Ruído e aposentadoria especial - A ponta do iceberg
segunda-feira, 2 de junho de 2025
Atualizado em 30 de maio de 2025 10:01
Não é de hoje que discutimos, nesta coluna, o tema das contribuições adicionais ao SAT/RAT em atividades especiais, na forma do art. 57, § 6º da lei 8.213/91, incluído pela lei 9.732/98. Em setembro de 2017, vimos a necessidade de um rearranjo do tema na esfera administrativa, especialmente nas pré-compreensões reinantes entre RFB e INSS1. Nada ocorreu. Já em julho de 2021, a coluna apresentou uma reflexão sobre a real conveniência da aludida contribuição, a qual poderia ser substituída por incrementos ordinários das alíquotas básicas do SAT/RAT2. Nada foi seriamente debatido quanto a isso.
Nesse meio tempo, o STF, no ARE 664.335, o qual resultou no Tema de repercussão geral 555, entendeu que, para fins de avaliação do agente nocivo ruído, eventual informação sobre a efetividade do EPI - equipamento de proteção individual não seria, a priori, relevante para desqualificar o tempo especial de atividade. Não tardou para que esta decisão, estritamente calcada na avaliação do direito ao benefício previdenciário, fosse fundamento de atos da fiscalização Federal, de forma a se buscar o adicional de contribuição em todo e qualquer empregador com exposição ao ruído acima dos limites previstos em normas regulamentadoras.
Mais recentemente, a CNI apresentou demanda, junto ao STF, para buscar uma revisão da matéria ou, ao menos, o correto alcance do decisório (ADIn 7.773). De um lado, segurados do Regime Geral de Previdência Social com expectativas de obtenção da aposentadoria antecipada, ainda que com as restrições diretas e indiretas de idade da EC 103/19. De outro lado, empregadores atormentados pelo risco tributário vultoso na simplória premissa fazendária de exposição = tributação.
O debate, em verdade, pode ser muito pior, pois se retroalimenta. Assim como a RFB sentiu-se em condições de tributar empregadores com exposições ao ruído, mesmo ignorando laudos ambientais que demonstram elementos de proteção adequados, segurados podem adotar as mesmas premissas cada vez mais alargadas da própria RFB para a obtenção de aposentadorias especiais em outras circunstâncias, como a exposição a agentes cancerígenos, para ficar somente em um exemplo.
Admitindo-se a natureza qualitativa da exposição aos agentes cancerígenos, ou seja, a inexistência de nível seguro de exposição, conjugada com a questão do calor ambiental, milhares de trabalhadores em atividades externas, inevitavelmente, seriam também titulares de aposentadorias especiais, com novo incremento de contribuição aos empregadores. Justo? Talvez, mas a questão é outra: o que a sociedade está disposta a pagar?
Como expus em outra obra ("A Aposentadoria Especial e os Agentes Cancerígenos"), a análise da viabilidade de concessão das prestações previdenciárias demanda, também, mensurar os aportes possíveis da sociedade, o que tende a se agravar no contexto contemporâneo de retração da natalidade com envelhecimento populacional. Com força de trabalho relevante obtendo prestações previdenciárias antecipadas, boa parte dos efeitos das reformas previdenciárias se perderão.
Novamente, aponto outra reflexão já exposta nesta coluna: a necessidade de maior enfoque dos Poderes na correta gestão do meio ambiente do trabalho3. Como de hábito, estamos com foco no efeito, e não na causa. Condições inadequadas de trabalho sabotam os objetivos da reforma previdenciária, agora, em duas frentes: incremento natural das prestações por incapacidade, tendo em vista a idade mínima para aposentadoria e, ainda, potencial explosivo de concessões de aposentadorias especiais.
É evidente que trabalhadores devem obter condições seguras e dignas de trabalho. Este é o objetivo do trabalho como base da ordem social na CF/88 (art. 193, caput). Não qualquer trabalho, mas o trabalho digno. A incessante busca de arremedos protetivos a posteriori, como a aposentadoria especial, esconde o real problema. Com o adicional de contribuição do SAT/RAT na perspectiva fiscal, a questão só piora pelo nudge em sentido contrário aos empregadores: para que proteger se, ao final, a contribuição será devida?
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1 https://www.migalhas.com.br/coluna/previdencialhas/265009/o-financiamento-da-aposentadoria-especial---disciplina-legal-dos-adicionais-de-contribuicao-de-6--9-e-12
2 https://www.migalhas.com.br/coluna/previdencialhas/347968/o-adicional-de-rat-nas-atividades-especiais
3 https://www.migalhas.com.br/coluna/previdencialhas/409355/uma-nova-reforma-da-previdencia-social