará é a capacidade dos candidatos em projetar o que será diferente em relação ao outro, caso venha a ganhar. O caráter propagandista dos enunciados políticos será muito mais importante que a elaboração racional e racionalizada de seus projetos. A ligação com a realidade quem fará é o eleitor, solitário e claramente despreparado para dirimir os despropósitos que serão emitidos pelos candidatos. O candidato não precisará se preocupar com a realidade e racionalidade do que propõe. As imagens serão mais importantes que os planos. Afinal o bolsonarismo atua com o imaginário. Tanto é assim, que o medo do comunismo é parte de sua figuração e do imaginário de certa parcela do eleitorado, mesmo sabendo-se que por estas terras o comunismo não é apenas improvável, é arqueológico. O medo será parte essencial da discussão, mesmo que não de sua dissipação: medo da corrupção, do fim da família, da falta de comida, da ausência de futuro e oportunidade, dos temas das minorias, do "poder negro", da tomada da Amazônia e assim vai. Os causadores dos medos, estarão bem visíveis: o outro candidato. De resto, os "coletivos" serão culpados: "banqueiros", "mercado", "sindicalistas", "reacionários". A pobreza da discussão não permitirá detalhamento suficiente para que o eleitor possa entender "processos", "estruturas", "meios e fins". Os candidatos serão qualificados e identificados em "opressores" e "libertadores". Um cenário maniqueísta e divisionista. Sem racionalidade, exceto a imagética projetada. E mais: sem interesses visíveis e sim um ideário vazio que une grupos disponíveis a certos sacrifícios. Vale notar que, neste sentido, é razoável imaginar que o ídolo da hora seja o deputado Daniel Silveira agraciado pelo seu líder supremo. O seu sacrifício é pela "ideia" que projeta sem que sequer se saiba o que ele realmente pensa ou que interesse defende. A dificuldade da esquerda provavelmente residirá no fato de que o ex capitão hoje empunha a bandeira da "liberdade". De fato, trata-se da bandeira libertária dos costumes sem as limitações do paradigma civilizatório do mundo moderno. A liberdade que permite a ofensa, a fomentação da discórdia, a presunção de uma igualdade inexistente. Neste sentido, a defesa da democracia encontrará imensas dificuldades para ser realizada para fins do discurso eleitoral. Afinal, esta democracia aos olhos do povo resulta em representantes que não os representam em Brasília. Os temas da vida cotidiana, de sua plenitude, serão o tônus da campanha eleitoral. A segurança pessoal e coletiva, o preço do gás de cozinha, o drama do estudante sem escola, o policial abatido por traficantes, a carestia dos alimentos, o prejuízo das políticas ambientais, todos ganharão dimensões políticas talvez sem precedentes nas eleições brasileiras. Neste reducionismo temático não é difícil imaginar que a esquerda será projetada pelo bolsonarismo como o "mal maior". Vejamos o que o ex capitão falou no início deste ano via Tik Tok e outras redes sociais: "se o PT voltar será o fim de todos nós" (sobre a regulação da mídia), "os militares são o último obstáculo para o socialismo no Brasil" (sobre o apoio de Lula a Maduro), "Se voltar, é para desviar o dobro" (sobre Lula e o PT), "Se o PT voltar ao poder, haverá maconha no Alvorada", "Responsabilidade não é só com economia, é com a vida, liberdade, futuro do seu país. Sabemos o que vai acontecer com esta pátria se esses bandidos voltarem para cá..." Lula, o ex-metalúrgico, tem os recursos pessoais para elaborar um discurso que atinja a vida cotidiana dos cidadãos e eleitores. Todavia, as circunstâncias recentes de seu retorno à campanha presidencial parecem influenciá-lo no sentido de uma construção mais voltada para a sua luta pela justiça pessoal fruto das mazelas processuais da operação Lava Jato. Se Lula cultivar esta imagem de "vítima" como a central de sua campanha, atrairá para si todas as fragilidades de suas administrações e talvez nenhuma de suas virtudes. A corrupção e os desmandos na Petrobras voltarão rapidamente ao imaginário popular. É o melhor cenário para o bolsonarismo. A visão antipolítica do atual ocupante do Planalto prevalecerá, paradoxalmente pelo discurso de um político que ficou quase 30 anos no Congresso abastecido por votos das franjas da sociedade fluminense. Diante de uma eleição plebiscitária e da elevada probabilidade de que não se discuta e não seja forjado nenhum projeto capaz de fazer o Brasil prosperar e se desenvolver não há razão alguma para que existam expectativas positivas e razoáveis sobre o futuro. Sobretudo na economia, residem as muralhas que impedem que se possa reformar o Brasil a partir de agora. O desequilíbrio macroeconômico é estrutural: O Estado é grande e disfuncional e o capital nativo é altamente dependente do Estado. Além do mais, a economia não pode ser, como tem sido por muitos analistas, dissociada das variáveis políticas e institucionais. Atualmente, é impensável que se possa maximizar emprego e renda, reagir contra flutuações excessivas da atividade econômica e manter a estabilidade monetária dentro da atual configuração política e institucional do Brasil. Sem a construção de novos paradigmas institucionais e de uma verdadeira reforma política, que recentre o Poder na consecução de políticas públicas racionais, holísticas e profícuas à sociedade, não teremos um encaminhamento bem-sucedido para os desafios do país. Infelizmente, como aqui está demonstrado, a oportunidade de um debate aberto sobre os temas essenciais aos brasileiros não será realizada na campanha eleitoral em curso. De fato, teremos uma das disputas mais antidemocráticas da história porque as eleições tratarão mais dos candidatos do que dos eleitores. O delírio será a cegueira do sonho. É provável que alguns prefiram a melancolia do passado e o conforto de suas garantias mais momentâneas e básica. É fútil acreditar que é uma possibilidade, mesmo que aleatória, estar imune às tempestades que virão. O dilema que o país nos mostra não é tão somente político. É civilizatório. Por vezes, é preciso germinar a semente que está dentro daquilo que combatemos para que se forje a sua própria destruição, quando a reconhecemos plenamente. __________ 1 Na epígrafe de "As Origens do Totalitarismo" (1950) de Hanna Arendt (1906-1975).
Demorará algum tempo para sabermos como evoluirá o cenário eleitoral. Mais e mais, ficam evidentes as fortes dificuldades do centro político se organizar para enfrentar o bolsonarismo que, com inegável habilidade, soube atrair o propalado "centrão" para o projeto eleitoral. Do lado da centro-esquerda a tentativa de construir pontes à direita não produz nenhum efeito relevante para as eleições e, provavelmente, nem será relevante para um futuro governo, se este vier a acontecer. De fato, a reconstrução de um centro político confiável não parece em curso e pode nem existir. A política, neste exato momento, se resume a uma polarização que não indica se vamos ter Lula ou o ex capitão ao final. O outro elemento que está a influenciar o cenário é que, na ausência de uma reforma política séria, a composição do Congresso Nacional deverá ser ainda pior em 2023: candidatos populares e populistas são a nova elite das arenas políticas de Brasília e Pindorama afora. Vale notar um detalhe importante: a abstenção eleitoral este ano será facilitada pela existência de um novo app do TSE que deixará o eleitor mais confortável para justificar a sua ausência perante a urna eletrônica. A abstenção pode ser recorde. Se a incerteza eleitoral é clara, maiores são as inquietações em relação ao período pós-eleição: no curto, médio e longo prazos as expectativas em relação ao Brasil pioram. Paradoxalmente, a relativa reorganização geopolítica resultante da guerra da Ucrânia originou novas oportunidades em meio aos riscos em relação à energia, alimentos, meio ambiente, cadeias de suprimentos, tecnologia, dentre outras. O Brasil bem que pode se aproveitar destas mudanças para se recolocar no cenário econômico, político, aqui e lá fora. Todavia, não parece ser o caso. A crise institucional que ganhou velocidade redobrada com a edição da Operação Lava Jato e o impeachment da presidente Rousseff, agora já produziu todos os efeitos sobre as estruturas do Poder Público brasileiro. Não são somente as disfuncionalidades das seções superiores do Estado (Legislativo, Executivo e Judiciário) que estão incapacitadas de fornecer soluções estruturais para o desenvolvimento brasileiro. De fato, na infraestrutura do Estado repousam as maiores dilacerações que impedem que se possa acelerar o país para superar seus problemas. Basta verificar o que ocorre na Cultura, na Funai, nas entidades de controle ambiental, nas empresas estatais, nas agências reguladoras, entre muitas instituições e órgãos, feridos e com ações paralisadas e/ou mitigadas. A elaboração de políticas e a efetividade dos controles estão muito suscetíveis à conjuntura e não devidamente habilitados para reagir a ela. A conjuntura econômica, por sua vez, é muito incerta. A inflação campeia mundo afora, com o reforço da crise energética fruto da guerra em curso. O financismo reinante é poderoso a ponto de fazer com que os preços dos ativos do mercado de capital estejam acima de quando começou a invasão da Ucrânia. Todavia, desde 2008, o tal do mercado nunca foi testado frente aos riscos presentes e potenciais existentes. Isto inclui, por exemplo, o papel da China na economia mundial o qual começa a ser verdadeiramente questionado. (Dados recentes do influente IIF _ Institute of International Finance indicam que pode estar em curso um rearranjo dos portfolios de investimentos e a China parece ser a grande perdedora). O Brasil, neste contexto, está fora do círculo de países prioritários para o investimento. Isto porque o governo do ex capitão nos catapultou da cena internacional por força do seu radicalismo político, em relação aos temas dos direitos humanos e, especialmente, ambiental. Ademais, não temos nenhum plano estratégico consistente para proporcionar dinâmica própria aos movimentos iniciados lá fora em termos de transferência de recursos. Refiro-me essencialmente ao denominado investimento direto vez que movimentos de fluxos para o mercado financeiro e de valores mobiliários obedecem a critérios e fatores de curto prazo. Assim sendo, a valorização recente do real pode, até mesmo, se acentuar, mas este não é um processo estrutural: deriva essencialmente da valorização das cotações das commodities e do fluxo de recursos de investidores estrangeiros em busca de títulos de renda fixa com elevadas taxas de juros. Na hipótese do ex capitão ser reeleito é possível que o mercado até reaja positivamente no curto prazo, mas o preço a ser pago em 2023 está, em larga medida, determinado pela destruição que o bolsonarismo produziu nas instituições e na própria economia. Se Lula for o presidente, o cenário não é muito diferente. Ademais, não está muito claro se o ex metalúrgico entende que este terceiro mandato não se comunica em termos estruturais com os anteriores. Os agentes políticos em ação no Congresso são outros, o populismo radical veio para ficar, a fragmentação política é ainda mais granular e as elites estão posicionadas para o seu característico extrativismo com mais força e mais livres para atuar sem os controles institucionais, conforme elaboramos acima. Também não se sabe, caso Lula vença o pleito eleitoral, como o ex capitão reagirá no momento pós-eleitoral e no que o bolsonarismo se transmutará no governo de Lula. Além disso, é cristalino que o Centrão não é um movimento sem causa clara como o bolsonarismo. Nos governos anteriores do ex metalúrgico e no governo FHC, o Centrão coletava da fragmentação política frente aos projetos e proposições de governo as suas vantagens políticas, republicanas ou não. Agora, o Centrão vem em nova versão digitalizada: elabora, per se, políticas e medidas que lhe favorecem diretamente, sem quaisquer escrúpulos em relação ao denominado interesse público. Vejam-se os exemplos do "orçamento secreto" e do "fundo partidário". São fatos simbólicos para exemplificar o desmantelamento político pelo qual o país passou. Ainda não se fala em voz elevada sobre a possibilidade de que em 2023 e nos anos seguintes a crise institucional aberta de hoje se transforme em uma crise aberta de governabilidade. Vale pensar e, sobretudo, agir em relação a esta possibilidade, presente no horizonte próximo. No uso do aforismo de Oscar Wilde, "estamos todos deitados na sarjeta, só que alguns estão olhando para as estrelas".
segunda-feira, 28 de março de 2022

O perigoso caminho do consenso

A engenharia do consenso no Brasil é historicamente praticada para afirmar aquilo que deve ser rejeitado. "Quem somos nós, os brasileiros? Aqueles que dizem não à terra barbarizada ou os que reafirmam a escolha de 2018? Seremos Zelensky ou Putin? Escolheremos vida ou morte?". Este inquietante tipo de questionamento é raro na sociedade brasileira. De fato, a preferência dos brasileiros, sobretudo de suas elites, é o esconderijo perante o mais forte, perante o necessário domínio da res publica e, de forma especial, perante o senhor do poder político em certo momento. A resistência no Brasil é vista como obra menor e os resistentes são vistos não como detentores da coragem necessária à vida, mas como pessoas que causam problemas e perturbam a ordem dos apaniguados com o poder estabelecido. Cria-se assim o exílio social velado dos que se movem contra a ordem posta. Esta lógica, em verdade perversa, vale para grande parte das atividades nestas terras abaixo do Equador, na América Latina e neste Brasil. Dos bairros mais humildes às casas mais abastadas, das empresas ao Estado. O questionamento que abre este artigo é de João Moreira Salles, na Revista Piauí, da qual o documentarista é fundador, no último dia 25 de março, no magnífico e corajoso artigo "Nota sobre três presidentes, duas bombas e o fim do mundo". É isto mesmo. A próxima eleição no Brasil não somente dirá respeito ao meio democrático de exercer (ou não) a democracia, mas indicará se o povo brasileiro e suas elites predatórias escolherão a civilização (ou não). O que se verifica em relação ao pleito eleitoral é a quase que completa indiferença, inclusive em relação ao entendimento sobre o papel não-procedimental (cultural) da Política. Ou seja, a sociedade brasileira não assume a constatação óbvia de que a civilização está na UTI. Além, está claro, da emergência em relação à democracia como o meio de progresso humano, material e do significado espiritual da democracia. Vale dizer que o bolsonarismo, este fenômeno sem causa clara, mas estrago evidente, mostrou que, pelo menos ¼ da população tem dúvidas sobre o funcionamento da democracia e questiona a sua legitimidade. Não é incomum verificar que o apoio ao autoritarismo cresce e que, por vezes, é destinado à ditadura. Além da insatisfação em relação à democracia, verifica-se que os candidatos e partidos são vistos como semelhantes ou mesmo iguais, não importando, com efeito às denominações partidárias e a polarização entre direita e esquerda. O melhor candidato, neste sentido, é aquele capaz de gerar uma certa "ordem", mesmo que não se saiba exatamente de que ordem estamos a tratar. Ora, esta visão personificada limita, mesmo numa acepção geral, o significado do momento atual, no qual a civilização, e não apenas a democracia, está em risco. Mais: a eleição é vista como uma delegação temporal de poder, sem que o eleitor tenha o compromisso de fiscalizar e contribuir para que se possa progredir. Cria-se, assim, o ambiente perfeito para que os predadores possam usufruir das presas em seus dentes, do orçamento público à Amazônia, como bem salienta Moreira Salles. Também os sistemas de controles e contrapesos no Brasil estão tremendamente agastados o que cria as (i) disfuncionalidades para tentar reequilibrar o sistema democrático e de governo (e.g. Judiciário), (ii) os controles meramente formais e não materiais e, portanto, ineficazes da democracia de Pindorama sendo que (iii) tais controles são vistos (e muitas vezes são verdadeiramente) como empecilhos à solução dos problemas sociais, econômicos e políticos. Ora, diante de uma espécie de embargo civilizatório frente ao qual estamos, sobra o quadro desolador em relação a todos os temas relevantes: a violência urbana, o subemprego, a vergonha da educação nacional, o sistema de saúde deteriorado e assim vai. Além da inexistência de eficácia democrática, verifica-se que a realidade possível agora é o abismo, a destruição concreta das possibilidades de o Brasil ser uma país, digamos razoavelmente civilizado. É este o jogo que será jogado na escolha do próximo presidente. Há, neste contexto, quem pregue a busca do entendimento e da harmonia. A pergunta que surge é: em torno do quê? A engenharia do consenso no Brasil é historicamente praticada para afirmar aquilo que deve ser rejeitado. Como alguém pode imaginar possível conciliar os interesses objetivos de um Arthur Lira, de muitos dos membros da bancada da Bíblia, do boi e da bala com aqueles que dizem respeito a laicidade do Estado, da preservação da Amazônia ou do combate ao crime baseado na lei e não na arma? Aqui, me permitam o ceticismo, vez que a questão é de dissenso e não de consenso. Chega de saltos triplos carpados em matérias de diálogos. Chegou a hora de separar o joio do trigo. Otto Kirchheimer (1905-1965), dos maiores constitucionalistas alemães, afirmou, em relação à Constituição de Weimar (1919) que esta era "uma constituição sem decisão", porquanto buscava a pacificação social por meio da satisfação de interesses que seriam inconciliáveis e até completamente opostos. É de se pensar como qualificar a nossa "Cidadã" de 1988. Os compromissos concretos dos candidatos com a democracia, o papel exercido pelo ex-capitão nestes três anos e meio e a possibilidade concreta do país cursar um caminho político civilizatório são os temas cruciais da próxima eleição. É fundamental que a sociedade exerça o seu papel compromissado com os valores e intensifique as suas pressões em prol de um desfecho eleitoral positivo ao país ou cairemos no abismo. É do confronto e não do consenso sobre as diferentes posições políticas que evitaremos as piores consequências.
quinta-feira, 10 de março de 2022

Riscos e oportunidades entre dois "mitos"

O poder político que será amealhado nas urnas não produzirá os efeitos que se espera. A guerra da Rússia contra a Ucrânia tem elevada probabilidade, segundo se pode verificar pelas afiadas análises que têm sido feitas internacionalmente, de tornar uma vitória militar de um país (Rússia) em relevante derrota política perante a nação militarmente vencida (Ucrânia). O que se constata, de forma bastante geral, é que o poder militar utilizado por Putin teve o benefício (para o Ocidente) de originar uma reação política e econômica espetacular, cujas repercussões devem configurar um cenário bastante diverso daquele que prevalecia ex ante. O Brasil, resguardado em sua posição geopolítica menos relevante, sofrerá os efeitos deste processo político e econômico ao largo das ações militares. Obviamente, levamos em conta o pressuposto lógico de que a luta militar não incluirá armas atômicas que, se usadas, podem levar à destruição da Terra. De fato, o front ucraniano é o mais perigoso e mudancista fato político e militar desde a II Guerra Mundial. A crise de Suez (1956), a crise de Berlim (1961), a crise dos mísseis em Cuba (1962), a guerra de Israel (1973) e a invasão do Iraque (2003) não tiveram a importância dos fatos e dos processos que decorrem da crise ucraniana. Para o Brasil, o cenário é de desafios e oportunidades. Afinal de contas, a globalização da qual estamos concretamente e materialmente atrasados, senão em alguns casos marginalizados, tornou-se menos importante do ponto de vista da dinâmica econômica. Doravante, o mais estratégico será a capacidade de cada país com alguma capacidade de agir internacionalmente e tratar as mudanças no cenário como oportunidades e não somente como riscos. Interessante notar que as pautas econômicas sobre, e.g., os temas energéticos, ambientais, de alimentação, transferência de tecnologia, são no conjunto e nas particularidades muito interessantes para o nosso país. Obviamente, é no Ocidente que despontam as nossas maiores chances de um posicionamento favorável ao nosso desenvolvimento. Não é a Rússia, provavelmente derrotada politicamente, que teremos o nosso melhor cenário de oportunidades. Nesta conjuntura, as eleições do último trimestre deste ano no Brasil ganharam dimensão ainda mais importante para o desenvolvimento brasileiro. Neste tema residem mais riscos que oportunidades potenciais as quais podem ser transformadas em desperdício de horizontes estratégicos, caso não haja ações adequadas. Não seria novidade para nós. Até agora, o cenário político e eleitoral é simplesmente deplorável. Aqui, me restrinjo a trabalhar no campo conceitual, muito embora não possa me furtar a fazer considerações mais objetivas sobre os fatos políticos. Os eleitores, ao que parece, estão assistindo passivamente ao desenrolar dos fatos políticos como se estes não fossem afetá-los. Ainda mais quando o momento político atual se distingue como o pior de toda a história republicana brasileira. Jamais na história houve um cenário tão pouco promissor para o desenvolvimento econômico e social do país. Impressiona a passividade da sociedade, notadamente dos detentores do poder real que parecem acreditar que o seu status quo permanecerá. Será? De fato, a eleição caminha para um cenário no qual os dois principais candidatos se colocam como "mitos". Tanto o ex-capitão quanto o ex-metalúrgico se colocam como representações abstratas de linhas políticas opostas. Concretamente, pouco se pode especular sobre o que farão, sobretudo diante da difícil conjuntura e dos desafios vindouros, reforçados pela guerra da Rússia contra a Ucrânia. Caminhamos célere e serenamente na direção de um cenário ainda mais incerto que o atual. O poder político que será amealhado nas urnas não produzirá os efeitos que se espera e são insuperáveis. Seja quem for o eleito não existem quaisquer evidências de que os benefícios prometidos para a sociedade possam ser cumpridos pós-eleições. Ao contrário: a contração imediata da demanda fruto das mudanças dos preços relativos no exterior entre commodities e outros ativos tende a agravar os riscos de uma possível recessão, quiçá estagflação. No âmbito interno, o espaço fiscal para se arregimentar recursos em prol do crescimento e desenvolvimento dependerão essencialmente de reformas profundas (e não as cosméticas das últimas administrações). Alguém consegue imaginar uma mudança estrutural forjada em um Legislativo fragmentado em interesses e partidos e marcado pelo patrimonialismo quando não pela corrupção? Com efeito, os benefícios prometidos para a sociedade simplesmente não devem ser cumpridos. Há ainda o temor de setores organizados de que, se e quando houver reformas estruturais, sejam criadas desvantagens para os seus interesses. Ora, são estes grupos que melhor se movimentam politicamente, seja com um lado, seja com o outro. Assim sendo, o discurso programático mudancista não é pronunciado e muito menos articulado politicamente, pois aumenta os riscos para os candidatos. Não é difícil imaginar que, mesmo abençoado pelas urnas, o eleito estará muito limitado por estes grupos de poder. Exemplo disso são os benefícios fiscais e os temas de tributação. Difícil imaginar que uma reforma possa desonerar o consumo e onerar a renda. Este seria o caminho natural de uma melhor distribuição de renda de cima para baixo. De outro lado, mexer em benefícios fiscais significa ter de tratar com a federação, empresas e setores, bem como, com as relações intersetoriais. Improvável ocorrer. Se os benefícios são improváveis e as vantagens de grupos organizados estão bem protegidos, sobram para o debate político os temas dos direitos individuais e as abstrações sobre a nossa crise institucional. Tanto é assim que, de formas diversas, o ex-capitão e o ex-metalúrgico, acabam por se esmerar no exercício de debates sobre igualdades, temáticas de costumes, liberdades individuais e assim por diante. Sem dúvida, estes temas são importantes e, como sabemos, estão sob ameaças consideráveis. O que temos de reconhecer que o progresso em relação aos direitos individuais é muito pouco perante o subdesenvolvimento de nosso país. É preciso modernizar a sociedade como um todo, da economia aos costumes e direitos, inclusive porque tais direitos são usualmente solapados pelo atraso econômico e social. Por fim, o papel da oposição até agora é incrivelmente decepcionante. Vê-se uma esquerda atrasada, discutindo temas dos anos 1950s-1980s, lidando com temas internacionais como se estivéssemos na "guerra fria", conspirando contra as reformas que são necessárias, sem projeto e sem aderência dos setores vanguardistas da sociedade em matéria econômica e social. A mitificação do ex-metalúrgico, face às suas recentes vitórias judiciais e à sua história é um erro estratégico porquanto esconde e obscurece os projetos que precisam ser empreendidos pelo país. Mais: o discurso vazio dá sinais de que o candidato e seus apoiadores sobem em saltos altos dos quais podem cair, tropeçar e levar o país a permanecer como está.
sexta-feira, 4 de março de 2022

A guerra de Putin e um certo ex-capitão

O declínio dos EUA na cena externa é uma má notícia para o mundo.  Na esfera da política internacional prevalece a força, seja econômica ou militar (ou as combinações destas) sobre a ordem jurídica e institucional. A despeito da relevância das instituições multilaterais e do ordenamento relativamente rico em normas, a análise dos eventos fora das jurisdições dos Estados Nacionais é uma frondosa colcha de retalhos que retrata o amplo desrespeito das nações centrais à Lei e à Ordem internacional. Na história moderna, do Império Britânico ao Império Norte-Americano o que se verifica é que reina o caos na cena externa, calcado nos interesses mais variados das nações que dispõem de aparatos para agir frente aos inimigos históricos e ocasionais. A iniciativa bélica russa frente à Ucrânia é mais uma das ocorrências que atraem as atenções do mundo e que demonstram que a desordem internacional é gigantesca. Na linguagem do teórico Hans Morgenthau (1904-1980), as relações internacionais se dão essencialmente pela força dos agentes que a operam. Com efeito, a visão caótica das relações deriva da impossibilidade civilizatória de se efetivar um ordenamento jurídico digno da própria condição humana. São as sociedades em seus cotidianos ordinários as maiores vítimas desta realidade. Por óbvio, Vladimir Putin e seus oligarcas de plantão teceram um enredo complicado em relação à Ucrânia. Afinal, mesmo que haja justificativa geopolítica legítima e ameaçadora aos interesses e à segurança da Rússia e seus aliados, a guerra é o registro do fracasso da política e da diplomacia. Ademais, é a afirmação política interna de Putin, baseada em estruturas internas autoritárias, oligárquicas e militaristas. Não é necessário se fazer apurada contabilidade do poderio que a OTAN assumiu nas últimas décadas pós-URSS para encontrar as razões da reação de Putin. A Ucrânia é para a Rússia a Cuba dos EUA sob Kennedy. Difícil imaginar que a América aceitasse coisa equivalente. A boa notícia desta (nova) guerra é que a opinião pública interna dos países, sobretudo os democráticos, tem um peso novo a influenciar o andamento dos fatos políticos, econômicos e militares. Os cidadãos dos países mais democráticos, de posse de seus celulares, têm exercido relevante e surpreendente poder nas decisões dos líderes dos países. Mesmo que se critique o fato de que há "ares eleitoreiros" em certas decisões de presidentes como Macron e Biden, bem como, de primeiros-ministros como Boris Johnson, é melhor que seja assim mesmo: o voto pesando sobre o gatilho. A comparação é fácil: Putin não tem este limite interno. Que pena. É a opinião pública que está despejando esperanças para que a Ucrânia tenha uma vitória política frente ao seu provável fracasso militar. Afinal, é notável que o isolamento da Rússia tenha ocorrido em velocidade "internética". Em uma semana pós deflagração da guerra, verificou-se um conjunto bem articulado de medidas econômicas cujos efeitos são dramáticos para Putin e para a Rússia. Do congelamento das reservas internacionais do país até a exclusão de seus atletas de competições internacionais, ninguém pode negar que as coisas ficaram muito difíceis para o ex-KGB Vladimir Putin. Notadamente, a Europa, o continente mais fragmentado em termos de política externa, a reação conjunta foi espetacular para os padrões de Bruxelas, a capital da União Europeia. Não deixa de ser raro ver a Europa agindo unida e isto faz falta na cena internacional. Até mesmo os chineses, registraram um salto ornamental gigantesco em suas ações: de apoiadores de primeira hora passaram a arrependidos de rara hora. A China sentiu os ventos das maiores democracias e viu que tinha mais a perder que a auferir. De outro lado, não deixa de ser visível que a América de Biden demonstra que a sua opinião pública persiste gravitando sob velado desinteresse pelo que acontece por fora de suas fronteiras. Não à toa, Donald Trump, ele mesmo!, persiste firme no debate interno do país. Logo ele, sobre quem repousam suspeitas consistentes de que teve apoio logístico na sua eleição, o que seria razão para os afagos que trocou com Putin durante a sua administração. Os extremos se parecem, não é mesmo? O declínio dos EUA na cena externa é uma má notícia para o mundo. As oscilações da política externa americana sempre foram razão para atrair mais problemas que soluções. Os exemplos das duas guerras mundiais são os mais gritantes, mas todas as crises nas quais os EUA agiram para se fortalecer sozinhos acabaram por findar em fracassos militares e/ou políticos. De Cuba à invasão do Iraque, passando pelo Vietnã (sem maior fracasso), a fraqueza dos EUA foi causa da instabilidade do mundo. Agora, com a China nos calcanhares do Ocidente, as dúvidas são ainda maiores. Note-se que de Pequim não brotam identidades culturais e de valores com o Ocidente. Impera na pauta chinesa apenas o seu pragmatismo econômico, sempre perigoso quando se analisa a agenda multilateral do mundo moderno. Para o Brasil, que, sob o ex-capitão, se consolidou como um anão no sentido econômico e político e um pária no cenário internacional, há um rompimento, esperado há certo tempo, com as tradições da diplomacia brasileira. Mesmo quando o Brasil era muito menos importante externamente como nos anos 1960, houve capacidade política de se articular uma política consistente e própria nas relações internacionais. Da "Política Externa Independente" de San Tiago Dantas até as articulações do governo Lula para alcançar maior visibilidade nos eventos externos, a tradição do Itamaraty sempre foi a de construir uma política externa de Estado que transpassassem os limites das administrações governamentais. O atual governo não apenas rompeu esta tradição como foi comunicar ao mundo uma visão obtusa e medíocre do presidente sobre os fatos ao redor da guerra entre Rússia e Ucrânia. Ainda apareceu frente às lentes da mídia internacional para apertar a mão do irmão siberiano. De volta de Moscou, o messias sem causa, foi dar um abraço apertado em Viktor Órban, o líder húngaro que ostenta um regime autoritário e racista. É realmente uma pena que a opinião pública brasileira não tenha ainda se juntado com as dos principais países do mundo para enfrentar Putin na internet. Na desesperança que reina no país em relação à política e aos candidatos postos a disputar a cadeira do Planalto, o ex-capitão sobrevive com um quarto da opinião pública aos seus pés e outro tanto ainda podendo apertar o "confirma" na cabine eleitoral para jogar o país em mais incertezas. Mas, isto fica para outro artigo.
quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

O BBB eleitoral termina no paredão

As discussões sobre eficácia econômica, justiça social e liberdades civis ficarão para outra eleição. Os caminhos da eleição presidencial começam ficar cada dia mais afunilados, no sentido de que os players relevantes estão mais definidos e a "terceira via", imaginada por muitos desde Luciano Huck pré-domingão, está ínvia e sem "fato novo" que possa alavancar os pretendentes à posição. Neste contexto, os candidatos à frente das pesquisas vão dosando as suas estratégias eleitorais, de sorte o palco se resume aos carismáticos Lula e o atual presidente. Três fatos merecem destaques. O primeiro diz respeito à entrevista de Lula aos "blogs de esquerda" (sic) na qual ficou evidente que o ex-metalúrgico é uma espécie de caudilho do PT: quem manda no partido é ele e a denominada "vida orgânica" do PT não passa de uma firula de debate verdadeiro. Para Lula, Geraldo Alckmin será o seu par na sua chapa eleitoral para, com efeito, jogar o ex-prefeito Fernando Haddad no jogo eleitoral paulista e não perturbar o seu chefe no Planalto. Se vencer, é claro! De fato, o PT resmunga pelos cantos contra o ex-tucano face às eventuais restrições ideológicas contra ele. Para Lula, como se aprendeu, a ideologia é assunto para intelectuais. O que vale mesmo é o seu realismo fantástico: da prisão quer chegar à presidência da República com poucas paradas e o apoio que conseguir para tanto. Que o PT fique com a sua própria indigestão, pensa ele do alto de seus 76 anos. De resto, os petistas já dividem os cargos que podem vir da vitória de Lula. Aqui o realismo não tem adjetivos, apenas interesses. O segundo fato é que o ex-capitão que nos governa está refém do próprio modo de ver a (pequena) política: pôs no lugar da "rachadinha" um "rachadão", entregou o Tesouro Nacional para o Centrão e se concentrará na pauta da "guerra cultural" sobre temas identitários que marcam a civilização atual. A aposta é no imaginário do eleitor, recheado de bruxas, tais como, o comunismo, os professores que podem prejudicar a boa moral, as ameaças do capital estrangeiro à Amazônia, os criminosos atentos à casa das famílias e aí vai. Neste sentido, a morte de Olavo de Carvalho chega a ser "fato positivo" a forjar a liberdade da imaginação do presidente. Agora a coisa ficou solitariamente com Carluxo. A vida segue, não é mesmo? Já Sergio Moro acena para as bordas de apoios de ex-bolsonaristas e aponta suas armas para Lula e a corrupção que o ex-juiz diz ter combatido na operação Lava Jato. O problema é que o contra-ataque vem de muitos lados, do TCU, STF, COAF, etc., os quais se mostram curiosos sobre suas atividades privadas pós-Ministério da Justiça. Moro ainda pode ser o anti-Lula, mas aparenta precisar mais do que a Lava Jato pode dar. Necessita emprestar modos e meios de seu ex-chefe no Planalto. Será que o seu fonoaudiólogo conseguiria? Por enquanto, não parece. Como os pacientes leitores podem observar, o cenário acima nada tem em relação à capacidade política de cada candidato em construir um projeto que vá além das eleições de 2022. Estamos num debate menor que o átomo no que se refere à agenda brasileira. A ciência e consciência dos candidatos parece bem distante daquela que seria necessária ao Brasil e seus desafios. Em tempos de mundo virtual, alta tecnologia industrial, mudanças nas relações entre capital e trabalho, propagação da riqueza em detrimento da capacidade de investir, complexidade das relações políticas e sociais, disfuncionalidade do Estado Moderno frente aos desafios da modernidade, fragmentação das classes sociais e culturais, etc. estamos a ver o debate se resumir a uma espécie de "BBB com paredão diário": o público se diverte, mas não se sabe quem tratará da realidade. Interessante notar que o jogo entre liberais e esquerdistas é o BBB dos que têm o interesse econômico na mão. Neste sentido, é um absurdo imaginar que Lula é essencialmente de esquerda. Basta ver que seu governo de dois mandatos foi mais frequentado por burgueses e empreiteiros interessados nos negócios que por trabalhadores com graxa nas bochechas. Não se viu naquele tempo nenhum radicalismo que justifique o "medo de uma gestão de esquerda". Afora isto, as práticas políticas de seu governo foram as mesmas, consagradas desde a fundação do Brasil. Claro que houve avanços, mas nada equivalente às necessidades que o Brasil enfrenta agora. Lula parece ser um bom candidato, mas será um bom presidente? A questão é relevante para que não esqueçamos que uma coisa é ser melhor que o ex-capitão, outra coisa é governar pós-capitão. Com o atual presidente a coisa é mais simples: se vencer será muito ruim como de resto já é, com o agravante de que a incapacidade política e pessoal dele pode nos levar a um rápido colapso. O neoliberalismo de Paulo Guedes sucumbe perante a desorientação mental do próprio ministro da Economia e à falta de qualquer compromisso de seu chefe. Falta a ambos sintonia mínima com o mundo moderno que não tem nada de liberal na economia, só para ficar num tema. Quem será o "Posto Ipiranga" do ex-capitão na campanha eleitoral? Num eventual governo, o tema ganha contornos esotéricos e misteriosos. De resto, entre um quarto e um quinto do eleitorado ainda aposta no atual presidente - o cassino eleitoral é jogo legítimo por aqui. Ao que parece as discussões em torno da eficácia econômica, da justiça social e das liberdades civis ficarão para outra eleição. O quadro disfuncional das instituições do Estado e do governo vão mediar os embates eleitorais que, por ora, não passarão da consagração do eleito. Daí por diante, os empreendimentos do próximo governo serão verdadeiramente descobertos pelos interesses que emergem do processo político pós-eleitoral. Sem utopia e horizonte, o Brasil caminha para um estranho determinismo. Não é mais o "país do futuro" que se imaginava. É vítima de um passado do qual não consegue se libertar por meio da construção de um projeto minimamente comum.
sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

O cenário externo agrava o destino do Brasil

Não bastassem as mazelas reinantes em nosso país, a conjuntura internacional mostra sinais cada vez mais vigorosos de que as expectativas estão em franca deterioração. No centro do cenário, irradiando todos os riscos estruturais que vigem na economia lá fora, está a política monetária do Federal Reserve, o banco central dos EUA. É cada vez mais evidente que a inflação sai da profunda hibernação de quase duas décadas para caçar no campo econômico. Além das evidentes pressões, típicas de custos, tais como, os preços dos alimentos e da energia, notadamente o petróleo, os salários também estão com elevação real significativa em quase todas as economias centrais, especialmente nos EUA. Há, dentre os muitos riscos e problemas de gestão governamental e dos bancos centrais, dois aspectos inquietantes. O primeiro diz respeito ao fato de que já se formou no campo da inflação das principais economias um processo inercial pelo qual os preços de retroalimentam de forma relativamente generalizada. Os cinco maiores países da OCDE, sem exceção, estão fazendo "picos de inflação" e as autoridades monetárias hesitam em como agir face à complexidade do cenário. O segundo é que o movimento do Federal Reserve terá de ser muito cuidadoso em vista das evidências de que há uma supervalorização dos ativos financeiros e do mercado de ações. Chama atenção, em especial, o segmento das empresas de tecnologia ainda não rentáveis, mas que têm valores das cotações na estratosfera do mercado acionário. As aberturas de capital (na sigla em inglês, IPOs) no mercado novaiorquino estão reduzidas e os investidores estão mais alertas para a possibilidades de fraudes e expectativas exageradas em relação ao segmento de empresas de crescimento (growth companies), como são chamadas vulgarmente no mercado de capital). Se o Fed agir rápido demais ou errar no vigor das elevações da taxa básica de juros para tentar domar a inflação corrente e vindoura, pode surgir um tsunami de quedas no valor dos ativos e, com efeito, o crescimento futuro acaba por ser comprometido. Se o mercado financeiro e de capital precisar de botes salva-vidas do Fed, com injeções de liquidez e compra de ativos pela autoridade monetária, o risco será a credibilidade institucional do banco central norte-americano. Como se vê, o cenário exigirá uma mistura de sangue frio e maestria gerencial das autoridades monetárias em meio ao "financismo" que domina a economia mundial. Obviamente, a descrição acima tem múltiplas simplificações que não refletem toda a complexidade do cenário, mas serve para salientar, por meio de uma visão parcial e quase coloquial, o andamento mais geral da economia mundial e, particularmente, da economia estadunidense. O cenário realmente preocupa. De outro lado, temos a pandemia do covid-19, renovada pela sua versão "turbinada", a ômicron. Os números são impressionantes: os contaminados são uma multidão incomensurável, embora os mortos sejam relativamente poucos frente aqueles que foram verificados no início da pandemia. Há cientistas que têm uma avaliação mais positiva desta tragédia, no sentido que há um prenúncio do epílogo deste capítulo da história mundial. Veremos. As sequelas desta pandemia, ainda são incertas, mesmo que do ponto de vista macroeconômico, o consumo e investimentos represados por conta do espalhamento da doença nestes dois últimos anos, podem significar uma "alavanca" para o crescimento futuro. Infelizmente, este cenário mais otimista e lógico encontrará as variáveis negativas do mercado financeiro e de capital que descrevemos nos primeiros parágrafos acima. Difícil fazer previsões neste contexto. Todavia, os riscos estão relativamente claros e não são desprezíveis ou com limites claros. Aqui no Cone Sul destes Tristes Trópicos nos quais vivemos o cenário é ainda mais grave. Embora haja enorme letargia e passividade social em torno do desastre econômico no qual estamos metidos, a verdade é que 2022 está, como se diz no "tal do mercado", "comprado" pelas variáveis do passado. A situação fiscal é caótica e não é somente pelo fato de termos verificado uma espécie de "assalto" ao orçamento da parte do Congresso e do Palácio do Planalto, no intento de instrumentalizar os partidos políticos e certas hostes dos políticos que mandam no Congresso em vista do cenário eleitoral de 2022. É certo que este processo evidencia que, da esquerda à direita do espectro político, os constrangimentos para estourar o patrimônio da "viúva" (o Tesouro Nacional) é equivalente. De outro lado, o que é preciso salientar é que a política fiscal perdeu os instrumentos legítimos de ser um pilar da boa gestão econômica. Na situação econômica e institucional vigente no Brasil, o uso da política fiscal como meio anticíclico das tendências da oferta e da demanda é ineficaz e ineficiente. Isso porque o uso dos recursos públicos não alavanca investimentos e serve para a prática de políticas emergenciais, muitas vezes populistas e sem capacidade de transformar a realidade estrutural brasileira. Institucionalmente a política fiscal é desmoralizada. De resto, todos nós ficamos dependentes de uma política monetária de elevadíssimos juros nominais e reais e cujos efeitos são igualmente danosos para o Tesouro. Vale ressaltar que, seja quem for o presidente eleito, o seu papel será mais de saneador do nefasto passado deixado pelo desastre da política de Paulo Guedes et caterva e não o papel de construtor do futuro promissor. De nada adianta bravejar pela esquerda em torno do "teto de gastos" e dos preços dos combustíveis vez que a realidade é mais forte que a ameaça feita. Sem saneamento, não há começo algum. Ao contrário: virá um desastre ainda maior. Verdade seja dita, o debate político brasileiro é incompatível com a realidade e com as próprias necessidades do país. Estamos numa barafunda desesperançosa. Não há sinais de que 2022 seja o prenúncio de mudanças que modifiquem a trajetória de decadência que estruturalmente nos ataca. Ademais, o cenário externo acentuará ainda mais o destino do Brasil. A cegueira das elites para esta verdade e dos eleitores, diante de sua própria desorganização e ignorância política, indica que dias piores devem vir. Penosamente. O pior cego é o que não deseja ver.
terça-feira, 28 de dezembro de 2021

As ilusões resgatadas e os fragmentos da política

Aqui a ação simplifica-seDerrubei a paisagem inexplicável da mentiraDerrubei os gestos sem luz e os dias impotentesLancei por terra os propósitos lidos e ouvidosPonho-me a gritarTodos falavam demasiado baixo falavam e escreviam. (Paul Éluard (1895-1952) - Poema "Gritar") Há sinais de que a sociedade brasileira, em meio à sua desorganizada percepção política, acordou e percebeu que o ex-capitão do Exército Brasileiro é o principal empecilho para a saída da situação caótica do país. A atual administração, de forma holística e consistente, decreta a inviabilidade do desenvolvimento econômico, científico, tecnológico, do resgate de qualquer dívida social, da sustentabilidade ambiental, da diplomacia de resultados e dos temas das minorias e das identidades que florescem numa sociedade complexa como é a brasileira. Entretanto, a pergunta que surge é: a percepção social se transformará nos votos necessários para a derrota do atual ocupante do Planalto? A sua eventual derrota levará o país à frente? O ano de 2022, marco dos 200 anos da independência política do país e dos 100 anos da Semana de Arte que marcou a inauguração do modernismo no Brasil, será, provavelmente, de vigorosa inflexão na história do Brasil. Ouso especular de que se esgota neste curso eleitoral o processo político e econômico que decorreu da redemocratização brasileira. Cabe à história depurar o que se perdeu e o que se ganhou ao longo dos anos, desde 1990. Todavia, vê-se um avanço consistente nos direitos individuais, observados do ponto de vista jurídico, ao tempo em que as conquistas coletivas e políticas acabaram sendo minimizadas e obscurecidas por um sistema de representação obsoleto, sem accountability, paroquial, patrimonial e corrupto. Frente à este contraste, vê-se a economia cambaleante no investimento, com surtos de consumo e forte ampliação da desigualdade social, cuja marca não é mais o analfabetismo clássico, mas o funcional, aquele que desloca o povo para longe do padrão tecnológico vigente no capitalismo moderno. A escolha de 2022, portanto, se insere, a meu ver, num contexto marcado: o modelo econômico e político brasileiro passou da fase esclerosada para a de inviável. Ou teremos os ajustes necessários ou mergulharemos na decadência com a qual já convivemos há pelo menos dez anos. A nossa vizinha Argentina nos ensina que o fundo do poço sempre pode ser prospectado mais alguns anos. As consequências não são difíceis de se prever, mas o seu grau, num país do tamanho do nosso, são imprevisíveis. Dentre os muitos prejuízos que o ex capitão trouxe ao país, verifica-se que ele criou uma espécie de "movimento sem causa", uma ideologia de fundo de quintal que vai do liberalismo do século XVII de Paulo Guedes até a loucura moralista de, vejam só!, Olavo de Carvalho. Do armamentismo ilógico até o negacionismo vacinal, o ocupante do Planalto e seu acólitos e pimpolhos demonstraram que é possível tropicalizar com mais ignorância o reacionarismo vigente em outras partes do globo. Por aqui, o ex capitão deixa a marca da morte de muita gente por força de suas políticas. Este "movimento sem causa" do ex capitão extremou as pontas da política o que legitima o discurso de lado a lado, mas deslegitima a construção e discussão minimamente consistente dos temas econômicos, políticos e sociais que realmente importam. As eleições de 2022 deverão, provavelmente, inflamar e, até mesmo, emocionar. Todavia, é razoável esperar que o debate sobre a nossa decadência fique mesmo perdido entre aqueles que irão para as trincheiras eleitorais com o ex capitão e os que irão combatê-lo com as armas e líderes que estiverem disponíveis. Por entre os votos que serão coletados, a classe política comemorará a sua própria fragmentação. Afinal, são os pedaços do espectro partidário que se escondem os interesses mais comezinhos: seja quem for o presidente da República terá de construir uma "frente ampla" que dará pintura nova ao repositório de paroquialismo, patrimonialismo e corrupção. Não há projeto qualquer em construção em torno dos partidos políticos: o Brasil é a vívida expressão do Poder sem conexão com a Política. Os poderes constituídos em 2022 terão legitimidade para exercer o governo, mas podem cair no desgoverno, porque não têm projeto político. O Estado brasileiro é inviável como força-motriz para modificar as sedimentadas placas da esclerose econômica e social. Sem reformá-lo profundamente não há como engendrar projetos e levá-los à frente. Das estatais disfuncionais às estruturas baseadas no corporativismo funcional, o Estado brasileiro tem alguma capacidade de contenção de crises e riscos, mas tem baixa capacidade de elaborar "espaços novos" de modernização e aperfeiçoamento da sociedade. Afora isto, os interesses privados e corporativos tomaram conta do centro dinâmico do Estado e alijaram ou mitigaram a prevalência dos interesses coletivos e comuns. A República é frágil. Afora isto, o Brasil em 2022 estará sujeito às variações do mundo exterior, cujas incertezas vão dos efeitos de novas pandemias até os riscos do financismo do mercado de capital e financeiro. Há sinais de que o crescimento das economias centrais cai e a temperatura das relações geopolíticas se elevam. A matriz dos riscos brasileiros se torna ainda mais complexa diante de um mundo como este, no qual o Brasil terá de sair de seu isolamento atual perpetrado pela ignorância bolsonarista. A saída deste beco eleitoral no qual estamos, certamente passa pela derrota do ex capitão, mas não estará completada com a vitória de um ou de outro, da esquerda ou da terceira via. Se faz necessário que a sociedade se organize, demande e oferte soluções que enquadrem o discurso e, sobretudo, a prática da classe política. Está na hora de as instituições que temos fornecerem elementos que permitam a construção de um projeto minimamente possível para que se evite que a inflexão seja na direção de nossa decadência. Por ora, o que se vê são as ilusões perdidas serem resgatadas como sinal de esperança. Fácil entender, afinal estamos em tempos extremados. Contudo e de fato, estamos diante de fragmentos de um discurso político que não ultrapassam as eleições de 2022. A ausência de um projeto nacional que alinhe os interesses econômicos, sociais e políticos é barreira enorme para tornar a construção eleitoral em um governo viável, efetivo e que incline o país no sentido certo. Sem isso, candidatos de hoje trombarão com a realidade em 2023.
quinta-feira, 30 de setembro de 2021

A tolerância corrosiva e a terceira via

Os maiores riscos são aqueles que decorrem de nosso atraso estrutural Ainda resvalam pelos nossos olhos e ouvidos as imagens das manifestações bolsonaristas do último Sete de Setembro. O encontro do ex-capitão com suas hostes, organizadas pelas redes sociais, foi o único fato político que essencialmente deriva de uma ação política consistente. A essência reacionária daquele encontro permanece íntegra, mesmo que dormente, por ora. Houve, ainda, o discurso presidencial na Assembleia Geral da ONU. A vergonha do país só não é maior, porque o mundo nos vê como um país agastado, sofrido e sem destino. O desprezo internacional é o melhor que podemos ter nesta hora nada sublime. De lá para cá as reações contra o atual governo se deram nos gabinetes e telefones ou por meio de convescotes regados a vinho de boa marca e cepa. O ponto alto e imagético da falta de ação política de outras fileiras que não as bolsonaristas foi o ex-presidente Michel Temer ter mediado uma "trégua", uma deténte, entre o ocupante do Planalto e o Ministro do STF Alexandre de Moraes. Não bastasse o feito de Temer, que per se conspira com modos macunaímicos contra as instituições, o ex-presidente participou de um jantar na casa de um investidor, onde as confidências do encontro presidencial foram contadas aos comensais por entre risadas de um imitador do ex capitão que nos governa. No Brasil dos quase 600 mil mortos pelo coronavírus o fato é apenas triste e trágico, nada cômico. A CPI da covid-19 persiste o seu caminho, desengonçadamente, inquirindo um e outro, quando quase tudo que se discute já é sabido. Falta, em verdade, ação política e judicial para responsabilizar os malfeitores que contribuíram para a mortandade desta pandemia. A paralisia se institucionalizou no parlamento em meio a gritos de senadores e deputados. Impressiona, ainda, o sumiço desembaraçado da denominada esquerda petista da luta contra os desmandos soltos que assolam a República. Lula vê-se refugiado de tudo na espera de que sua candidatura presidencial seja confrontada com a do próprio Messias do Planalto. Assim, pensa ele, o pleito lhe cairá no colo enquanto o país simplesmente despenca por mais ano e tanto, pelo menos. Novidade mesmo, são os preços que sobem diariamente nas prateleiras do comércio e dos postos de gasolina. O choque de oferta, externo e interno, e a elevação do câmbio por conta dos riscos políticos, batem às portas dos empobrecidos brasileiros. A alta dos preços não é propriamente inflação (definida como "alta constante de preços"), mas rapidamente encontrou a resposta mais objetiva e óbvia que poderia haver: os juros básicos subiram e subirão mais para reduzir a demanda que já anda capenga. Os aplausos, por óbvio, vieram dos rentistas da dívida pública. A única política econômica existente é a praticada pelo Comitê de Política Monetária do Banco Central. O resto é resto. Lá de fora os riscos são cada vez maiores: o financismo que elevou sistematicamente as cotações dos ativos de renda variável, notadamente as ações, começa a apresentar sinais de instabilidade. A crise da Evergrande, a segunda maior incorporadora imobiliária chinesa, é apenas a ponta de um profundo iceberg. O Banco Central dos EUA sabe disso e monitora os seus movimentos para que as marolas não se tornem tsunamis. Afinal, à autoridade monetária norte-americana interessa o "emprego inclusivo" para o povo americano, conforme registrado na ata da última reunião do FOMC (sigla em inglês para Comitê Federal do Mercado Aberto, aquele que define os rumos da política monetária nos EUA). (Um comentário aos desavisados: o Federal Reserve não é comunista!). Em meio a este cenário, o real anda desvalorizado e tem grande chance de permanecer assim, na melhor das hipóteses, nos próximos meses. O risco Brasil não fere aos amadores do mercado, mas faz as suas vítimas dentre as empresas que têm de captar recursos para as suas operações. É preciso entender que o Brasil está ferido pelos desmandos seguidos que atentaram contra a saúde popular e a economia. A recuperação será lenta e, talvez, ainda mais lenta por causa do cenário externo desafiador, quiçá recessivo. Análises e pesquisas de instituições financeiras e think tanks respeitáveis estão sinalizando um conjunto de riscos às economias dos países mais ricos que podem minar o crescimento global. A conjuntura será provavelmente muito mais difícil em 2022 e 2023. O Brasil pode mergulhar ainda mais na incerteza econômica e na instabilidade social para além da administração de Paulo Guedes, "ex-cavaleiro da esperança do mercado". Todavia, os maiores riscos não são os externos, mas aqueles que decorrem de nosso atraso estrutural, dentre os quais, do avolumamento de analfabetos funcionais, da falta de desenvolvimento tecnológico e crescente dependência do exterior, da infraestrutura débil e incapaz de atender às necessidades básicas do país no novo milênio, da desindustrialização continuada, do baixo volume de investimento público e privado fruto da crise financeira do Estado. Não será um mero ajuste fiscal e monetário que nos recolocará na rota do desenvolvimento. Teremos de fazer um esforço coordenado, continuado e organizado entre o Estado e a sociedade civil para que nossas chances de sermos um país razoável possam ser críveis, mesmo que a longo prazo. A disputa ideológica entre segmentos liberais e intervencionistas é falsa. É a associação, politicamente organizada, entre o capital privado e público que tem contribuído para o desenvolvimento das economias mais dinâmicas. Esta é a "terceira via" verdadeira. A anomia política e social impressiona. No campo jurídico estamos diante de um país de normas rígidas e complexas que sugerem um país organizado e que respeita as instituições. Todavia, vê-se que a prática social, de forma saliente àquela das elites, desmoraliza esta ilusão. Mais: a brutalidade dos crimes e a alienação de parcelas enormes da sociedade retiraram os véus da falsa ideia de que nós brasileiros praticamos relações sociais humanizadas. Há uma barbárie em cada esquina. Aqui o propósito é provocar a indignação e relembrar que sem ação política consubstanciada em valores que delimitam o comportamento de todos no campo civilizatório, não há solução para a vala na qual estamos encurralados. Não é razoável a tolerância corrosiva com aquilo que nos destrói enquanto sociedade. O marco temporal das eleições do ano não deve impedir o início da construção de um processo politicamente relevante para que possamos voltar a sonhar e para sairmos do pesadelo que tomou o país como nunca dantes. A terceira via só virá se houver ação política. O resto é conchavo de gabinete desprovido de capacidade transformadora.
segunda-feira, 13 de setembro de 2021

A hora do "impeachment preventivo"

A hora não é de falsa pacificação ou de afagos de lado a lado com o atual presidente Pela voz de Próspero, na sua obra prima "A Tempestade", William Shakespeare ensina que "somos feitos da mesma substância de nossos sonhos". Ao terminar de ler a "Declaração à Nação" de 9/9/2021 do capitão reformado que ocupa a presidência da República, fiquei com a sensação de que nós brasileiros somos forjados pelos nossos pesadelos. Próspero, principal personagem de "A Tempestade", busca restaurar o seu poder. No Brasil, verificamos que o poder do presidente atual pode ser mantido às custas dos dramas e pesadelos do povo brasileiro. É aceitável? Está claro que jamais seria razoável esperar que o ex-capitão pudesse proferir um "Discurso de Gettysburg" endereçado em junho de 1863 por Lincoln ao dividido povo americano, então engolfado na guerra civil. Pela pena de Michel Temer, o primeiro mandatário do Brasil conseguiu produzir uma "Declaração" que, ao contrário do que imagina grande parte da sociedade brasileira, é um completo desrespeito às Instituições da República. Seria risível, não fosse trágica. A cadeira da presidência da República não é banco de escola no qual se assentam meninos e meninas para aprender sobre o mundo e para receberem as lições que, conforme o trato que recebem, constroem a personalidade de cada um. Maus alunos podem ser admoestados e, até mesmo, punidos, para que se possa corrigir os erros que tenham cometido. A presidência da República é lugar de exemplo pessoal e institucional, de comprometimento com o progresso da Nação, com a manutenção de sua estabilidade, no sentido macro do termo. Não é lugar para penitências agostinianas de erros cometidos no curso do mandato presidencial. Não se pode fazer "rachadinhas" com os valores da Nação. Erros políticos e de gestão causam custos políticos a quem os comete e repercussão negativa aos cidadãos que sofrem os seus efeitos econômicos e sociais. Não cabe aceitação fácil, sobremaneira quando se ofende aos princípios mais básicos do ser humano, a sua dignidade e a sua condição social e econômica. No Brasil, que caminha para se consolidar como a pior dentre as nações do mundo no tratamento e no combate a maior pandemia em um século (em breve com 600 mil mortos), a "Declaração" presidencial, em face do papel subdoloso que o presidente exerceu nos palanques do dia Sete de Setembro de 2021, é um "atentado adicional" às Instituições porquanto tenta prover explicações simples para os pilares complexos da República. Ademais, a "Declaração" parece um termo de compromisso de colegial que, diante de sua suspensão das aulas por suas próprias falhas, tem de assinar junto com um responsável (Temer) um pedaço de papel. Não pode haver paciência suficiente para esta anedota de péssimo gosto. A hora é grave e exigiria ação política equivalente à tal gravidade para que, assim, possamos trilhar um caminho que seja favorável aos brasileiros. Todavia, as Instituições parecem paralisadas diante de um ex-capitão que por quase três anos atordoa o cotidiano de cada cidadão, deseducando-o sobre os temas cívicos da forma mais ignominiosa que se possa imaginar. Faltam-nos nesta triste fase, lideranças que se comprometam com os interesses mais profundos do Brasil. A hora não é de falsa pacificação ou de afagos de lado a lado com o atual presidente. O momento exige que se realize, isso sim, um "impeachment preventivo". Aqui é utilizada a analogia com termo "ataque preventivo" (preemptive strike) que se justifica pelo legítimo direito de atacar o inimigo frente ao iminente risco que ele representa em uma guerra ou batalha. Vejamos. O "impeachment preventivo" deve ser imediatamente adotado em função: (a) Da relevância do risco que o atual presidente representa em termos institucionais. Até as próximas eleições, além dos ataques à República, o ex capitão poderá causar enorme risco ao próprio pleito eleitoral; (b) Da cristalina possibilidade de que eventos como os do último Sete de Setembro possam se repetir e se converterem em "movimentos", como a paralisação que os caminhoneiros tentaram realizar nos últimos dias; (c) Do fato de que nenhum freio ou contrapeso dos outros poderes da República funciona diante da personalidade paranoica e psicótica do atual presidente. Não há a alternativa da contenção; (d) Da existência de crime de responsabilidade ocorrido, seja diante da condução da pandemia, seja nos diversos eventos atentatórios contra às Instituições do país e à democracia; (e) Dos poderes que um presidente detém, enquanto Comandante Supremo das Forças Armadas, para exercer tais atentados contra as Instituições e à democracia; (f) Das recentes participações de indivíduos e entidades, brasileiras e estrangeiras, na consecução de atos e fake news em favor do projeto reacionário do atual presidente; (g) Finalmente, porque os riscos, além de altos, são crescentes. Como se pode facilmente verificar temos presentes todos os ingredientes para que se realize um processo de impeachment. É preciso excluir o ex capitão do processo político porque ele representa um projeto alinhado com a antipolítica. Não resta dúvida de que, a despeito dos elementos políticos-jurídicos existentes na atual conjuntura, é preciso que a sociedade se mobilize vez que a classe política parece afeita à defesa de seus próprios interesses até o momento. Refiro-me especialmente às lideranças das casas legislativas que emitiram sinais anódinos e pouco sensíveis à defesa dos interesses republicanos do país. Não pode haver paz quando se vive no afrontamento aos princípios mais básicos da democracia e no desrespeito mais vil à Constituição do país. A ideia de pacificação não é apenas falsa. É verdadeiramente tola frente às iniciativas deste personagem nefasto da história. Nossos sonhos se esvaíram. Precisamos voltar a tê-los. Por enquanto, tudo é pesadelo nesta tempestade sem fim.
quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Os novos voluntários da pátria

O novo Messias pretende escrever o futuro, a partir de sua estranha revolução sem objetivos claros. O Dia da Independência de 2021 se constituiu em marco histórico relevante para o país e para a combalida democracia brasileira. A saliência dos discursos do presidente da República e as ameaças desferidas a partir de seu palanque populista não têm equivalente resposta das Instituições do Estado e, muito menos, da classe política do país. A marcha do ex-capitão reformado do Exército Brasileiro continua consistente com o seu discurso político, o qual foi docemente aceito nas eleições de 2018 por uma sociedade dividida entre o petismo e o antipetismo. Assim, o ex-capitão assumiu o Planalto, sem que escrutínio rigoroso do político que, por quase trinta anos, verbalizou contra as instituições, senão contra a própria civilização. Ou não foi? Não há, em verdade, surpresa alguma em relação ao personagem que atenta contra a estabilidade institucional do Brasil. A despeito da identidade entre a pregação do ex-capitão e a sua ação golpista concreta, restam dúvidas imensas do que significa esta estranha "categoria política", o bolsonarismo. Inicialmente, é preciso reconhecer que, de fato, existe o bolsonarismo, no sentido de que dele decorre concreta e organizada ação política - nada tem sido feito ao acaso da parte desta administração para ter o Poder. Do bolsonarismo sabemos de suas causas e motivações. Os meios que utiliza são voltados para o golpismo manifestado de diferentes formas e modos. Vejamos. No que tange às causas motivadoras do bolsonarismo, verifica-se que há múltiplas, graves e multifacetadas variáveis a motivar parcela sólida do povo brasileiro na direção de seu líder supremo. Algumas destas causas nos chamam a atenção. Em primeiro lugar vê-se que no mundo e, em especial em países subdesenvolvidos como o Brasil, a precarização do trabalho e da proteção social causam a percepção de exclusão permanente do processo de avanço capitalista, sem oportunidades minimamente inclusivas do ponto de vista econômico e social. Pelos nossos lados,este processo está desgovernado pela inexistência de um projeto de nação com uma agenda política e generalizadamente aceita. Ademais, seria preciso incluir o desenvolvimento tecnológico e humano sustentável como prioritário para que a economia, notadamente a indústria, possa ser competitiva frente ao teatro internacional. Também temos de levar em consideração que o cadente investimento público e privado, dada a ausência de um plano fiscal e monetário que suporte e não inviabilize o desenvolvimento (não apenas o crescimento do PIB), contribui para a redução substancial do capital que dá tração à economia em favor da acumulação de riqueza financeira. Assim, vê-se os voláteis mercados financeiro e de capitais indo e vindo aos sabores das expectativas de curto prazo, enquanto a denominada economia real (capital e trabalho) tropeça no atraso e na baixa produtividade. Formam-se, assim, sólidas barreiras contra a possibilidade de superação do subdesenvolvimento e da exclusão social. É neste contexto de atraso que se perpetua que o bolsonarismo introduziu uma espécie daninha de cultura que trabalha diuturnamente na transcendente ideia de que há uma série de "inimigos internos" que precisam ser derrotados para que os grilhões do atraso sejam quebrados e, com efeito, o Brasil volte a ser a grande nação imaginada nos quartéis de outrora. Esta "atividade ideológica" constante, via fake news, elege, conforme o caso, personagens que incorporam a essência do inimigo interno: o negro (que desfavorece a "sociedade una"), o homossexual (frente ao comportamento sexual "natural"), o STF (como impedidor da criação da "nova ordem populista"), a classe política (enquanto obstáculo à relação direta com o povo), os cientistas (frente a uma "ordem natural" livre de intervenções humanas), o comunismo (como perspectiva desejada pela "esquerda"), a ecologia (como barreira ao avanço econômico), os índios (que precisam ser integrados à sociedade e à economia) e  assim vai. Neste modelo, a superestrutura "cultural" (ideológica) acaba conquistando parcela da população, senão majoritária pelo menos numerosa, que passa a interpretar os fatos sociais, políticos e econômicos por meio de um monóculo irreal que explica o todo da exclusão inerente à realidade do subdesenvolvimento do Brasil. Aqui reside importante e inédito diferencial da situação atual em relação a outros momentos da história do país. Verifica-se evidente conservadorismo no centro do imaginário do bolsonarismo. Não à toa, o pentecostalismo evangélico e certas bordas conservadoras do catolicismo aderiram com fé no projeto do novo "messias" da política brasileira. Ocorre que, ao contrário da história brasileira desde a fundação da República, quando ocorreu a "modernização conservadora" por meio de um "pacto horizontal" do povo com os interesses da elite, o bolsonarismo faz um "pacto vertical" do "messias" com parte atuante do povo, no qual as Instituições Republicanas, ao invés de garantirem as condições objetivas do sistema político, se tornaram "barreiras" à implementação do "mundo novo" prometido pelo líder. Na essência, o projeto político do ex-capitão termina por aqui no que tange às suas estruturas frente ao subcapitalismo brasileiro. No que se refere à ação política do presidente, seu sucesso é evidente e perigosíssimo. Além de ter ganhado as eleições de forma espetacular (soube incorporar o antipetismo ao seu projeto), o primeiro mandatário do país, fez um pacto (ainda incompleto) com os fardados de toda a espécie da Federação, ocupou posições-chaves da burocracia federal com os militares das Forças Armadas, controla completamente as fontes de informação do Estado (e.g ABIN, Polícia Federal), calou a PGR, indicou com sucesso um membro da Suprema Corte com a aprovação do Senado Federal, montou competente e barulhenta rede de notícias (inclusas as falsas), capturou parcela controlável da classe política ("centrão") que impossibilita seu impeachment, silenciou parcela majoritária do empresariado e da elite da alta finança do país, atraiu as minorias mais atrasadas e reacionárias e moldou para si um personagem "amigo do povo", de costumes e modos grosseiros que atendem à figuração necessária para deixar a todos boquiabertos diante do espetáculo. O novo Messias pretende escrever o futuro, a partir de sua estranha revolução sem objetivos claros, mas que não se acanha em inquietar o presente e reescrever o passado (no qual pontifica a ideia de quanto foi bom o "regime militar"). Interessante salientar que, paradoxalmente, o bolsonarismo produz a paralisia da acumulação capitalista sob a liderança de figurantes ditos liberais, liderados pela patética figura do Ministro Paulo Guedes, quem não ruboresce frente a vergonha de si mesmo e deste (des)governo. O evento do último Sete de Setembro é representação clara que o projeto do bolsonarismo deu mais um sólido passo na direção da incerteza. O golpe é uma possibilidade e, independentemente da probabilidade de sucesso, precisa ser contido por uma ação política equivalente àquela encabeçada pelo atual presidente. Discursos de gabinete não seduzem o povo porque, diante da exclusão e do empobrecimento, as vozes messiânicas ecoam muito mais. Os novos Voluntários da Pátria, marcham sobre as ruínas do país, alistados por um populista reacionário, na direção do desconhecido. A crise institucional se aprofunda a cada dia. As reações são modestas frente à força da multidão na avenida, perdida, mas presente.  
segunda-feira, 12 de julho de 2021

A crise é permanente e crescente

Está claro que a crise institucional brasileira se tornou aberta e observável, até mesmo, aos olhos dos mais desavisados. Não bastasse o mal-estar social com o curso da pandemia, em seus aspectos incertos e nos riscos criados por um governo desastroso, agora temos a junção emblemática da crise econômica, a tragédia social e a pandemia política. Não estamos diante de uma conjuntura desfavorável, mas da realidade profunda que permite que se especule abertamente sobre um possível "golpe", sem que a defesa social tenha equivalência com a enunciação desabrida do provável fato. Vale notar que estamos em um estado permanente de crise há pelo menos oito anos e permanecemos resignados a vivê-lo sem iniciativas que possam cessar este cotidiano. As instituições do Estado e do governo hoje estão tomadas por interesses limitados a exercer um papel contido, fruto daquilo que Hanna Arendt chamava do divórcio entre o poder e a política. De fato, à autoridade falta o bom exemplo, a cidadania, a liturgia. Ao poder falta o interesse público o qual foi tomado, por dentro do Estado, pelo interesse privado mais direto, aqueles dos "representantes do povo". Rapidamente estamos a mitigar continuamente a funcionalidade da política pela perda absoluta de confiança entre a sociedade e os governantes (ou a própria governança). A delegação inerente ao processo e ao mandato democrático recaiu sobre o ex-capitão devotado à criação permanente de meios atentatórios à democracia e o zelo pela confusão ideológica, fruto de incessante processo de criação de factoides e distorções comezinhas e imaginárias. O falseamento da democracia é processo muito mais profundo do que, em princípio, se imagina. Afinal, parte enorme da sociedade se debate em torno de fatos e temas sem raízes públicas ou comunitárias, sem priorização, sem programa, sem visões, sem meios e fins. O governo se tornou uma máquina desgovernada que se confronta com a sociedade e não produz nada que realmente importe. Não se pode obter resultados concretos e interessantes à República se se tenta provar que a terra é plana, que os comunistas engolem crianças, que as vacinas não impedem as doenças ou que os estudantes devem estudar em casa para escapar da esquerda ideológica na escola. Kafka e Dostoiévski seriam concretamente explicados em vista do absurdo que imaginaram literariamente. Ocorre que deste inepto e incrível debate escapulimos para algo mais concreto: a corrupção e a incompetência em torno do combate à pandemia, algo sempre presente neste desgoverno. A CPI, que trata dos secos e molhados da pandemia, desvendou a concretude da realidade e, logo, as ameaças de quebra da ordem constitucional apareceram novamente. Verdade seja dita: neste contexto de ameaças, os arroubos dos fardados empoderados tornaram a confusão um desengonçado acordo entre certo bolsonarismo destinado a contestar o que é óbvio e o descaso esquivo com a democracia de parte das Forças Armadas. Não à toa, o presidente enfaixado de verde e amarelo opera na faixa da fraude eleitoral vindoura, aquela que seria salva pelos votos de papel, enquanto os militares defendem coronéis que andam fazendo coisas nada republicanas. Neste estranho tenentismo, a confusão é o método do momento para arrastar a crise institucional e estrutural para o desfecho antidemocrático. Não vê quem não quer. A única certeza que se pode ter neste cenário é que as inquietações da hora serão a crise aberta de amanhã. O princípio organizador que está em plena vigência é demonstrar para o cidadão comum que o seu antigo desgosto com a classe política, com o Judiciário, com as instituições em geral, pode ser solucionado pela obra redentora de um "regime forte", calcado na solução milagreira das ameaças existenciais à sociedade. A pregação irá caminhar, agora com maior velocidade, para a falsa ideia de que não há como o "capitão do mato" resolver os problemas brasileiros na atual configuração institucional. A solução passa, está claro, pela ascensão definitiva da classe armada ao Estado e ao governo. Noto que isto inclui a base de polícias estaduais e milicianos ocasionais. A geleia é geral. Enquanto isso, os poderes vigentes ficam a emitir "notas à imprensa" rechaçando a realidade que caminha a passos largos, concretos e cada vez mais céleres. Estejam certos: não irá funcionar este modus escasso de vigor entranhado na sociedade. Os cidadãos não acreditam que os poderes institucionais resolvam os seus problemas. Sem este preâmbulo a qualquer diagnóstico, o começo da solução está errado, inclusive para aqueles que acreditam na vinda redentora de um candidato em 2022. O nosso Messias de plantão sabe desta fragilidade básica e é isto que dá segurança intrínseca ao seu discurso que esculhamba e escangalha as instituições. É preciso criar rapidamente mecanismos de defesa. O impeachment deve ser o começo das soluções, mas a República, desta vez, necessita que a restauração seja além da reunião de seus pedaços espalhados por entre políticos e poderosos. No mundo digital, a democracia brasileira caminha a vapor.  
sexta-feira, 21 de maio de 2021

2022: entre a ideologia e a realidade

O atual presidente engendrou este discurso ideológico e o povo aderiu em parcela significativa. A liberdade de Lula, do ponto de vista físico e processual e a liderança do atual presidente na ponta extrema da direita brasileira põem em evidência a perspectiva de que em 2022 possamos ter dois candidatos realmente viáveis na corrida presidencial. Vale dizer que ambos são os que interagem com o distinto povo, a imensa maioria de pessoas pobres e desprovidas de educação formal e percepção funcional sobre a complexidade da vida e da política brasileira. Como já afirmamos em outros momentos nesta coluna, na política os fatos e as ações presentes originam as expectativas, enquanto no mercado financeiro e nos negócios são as perspectivas e expectativas que fornecem a ação presente em relação aos fatos. Creio que as pesquisas de opinião pública dão fartas evidências sobre a atual realidade polar: Lula, aos 75 anos, domina um dos papéis da cena a partir da percepção de que foi injustiçado e isso o legitima à luta pelo poder (de novo). Já o capitão reformado permanece firme junto à opinião pública com 1/4 a 2/3 do eleitorado, o que é muito. Também me parece claro que o distinto eleitor repousa os seus votos conforme os atores principais da política brasileira lhes proporcionam "fatos novos" a estimular a formação da opinião pública em relação ao tabuleiro de duas peças em 2022. Aqui, nota-se que a débâcle da economia (a tragédia econômica) e a pandemia (a tragédia social e psicossocial) têm no conjunto e separadamente efeitos limitados sobre o eleitor. Este voto com os olhos para o futuro com base na notícia do dia e não no passado. O trágico número de 430 mil mortos nesta pandemia da covid-19 produziu um efeito limitado no processo eleitoral, sobretudo se levarmos em conta que o Brasil é um país rico cercado de pobres e analfabetos. O atual presidente da República sabe se projetar muito bem neste triste pântano. Ele é aquele guia verborrágico que informa diariamente ao eleitor de que ele é a voz do povo oprimido, o messias que as elites (econômica e intelectual) e as instituições querem fazer calar. Notável que esta peleja presidencial é interna ao próprio governo (e.g. "os preços dos combustíveis"), ao Estado (e.g. "o STF atrapalha") e à sociedade (e.g. "os propagadores de valores contra a família"). Neste sentido, o plano de ação é ideológico, para não dizer surreal. Ao capitão apenas basta a imaginação fértil do eleitorado de que há uma conspirata contra ele e o povo. Um evangelho próprio é cumprido. No sentido do imaginário bolsonarista, o PT e seu candidato Lula ocupam o mesmo sentido da grande conspiração contra o guia do povo: o antipetismo e o ex-metalúrgico são aqueles que podem parar o projeto de uma nova sociedade que o presidente encarna. Quando o messias deste projeto informa, a título de ilustração, que "Lula pode entrar e nunca mais sair", o trato ao tema não condiz com a verdade: não há nenhuma evidência de que Lula tenha pretensões ditatoriais. Já Lula tem feito incursões nos bastidores empresariais, na política de Brasília, junto à sua rede de contatos no exterior para, segundo a sua própria intuição, se credenciar como aquele que dará estabilidade ao país. Vaza, aqui e ali, que o ex-presidente busca um vice-presidente em meio aos empresários, a reprodução do pacto entre o capital e o trabalho de seus dois mandados anteriores. Também se especula de que haverá uma nova "Carta aos Brasileiros", uma espécie de atestado de bom comportamento, sobretudo em relação aos fundamentos econômicos, notadamente a estabilidade fiscal. O caminho de Lula parece estar marcado pelas construções do passado. Afinal de contas, as elites bem-informadas sabem que Lula é politicamente um centrista com arpejos eventuais à esquerda e ao populismo. Uma eventual "Carta" de bom comportamento chega a ser risível. Sobretudo, quando se verifica que pessoas como Paulo Guedes, que teria nascido da célula mais profunda do capitalismo original, não passa de um capacho do presidente e, diga-se, de utilidade duvidosa para o enfaixado do Planalto. Qual seria o valor de uma "carta" para Lula e para as elites? Sejamos práticos! Para Lula esta "carta" tem pouca utilidade vez que, se o eleitor olha para frente, por que ele insistiria em proceder como no passado? Neste sentido, um programa eleitoral (não necessariamente de governo) que seja baseado na racionalidade econômica não faz sentido na busca pelo voto. É o que se vê. Aparentemente, Lula e os demais candidatos permanecem seduzidos pela ideia de que são os pilares da política econômica a espinha dorsal do raciocínio político. Se assim fosse, Bolsonaro não teria chegado lá, mesmo ladeado por Paulo Guedes, sobre quem já sabemos que não é um "posto Ipiranga". O campo de luta da eleição de 2022 é ideológico, voltado para o futuro, discutido sobre variáveis fluidas e etéreas. Uma temática de esperança e de busca pela inserção de um povo analfabeto em uma sociedade imaginária. O atual presidente engendrou este discurso ideológico e o povo aderiu em parcela significativa. Se há polarização de candidatos, neste momento, não há alternativas à natureza da formulação do discurso, digamos, vazio. Por óbvio, o conteúdo de cada tema será muito diferente entre Lula e Bolsonaro. Afinal de contas, não parece razoável imaginar que Lula concorde com teses esdrúxulas sobre cloroquina, sobre minorias, sobre a existência de conspirações comunistas, sobre milenarismo, salvacionismo, etc. Resta saber, se Lula aderirá ou não a esta forma ideológica de debater e qual a temática que trará. Finalmente, temos de reconhecer que, de um lado, se a economia não terá a pauta pragmática que alguns esperam em vão em relação aos temas clássicos das políticas fiscal, monetária, de investimentos públicos, câmbio, etc., de outro lado, os problemas econômicos e sociais do país e dos brasileiros são gravíssimos. Neste campo, a ideologia pode estar a serviço do processo eleitoral, mas não tem serventia à necessária consecução de um projeto de desenvolvimento integral (econômico, social, político e com sustentabilidade ambiental), cujas variáveis estão adstritas às formas concretas de como vamos mudar a realidade a partir de sonhos que não caiam em trágicos devaneios que levam aos colapsos econômicos que a nossa história comprova que não são fantasmas.
quinta-feira, 22 de abril de 2021

A CPI dos secos e molhados

A melhor perspectiva é de que as coisas fiquem como estão.  Ao que parece, as correntes políticas que não estão casadas com o bolsonarismo parecem empenhadas em transformar a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) relativa às políticas de combate à pandemia num tablado de perturbação e, eventualmente, de impedimento ao atual presidente da República. Por meio desta construção política e parlamentar, se poderia alcançar uma porta de saída para a infindável crise originada desde a posse do capitão reformado do Exército. Será? Para que se possa analisar a possibilidade de que a CPI alcance os seus objetivos políticos é preciso entender, prima facie, que as variáveis de um processo como este são muito complexas e cada político pode se tornar vassalo do descontrole dos fatos e do posicionamento da opinião pública. De toda a forma, vale investigar o problema, sem qualquer pretensão profética. A CPI e a classe política não têm nada a colocar, em termos políticos, no lugar do atual presidente da República. Afora ser um completo mistério o que realmente pensa o atual vice-presidente Hamilton Mourão, sabe-se que não foram poucos os seus arroubos autoritários nos últimos anos. Na cadeira de presidente, por que mudaria? Há de se considerar que Mourão não tem nem traquejo e nem suporte político junto ao Congresso Nacional. É mais fácil o Palácio Jaburu, onde mora o vice, ouvir cantilenas de conspiradores contra a democracia do que alguém realmente articular para dar destinos ao país. Se Hamilton exalar chances de poder, Mourão imediatamente será cercado de acólitos quando, enfim, se saberá qual é a personalidade política do vice. Ora, este é um jogo com esperança matemática duvidosa no qual os políticos não costumam embarcar. Não sendo razoável pensar sobre uma saída viável por meio do vice-presidente, restará para a oposição incrustada na CPI empurrar o ex-capitão na direção do escrutínio eleitoral de 2022. Aqui as coisas são ainda mais complicadas. A ascensão de Lula nas pesquisas eleitorais é resultado direto do retumbante fracasso da Lava Jato em agir institucionalmente como um Judiciário realmente sério. A turma de Curitiba se embananou completamente quanto tornou os processos judiciais em projeto político de destruição do "sapo barbudo", como Leonel Brizola batizou o ex-metalúrgico. Do Código de Processo Penal os procuradores lavajatistas esqueceram os verbetes e partiram para a luta política. A verdade é que o STF nada mais fez que restituir tardia e politicamente o devido processo legal. Isto tudo, antes de que se pudesse saber se o país poderia alcançar inédito e positivo padrão em termos de corrupção. O fracasso da Lava Jato deve ser inteiramente debitado ao projeto político do grupo populista do MPF. Lula, sobrevivente desde o seu nascimento em Garanhuns, sempre soube se sair bem de situações difíceis. A sua prisão tornou-o martirizado perante a opinião pública e, inocente ou não, as bençãos da popularidade de um injustiçado sobre ele recaíram. Sergio Moro não foi apenas rebaixado na empresa de consultoria na qual trabalha: foi ultrapassado e vítima de sua própria vaidade. Nas condições atuais de pressão da atmosfera política do país, Lula é o grande candidato de oposição, aparentemente com o mesmo e envelhecido projeto político de antes. Nenhum outro político foi capaz de preencher o vácuo que o presidente honorário do PT deixou quando preso. Não há projeto em ação que seja capaz de mudar a política brasileira e Lula foi lá e tomou o que já foi sua: a cadeira de líder antibolsonaro. Este cenário é o desejado por Jair Messias, não resta dúvida. Suas chances em cenários alternativos à Lula devem ser menores, muito embora este seja um exercício teórico. Ao que parece não apenas o presidente tem características bipolares: o povo também tem. Neste contexto a CPI apenas evidenciará se Lula estará mais forte ou mais fraco para enfrentar o atual presidente e seus pimpolhos frequentadores das redes sociais. Os políticos que estão instalados na Comissão assim avaliam o cenário e ainda não sabem direito se farão um jogo de curto fôlego ou de largo passo. No primeiro caso, o foco da Comissão pode ser o de extrair o máximo proveito, para si mesmos, da fragilização do presidente. O Centrão não mora apenas na casa de Waldemar da Costa Neto. Mora também no coração e no bolso de muita gente. Logo, Bolsonaro fraco é Bolsonaro mais amolecido para ceder cargos e rendimentos. Paulo Guedes, para tanto, já está a postos, pronto para a "rachadinha orçamentária", se me entendem... No caso do "cenário largo passo", o qual pode ser combinado com o de "curto fôlego", os políticos frequentarão a CPI com um olho no presidente e outro em Lula. Ao invés de poder no curto prazo, venderão poder a termo. A taxa de juros desta operação política dependerá ao andar da opinião pública. Assim, chegamos ao distinto povo: depois da barbárie que é o combate da pandemia e suas sequelas da miséria social e econômica, não se vê indignação equivalente o que foi arremessado contra o povo desde o Palácio do Planalto. Há anomia generalizada, fato este que pode tornar o voto muito volátil. (Aqui devemos lembrar que todo o raciocínio eleitoral feito sobre o então candidato Bolsonaro ruiu completamente em 2018. Bolsonaro fez a festa nas eleições, sem partido, sem TV, sem apoio crítico da mídia. O populismo é fenômeno de países atrasados, partidos fracos e falta de resistência política do eleitorado). Se há, de um lado, anomia social em relação ao quadro geral da economia brasileira, de outro, vê-se o presidente concretamente empoderado. A crise com os militares não passou de uma troca de cartas e cargos sem maiores efeitos. O presidente tomou posse e poder das estatais, controla a Polícia Federal e os órgãos de inteligência e tem ao seu lado suficiente frescor verde oliva para que possa ser identificado com as Forças Armadas perante os eleitores. Tem também cerca de 30% da opinião pública a seu favor em meio à recessão. E há, no mercado internacional, a onda do bônus da commodities que favorecem o Brasil no único setor no qual é competitivo. Neste cenário de CPI e de desgraça nacional, a melhor perspectiva é de que as coisas fiquem como estão. Diante do cenário bipolar Lula-Bolsonaro, da passividade do povo e das elites e do escanteio no qual o país está no cenário mundial não há força-motriz a caminho para que se acredite em mudanças. Estas apenas virão quando a sociedade formar consenso de que não se resolve mais os problemas em CPIs, mas a partir da própria sociedade. Teremos mais crise pela frente. De resto, os debates são secos e molhados, como dizia o saudoso Millôr Fernandes.
quarta-feira, 31 de março de 2021

O bolsonarismo avança tanto quanto a pandemia

A entrada do "Centrão" pelo meio, facilitou a saída dos "inimigos internos" do governo pelas pontas.  O momento político do país ganha contorno inédito: provavelmente, caminhamos com alguma celeridade para um desfecho de incerta crise institucional que pode provocar sérios abalos à democracia, não apenas do ponto de vista essencial (já trôpega há alguns anos) como do ponto de vista instrumental (ou formal). Em palavras ainda mais diretas, é possível que as instituições brasileiras passem por um teste de resistência entre o momento atual e as eleições do ano que vem. Os 55,1% de votos válidos de Jair Messias Bolsonaro no segundo turno da eleição de 2018, 57,8 milhões de votos, 10,0 milhões a mais que seu oponente petista Fernando Haddad, simbolizou não a disputa entre propostas de programas ou de estruturas de poder, mas a dicotomia cega e sem debate entre o petismo da gema e o antipetismo de alma ("ou raiz?"). Daí surge o bolsonarismo. A eleição foi, ao contrário do que se possa imaginar, a terceira mais apertada desde 1989. A diferença mais elástica foi a entre Lula e Geraldo Alckmin em 2002, algo muito próximo de 60/40 em favor do antigo sindicalista. Paradoxalmente, o debate naquele momento foi centrista, comportado e, até mesmo, educado. Tempos idos, nos quais a radicalização eleitoral era contida e, de muitas formas, uma simulação (falsa) dos verdadeiros programas políticos. A radicalização era fake e conveniente do ponto de vista programático. Afinal, a transformação do país foi minúscula. Restou a praga da reeleição em meio a partidos frágeis e "fisiológicos" que não fazem maioria congressual.   Hoje a radicalização política e eleitoral atinge esferas institucionais abrangentes como, por exemplo, o federalismo: em 2018, 12 dos 27 governadores se converteram em bolsonaristas. (A proposta eleitoral "bolsodoria" é a mais lembrada). Hoje se pode afirmar que há unidade de pelo menos 20 governadores contra o presidente da República por conta da trágica pandemia que nos atinge. Do lado daquilo que durante a luta pela redemocratização eram chamadas de "forças produtivas", o cenário tem contorno de decepção. A elite econômica que acreditava em Bolsonaro em 2018 e lhe fez acenos de subserviência ideológica em seguida, agora parte para o arrependimento contido. O surgimento de manifestações como a liderada pelo ex-presidente do BC Armínio Fraga, apesar de instigarem certa resistência social das elites, ainda carecem do motor potente das forças produtivas. Ademais, falta diálogo mais proveitoso com a turma que tem o voto, o distinto povo. O atraso do país é visível: somente em trinta anos ou pouco mais podemos dobrar a renda per capita. O crescimento não tem tração e o desenvolvimento mais holístico e abrangente do país está atolado no atraso (senão na ignorância) ambiental, no atraso tecnológico, na profunda desigualdade social, na falta de infraestrutura, na falta de educação, nas deterioradas condições urbanas e assim vai. Agora, temos em andamento o jogo duplo, comandado por Bolsonaro, de um lado, e pelo denominado "Centrão", por outro. Do lado do "Centrão" verifica-se, mais uma vez, o seu típico "ataque de pinça" que, por um flanco, luta e conquista cargos no governo e, por outra fresta, usa o orçamento do Estado a seu favor de forma a manter os seus apaniguados e sua base eleitoral que é, senão grande, suficiente para dar aparência de "equilíbrio" ao jogo desequilibrado do petismo versus o antipetismo. Interessante que esta velha estratégia tem chance concreta de dar em nada, pois a aceitação momentânea do "Centrão", enquanto aliado do bolsonarismo, resulta do crescente montante de cadáveres da pandemia. A irracionalidade das políticas contra a covid-19 da parte do governo de Jair Messias jogou o país em uma rota cujo desfecho não está claro do ponto de vista sanitário. O "Centrão", ao tentar alinhavar o presidente em sua teia, com ele terá mesmo destino. Um cenário, portanto, bastante diverso daquele que existiu sob Dilma Rousseff, quando o "Centrão" dominou o governo da petista e repetiu a dose sob Michel Temer, sem que as sequelas da petista existissem no corpo dos partidos do "Centrão". Do lado de Bolsonaro, o jogo é de larga escala. A entrada do "Centrão" pelo meio, facilitou a saída dos "inimigos internos" do governo pelas pontas. Para o presidente o ajuste que fez com os políticos do "Centrão" se tornou um "ajuste de contas" com os que não querem fazer parte de sua trupe ideológica. Portanto, ganha o "Centrão" o seu butim de cargos e os tesouros do Erário e ganha o presidente o apoio político necessário à sobrevivência política contra o impeachment no Congresso. Mas não é só isso. O governo avançou nos últimos dois anos, em todas as posições estratégicas do governo e do Estado: nas principais estatais, nos serviços de inteligência, nas políticas em prol das "forças de segurança" (dos cadetes às políticas estaduais) e alguma coisa, até mesmo, no Judiciário com o qual vivia às turras. Imaginar que os poderes de Bolsonaro caem quando cai a sua popularidade é erro grosseiro do ponto de vista analítico. O Planalto tem muito bem mapeado quem está contra ele e quem está a seu favor. E sabe se articular em meio a sua própria confusão. Agora, Bolsonaro, quem não age sozinho nessa, está avançando sobre as Forças Armadas, notadamente sobre o Exército, de onde saiu quase expulso e desmoralizado. A troca dos comandantes das três Forças, terá inédito caráter personalíssimo desde o Governo Geisel nos anos 1970. Mesmo que Jair Messias não consiga tudo que quer, ele terá avançado sobre o poder militar do Estado. No contexto atual que vivemos, não estamos assistindo a derrocada de um governo - ledo engano tratá-lo como mais frágil hoje do que ontem. De fato, o bolsonarismo caminha para testar a democracia, além do que já fez. O jogo estará decidido no curto prazo, possivelmente entre hoje e as eleições do próximo ano. Para quem derrubou as paredes e instalou a insensatez e a irracionalidade na democracia, agora pretende e pode balançar os seus pilares. Não à toa estamos em 31 de março.
terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Política e Economia NA REAL n° 276

Até logo Nos últimos cinco anos, ininterruptamente, a cada semana, estes colunistas tiveram a honra de escrever uma coluna neste bravo informativo Migalhas, sob a denominação Política & Economia NA REAL. Esta é a última coluna que os autores fazem em conjunto. Francisco Petros escreverá sobre temas que inter-relacionam Direito e Mercado e cuja data de estreia será informada nas próximas semanas. Francisco Petros e José Márcio Mendonça registram a enorme satisfação que foi escrever neste espaço. Aqui tivemos o extraordinário apoio do amado Diretor, Miguel Matos, e de sua valorosa equipe, os quais fazem do Migalhas o excepcional "rotativo" que é no mundo jurídico. Despedimo-nos com a certeza de que cumprimos nossos objetivos e que deixamos uma amizade perene com o Migalhas e com os leitores, aos quais agradecemos a atenção carinhosa que sempre recebemos. Previsões e tendências Como sempre fizemos questão de salientar, fazer previsões é uma atividade fadada ao fracasso. De nossa parte, a preferência recai em analisarmos tendências em vista da realidade e, assim, ao invés de nos ocuparmos de previsão sobre PIB, taxa de juros e câmbio, etc., avaliarmos o contexto e o alcance destas variáveis num certo horizonte temporal. É com base nesta premissa que fazemos as notas a seguir sobre o ano de 2014. PIB : o risco é não crescer Observado o que se previa no início de 2013 (+ 4,5%), o crescimento do PIB ao final do ano, algo como 2,1%, é um fracasso colossal. Não fosse a agricultura e alguns segmentos industriais, notadamente aqueles ligados à indústria automobilística, o PIB brasileiro gravitaria ao redor de zero, com muitos setores na área negativa. Há que se considerar dois aspectos essenciais para 2014. O primeiro é a tendência de que o fraco desempenho permaneça por mais algum tempo, talvez pelo ano inteiro. A falta de confiança na política econômica é o aspecto mais notório deste processo de vez que os riscos externos foram minorados (e não aumentados como quer fazer crer o governo) em 2013. O segundo aspecto diz respeito às debilidades estruturais do país as quais o empurram para um contínuo e perigoso processo de desindustrialização. Neste campo estamos a tratar da ausência de boa educação, falta de desenvolvimento tecnológico, insegurança jurídica, criminalidade, altos impostos, fragilidade da infraestrutura e assim vai. Os itens requerem políticas robustas e execução competente. Mas os governos, desde o final do regime militar, não conseguiram combinar tais políticas para evitar que estas tendências estruturais se tornassem dominantes. Para 2014, um PIB levemente positivo deve ser a tendência. Porém, os agentes devem considerar seriamente a hipótese deste ser negativo. Brasil perdeu mais que o "charme" O mercado financeiro é dado a alguns "modismos" que muitas vezes carecem de maior substância, mas que servem para transmitir ideias dominantes no tal do mercado. O acrônimo BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China) foi um destes temas que ilustravam a expectativa de que o Brasil crescesse na velocidade destes países. O governo da presidente Dilma - no qual o desempenho econômico não é apenas sofrível, mas também desalentador - na prática retirou-nos da preferência dos investidores estratégicos e do mercado de capitais. Dificilmente alguém manifesta tal opinião publicamente, mas é isso que se ouve, aqui e no exterior, em conversas reservadas. Sabe-se que o "mercado" não é guia de decisões eficientes. Prova disso foram as crises e "bolhas" ao longo dos últimos trinta anos. Todavia, o que se viu nos últimos três anos foi a falta de competência governamental em aproveitar a "simpatia" do mundo do investimento pelo país para engendrar políticas que alavancassem o crescimento. O que se perdeu neste caminho não foi apenas a preferência e o "charme". De fato, perdemos a chance de "usar" o mercado a seu favor. A reversão deste processo, a partir de agora, será mais lenta e tortuosa. Muito mais que um discurso presidencial em Davos. Inflação : alta e com viés de alta Já comentamos em colunas anteriores que, não fosse a queda (forçada) das tarifas de energia e o congelamento dos preços dos combustíveis, a inflação estaria perto de 10%. Ademais, as multidões que protestaram em meados do ano "congelaram" as tarifas de transportes urbanos e deram uma ajudazinha ao BC. Há uma perigosa inércia inflacionária instalada, o que requererá um esforço maior da autoridade monetária que o inicialmente avaliado, inclusive pelos experts. De nossa parte, nos arriscamos em afirmar que a "escolha de Sofia" do governo está dada : ou tentará crescer o PIB, ou tentará evitar que a inflação cresça. Daí o nosso pessimismo sobre o crescimento realçado em nota acima. Há ainda o risco cambial. Se o real se desvalorizar mais acentuadamente em 2014, o que acreditamos que pode ocorrer, a tarefa do BC e do governo ficará ainda mais perturbada no que tange a inflação. COPOM : entre o que deve e o que irá fazer Não sabemos se o mercado está "nervosinho" com a inflação. Sabemos, isso sim, que a inflação está "nervosinha". Para acalmá-la, neste momento, há apenas uma solução : juros básicos para cima. O BC está na retaguarda da inflação e não o contrário como deve ser. Pois bem : do ponto de vista do interesse strictu sensu do controle da inflação, parece-nos que o BC deveria subir vigorosa e surpreendentemente o juro básico na próxima reunião do COPOM, nesta terça e quarta-feira. Estamos tratando de algo entre 0,75% e 1%. O "mercado" espera o "prolongamento" da campanha de elevação da taxa básica de juros. A diferença entre uma e outra alternativa é a quebra de inércia da inflação. Emprego : variável política e peso econômico Não há dúvida de que a popularidade da presidente Dilma decorre do fato de que o mercado laboral permaneceu favorável em toda a sua gestão. O desemprego é desprezível, até agora, no que tange ao seu efeito político. Assim será, até que fique evidente que o crescimento perdeu "tração" e/ou os riscos macroeconômicos tornem a avaliação das expectativas mais volátil. Basta lembrar, neste sentido, que o desemprego em 2008 nos EUA era baixo, meses antes de deflagrada a maior crise da história econômica desde 1929. Há que se notar outro aspecto importante : no Brasil o custo de demissão é muito elevado, acima inclusive de países que adotam a economia social de mercado, como a França e a Alemanha. Cristalizou-se, assim, a ideia de que sem evidências de que a demanda vai cair é melhor manter a oferta de mão de obra fixa e disponível às empresas. Há também o fato de que o Estado foi um grande demandador de recursos humanos por meios dos já famosos "concursos públicos". É desta variável que se verá o maior ou menor otimismo em relação à reeleição da presidente Dilma. Câmbio, acúmulo de problemas Não há modelos econométricos que sejam eficientes e precisos para informar qual é a previsão de defasagem ou excesso de desvalorização entre moedas. São muitos os estudos sobre o tema, mas o que se pode afirmar, de forma genérica, é que o câmbio depende de muitos fatores, mas não se sabe quais as combinações entre estes que fazem os movimentos cambiais manearem de um lado para o outro. De toda a forma, o real tende a se desvalorizar em função de três fatores mais relevantes : a falta de confiança na política econômica, a elevação dos juros de longo prazo nos EUA e o enorme déficit nas transações correntes do Brasil (uma das provas da nossa falta de competitividade). De outro lado, nossa taxa de juros básica persiste dentre as campeãs mundiais de alta. Esta rentabilidade surpreendente (combina paradoxalmente baixo risco e alto retorno) favorece a que o real fique mais valorizado. Com efeito, temos os pesos e as bandejas da "balança cambial". Difícil dizer o quanto vai pender para um lado ou outro. Todavia, uma coisa parece-nos muito provável : não deve ser custoso ficar indexado ao dólar, apesar da taxa de juros. Contas públicas : além dos números Não foram apenas duvidosos a forma e o conteúdo com os quais o ministro da Fazenda Guido Mantega divulgou os números do superávit primário do governo central na semana passada. O problema é que os resultados não comovem ninguém que conheça o assunto por uma razão simples e já repisada na mídia : receitas não-recorrentes não sinalizam o resultado do governo, a demonstração do resultado da multinacional ou a féria do botequim da esquina. O que há no Brasil atualmente não é propriamente um descontrole orçamentário e um risco fiscal iminente. De fato, a política fiscal está perdendo a confiança de longo prazo, algo muito precioso, e sendo usada de forma pouco eficiente de vez que não serve para aumentar o investimento e favorece alguns setores os quais extraem benefícios momentâneos destas desonerações. É o "samba do Tesouro louco" nas palavras de um bem posicionado ex-ministro da Fazenda. Neste item, devemos nos preparar para um rebaixamento do risco de crédito do Brasil ou um "viés negativo", provavelmente não no curto prazo (1º trimestre do ano), mas ainda 2014. Tudo depende de como o governo levará a cabo este tema. Quem será o novo presidente Quem vencerá a Copa do Mundo ? Quanto fechará o dólar em relação ao real ao final de 2014 ? O Ibovespa subirá quanto em 2014 ? Quem responder com precisão e convicção a estas questões saberá quem será o próximo presidente da República. De nossa parte, consideramos esta precisão muito difícil de ser praticada, quiçá impossível, de ser construída. As pesquisas mostram a presidente Dilma em posição privilegiada. Líder nas pesquisas e com bom apelo popular, há nos indicadores de popularidade da presidente sinais de consistência e resiliência. Conta com a máquina do governo e com uma sólida aliança eleitoral (não é uma aliança política lato sensu). De outro lado, o país não está saudável como soa dos badalos palacianos. Ao contrário, os desafios econômicos são substantivos conforme as notas acima demonstram. A presidente conta ainda com a imagem do ex-presidente Lula, o qual deve ajudar na campanha eleitoral e tutelá-la num possível segundo mandato. Lula foi eleito em 2002 e, desde então, não saiu do governo. Atualmente, é um homem materialmente rico e politicamente flexível. O governo não apenas o interessa, mas lhe é necessário. Campos : ainda sem rumo Do lado da oposição a coisa é igualmente obscura. Eduardo Campos juntou-se a Marina Silva e tem dificuldades em afinar o discurso e o programa de governo. Campos, recém-saído das hostes situacionistas, não pode ser chamado, do ponto de vista de sua essência política, como uma arraigado opositor de Dilma Rousseff. Trata-se, no máximo, de um dissidente do governismo desde o primeiro mandato de Lula. Marina Silva tem capital político relevante, mas, ao perder a chance de criar um partido a tempo de viabilizar a sua candidatura, acabou por pular no barco de Campos no qual produz tanto ou mais turbulência que o próprio oceano eleitoral. A dupla Campos-Marina nos parece, por enquanto, mais "a" alternativa à disputa entre PT e PSDB, mas tudo dependerá de como vai debutar na corrida eleitoral. Aécio : oposição que não foi sistemática O PSDB é o mais marcante partido oposicionistas do atual governo, mas não se pode chamar de um "partido marcador". Aos tucanos faltou, desde quando perdeu o poder em 2002, o senso de ser oposição sistemática e programática. O exemplo estava à vista, o PT desde a sua fundação até a tomada do poder central em 2002. Não conseguiu se firmar e ainda persiste sendo um partido de classes médias e abastadas do centro-sul e sem respostas mais estruturadas para os problemas mais importantes. Aécio Neves, frente à FHC, José Serra e outros caciques do tucanato, é sim uma renovação geracional. Resta saber se será uma liderança que saiba elaborar um discurso e um plano de governo que abarque inovadoramente maiorias eleitorais. Se vencer, terá de filtrar o discurso eleitoral e fazer alianças para governar. É a sina da política brasileira. O maior partido do Brasil : o atraso A crise penitenciária do Maranhão é sinal de que a barbárie mora aqui mesmo. Não precisamos ir aos conflagrados países africanos ou aos campos de refugiados do Oriente Médio para verificarmos o que o homem é capaz de produzir insanamente. As cabeças decepadas na prisão maranhense são o símbolo perfeito da natureza e da envergadura dos problemas que o nosso país terá de superar para ingressar no mundo da civilização. Não dá para tecer meias frases neste triste assunto, não é mesmo ? Pois bem : foram meias frases e um silêncio não-obsequioso o que se ouviu do governo Dilma Rousseff e o seu mentor Lula da Silva neste triste episódio nacional. É vergonhoso verificar que este silêncio guarda interesses eleitorais com a trupe de José Sarney, este que foi prócer do regime militar, presidente de um desastrado governo, eterno chefão do Maranhão, mandante de ministros em vários governos, membro que envergonha a Academia Brasileira de Letras por seus livros e sua história. O silêncio presidencial, em clara diferença com o que fez em outras ocasiões nas quais ambicionava atacar a oposição, é uma espécie de marco daquilo que é a política nacional. De fato, o processo político não consegue extirpar mazelas como José Sarney. Juntando os cacos da análise política nacional pode-se afirmar sem medo de errar que o maior partido do Brasil chama-se atraso, o qual a democracia precisa superar alijando pelo voto aqueles que lideram apenas para colher os benefícios que lhe são caros. Sarney não é apenas uma triste figura política. É o amálgama que liga o atraso ao atraso.
terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Política e Economia NA REAL n° 275

A senha para o Federal Reserve Caros leitores : do ponto de vista econômico, este final de ano e início de 2014 será repleto de sinais importantes. No âmbito interno, o Natal pode ser mais fraco que o sinalizado pelos indicadores antecedentes. Mas, nos EUA pode ocorrer um sinal importantíssimo. Como se sabe, republicanos e democratas andam às turras nas discussões sobre o teto do orçamento público Federal. Republicanos querem criar um teto realista para o afrouxamento da política monetária do Fed e os democratas desejam prorrogar o máximo possível as políticas de estímulo que já fizeram o desemprego cair bem este ano e o consumo e investimento voltarem a crescer. Pois bem : as negociações atuais no Congresso dos EUA sobre o orçamento podem pavimentar o caminho para que o Fed reduza o estímulo monetário. Ou seja, os republicanos aceitaria um déficit maior que o proclamado na mídia, mas o Banco Central americano teria de reduzir as compras de títulos no mercado. Isso provocará a elevação da remuneração dos títulos do Tesouro norte-americano e jogará o dólar para cima em relação às outras moedas do mundo. Inflação, um problema substantivo Os agentes econômicos já sabem que o governo da presidente Dilma, cujo assessor Guido Mantega propala as suas políticas, é leniente com a inflação. Cabe alertar, adicionalmente, que o governo, ao reprimir preços públicos, está causando risco maior às expectativas, pois estas se movem pelos fatos verdadeiros não pelos fantasiosos. Todos sabem que dos combustíveis à energia elétrica há preços comprimidos pela estratégia enganosa do governo. De outro lado, há o risco de a taxa de câmbio se desvalorizar mais acentuadamente por conta da deterioração das expectativas domésticas e da mudança de curso da política norte-americana após as negociações do Congresso entre democratas e republicanos (Dilma Rousseff é presidente do Brasil e não tem como mandar em Obama, no Congresso dos EUA e no Federal Reserve). Neste caso, o repasse do custo do câmbio nos preços internos pode ser rápido e acentuado. Para se ter uma noção a cada 1% de aumento no câmbio, potencialmente os preços domésticos podem subir entre 0,15% e 0,20%. Para não subir, o PIB terá de ficar mais fraco do que hoje. Fundamentos e mercados - 1 Analistas de investimentos, nos primeiros anos de atividade, aprendem analisar as variações de preços dos ativos reais e financeiros. A lição central das teorias e técnicas lecionadas é a de que os "fundamentos" alinham os preços em diferentes patamares a partir de uma relação entre riscos e retornos esperados. Pois bem : a economia brasileira está apresentando riscos crescentes em pelo menos quatro "áreas" : (i) estruturalmente, o país perde competitividade fruto de aspectos que vão da baixa educação e tecnologia, passando pela elevada criminalidade até os conhecidos problemas de infraestrutura ; (ii) do ponto de vista fiscal temos um Estado que gasta mal, arrecada muito e, assim, produz déficits potenciais crescentes ; (iii) do ponto de vista monetário, o BC ajusta as irresponsabilidade fiscal por meio da elevação da taxa de juros, uma das maiores do mundo. O BC acaba por onerar toda a atividade de investimento e consumo do país e (iv) a taxa cambial acaba por ficar valorizada, pois os investidores do mundo inteiro acabam por ingressar com recursos no país para aplicar recursos financeiros nos elevados juros do país. Este caminho tortuoso não é superado desde meados da década de 1980. No governo Dilma foi agravado por equívocos cometidos exclusivamente por escolhas erradas, tal qual a "maquiagem de números fiscais". Fundamentos e mercados - 2 Considerados os aspectos salientados na nota anterior, cabe alertar aos nossos leitores que está se tornando cada vez mais provável que os diversos segmentos do mercado financeiro sofram alterações nos preços, possivelmente bruscas e no curto prazo (próximos três meses). No mercado acionário, os ativos (observados no seu conjunto) nos parecem muito caros. No mercado cambial, as pressões externas (e internas) serão crescentes (vide nota "A senha para o Fed"). Os salários reais estão altos em função da ainda satisfatória taxa de desemprego, mas esta variável é a última que se ajusta a um cenário pior, bem como é a última que melhora na saída de cenários ruins - veja-se o que ocorre na Europa e nos EUA. À luz dos fundamentos globais (especialmente dos EUA) e da economia brasileira, o momento nos parece recomendar moderação nos riscos e contenção em relação às expectativas de retorno esperado. Infelizmente, o Brasil pode ser um país bem melhor, mas isto dependeria de escolhas políticas melhores. Não sendo assim, também não há porque esperar que um milagre ocorra. A política como necessidade premente O que mais impressiona no Brasil, nestes últimos anos, é a ausência de mobilização política para mudar as estruturas e conjunturas econômicas, políticas e sociais. Os avanços dos "anos Lula" nos mostram que o jogo é eleitoral e não geracional. Com Dilma, aprofunda-se o perfil político voltado para as próximas eleições. Nem mesmo as elites do país, detentoras do "poder político real" se mobilizam para mudar o curso da política e da economia. Temem que seus interesses imediatos possam ser prejudicados pelo governo - quem sabe ? As oposições, pequenas em número de representantes, mesmo que com uma base social potencialmente respeitável, parecem aderir à sina de Dilma de fincar os olhos na próxima eleição. Um vazio considerável. Há outros fatores psicossociais, tais como a mídia e os mitos oriundos da participação na Copa do Mundo de futebol e nas Olimpíadas que acabam por obscurecer ainda mais o cenário político. Bem, esta é apenas uma nota, não uma tese de doutorado. Chamamos atenção apenas para o vazio político, perigoso e causador do imobilismo social e político. Risco-Brasil Chega em fevereiro ao Brasil uma equipe técnica da Standard & Poor's para fazer um relatório sobre a economia brasileira a qual servirá de base para analisar a nota sobre o risco de crédito do país (country risk analysis). Hoje o Brasil está num patamar acima da nota de grau de investimento (investment grade). Se a nota for reduzida o país perde este grau e também muitos investimentos de vez que muitos fundos e investidores utilizam os relatórios de análises da S&P como parâmetro básico para suas aplicações. Acreditamos que, antes de mudar a nota do país, a S&P deve colocar o Brasil em "perspectiva negativa". As razões para esta expectativa são evidentes : piora do desempenho fiscal, a tentativa da Fazenda em mascarar tais resultados e o fraquíssimo desempenho do PIB. Uma coisa chama atenção neste processo : a atitude arrogante das autoridades brasileiras em receber a equipe de analistas das agências de classificação de risco. Muito embora o trabalho destas agências mereça críticas dada a ausência de alerta da parte destas antes da crise de 2008, nada justifica a arrogância da equipe econômica liderada pela presidente Dilma. A economia brasileira vai mal, mas o ego de Dilma e equipe não amaina. Automóveis, segurança e eleição - 1 Choca e surpreende a decisão do governo, anunciada pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega, de que será adiada a entrada em vigor da norma que determina que todos produzidos no Brasil a partir de janeiro já saiam da fábrica com freios ABS e com air bag duplo. O Brasil é um dos campeões mundiais em acidentes e mortes no trânsito e eliminar dois itens essenciais para a segurança dos veículos e proteção dos cidadãos é ato que beira a irresponsabilidade. A medida já estava tomada há muito tempo e todos deveriam já ter se adaptado a ela. Mais grave ainda é a alegação do ministro Mantega para a decisão : evitar o efeito do aumento dos veículos sobre a inflação, ainda que o IPI reduzido começa a cair em janeiro, e evitar desemprego na indústria automobilística com a suspensão da produção de alguns veículos. Automóveis, segurança e eleição - 2 O ministro antepôs a economia, que é um meio, frente à segurança e ao bem estar da população, que deveria ser um fim. Parece que tudo está invertido. O fim neste momento para o Palácio do Planalto é bem outro : a reeleição da presidente Dilma. É por ela que os carros sem segurança vão ganhar uma sobrevida. O temor real do governo é que um pouco mais de inflação e algum possível desemprego influam no ânimo dos eleitores. Como a política antiinflacionária está cambeta, ou seja, se combate mais o índice do que os fatores inflacionários, é preciso continuar com manobras que segurem artificialmente os índices que medem a inflação. O padrão incluía o controle dos preços da gasolina e do óleo diesel. Agora, inclui até air bags e freios de carros. Este será o padrão para quase tudo em 2014. Pode até recuar, mas... Depois das reações negativas ao recuo na segurança dos automóveis, inclusive em algumas áreas do próprio governo, o Palácio do Planalto apressou-se em avisar que ainda não há uma decisão definitiva a respeito da questão. Teria o ministro da Fazenda, um dedicado e obediente auxiliar da presidente Dilma, falado demais e anunciado o que ainda é apenas um estudo ? Parece improvável. O governo pode até recuar agora, mas o estrago político já está feito. Para amenizar, o negócio será jogar a culpa para as montadoras : já se diz que foram elas que pediram o adiamento. Não é nada improvável. Porém, o governo não deveria ter levado isto em consideração nem por um instante sequer. Mercosul : mais um revés A Argentina restringiu a importação de automóveis para o país. Fere, mais uma vez, as regras básicas do Mercosul. Pouco importa se a diplomacia aponte os possíveis waivers para tal atitude. O certo é que o Mercosul é um solene fracasso para o Brasil, país que precisa de novos mercados e mais investimento. Não vamos a lugar nenhum, como a história já provou, se continuarmos associados à Argentina de Kirchner, à Bolívia de Morales e à Venezuela do fantasma de Chávez. Na semana passada, chamamos a atenção para este tema e acabamos "brindados" com o exemplo da restrição em relação à nossa indústria automobilística. Neste tema está chegando o tempo de acabar com tergiversações, de Lula e Dilma, em relação à América Latina. Por aqui a história parou. É preciso olhar para o norte e para o oriente. O resto é papo de botequim sob o som de samba ou tango. PT : malabares e malabaristas - 1 A cúpula petista moveu almas e corações para se equilibrar entre as pressões dos grupos mais ligados aos seus filiados condenados no processo do mensalão para que o partido se solidarizasse com eles incondicionalmente, e as conveniências do governo da presidente Dilma e do próprio PT de não deixar o episódio contaminar o governo e a campanha eleitoral. Solidariedade sim, mas com limites, de olho em possíveis repercussões eleitorais. Assim transcorreu o 5º Congresso Nacional, de quinta-feira a sábado passados em Brasília. Na quinta, claque para defender José Dirceu, José Genoino, João Paulo Cunha e Delúbio Soares, com Dilma silenciosa e Lula se esquivando de ir mais fundo ao tema. Este último avisou que ainda não é hora de falar, uma referência indireta a Dirceu. Rui Falcão, presidente reeleito da sigla cumpriu a missão de fazer a defesa mais veemente dos companheiros. PT : malabares e malabaristas - 2 Na sexta, demonstrações de solidariedade explícitas, contudo, com a ausência de Lula e Dilma. E com Rui Falcão, abafando : dizendo que o PT não apoia movimentos pela anulação da chamada AP 470 e que não considera Dirceu, Genoino e Delúbio presos políticos. No sábado, no encerramento, grandes manobras para evitar que o documento final do encontro incluísse uma resolução obrigando o partido a organizar eventos e manifestações e outras ações em defesa dos réus. Ficou um texto anódino dizendo que o PT apoia iniciativas do tipo. E só. A questão é saber, agora, se toda a militância - e os próprios companheiros presos - aceitaram esses arranjos. O mensalão será de hoje em diante uma página virada na história petista ou o fantasma que aparece de vez em quando na legenda. Em tempo : a parte substancial da resolução do 5° Congresso, que se refere às linhas que o partido adotará em suas ações no próximo ano e que balizará a campanha de 2014 será analisada em uma próxima coluna. Investigação e CPI para os trens Com a transferência para o âmbito Federal, em Brasília, dos processos envolvendo suspeitas de propinas em compras de trens para o metrô de SP em gestões tucanas, a expectativa é que as investigações andem mais rapidamente e as responsabilidades sejam estabelecidas. Preventivamente, o provável candidato do PSBD à presidência, Aécio Neves, se apressou a dizer que se houver provas e culpados que sejam exemplarmente punidos, seja quem for. A tática do senador mineiro parece ser diferente da adotada pelo PT até agora em relação ao mensalão : não defender incondicionalmente os companheiros de plumagem como o petismo faz com Dirceu e os outros condenados pelo STF. É oportunidade também para a convocação de uma CPI para investigar o chamado cartel dos trens, que o deputado petista Paulo Teixeira anunciou que já estava com todas as assinaturas para ser criada e estranhamente caiu no esquecimento faz mais de dois meses. Parou por quê ? Entre dois fogos - 1 É sabido que Dilma, com gosto ou sem gosto, terá de fazer uma reforma ministerial pra substituir até abril de 10 a 12 ministros que precisam sair para disputarem algum mandato em outubro. A data fatal é abril, seis meses antes das eleições no primeiro turno. Muito tempo atrás se dizia que a presidente pretendia trocar os ministros logo do início de 2014, para ter uma equipe ajustada para tocar seu último ano de mandato, essencial para ajudar na campanha eleitoral e não ficar com uma equipe com cara de tapa buraco. Agora, não se sabe quando as mudanças virão. Dilma está entre dois fogos. De um lado estão os ministros a serem substituídos e o PT, que querem ficar até o limite no cargo para aproveitarem a exposição pública que o ministério dá, a possibilidade de viagens, inaugurações, anúncio de projetos e outros tais. As pressões maiores são pela preservação dos ministros Alexandre Padilha, da Saúde, candidato petista em SP, e Fernando Pimentel, do Desenvolvimento. Candidato em MG. Sem mandato os dois cairiam na vala comum. Entre dois fogos - 2 De outro, estão os partidos interessados nas vagas que vão se abrir, entre eles o PTB, o PROS dos irmãos Cid e Ciro Gomes, ministeriáveis, e especialmente o PMDB, que já não aguenta mais esperar a nomeação do senador Vital do Rego para o Ministério da Integração Nacional, um dos bons cartórios eleitorais com os quais o partido pretende contar para 2014. Para angústia geral, inclusive dos petistas, a presidente Dilma não tem dado muitas indicações sobre o que pretende fazer, sobre o como e o quando. Há sinais de que até o ex-presidente Lula estaria no escuro. Dilma sabe que os riscos eleitorais lhe tocam mais profundamente que a todos que lhe rodeiam. Tem mais : o Ministério tem de ser suficientemente submisso às vontades da rainha e sua personalidade "forte", para não usar outra palavra mais forte. Soltou a língua Sempre muito discreto, formal e parcimonioso em suas declarações políticas, o vice-presidente Michel Temer, presidente licenciado e voz real do PMDB, andou soltando o verbo na última semana, inclusive com uma pouco usual conversa com um grupo de jornalistas. Com alguma sutileza, andou passando claros recados da insatisfação peemedebista em relação ao andar de duas carruagens : a da reforma ministerial e a das relações com o PT no caso das alianças regionais. Imagina na Copa - capítulo II De uma pesquisa realizada pelos estudantes de jornalismo que participaram este ano do programa de treinamento do jornal o "Estado de S. Paulo", publicada no suplemento especial "Foca", sábado 14/12 : Pergunta : Os protestos vão voltar a acontecer durante a Copa ? Respostas: Sim, 91%; Não, 5%; Não sabem, 4%. Foram entrevistados 420 jovens de 15 a 29 anos, em 60 pontos da capital paulista, de 30/11 a 2/12. Férias A coluna está de férias no período até o dia 14 de janeiro. Feliz Natal e um ótimo 2014 para todos. Radar NA REAL 13/12/13 TENDÊNCIA SEGMENTO Cotação Curto prazo Médio Prazo Juros ¹ - Pré-fixados NA alta estável - Pós-Fixados NA alta estável/alta Câmbio ² - EURO 1,3767 baixa baixa - REAL 2,3193 baixa baixa Mercado Acionário - Ibovespa 50.451,18 baixa baixa - S&P 500 1.775,32 estável/baixa alta - NASDAQ 4.001,00 estável/baixa alta (1) Títulos públicos e privados com prazo de vencimento de 1 ano (em reais). (2) Em relação ao dólar norte-americano NA - Não aplicável