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Previdencialhas

Artigos de direito previdenciário.

Fábio Zambitte Ibrahim
De modo a buscar o equilíbrio financeiro e atuarial, a previdência social, no que diz respeito ao seu financiamento, encontra algumas técnicas básicas. De modo elementar, podem-se identificar dois regimes básicos e opostos de financiamento: a repartição simples e a capitalização. No regime de repartição, os segurados contribuem, em regra, para um fundo único, responsável pelo pagamento de todos os beneficiários do sistema. Dentro deste regime, há o conhecido pacto intergeracional, isto é, os trabalhadores de hoje custeiam os benefícios dos aposentados atuais, dentro do mesmo exercício. Este regime tem sido criticado por ser extremamente influenciado pelo envelhecimento da população, pois, à medida que se observa a inversão da pirâmide etária, um maior número de idosos irá depender de um menor número­ de jovens para a manutenção de seus benefícios.Tal sistema é também muito influenciado pelas taxas de natalidade de um país, e pela expectativa de vida de seus componentes. A correção costuma ser feita com incentivo ao aumento da natalidade e modificações nos requisitos para obtenção de benefícios, como o aumento do limite de idade ou a redução dos valores pagos. No regime de capitalização, os recursos arrecadados com contribuições são investidos pelos administradores do fundo, tendo em vista o atendimento das prestações devidas aos segurados futuramente, ou seja, os valores pagos no futuro variarão de acordo com as taxas de juros obtidas e a partir das opções de investimento dos administradores. Aqui, não há o financiamento entre gerações, ao menos, diretamente. Da comparação entre os três, são extraídas as seguintes conclusões pela literatura especializada: 1) a contribuição fixada no regime de repartição simples tende a crescer desde a criação do sistema, até atingir um ponto de equilíbrio; 2) a contribuição no regime de repartição de capitais cresce em ritmo mais moderado, atingindo antes da repartição o equilíbrio; 3) em ambos os casos (repartição simples e de capitais de cobertura), o crescimento da contribuição pode ser reduzido pelo aumento dos jovens ou pela alta rotatividade dos segurados; 4) a contribuição no regime de capitalização coletiva é prevista para manter-se inalterada no tempo, com um valor intermediário entre o mínimo e máximo dos regimes anteriores. Assim o é devido ao excesso de contribuição inicial do regime de capitalização frente à repartição que será utilizado para cobrir, no futuro, a contribuição inferior do regime de capitalização frente à repartição, devido ao envelhecimento da clientela atendida. Nos últimos anos, especialmente com as reformas do Welfare State mundo afora, a capitalização alçou ares de unanimidade, como capaz de produzir incrementos de poupança, estímulo à atividade econômica e melhor retorno na aposentadoria. No entanto, a avaliação é seguramente incorreta. A crença da plena superioridade dos modelos capitalizados não se sustenta, pois assim como a repartição simples, irá também produzir algum tipo de dependência frente a gerações futuras. É errado afirmar que tal atributo é exclusivo dos modelos de repartição, pois, mesmo nos sistemas capitalizados, assume-se que as pessoas, no futuro, serão capazes de adquirir bens de consumo, que externa, em alguma medida, a dependência frente àqueles que os produzem. Com o fenômeno da redução populacional, sistemas capitalizados também sofrem, pois, as reservas acumuladas, como visam consumo, têm perdas, seja por inflação (elevadas reservas para limita capacidade de produção) ou desvalorização (muitos investimentos e ações para poucos interessados). A menor população na geração seguinte traz incertezas também em modelos capitalizados. Em contextos de variações demográficas, um instrumento relevante é buscar o crescimento econômico que permita a preservação do equilíbrio e por isso, do ponto de vista macroeconômico, a opção por capitalização ou repartição pode ser vista como secundária. Os modelos de repartição, para alguns, teriam encontrado sua aplicação nos anos 30, como forma de proteção aos milhares de trabalhadores afetados pela crise de 1929, mas o século XXI demandaria novas formas de proteção, haja vista novas realidades econômicas e a preservação do nível de empregabilidade. Sem embargo, mesmo para os defensores dos regimes capitalizados de previdência social, é hoje comum reconhecer-se, ao menos, a existência de um pilar universal financiado por repartição simples, assegurando, com máxima efetividade, o mínimo existencial. De modo geral, há uma defesa generalizada, no mercado, pelos modelos previdenciários públicos de capitalização, pois seriam opções privadas e voluntárias de proteção que respeitam as preferências individuais sobre risco e cobertura, além dos modelos de repartição, alegadamente, serem mais obscuros, isto é, sem transparência na gestão de ativos e concessão de benefícios, trazendo com isso efeitos possivelmente perversos sobre a economia. Em suma, por se tratar de um mal necessário, modelos universais e compulsórios de proteção deveriam ser limitados ao mínimo. No entanto, o regime de capitalização possui riscos inerentes elevados, que podem acabar por excluir a proteção pretendida. A capitalização individual, por si só, também não é suficiente para atender determinados riscos sociais, como doenças e acidentes, que demandam solidariedade capaz de assegurar rendimento adequado. A crença na formação de reservas financeiras que produzam externalidades positivas, incluindo os próprios investimentos previdenciários, é certamente incompleta, já que, como visto, as intempéries econômicas podem, com facilidade, colocar tudo a perder. Ainda que alguma capitalização possa, de fato, ser desejável, o regime exclusivamente capitalizado está longe de garantir a proteção necessária, como nos mostra os eventos recentes na economia mundial. Os mesmos riscos que atingem os regimes de repartição também vulneram os modelos capitalizados, como aspectos macroeconômicos (e.g. inflação), variações demográficas e mesmo riscos políticos, com intervenção estatal indevida na gestão previdenciária. Em verdade, o modelo capitalizado é que apresenta ainda maiores riscos, especialmente no que diz respeito ao gerenciamento dos investimentos. Com má gestão, qualquer modelo está em perigo. Como países não possuem prazos de validade, as obrigações futuras tendem, sempre, a serem arcadas com a arrecadação vindoura, não fazendo sentido, portanto, o Estado pretender antecipar a receita para fazer frente ao gasto futuro. Se isso fosse efetivamente algo útil, porque não capitalizar também sistemas de saúde, educação e tantos outros que geram gastos futuros? O modelo de capitalização também produz risco elevado ao colocar elevados valores em controle do governo ou de suas agências, o que, intuitivamente, traz compreensível preocupação para o particular. A questão é comum no modelo norte-americano, no qual o excedente de receita é escancaradamente desviado para financiar o Tesouro, sob o eufemismo dos trust funds, enquanto no modelo brasileiro, o excedente é utilizado para financiar prestações verdadeiramente assistenciais, como a pseudoprevidência da área rural e benefícios cruzados, por meio de renúncias fiscais. Este foi um dos motivos que propiciou, no Canadá, a manutenção do regime de repartição como principal regime de financiamento da previdência. Em suma, o tema apresenta complexidades que são frequentemente ignoradas pelos defensores dos modelos capitalizados na previdência pública. Temos de repensar que tal medida não se mostrou bem-sucedida nos poucos países que a adotaram. Temos de parar de buscar soluções mágicas e, pragmaticamente, buscar soluções para a previdência brasileira que sejam comprometidas com os objetivos do sistema protetivo.
segunda-feira, 16 de abril de 2018

Previdência social e a política

Temos observado, desde a última eleição presidencial, um amplo acirramento nos debates relacionados a políticas públicas. Propostas de mudanças ou alterações legislativas raramente passam despercebidas, sendo violentamente criticadas por um ou outro lado do espectro político-partidário brasileiro. As tensões entre a esquerda e a direita têm se extremado a ponto de o diálogo ter se tornado quase impossível. Mesmo propostas razoavelmente fundamentadas e necessárias sempre esbarram nas críticas da oposição, a qual, estrategicamente, foca seu discurso em pontos potencialmente discutíveis das propostas. Enfim, não há clima para concordâncias. Nesse contexto, devemos pensar se é realmente hora de discutirmos a previdência social no âmbito do Poder Legislativo. Especialmente em um modelo altamente constitucionalizado como o nosso - e, portanto, de difícil mudança - reformas previdenciárias devem, inevitavelmente, partir de um consenso mínimo sobre pontos vitais para todos os brasileiros. Historicamente, as reformas previdenciárias brasileiras têm tomado lugar sem um consenso abrangente, mas viabilizadas por amplas maiorias, reais ou artificiais, construídas pelos instrumentos viabilizados pela Constituição ou pela corrupção. Enfim, o consenso era deletério, por atrasar as reformas, e mesmo desnecessário. Como se dizia frequentemente, o governo Federal usava seu "rolo compressor". Tendo em vista a polarização política atual, com a divisão raivosa entre a direita e a esquerda, aliada à impossibilidade de mecanismos heterodoxos de construção de maiorias, conclui-se que não há soluções fáceis. Caberá ao novo governo, seja qual for, buscar padrões mínimos de adequação da proposta de reforma previdenciária, com algum grau de concordância entre os diversos setores envolvidos. Nesse ponto, temos muito a avançar. Por enquanto, o governo Federal insiste na formação de convencimento da sociedade das formas erradas, apresentando dados parciais e elegendo bodes expiatórios como responsáveis pela falência do sistema. Isso, ao contrário de produzir convencimento, só perpetua a resistência de determinadas categorias e a desinformação da sociedade, que acaba por não saber em quem acreditar. Esse modelo de atuação política não mais corresponde à realidade brasileira. Acirrar os ânimos não ajudará nosso modelo previdenciário. O depauperado governo atual, o qual parece limitar-se a sobreviver até o final do mandato vigente, poderia aproveitar tal realidade e, ao menos, realizar a construção de alguns consensos mínimos sobre a reforma previdenciária. Nenhum de nós, seja qual for o pensamento político adotado, deseja que nossos filhos paguem pela irresponsabilidade de nossas escolhas e, principalmente, por nossas omissões. Desde que demonstrada, com racionalidade e ponderação, a inviabilidade futura do modelo, sem as intemperanças tradicionais e atribuições inconsequentes de responsabilidades, podemos, nesses meses de limitada atuação legislativa, preparar o terreno para um novo regime protetivo. Esse seria um legado e tanto para o governo que finda.
segunda-feira, 2 de abril de 2018

O que acontece com o INSS?

Após nosso debate sobre os "privilegiados" na previdência social, trago outro tema que me parece extremamente relevante, que é o descaso do Governo Federal com a autarquia gestora do Regime Geral de Previdência Social - RGPS. O Instituto Nacional do Seguro Social (e não seguridade social, como vemos frequentemente por aí) possui a relevante incumbência de gerir o plano de benefícios do RGPS, reconhecendo direitos, atendendo beneficiários e efetuando o pagamento de milhões de prestações. O INSS, resultado da fusão do antigo INPS e IAPAS, reuniu, durante muitos anos, as atribuições de arrecadação e fiscalização das contribuições previdenciárias com a gestão do plano de benefícios. Eu mesmo, como já disse nessa coluna, ingressei no serviço público Federal como servidor da autarquia, no extinto cargo de fiscal de contribuições previdenciárias, nos idos de 1997. Com a consolidação da fiscalização Federal em cargo único, houve a avocação das atribuições fiscalizatórias pela União. O INSS perdeu esta função, permanecendo, como se disse, com a gestão do plano de benefícios, além de alguma responsabilidade pelos recolhimentos de contribuintes individuais e facultativos em determinadas situações. Os quadros do INSS, desde então, têm sofrido com a perda constante de servidores. Muitos se aposentaram e a expectativa é que, nos próximos anos, parte considerável siga o mesmo caminho. O INSS é, também, local que adoece seus servidores, os expondo a condições frequentemente inadequadas de trabalho e sem instalações físicas condizentes. Muitos servidores jovens desistem da carreira direcionando seus esforços para cargos melhor remunerados e com ambiente de trabalho superior. Para piorar, há, no âmbito da autarquia, um acirramento dos ânimos entre a carreira dos peritos médicos e a gestão central, clique aqui. Com isso, temos a tempestade perfeita na gestão da previdência social: estrutura administrativa definhando e com conflitos internos, servidores se aposentando maciçamente e, ainda, corrida às agências em virtude da potencial reforma da previdência. O resultado é o que temos visto: segurados que aguardam meses para serem atendidos, pleitos de auxílio-doença que, bizarramente, são processados sem sequer serem formalizados em processo administrativo (art. 410-A, IN 77/15) e recursos de empregadores quanto a nexos técnicos que adormecem nas prateleiras. É incompreensível como o governo Federal investe tanto tempo e dinheiro para tentar convencer a sociedade sobre a necessidade da reforma da previdência e, ao mesmo tempo, deixa o INSS se deteriorar dessa maneira. A medonha extinção do Ministério da Previdência Social, utilizada como mecanismo de consolidação de poder no Ministério da Fazenda dentro da estratégia de reforma da previdência, deixou o INSS "sem pai nem mãe", o qual acabou alocado sob a supervisão do Ministério do Desenvolvimento Social - MDS, por falta de lugar melhor. A ausência de liderança do MDS frente ao INSS é flagrante, permitindo que conflitos internos somente ampliem as dificuldades de gestão, além de expor o descompasso com o próprio discurso governamental, que alega buscar um modelo não somente viável para gerações futuras, mas, igualmente, eficiente e digno. Algo deve ser feito, antes do colapso das estruturas vigentes, heroicamente mantidas por uma maioria de servidores da autarquia que, apesar de severamente criticados pela sociedade, ainda tiram forças para manter a "roda girando". É hora de o INSS buscar uma gestão técnica e profissional, como, por exemplo, tem ocorrido com a DATAPREV, a qual, nos últimos dez anos, tem aprimorado enormemente sua capacidade de trabalho, com qualidade e eficiência superiores às demais empresas públicas, como tem reconhecido o mercado pelas diversas premiações concedidas. A proposta de agências da previdência social digitais é interessante, mas caso não tome lugar de forma célere e eficaz, dificilmente permitirá soluções adequadas para os segurados, dependentes e empresas. O resultado dessa ausência de liderança e gestão é a elevada judicialização de temas previdenciários, entulhando a Justiça Federal, a qual se vê - também com suas dificuldades administrativas - na responsabilidade de solucionar as falhas administrativas no reconhecimento de direitos dos segurados. Não pode ser levado à sério o discurso governamental que defende reforma visando à proteção social adequada quando a rede de atendimento passa pelo pior momento de sua história. Algo deve ser feito. E urgente.
Na última parte do debate sobre privilégios na previdência social, discorro sobre a terceira categoria usualmente apontada como provocadora da falência do sistema previdenciário estatal. Os exercentes de mandatos eletivos, o que inclui deputados, senadores, vereadores, governadores, prefeitos e presidentes da República. Na percepção da sociedade, seriam todos favorecidos por regras desproporcionalmente vantajosas para fins de aposentadoria. Tais pessoas, assim como muitos servidores do passado e mesmo trabalhadores do Regime Geral de Previdência Social, se beneficiavam de regras frouxas para fins de concessão de benefícios, com pouco tempo de contribuição, quando havia. Não raramente, entes federativos também previam retribuições vitalícias para agentes políticos ao final do mandato, incluindo no Poder Executivo. O descaso com o equilíbrio financeiro e atuarial, como já disse, era a praxe em todos os setores da proteção social brasileira. Todavia, isso muda com as reformas previdenciárias realizadas nos anos 90. A Emenda Constitucional 20/98 trouxe inovação relevante, ao demandar o cargo público efetivo para fins de vinculação a regimes próprios de previdência. Antes mesmo da emenda, a lei 9.506/97, em âmbito Federal, extinguiu o Instituto de Previdência dos Congressistas - IPC, vinculando-os ao Regime Geral de Previdência Social, ou, facultativamente, ao Plano de Seguridade Social dos Congressistas - PSSC. Para os demais exercentes de mandato eletivo (estadual e municipal), a vinculação ao RGPS tornou-se a regra. A vinculação dos agentes políticos ao RGPS sofreu revés com a decisão do STF no RE 351.717, ao dispor que os mesmos somente poderiam sofrer tal vinculação após a EC 20/98. Com isso, foi editada a lei 10.887/04 a qual reproduziu a previsão originária da Lei nº 9.506/97. É justamente por essa razão que as leis previdenciárias possuem duas alíneas idênticas prevendo a inclusão do exercente de mandato eletivo como segurado obrigatório do RGPS. Dessa forma, ao menos desde 2004, pode-se dizer que a questão está superada, estando todos vinculados às mesmas regras dos trabalhadores em geral. Única exceção ainda restaria no Congresso Nacional, tendo em vista a criação de vinculação facultativa ao Plano de Seguridade Social dos Congressistas - PSSC. Na hipótese de opção, o deputado federal ou senador não estaria vinculado ao RGPS, mas ao regime específico criado pela lei 9.506/97. A previsão normativa é de moralidade duvidosa, pois extingue para todos os demais mandatários do povo as regras particulares de aposentadoria, exceto os parlamentares federais. De toda forma, mesmo assim, temos de admitir que as regras do PSSC estão longe de ser tão vantajosas quanto às previstas anteriormente, nas leis 4.284/63 e 7.087/82, com possibilidades variadas de retiro precoce, como a aposentadoria proporcional após oito anos de exercício. Pela previsão atual do PSSC, o benefício voluntário de aposentadoria somente é concedido após 60 anos de idade e trinta e cinco anos de contribuição. Apesar de algumas particularidades vantajosas, está longe de ser um regramento altamente benéfico e diverso das regras gerais dos servidores públicos e mesmo do RGPS. Ademais, o modelo é contributivo e depende de opção do parlamentar Federal. Caso contrário, restará vinculado ao RGPS. Para os demais entes federativos, na atualidade, qualquer regime alternativo de aposentadoria para parlamentares e membros do Executivo é claramente inconstitucional. A vinculação é, necessariamente, ao RGPS. Novamente, surge a dúvida: afinal, onde estarão os privilegiados? Sendo esse o último texto sobre o tema, me permito uma sugestão de resposta: estão em todos os locais e regimes, mas inexoravelmente no passado. Seguramente há pessoas beneficiadas por regras pretéritas de aposentadoria sem compromisso com premissas financeiras e atuariais. Até a EC 20/98, houve o ingresso de milhares de pessoas no serviço público, já na meia-idade, com a finalidade exclusiva da aposentadoria. Vi isso quando ingressei na extinta carreira de fiscal de contribuições previdenciárias em 1997. Após poucas semanas de atividade, as pessoas se aposentavam com remuneração integral, muito acima de suas contribuições históricas, e frequentemente antes dos 50 anos de idade. Houve pensionistas que se utilizaram de brechas legais para recebimento de prestações vitalícias, sem qualquer correlação contributiva e mesmo sem dependência econômica comprovada. Há pensões vultosas que mantêm a sinecura de muitas pessoas e até de gerações de familiares. Há aqueles que, mesmo no RGPS, se aposentaram após pouco tempo de atividade - alguns antes dos 40 anos - por prestações especiais devidas por atividades insalubres, mas que, por falhas normativas, nunca aconteceram. Temos ainda aqueles que, sabedores dos meandros da legislação previdenciária, conseguiam construir elevações do período básico de cálculo das aposentadorias, gerando também incrementos injustificados atuarialmente. E por aí vai. O que desejamos para o Brasil? Realizar expurgos sobre todos aqueles que direta ou indiretamente, conscientemente ou não, tenham se locupletado das falhas normativas da proteção social brasileira? Caso seja essa a opção, além de todos os embaraços normativos e constitucionais, que façamos corretamente, sem eleger, preguiçosamente, determinados grupos e carreiras. Caso tenhamos em mente a construção de modelo equilibrado e justo de previdência, vamos notar que é hora de deixarmos os espantalhos de lado e olhar para a frente. A previdência social é tema sério e relevante, que demanda discussões isentas de partidarismos e paixões, na busca de soluções razoáveis e comprometidas com os ideais da sociedade brasileira. Mais importante do que buscar culpados no passado, é encontrar soluções para o futuro.
Como previsto na coluna anterior, dou sequência aos três textos relativos aos potenciais privilegiados da proteção social brasileira. O primeiro texto abordou aspectos relevantes da proteção social dos servidores públicos. Agora, é hora de tratar de outra classe usualmente alocada no rol das regalias previdenciárias: Os militares. Por absoluta coincidência, a coluna sai, justamente, quando as Forças Armadas estão em destaque, com a intervenção na segurança pública no Estado do Rio de Janeiro. Nos últimos vinte anos, tenho dito e escrito que a proteção social das Forças Armadas dificilmente poderia ser rotulada como previdenciária, tendo em vista a inexistência de contribuição para a jubilação, além das regras de retiro precoce particulares desses profissionais. Sendo a previdência, nos moldes adotados pela Constituição de 1988, modelo protetivo comprometido com o equilíbrio financeiro e atuarial, além de contributivo, nos restaria concluir pelo regime jurídico particular de cobertura das Forças Armadas, como, a propósito, é previsto na CF/88. Com isso, uma análise precipitada da proteção social dos militares poderia redundar em conclusão equivocada de um regime ilegítimo e deslocado dos ideais da isonomia protetiva. Afinal, se todos nós somos sujeitos aos mesmos riscos sociais (doença, idade avançada, invalidez, etc.), por qual motivo determinado grupo poderia obter benefícios precoces? Em verdade, tal raciocínio, tão comum no debate atual, ignora a premissa secular da igualdade, como cunhada por Rui Barbosa: tratam-se os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual, sempre nos limites de suas desigualdades. Não é difícil entender as razões para a cobertura diversa. Militares são submetidos a condições de trabalho mais gravosas e sem as salvaguardas legais dos regimes trabalhistas e do direito privado. Não possuem autonomia para questões elementares de suas vidas, até no âmbito das relações privadas. A dedicação à proteção do Brasil e dos brasileiros supera as querelas pessoais. Mas não é somente isso. O retiro precoce não é uma vantagem pela submissão a regime jurídico de trabalho extremamente restritivo. Na verdade, é uma imposição objetiva para que possamos ter um corpo de profissionais capazes de atuar em suas funções. Todos que já alcançaram a meia-idade percebem como o corpo tende a sofrer com as consequências do tempo, especialmente para aqueles que carecem, sempre, de elevada integridade física e mental. Não é de se estranhar que a regra, ao redor no mundo, seja o tratamento apartado de militares, não os submetendo às regras clássicas de aposentadoria. Também me parece preocupante o pensamento de que as Forças Armadas seriam desnecessárias, como ouço frequentemente ao tratar desse assunto. Se trazem custo elevado ao povo brasileiro, incluindo despesas de pessoal, e não havendo o Brasil se engajado em qualquer conflito bélico de larga escala desde a 2ª Guerra Mundial, melhor seria aplicar tais recursos em áreas mais relevantes, como saúde e educação. É claro que a sociedade brasileira, democraticamente, pode estabelecer suas prioridades para o gasto público e, no limite, encerrar ou reduzir drasticamente determinados dispêndios que considera secundários. No entanto, as Forças Armadas não estão nesse contexto periférico. Não podemos esquecer que nossas extensas fronteiras terrestres e marítimas são frequentemente "testadas". Somente para ficar em um exemplo, basta refletir por qual motivo as FARC nunca se estabeleceram em território brasileiro. Respeito a nossa soberania? Forças Armadas minimamente capazes de defender, de forma competente, o território nacional, têm o efeito preventivo e desestimulador sobre grupos e nações invasoras. A chamada "deterrência" é elemento básico da segurança de nosso território. Esse aspecto é relevante para afastar potenciais agressores até militarmente superiores, pois estes teriam de arcar com custo elevado para a vitória. Outro erro típico é apontar a inferioridade militar brasileira frente a determinadas nações como justificativa para seu fim. A deterrência não necessariamente surge com a superioridade militar, mas sim com a certeza de que danos pesados serão infligidos. Os agressores pensarão duas vezes. Afinal, a guerra nada mais é do que a continuação da política por outros meios. Pode-se insistir, com razão, que mesmo admitida a necessidade das Forças Armadas, nossas limitações orçamentárias impõem alguma revisão, sob pena de possuirmos receitas comprometidas com remunerações, sem quaisquer margens para o aparelhamento da tropa. A crítica, nesse ponto, é pertinente, mas a saída não é submeter militares a regras gerais do modelo previdenciário brasileiro. Feita a opção legislativa do gasto possível no âmbito das Forças Armadas, deve-se dimensionar efetivo capaz de se submeter a estas restrições, como, aliás, já tem sido feito. É certo que, no contexto da revisão do regime jurídico das Forças Armadas, algumas adequações na proteção social podem tomar lugar. Nenhum modelo é isento de aprimoramentos. Todavia, medidas apressadas e desproporcionais não devem ser admitidas, sob pena de comprometer nossa existência. Todos temos de nos sacrificar para a melhoria do país, mas, nos últimos anos, militares têm sofrido perdas remuneratórias severas e enfrentado substancial redução do poder de compra, sem paralelo quando comparado com o serviço público federal. Nós, civis, não juramos dar a vida pela pátria, mas, ao menos, devemos respeitar aqueles que assim fizeram.
Após o Carnaval, como costumeiramente observamos no Brasil, os velhos problemas ressurgem, superada a pausa da agenda política e econômica, tudo em prol da festa popular de maior relevo em nosso país. Com isso, é natural e esperado que o tema da reforma da previdência social volte aos holofotes, ainda mais no contexto atual, no qual o governo Federal busca, como derradeira conquista, a mudança dos paradigmas constitucionais previdenciários. Desde meados de 1998, com a primeira reforma constitucional-previdenciária na vigência da Constituição de 1988, ouvimos o governo Federal e sua equipe divulgar a necessidade de adequações do sistema previdenciário, as quais, como sempre pontuei, são importantes e necessárias, como forma de redimensionar nosso sistema a uma realidade demográfica de rápido envelhecimento aliada a uma diminuição importante da natalidade. No entanto, por motivos variados, as reformas, quando propostas, sempre bradam como norte de atuação um alvissareiro combate aos privilégios, os quais seriam responsáveis pela elevação acentuada da despesa previdenciária para um grupo reduzido de pessoas. Em geral, o grupo de privilegiados e vilipendiadores da coisa pública seria basicamente formado por servidores públicos, militares e exercentes de mandato eletivo, como deputados e senadores. Nas próximas três colunas tratarei dessas categorias, começando pelos servidores públicos. Noto que a retórica estatal persiste nesse tipo de apresentação, expondo os gastos inequivocamente superiores dessas categorias, especialmente quando comparados com a grande parte da população aposentada e pensionista, que recebe somente o salário-mínimo. Como justificar tamanha desigualdade? Seria justo um servidor aposentar-se com proventos de R$ 30.000,00 enquanto milhões recebem somente o salário-mínimo? Tais indagações, tão comuns no debate atual, me lembram aquela máxima de que, por mais que se tente, nunca haverá resposta correta para uma pergunta errada. Aqui temos essa realidade. A indagação correta seria a seguinte: é socialmente justo uma parcela ínfima da população ter remunerações superiores a R$ 30.000,00 enquanto a maior parte dos brasileiros recebe somente salário mínimo? Nesse caso, a resposta é simples. É claramente injusto. O Brasil, como demonstram diversas pesquisas, possui um dos piores índices de desigualdade social, com uma diferença abissal entre os profissionais com melhor e pior remuneração. Uma simples pesquisa na internet exporá os resultados. A razão de tal disparidade é usualmente apresentada como uma resultante de má-gestão pública, educação deficiente e até mesmo um modelo tributário regressivo. A questão é complexa e extrapola os objetivos desse breve artigo. Acredito, apenas, expor que, nesse ponto, todos tenham a mesma percepção. Nessa realidade, como consequência - e não a causa - a cobertura previdenciária tende a refletir as mesmas disparidades. É evidente que uma pessoa, ao ter remunerações elevadas ao longo da vida, poderá possuir conjunto protetivo mais robusto e, com isso, assegurar prestações mais vantajosas. Esse "consequencialismo remuneratório" é típico do modelo protetivo de seguro social, como o adotado no Brasil. Sobre o tema, já discorri em profundidade no meu livro "A Previdência Social no Estado Contemporâneo". Sendo assim, a culpa pela disparidade entre aposentadorias elevadas de servidores públicos e a massa de trabalhadores brasileiros não é da previdência, mas, em verdade, das deficiências do modelo econômico e político brasileiro, o qual tem sido incapaz de reduzir as desigualdades sociais. Após a derrocada da inflação e a criação de programas assistenciais, como o Bolsa-Família, pouco se fez para se mudar esse quadro. A previdência, em suma, somente reflete a desigualdade reinante. Essa realidade, naturalmente, não é responsabilidade de servidores públicos de carreira. Não entendo por qual motivo também não se atacam os profissionais privados com remuneração elevada, por exemplo. Um executivo ou profissional liberal que receba os mesmos R$ 30.000,00, apesar de contribuir somente pelo teto do Regime Geral de Previdência Social - algo em torno de R$ 5.000,00 - poderá usar a quantia excedente da forma que bem entender, o que inclui planos privados de previdência, com diferimento de imposto de renda, aplicações em fundos variados ou bens, ou, ainda, consumir de imediato, caso julgue conveniente. Servidores mais antigos, anteriores às reformas de 1998 e 2003, com remunerações acima do teto do RGPS, simplesmente não possuíam tal faculdade. Eram submetidos - e muitos ainda são - ao desconto integral de seus vencimentos, sem qualquer limitação, e, por consequência, poderiam receber a prestação previdenciária integral. Privilégio? Na minha opinião, trata-se mais de uma restrição de prerrogativas do que propriamente uma vantagem. Um trabalhador privado com remuneração elevada possui uma gama de opções para gerir seu patrimônio previdenciário que, simplesmente, inexistia para os servidores. Foram submetidos de forma compulsória a essa realidade contributiva e, agora, correm o risco de ter seu patrimônio previdenciário aviltado, pelo inadimplemento estatal das promessas não cumpridas. O que fariam trabalhadores privados de remuneração elevada caso o governo Federal, no mesmíssimo contexto, confiscasse todas as contas de previdência complementar sob o argumento de combate à desigualdade e aos privilégios? Negar a aposentadoria integral a servidores que contribuem sobre a integralidade de seus vencimentos durante decênios é, analogicamente, o mesmo que confiscar previdências privadas e investimentos de pessoas bem remuneradas ao longo de suas vidas. Podemos arguir que a comparação não é propriamente correta, pois os trabalhadores privados são submetidos aos riscos do mercado, coisa que servidores não possuem. Pessoalmente, por ter feito a transição do público para o privado, entendo a afirmativa, que é somente parcialmente correta. Todavia, temos de observar que servidores públicos, em grande parte, racionalmente optaram pela função pública justamente pela segurança laboral e remuneratória que fora ofertada. São pessoas que, não raramente, renunciaram a carreiras potencialmente venturosas na iniciativa privada para, no trade-ff clássico do risco versus ganho, optar por atividades com pouca margem de aprimoramento remuneratório ao longo de suas vidas profissionais. É perfeitamente possível que a sociedade brasileira, em algum momento futuro, defina que servidores públicos, de quaisquer espécies e cargos, não possam receber mais de, por exemplo, R$ 5.000,00 de remuneração mensal. Iremos suportar as consequências da atividade pública desprovida de profissionais com melhor qualificação, pois a grande maioria migrará para a inciativa privada. Todavia, a opção é legítima. O que seguramente não é legítimo é qualificar servidores com anos de atividade como privilegiados e confiscar seus patrimônios previdenciários, em desrespeito às regras legais e constitucionais vigentes.
A lei complementar 109/01, diploma normativo básico da previdência complementar brasileira, estabelece a relevante atribuição ao Conselho Monetário Nacional - CMN de fixar as diretrizes de gestão dos recursos garantidores das entidades previdenciárias. Em suma, os investimentos realizados pelos fundos de pensão, incluindo aqueles patrocinados por empresas estatais, devem guiar-se em estrita observância aos parâmetros do CMN. O Conselho Monetário Nacional é órgão público desconhecido à imensa maioria da população brasileira, incluindo os próprios participantes e assistidos de entidades previdenciárias. Apesar da relevância de suas decisões, são poucos aqueles que se detém em perquirir suas origens e competências. Historicamente, tanto o CMN como o próprio Banco Central surgiram da extinta Superintendência da Moeda e do Crédito - SUMOC. Nesta, havia um conselho, o qual, nos termos do decreto-lei 7.293/45, teria a finalidade de "orientar" a atuação da SUMOC (art. 2º). A SUMOC tornou-se Banco Central. O respectivo conselho foi convertido no Conselho Monetário Nacional, nos termos da lei 4.595/64. Todavia, a mudança não se limitou às denominações. O antigo conselho da SUMOC, que basicamente ocupava uma posição secundária na antiga organização, após o advento da lei 4.595/64, passou a deter posição central no Sistema Financeiro Nacional - SFN. Ocupa o primeiro lugar da estrutura do SFN e, ainda, assumiu a competência expressa de formular a política da moeda e do crédito no Brasil, "objetivando o progresso econômico e social do país" (art. 2º). A atual composição do CMN é prevista no art. 8º da lei 9.069/95. Em suma, fazem parte do Conselho os ministros da Fazenda e Planejamento, além do Banco Central. A nova organização, ao retirar os sete membros da sociedade, acaba por impedir um controle mais efetivo das políticas públicas desenhadas pela Fazenda, transformando o CMN em mera formalidade administrativa. Suas sessões, como se nota das publicações oficiais, refletem simples protocolo de aprovação de temas já pré-discutidos. Nesse contexto, não é surpresa que as resoluções do CMN sejam publicadas pelo BACEN, entidade, em tese, subordinada ao Conselho. De toda forma, quanto às alterações das resoluções 4.611/17 e 4.626/18, ao dispor sobre novas diretrizes de aplicação dos recursos garantidores dos planos administrados pelas entidades fechadas de previdência complementar, em revisão parcial da resolução 3.792/09, nota-se, em linha mestra, uma tentativa de flexibilização dos parâmetros de observância obrigatória das entidades previdenciárias. Tal medida, após a exposição da ampla má gestão de recursos garantidores nos últimos anos, especialmente em entidades previdenciárias vinculadas a empresas estatais, parece medida desarrazoada e inoportuna, pois refletiria enfraquecimento dos parâmetros de controle justamente no momento em que carecem de revisão e fortalecimento. No entanto, não parece ser essa a questão. Não obstante as críticas supracitadas à organização e funcionamento atual do CMN, além das falhas regulatórias da previdência complementar, como já apontei no passado, é forçoso reconhecer que algum tipo de adequação dos parâmetros de investimento é necessária. Ademais, as fraudes que tomaram lugar em fundos de pensão brasileiros, na maioria, foram construídas à margem da regulamentação vigente. A falha, em verdade, foi decorrente da fiscalização ineficiente e da leniência das instâncias de controle. Deve-se ter em mente que a gestão de patrimônio sempre envolverá algum grau de risco. Medidas extremamente conservadoras na gestão de recursos trarão, como consequência, a necessidade de maiores períodos de cotização e provável redução de proventos futuros. Especialmente em momentos de queda das taxas de juros, inovações são necessárias como forma de atender as metas atuariais das entidades. Por isso investimentos no Brasil e no estrangeiro devem ser permitidos, com algum grau de facilidade, mas sem perder o controle e diligência inerentes à boa gestão. As mudanças, basicamente calcadas em investimentos no exterior, tentam construir o difícil equilíbrio entre regras de prudência administrativa e controlabilidade dos investimentos com um grau adequado de flexibilidade, de maneira a permitir a gestão profissional e bem-sucedida dos ativos garantidores. Daí pequenas adequações que facilitem o trâmite negocial com parceiros estrangeiros e, ao mesmo tempo, medidas de prudência gerencial. Nesse sentido, merecem destaque as limitações de contratação de fundos de investimentos constituídos no exterior, desde que estejam em atividade há mais de cinco anos e administrem montante de recursos de terceiros superior a US$5.000.000,00. Da mesma forma, os fundos de investimento constituídos no exterior devem possuir histórico de performance superior a doze meses. Em outro ponto importante, a entidade previdenciária deve observar, considerada a soma dos recursos por ela administrados, o limite de até (15%) quinze por cento do patrimônio líquido do fundo de investimento constituído no exterior. As medidas são de observância obrigatória e de vigência imediata. Se seguidas adequadamente, com órgãos de controle atuantes, o modelo brasileiro de previdência complementar poderá ser capaz de atender as expectativas de sua clientela.
Nos últimos anos, especialmente após a edição da Lei nº 11.430/06, a questão sobre o enquadramento acidentário de determinados benefícios previdenciários - em particular os decorrentes de incapacidade para o trabalho - tem sido substancialmente alterada, tendo em vista a evolução científica da temática acidentária no Brasil. Historicamente, o acidente de trabalho sempre fora descrito pelos manuais como o evento súbito, imediato, incapacitante, de liame direto com o trabalho e, em regra, ocorrido no estabelecimento do empregador. Era o conceito clássico de acidente do trabalho "típico". Tal previsão ignorava as doenças produzidas lentamente por anos de exposição a agentes agressivos e condições inadequadas de trabalho. Muito embora a legislação previdenciária preveja as doenças ocupacionais como figuras equiparadas desde longa data, na prática, o enquadramento era incomum, até pela difícil confirmação do nexo causal, especialmente nas doenças do trabalho. A criação dos nexos técnicos previdenciários, em especial, o nexo técnico epidemiológico previdenciário - NTEP, reflete importante evolução na temática, ao gerar presunção capaz de proteger o empregado hipossuficiente. Aqui, a hipossuficiência do empregado não é mera figura retórica da dialética nas relações laborais, mas, verdadeiramente, a incapacidade de empregados produzirem conjunto probatório capaz de evidenciar que suas patologias foram produzidas pelo labor. Não raramente, a própria ciência não gera as certezas necessárias e, na dúvida, o nexo não era estabelecido. Pela regulamentação vigente, a depender do caso (patologia versus atividade econômica e profissional) é possível ao modelo protetivo reconhecer, até mesmo de ofício, o liame entre o trabalho e a doença, viabilizando a concessão da prestação acidentária. Todavia, o novo regramento, não obstante representar clara evolução na dinâmica protetiva e melhor cobertura no contexto laboral contemporâneo, não pode representar ficção capaz de impedir revisões administrativas ou judiciais. Dito de outra forma, a disciplina normativa, ao estabelecer presunções favoráveis aos empregados, não impede manifestações contrárias dos empregadores, os quais podem demonstrar realidade laboral diversa, potencialmente incapaz de gerar o infortúnio sofrido pelo trabalhador. Independente dos óbvios argumentos relativos ao contraditório e ampla defesa, assegurados nos processos administrativo e judicial, é certo que eventual inadmissão de recursos dos empregadores implicaria, contraditoriamente, em descaso com a saúde do trabalhador, tendo em vista a fraca relação entre investimentos no meio-ambiente do trabalho e a sinistralidade laboral. Na prática, inadmitir recursos dos empregadores implicaria prestigiar - ainda mais - a contratação de mão-de-obra jovem, ainda distante das patologias clássicas dos trabalhadores de meia idade. Melhor que gerir um ambiente saudável, seria opção superior, do ponto de vista econômico, contratar pessoas jovens e saudáveis. De qualquer ponto de vista, a melhor solução é propiciar ambiente adequado aos recursos e manifestações administrativas e judiciais de ambos os lados. Neste sentido, nota-se a necessidade de aprimoramento das instâncias decisórias, as quais, ainda, não têm o hábito de se defrontarem com manifestações de empregadores em questões que, a princípio, não lhes dizem respeito. Qual seria a legitimidade do empregador ao se manifestar em mero pleito de benefício previdenciário por parte de seu empregado? A pergunta impressiona, mas a resposta é simples. Manifestações dissonantes entre médicos assistentes (terminologia para médicos de empregadores e privados em geral) e peritos médicos do INSS propiciam enorme insegurança jurídica para ambos os lados (quem pagará os salários? Como fica a situação do empregado até a decisão final? Deve retornar ao trabalho? Poderá ser exposto a agentes nocivos? A rescisão laboral é possível? Etc...). Ademais, caso o benefício seja concedido na modalidade acidentária, há impacto fiscal direto para o empregador, com aumento de contribuições previdenciárias devido ao fator acidentário de prevenção. Isso sem falar em potenciais ações regressivas por parte do INSS e mesmo demandas indenizatórias por parte do empregado. A verdade material é o mantra do processo administrativo. Gerar impedimentos de manifestações das partes é absurdo sob qualquer perspectiva. É sabido que as instâncias administrativas - em especial o INSS - sofrem com a brutal redução de seu efetivo e as restrições orçamentárias, mas saídas gerenciais devem ser construídas, como o incremento do processo eletrônico. Como disse, avançamos na construção do direito material previdenciário, com o estabelecimento de nexos técnicos variados capazes de assegurar melhor cobertura a empregados que adoecem pelo trabalho, com as consequências legais devidas aos empregadores descuidados de seus encargos. É hora de avançarmos no aparato processual - em especial o administrativo - para que sejamos capazes, com eficiência, de buscar a verdade material e recompensar empregadores zelosos de seus encargos legais. De nada servirá um regramento normativo protetor para o empregado se, na prática, as medidas de estímulo à melhor gestão do meio-ambiente do trabalho não forem capazes de produzir resultados favoráveis também do ponto de vista econômico. Tal conclusão parece fundar-se em premissas utilitaristas, mas, ao contrário, somente este aspecto conjugado ao aparato regulatório da matéria, poderá ajudar o Brasil a abandonar as piores classificações em matéria de acidentes de trabalho no mundo.
segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Reforma da Previdência e a economia

Como temos visto nos últimos meses, o tema da reforma previdenciária domina os noticiários, eventualmente entremeado por notícias de operações policiais, corrupção e decisões do STF. Nessa semana, a previdência tem tido especial destaque, com foco no tradicional déficit da previdência e, mais recentemente, nas expectativas do mercado quanto ao aprimoramento de nosso aparato protetivo. Quanto à existência ou não do déficit da previdência social, já escrevi aqui e alhures sobre isso. Continuo a defender a mesma percepção: nosso modelo, a depender das premissas contábeis que sejam adotadas, até pode, hoje, ser considerado superavitário, mas, seguramente, alguma adequação é necessária do ponto de vista atuarial, tendo em vista o descompasso entre os planos de custeio e benefício, em particular no contexto nacional de rápido envelhecimento e elevada retração da natalidade. Já no segundo ponto, que é relativo à percepção do mercado quanto à necessidade da reforma e seus objetivos, noto, com alguma perplexidade, como tal sentimento é adotado, não raramente, como central no debate previdenciário da atualidade. As cifras envolvidas, sempre na casa dos bilhões, são adotadas como fundamentos determinantes para as estratégias adequadas de mudança. Nessa realidade, temos de repensar o que desejamos em nosso modelo previdenciário. É certo observar, em alguma medida, as expectativas de agentes econômicos e as variáveis macroeconômicas envolvidas, especialmente pelo vulto fiscal da previdência nas contas públicas. O Brasil - em alguns momentos - parece adotar alguma forma de "capitalismo envergonhado", em que busca as benesses da economia de mercado, mas, ao mesmo tempo, ainda possui o ranço das ideologias de esquerda estatizantes e satanizadoras do lucro. Por outro lado, nos últimos cinquenta anos, a Ciência Política tem formado um consenso elevado sobre a impossibilidade de políticas públicas, em ambiente democrático, serem fundamentadas em objetivos exclusivamente econômicos. Nunca é demais lembrar a emblemática obra de John Rawls, a qual, nesse tempo, tem produzido relevante influência em toda a literatura especializada. Afinal, a sociedade contemporânea deve ter como meta primeira a existência digna. É indiscutível que todos nós, independente da ideologia política, desejamos um governo que seja ágil, capaz e, principalmente, eficiente nos gastos públicos, atendendo o maior número de demandas com o menor custo. Todavia, a esses objetivos deve ser conjugada a proteção à vida digna. O Brasil não é exceção, demandando a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. O pensamento utilitarista, que tem dominado o debate da reforma previdenciária, não pode subjugar os objetivos de nossa Constituição. Ótimos de Pareto não são mais importantes que vidas humanas. Enquanto que, sob o ponto de vista da eficiência, faça sentido defenestrar pessoas e carreiras para produzir melhor ganho para um número expressivo de pessoas, na perspectiva dignificante da pessoa humana desejada pela Constituição de 1988, isso é inaceitável. É natural que o mercado perceba as políticas públicas unicamente sobre os influxos econômicos produzidos, especialmente no curto-prazo. Todavia, não deve o Estado guiar-se pelas mesmas percepções. Na medida em que as políticas públicas - e previdenciárias - são construídas por pessoas com o viés exclusivamente utilitarista, descompromissado com os direitos fundamentais, o resultado será sempre o fracasso. É certo que a reforma previdenciária implicará restrições a obtenção de direitos e mesmo reflexos negativos para profissionais em atividade, mas tais mudanças devem ser feitas de forma a preservar, na melhor medida do possível, as nossas escolhas de vida. Somente assim o Estado brasileiro será capaz de aprovar as mudanças e, também, restaurar sua credibilidade com o povo brasileiro.
Como amplamente divulgado nas últimas semanas, a reforma trabalhista apresenta diversas inovações nas relações laborais. Dentre elas, algumas controvertidas, como o contrato de trabalho intermitente, previsto no art. 452-A da CLT. A controvérsia surge, inclusive, em sua disciplina normativa, pois o contrato intermitente foi criado pela lei 13.467/17 e, em poucos dias, alterado pela Medida Provisória 808/17. Dentre as alterações da aludida MP, uma tem relevância previdenciária brutal. O art. 452-A, § 13 da CLT passa dispor que "Para os fins do disposto neste artigo, o auxílio-doença será devido ao segurado da Previdência Social a partir da data do início da incapacidade, vedada a aplicação do disposto § 3º do art. 60 da lei 8.213, de 1991". Por sua vez, o citado dispositivo da lei 8.213/91, que é o plano de benefícios da previdência social, dispõe que: "Durante os primeiros quinze dias consecutivos ao do afastamento da atividade por motivo de doença, incumbirá à empresa pagar ao segurado empregado o seu salário integral". O preceito, tradicional em qualquer modelo de proteção social, funciona como uma espécie de filtro para incapacidades de curta duração. Tal medida é importante para a gestão do sistema, pois toda pessoa sofre, ao longo da vida, incapacidades de curta duração, decorrente de patologias de menor gravidade e acidentes leves. A concessão de benefícios em tais hipóteses geraria complicador de difícil superação, pois o sistema protetivo teria de ampliar exponencialmente sua estrutura como forma de atender a tais demandas. Basta imaginar, por exemplo, um segurado da previdência social que, em decorrência de uma gripe, tenha ficado dois dias afastado do trabalho. Embora possa se considerar justa a concessão de benefício proporcional - especialmente na modalidade de contrato de trabalho intermitente, que remunera o trabalhador por hora - é inevitável concluir que a estrutura atual do INSS, com o arcabouço normativo vigente, não possuiria condições de superar suas limitações física e de pessoal e, ainda, atender adequadamente essa potencial demanda. Por isso, tradicionalmente, cabe ao empregador o pagamento do período, dando atendimento pleno a empregados. No entanto, nem todos os trabalhadores se beneficiam dessa cobertura integral. Trabalhadores autônomos - normativamente denominados de contribuintes individuais - não possuem qualquer cobertura para incapacidades inferiores a quinze dias. Esse aspecto é um reflexo que demonstra a clássica fragilidade de modelos de seguro social, como o brasileiro, que não são capazes de superar as desigualdades protetivas entre trabalhadores subordinados e autônomos. Analisando o novo preceito legal, tem-se a impressão que, para empregados submetidos ao regime intermitente, o auxílio-doença seria devido desde a incapacidade, cabendo ao INSS o pagamento desde o primeiro dia de incapacidade. Com isso, teríamos três regras: empregados regulares receberiam o benefício desde o 16º dia de incapacidade, contribuintes individuais desde a incapacidade, mas somente para inaptidão superior a quinze dias e, por fim, empregados em contrato intermitente, sempre desde a incapacidade, não importando a extensão da mesma. Tudo isso partindo da premissa que os respectivos requerimentos administrativos foram feitos no prazo legal. Todavia, a apreciação correta não é essa. Importa notar que o art. 59, caput da lei 8.213/91 continua a prever, como evento determinante do auxílio-doença, a incapacidade temporária e parcial por mais de quinze dias consecutivos. Ou seja, não há espaço no sistema previdenciário brasileiro, do ponto de vista normativo, para coberturas de incapacidades de curta duração, inferiores a quinze dias. Elas não são consideradas riscos sociais carecedores de atendimento. Isso não muda com o contrato intermitente. O que a MP 808/17 busca alcançar, talvez não com a melhor dicção, é que o empregado intermitente, na hipótese de incapacidade temporária por prazo inferior a quinze dias, está desprovido de qualquer cobertura, seja pela previdência social ou pelo empregador. Assim como contribuintes individuais, terá de arcar com o ônus de sua incapacidade provisória. Caso a mesma se estenda por mais de quinze dias - e desde que o requerimento seja feito no prazo legal - a data de início do benefício retroagirá à incapacidade. É essa a norma a ser aplicada, de forma análoga aos autônomos. Importante notar, por outro lado, que as incapacidades laborais decorrentes de acidentes de trabalho e figuras equiparadas continuam valendo para todos os empregados, incluindo os submetidos ao contrato intermitente. Dessa forma, a negligência com o desempenho do trabalho ainda poderá produzir consequências negativas para o empregador, do ponto de vista fiscal, civil e mesmo penal.  A nova previsão legal não autoriza a precarização do meio-ambiente do trabalho.
segunda-feira, 13 de novembro de 2017

O relatório final da CPI da Previdência e a reforma

Como divulgado pelo Senado Federal, a CPI da Previdência produziu seu relatório final1. Após meses de debates e pesquisas, com o confronto de números oficiais e opiniões de diversos especialistas, concluiu-se que o modelo protetivo brasileiro é superavitário. Na visão da CPI, o discurso governamental do déficit é repleto de erros contábeis e conceituais. Em apertada síntese, o relatório produz diversas páginas discorrendo sobre a dilapidação do patrimônio pretérito da previdência social, ausência de recolhimentos devidos pela União, sonegação, dívidas bilionárias inadimplidas, contabilização equivocada de receitas e despesas, indevida desvinculação das receitas da União - DRU, além das diversas renúncias fiscais existentes na legislação brasileira. O seguinte parágrafo é emblemático: "Com todo esse complexo cenário, falar simplesmente de déficit da Previdência, a partir do comportamento das receitas e despesas atuais da seguridade social como um todo, é mitigar a realidade. Ao desconsiderar as práticas do Estado, que durante todo o período de existência da previdência retirou recursos, esvaziou suas receitas, protegeu inadimplentes e ainda financiou projetos de construção e mesmo, mais recentemente, políticas rentistas de pagamento de juros, o debate meramente atuarial sobre déficit ou superávit da previdência perde essência e conteúdo, e a discussão sobre o tema deve se constituir em outros parâmetros, como procuraremos demonstrar neste relatório". (pp. 41 e 42) A crítica é dura e, em grande medida, verdadeira. É indiscutível que o governo Federal, desde a criação dos institutos de aposentadorias e pensões, a partir de 1930, vem sistematicamente aviltando o patrimônio do sistema previdenciário, com investimentos variados, alguns até relevantes, mas sem compromisso com a cobertura de segurados e dependentes. Igualmente acertada a crítica quanto às contraditórias sinalizações governamentais, até os dias de hoje, bradando a necessidade de reforma e, ao mesmo tempo, ampliando renúncias fiscais e benesses variadas a determinados setores. Não reproduzo os valores - detalhadamente retratados no Relatório Final - mas as quantias são indiscutivelmente vultosas e, se realizadas, seriam fonte de equilíbrio do sistema previdenciário durante muitos anos. Essa questão está fora de dúvida. Todavia, concluir, com isso, pela desnecessidade de qualquer reforma previdenciária, em minha opinião, é grave equívoco. O desvio de receitas do sistema previdenciário é apontado desde longa data, retratando o descaso estatal com o equilíbrio financeiro de nosso modelo protetivo. O mesmo vale para as omissões estatais quanto a suas contribuições irrealizadas. No entanto, como solucionar isso? Tais percepções, hoje, possuem, no máximo, interesse histórico e mesmo pedagógico, impondo aos gestores públicos maior responsabilidade na gestão previdenciária. Nada mais. Temos de perceber que qualquer encargo do Estado é, na verdade, ônus da sociedade, pois no Estado de Direito contemporâneo a principal fonte de receita é oriunda dos tributos. Não por outro motivo a Constituição de 1988, didaticamente, afirma que a seguridade social é financiada pela sociedade, de forma direta ou indireta (art. 195, caput). Da mesma forma, muitas renúncias fiscais decorrem de opções da Assembleia Nacional Constituinte, dificilmente modificáveis na atualidade. O mesmo se diga sobre o passivo bilionário de empresas falidas; créditos previdenciários de papel que nunca serão realizados. Não se ignora que o Relatório Final traz alguma luz à discussão, opinando sobre questões que podem, sem sombra de dúvida, passar por revisão legislativa e respectivo incremento de receita. O combate à DRU, desonerações da folha e privilégios de determinados segmentos econômicos são corretamente apresentados e desenvolvidos. Tais correções seguramente propiciariam melhoras no equilíbrio financeiro do sistema, potencialmente tornando-o superavitário, mas, ainda assim, desprovido do equilíbrio atuarial desejado pela CF/88. Como tenho dito nos últimos anos, o sistema brasileiro é desprovido de equilíbrio atuarial, o qual somente foi efetivamente quantificado, em parâmetros adequados, por ocasião da edição da extinta Lei Orgânica da Previdência Social - LOPS, em 1960. Desde então, a discussão limita-se a parâmetros financeiros, exclusivamente. A situação demográfica brasileira é preocupante, pois conjuga acelerado envelhecimento com retração de natalidade severa - receita para o desastre em modelos de repartição. Ademais, vivemos hoje o chamado "bônus demográfico", no qual a maior parte da população é composta por jovens e adultos, que são as pessoas que financiam o sistema e, em regra, não o utilizam. Em tal contexto, o apontado superávit financeiro deveria ser muito maior. Essa realidade será alterada em poucos decênios, impondo carga tributária cada vez maior sobre a geração ativa. A necessidade de revisão do modelo é imperativa. Por outro lado, acerta novamente o Relatório Final ao afirmar que a reforma proposta possui finalidade estritamente econômica, descurando de seu objetivo final, que é a proteção da clientela coberta. Nesse sentido, faço referência ao seguinte parágrafo: "Em várias exposições e falas, reverberadas em diversos documentos, é possível inferir de forma categórica que a grande vontade por parte da União em frequentemente promover reformas no sistema previdenciário brasileiro, vai além do cuidado com as gerações futuras, mas muito mais em garantir margens cada vez maiores de recursos financeiros para a sua gestão, com destinação distinta a que a contribuição está vinculada. Tal linha de raciocínio é muito singela: o governo federal tem interesse nos recursos da seguridade social, pois são recursos que constitucionalmente a União não é obrigada a repartir com os outros Entes da Federação (p. 139)". A crítica, novamente, é verdadeira. Nota-se, pelo próprio discurso governamental, que a reforma atua quase que exclusivamente voltada a objetivos macroeconômicos, sem observar a realidade da clientela protegida. A proposta vigente possui vários exemplos nesse sentido, como o aumento desproporcional do tempo mínimo de contribuição para fins de aposentadoria, o que inviabilizaria a prestação para boa parte da clientela protegida. Essa forma de "utilitarismo previdenciário" não pode ser tolerada. A previdência social é um dos instrumentos mais relevantes na garantia da existência digna. Ignorar tal aspecto implica incorrer em retrocesso inadmissível, tendo em vista a exaltação da dignidade humana como fundamento do Estado brasileiro. Independente da ideologia de cada um, todos desejam que o Estado seja capaz de fazer mais com menos, mas isso deve ser alcançado em estrita observância aos direitos fundamentais. Não se trata de adotar discursos panfletários e descompromissados com a realidade. Muito menos combater a economia de mercado, mas, simplesmente, a percepção de que ambos os objetivos devem ser conjugados: a busca perene do equilíbrio financeiro e atuarial do sistema previdenciário e, também, a manutenção da vida digna. Formado tal consenso, quem sabe, seremos capazes de construir um modelo previdenciário equilibrado e justo. __________ 1 CPI da Previdência.
De acordo com o art. 24, XII da Constituição de 1988, compete à União, Estados e DF legislar concorrentemente sobre previdência social. Municípios, por sua vez, têm a prerrogativa de instituir regimes próprios com base nos arts. 30, I e 40 da Constituição. Sendo a matéria de competência concorrente, cabe à União estabelecer normas gerais, preservando a autonomia dos demais entes federados (art. 24, § 1º, CF/88). Sobre tais questões, não há dúvida. A controvérsia é quanto ao grau, isto é, em que medida pode a União impor determinadas condutas e limites na organização e criação de regimes próprios de previdência para servidores públicos estaduais e municipais. Este é o objeto de análise do RE 1.007.271, de relatoria do ministro Edson Fachin, cuja repercussão geral foi recentemente reconhecida. O federalismo brasileiro, como se sabe, é dotado de características próprias, oriundo de um país unitário, o qual, artificialmente, criou e atribuiu competências e prerrogativas a entes até então completamente subordinados ao poder central. Outros países formaram uma federação centrípeta, o que implica dizer que eram províncias soberanas ou de elevada autonomia que, após consenso, renunciaram à parte de suas prerrogativas e competências em prol de um poder central. No caso brasileiro, há uma tendência de maior concentração de poder no governo Federal. Já no segundo, as províncias tendem a preservar maior parcela de competência. Aqui, ainda há o impacto do Welfare State, o qual, devido às elevadas atribuições na área protetiva, traz maior controle central, como forma de melhor distribuir esforços e uniformizar a cobertura da população. A federação brasileira, então, acaba por transmitir muitos poderes à União, tanto pela sua formação histórica como pelos objetivos abrangentes da Constituição de 1988. Sem embargo, a tensão entre a autonomia local e a unidade nacional não poderá ser resolvida pela preponderância quase absoluta da segunda. É certo que maior ingerência federal nos RPPS é justificável, em parte, pela ascendência do interesse nacional na matéria, pois não há razão para parâmetros diferentes na concessão de aposentadorias, por exemplo. Todavia, limites são necessários. Estados e municípios não são meras descentralizações administrativas, autarquias territoriais, na expressão de Renato Alessi, mas pessoas jurídicas dotadas de autonomia, nos termos da organização fixada pela Constituição. As ideias tradicionais sobre a organização estatal, no sentido da limitada atuação dos entes federados, devem ser reavaliadas dentro do novo regramento constitucional. A Constituição de 1988 é extremamente dirigente em matéria previdenciária - incluindo os RPPS - e, aliada a uma forte regulamentação federal, pouco sobraria para os demais membros da federação brasileira. Se foi intenção do Poder Constituinte preservar e mesmo incentivar os regimes próprios de previdência, não faria sentido lógico ou jurídico impor restrições absolutas aos mesmos. Do contrário, seria melhor adotar, de uma vez, a unificação previdenciária no Brasil. A regulamentação vigente deve ser interpretada em conformidade com a Constituição, o que impõe, de um lado, a redução teleológica de alguns dispositivos, como o art. 15 da lei 10.887/04, que somente poderia estabelecer determinado critério de correção à União e, por outro lado, a inconstitucionalidade de outros dispositivos, com o art. 5º da lei 9.717/98, o qual veda aos RPPS concessão de novos benefícios, mesmo com fundamento atuarial consistente. Outros temas, como a emissão de certificados de regularização previdenciária, especialmente quando atuam como impeditivos a transferências federais voluntárias, podem impactar de forma severa na gestão local, estabelecendo um estrangulamento na autonomia local, com insatisfação da clientela protegida e comprometimento do pacto federativo estabelecido pela Constituição de 1988. A atuação federal, em suma, deve primar pela autocontenção e, nas hipóteses de dúvida, priorizar as autonomias locais.
segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Intervenção no POSTALIS

Como se observa nos noticiários, uma das principais entidades fechadas de previdência complementar do Brasil, o Postalis Instituto de Previdência Complementar, sofreu intervenção pela Superintendência Nacional de Previdência Complementar - PREVIC. A referida entidade administra planos de previdência complementar voltados a empregados dos Correios. A decisão, sem fundamento explícito nas portarias da PREVIC, nos permite inferir falhas na gestão dos recursos garantidores dos respectivos planos de benefício. A questão não é propriamente novidade, tendo em vista a coleção de escândalos envolvendo investimentos dos fundos de pensão das estatais. Em tal situação é possível, mesmo sem maiores elementos, antecipar a realidade vindoura: imposição de contribuições extraordinárias, revisão dos requisitos de elegibilidade dos planos e, ainda, responsabilização de dirigentes. No final, o prejuízo nas expectativas de direito dos empregados dos Correios é praticamente certo. Em tese, havendo desequilíbrio atuarial em planos de benefícios, as soluções, inexoravelmente, perpassam pela revisão dos planos de benefícios, pois qualquer estratégia adotará uma combinação de incremento de receita, diminuição de benefícios (ainda que indiretamente pelas contribuições) e majoração dos requisitos de elegibilidade das prestações. Nesse contexto, pouco pode ser questionado, pois se demonstrada a necessidade atuarial, a solução será intramuros, cabendo aos interessados - participantes e assistidos - a adoção das medidas necessárias, sob pena de extinção da cobertura protetiva. À semelhança de um condomínio, não há responsabilidade do restante da sociedade por escolhas equivocadas e má gestão de um fundo de pensão. Sem embargo, nem sempre as coisas são tão simples na previdência complementar brasileira, especialmente frente a entidades previdenciárias de empresas estatais. Aqui, os desenlaces já conhecidos da política brasileira dos últimos anos nos mostram, com triste crueza, a ingerência ilegal na gestão de tais entidades, impondo escolhas sabidamente prejudiciais aos participantes, com objetivos nem um pouco republicanos. Em boa parte, a responsabilidade por tal situação é da própria legislação, pois a LC 108/2001 estabelece que o patrocinador estatal será o responsável pela gestão da entidade, tendo em vista sua prevalência no conselho deliberativo (art. 10). Muito embora o desnível tente ser compensado pela primazia dos participantes no conselho fiscal (art. 15), tal construção mostrou-se insuficiente. Afinal, o conselho deliberativo é o órgão máximo da entidade, "responsável pela definição da política geral de administração da entidade e de seus planos de benefícios", além de direcionar a atuação da diretoria executiva (arts. 10 e 19). Nesse contexto de quase absoluta primazia do Estado, o dever fiduciário do patrocinador é ainda maior. É certo que, nas hipóteses de desequilíbrio atuarial ordinárias, as responsabilidades são conjugadas, não somente por mandamento constitucional, mas por expressa previsão legal (art. 202, CF/88 e art. 21, LC 109/01). Todavia, na hipótese de desequilíbrio decorrente de fraudes variadas na gestão dos recursos garantidores, o mesmo art. 21 da LC 109/01 prevê a necessidade de "ação regressiva contra dirigentes ou terceiros que deram causa a dano ou prejuízo à entidade de previdência complementar". No caso concreto das entidades de previdência complementar patrocinadas pelo governo Federal, demonstrada a má gestão e o direcionamento fraudulento de investimentos, há embasamento legal para a indenização estatal superior aos parâmetros regulares de recomposição de reservas, especialmente quando comprovada a impossibilidade de participantes de rever estratégias ilegais e equivocadas. Indenização e contribuição extraordinária são conceitos diversos. A paridade vale somente para a última. Ainda no contexto particular dos fundos de pensão das estatais, nos cabe indagar por que a PREVIC levou tanto tempo para agir. Não é novidade mesmo para o público leigo que o POSTALIS adotou políticas de investimento questionáveis, incluindo títulos públicos de duvidosa qualidade da República Bolivariana da Venezuela, como amplamente noticiado. Além da uma organização normativa deficiente, a fiscalização estatal foi, no mínimo, incompetente. Não é razoável ou mesmo justo que participantes e assistidos sofram as consequências dos desmandos e omissões estatais em proporção maior que o restante da população. A própria percepção de culpa aquiliana, em conjunto com a LC 109/01, já fundamenta a necessidade de recomposição das reservas exauridas por desvios permitidos pelo patrocinador, usando de suas prerrogativas na formação de políticas de investimento da entidade.
segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Pedaladas Legislativas - O caso do FUNRURAL

O tema das "pedaladas fiscais" ganhou o Brasil desde o impedimento da presidente Dilma. A questão tornou-se tão popular que, não raramente, o termo é utilizado para designar procedimentos heterodoxos na gestão da coisa pública e na disciplina normativa de temas variados. Aqui, tomo a liberdade de retratar uma norma oriunda do processo legislativo Federal - a resolução do Senado nº 15 de 2017 - que, em minha opinião, representa uma autêntica 'pedalada legislativa'. Para tanto, temos de discorrer, ainda que brevemente, sobre esta figura inusitada que é o FUNRURAL. O Fundo de Assistência e Previdência do Trabalhador Rural - FUNRURAL, instituído pela lei 4.214, de 2/3/1963, inaugurou a proteção social na área rural brasileira. O fundo constituía-se de 1% do valor dos produtos comercializados e era recolhido pelo produtor, quando da primeira operação, ao extinto Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários - IAPI. Apesar de o trabalhador urbano já contar com proteção previdenciária desde 1923, ainda que limitada a determinadas carreiras, é interessante notar como o mesmo objetivo demorou alguns decênios até alcançar o trabalhador rural. A proteção originária do FUNRURAL foi ampliada pela LC 11, de 25/5/1971, a qual instituiu o Programa de Assistência ao Trabalhador Rural (PRORURAL), de natureza assistencial, cujo principal benefício era a aposentadoria por idade, após 65 anos, equivalente a 50% do salário mínimo de maior valor no país. Esta mesma lei complementar deu natureza autárquica ao FUNRURAL, sendo subordinado ao então Ministério do Trabalho e Previdência Social, até sua extinção, em 1977. Em suma, nota-se que o trabalhador rural possuía regime particular de aposentadoria e, em virtude da autarquia que os patrocinava, o FUNRURAL acabou sendo referência aos planos de custeio e benefício destes trabalhadores. Todavia, especialmente com a Constituição de 1988, a dicotomia entre previdência urbana e rural foi superada, com as exceções previstas na própria Carta de 1988. Atualmente o Instituto Nacional de Seguro Social - INSS atende tanto a trabalhadores urbanos e rurais, em sua totalidade, concedendo prestações previdenciárias a segurados e dependentes, independente da natureza da atividade, com exceção restrita a militares e servidores públicos vinculados a regimes próprios. Sendo assim, a terminologia relativa ao FUNRURAL tornou-se normativamente errada e historicamente anacrônica. Ironicamente, ainda que abandonada pela legislação e mesmo pela burocracia estatal, a alcunha FUNRURAL ainda permeia as instâncias judiciais, especialmente quando se refere ao custeio previdenciário dos produtores rurais. Seguindo o modelo historicamente referido, a lei 8.212/91, no art. 25, estabeleceu o financiamento de produtores individuais sobre a receita da produção, modelo idealmente mais eficaz para a atividade agrícola, especialmente pela sazonalidade da produção rural. Sem embargo, tal admissão foi feita, na visão do STF, sem suporte constitucional, pois a CF/88, no que tange a contribuições previdenciárias, havia delimitado as mesmas à folha de salários. Esse foi o fundamento do RE 363.852. O decisório, em atípico caso apresentado pelo adquirente da produção rural (substituto tributário), sem segmentação clara sobre as contribuições do produtor rural em economia familiar (segurado especial) e o produtor pessoa física com empregados, acabou por declarar a inconstitucionalidade da referida imposição. Tendo em vista tal precedente do STF, o setor agrícola agitou-se diante da possibilidade de redução dos encargos sociais e, em especial, ganho vultoso e imediato da recuperação dos valores recolhidos a maior. Imediatamente, o tema foi novamente levado aos Tribunais, pois, a Lei nº 10.256/01, ao repetir a redação do art. 25, caput da lei 8.212/91, pareceu insistir na inconstitucional imposição tributária sobre a produção rural. No entanto, o STF, agora no RE 718.874, em apertada votação (6 a 5), entendeu que a alteração teria sido constitucional, pois posterior à EC 20/98, que admitia a mudança de bases-de-cálculo previdenciária e, ainda, superou o Tribunal a dificuldade de a nova lei ter alterado somente o caput do art. 25 da lei 8.212/91, sem mudança nos incisos que, assim como o resto do artigo, teriam sido objeto de declaração de inconstitucionalidade. Muito embora o referido RE 718.874 não tenha ainda transitado em julgado, não pretendo aqui remoer os fundamentos da decisão, com seus erros e acertos. A questão, como disse, é a Resolução do Senado nº 15 de 2017. A referida norma dispõe que: "É suspensa, nos termos do art. 52, inciso X, da Constituição Federal, a execução do inciso VII do art. 12 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, e a execução do art. 1º da Lei nº 8.540, de 22 de dezembro de 1992, que deu nova redação ao art. 12, inciso V, ao art. 25, incisos I e II, e ao art. 30, inciso IV, da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, todos com a redação atualizada até a lei 9.528, de 10 de dezembro de 1997, declarados inconstitucionais por decisão definitiva proferida pelo Supremo Tribunal Federal nos autos do Recurso Extraordinário nº 363.852". Ora, após tantos anos da decisão exarada no RE 363.852, por qual motivo o Senado Federal teria a preocupação de emitir tal resolução, especialmente após a consolidação, no STJ, de que a mesma é irrelevante para fins de repetição de indébito? Infelizmente, o motivo não parece ser legítimo. Em minha opinião, trata-se de estratagema visando tornar ineficaz a decisão da Corte Constitucional. Tendo em vista o precedente do STF no RE 363.852, muitas empresas e produtores deixaram suas contribuições de lado, ignorando o preceito legal vigente e, não raramente, buscando os valores recolhidos no passado, mediante compensações indevidas. De forma a ajudar todos aqueles que mandaram às favas seus encargos tributários, o Poder Executivo editou a recente MP 793 de 2017, viabilizando favorecido parcelamento justamente da aludida contribuição. Para melhorar, ainda é reduzida a contribuição de produtores individuais de 2,0% para 1,2%. Estranhamente, após tantas benesses a quem apostou em uma tese tributária que se mostrou sem sucesso, surge a Resolução n. 15, logo após a decisão do STF no RE 718.874. Como dito, a lei 10.256/01, ao dar nova redação ao art. 25 da lei 8.212/91, somente alterou o caput do artigo, tratando da mal chamada contribuição ao FUNRURAL. A tese dos contribuintes - bastante razoável - seria pela impossibilidade de tributação mesmo após a lei 10.256/01, tendo em vista a insubsistência dos incisos. Como o STF superou tal dificuldade, parece que nosso Senado Federal busca, intempestivamente, editar resolução com o único intuito de suspender a eficácia do art. 25 da lei 8.212/91 e, com isso, impedir a tributação desejada lei 10.256/01, sob a nova alegação de que os incisos teriam sua eficácia suspensa, não podendo subsidiar a imposição desejada pelo novo caput, inserido, como dito, lei 10.256/01. A decisão do STF no RE 718.874 pode ser objeto de muitas críticas. Todavia, o expediente que se forma é, data venia, retrato do que se tem de pior no Brasil. Em tempos de Lava-Jato, quando desejamos, ao menos, algum comedimento das instâncias decisórias do país em temas de interesse nacional, o que se nota é a manutenção da triste realidade voltada à defesa intransigente e imoral de setores particulares. Caso haja manifesto interesse no perdão de dívidas que, a depender do caso, possa ser justificado, o ordenamento jurídico já prevê a possibilidade de remissão, mediante lei específica e com previsão de recomposição da receita. Qualquer outra forma representa mero expediente inconstitucional e imoral. Que esta ou qualquer outra pedalada seja infrutífera, e possamos, em algum momento, discutir temas previdenciários e tributários em ambiente moralmente adequado, com o interesse da sociedade em primeiro plano.
Na coluna desta quinzena, aproveito para tratar de um tema do custeio previdenciário ainda pouco explorado. Trata-se do adicional de contribuição previdenciária devido pelos empregadores que possuem atividades especiais (insalubres), que permitem a aposentadoria antecipada, após 15, 20 ou 25 anos de contribuição. Nos termos do art. 57, § 6º da lei 8.213/91, na redação dada pela lei 9.732/98, a previsão normativa impõe ao empregador, como forma de financiar tal prestação, o acréscimo proporcional de contribuição, nos percentuais de 6, 9 ou 12%, de acordo com o tempo de aposentadoria especial aplicável ao caso, 25, 20 ou 15 anos, respectivamente. A constitucionalidade do adicional é facilmente defensável, tendo em vista a correta imposição tributária, de forma mais onerosa, sobre as empresas que geram a exposição, sem transferir o custo a toda a sociedade. Ademais, serve como potencial inibidor a atividades insalubres e, também, viabiliza uma melhor percepção do meio-ambiente do trabalho como um todo, ao agir como complemento dos clássicos percentuais de 1, 2 ou 3% sobre a folha, referentes ao antigo seguro de acidentes do trabalho. Todavia, temos de reconhecer que, de todas as aposentadorias do Regime Geral de Previdência Social, a aposentadoria especial, como é normativamente denominada pela lei 8.213/91, é seguramente a mais complexa. As dificuldades de avaliação do ambiente de trabalho, as particularidades da atividade de cada empregado, a mensuração do grau de exposição e até mesmo as vacilações administrativas sobre o regramento jurídico do benefício em pouco ajudam na construção de um consenso. Neste último ponto, em particular, nota-se um descasamento de interpretações das instâncias administrativas na matéria. No plano de benefícios, há a atuação do Governo Federal em restringir o benefício; movimento que tem sido internalizado na legislação previdenciária desde o advento da lei 9.032/95, impedindo o reconhecimento de atividade especial pela categoria profissional. A mudança, como já opinei anteriormente, possui coerência, tendo em vista a proliferação de aposentadorias especiais a determinados segmentos em prejuízo dos demais segurados. Neste ponto, no entanto, há controvérsias na própria previdência social, especialmente em alguns temas, como a exposição a agentes potencialmente cancerígenos. Todavia, desde 2007, há ainda outro ator na questão, que é a Secretaria de Receita Federal do Brasil. Aqui, nos últimos anos, tem se formado um compreensível e necessário esforço de fiscalização dos encargos previdenciários derivados da atividade especial, mas, em frequente descompromisso com as próprias regulações previdenciárias do tema, admite-se como tempo especial - e com a consequente imposição de contribuição - atividades e situações que seguramente nunca seriam reconhecidas nas instâncias administrativas da previdência social brasileira. Em suma, como se não bastasse a dificuldade inerente à concessão do benefício previdenciário de aposentadoria especial, veremos, nos próximos anos, maior embate entre as esferas administrativas, mas, agora, com a participação da RFB, em torno da contribuição adicional de 6, 9 e 12%. Tal aspecto retrata a previsível consequência da separação administrativa das esferas do custeio e benefício previdenciários, impondo a cada qual a percepção que se assemelha mais adequada. O resultado é péssimo para todos. Empregadores não conseguem, atualmente, certeza plena quanto à necessidade do pagamento de adicionais. Empregados não entendem se possuem ou não direito ao tempo especial, devido às interpretações divergentes dentro do próprio INSS e, agora, junto à RFB. E o Poder Público acaba assoberbado de demandas judiciais buscando concessão de benefícios e, em breve, ações anulatórias de autos-de-infração relativos a adicionais de contribuição em atividades de nocividade duvidosa. Acredito ser urgente uma revisão cautelosa da disciplina administrativa da matéria, mediante reaproximação necessária das instâncias administrativas responsáveis pela concessão de benefícios e cobrança das contribuições adicionais. Sem tal "freio de arrumação" na realidade atual da aposentadoria especial, teremos de esperar alguns anos até a matéria ser consolidada nos Tribunais Superiores e, oxalá, servir de guia para empresas, segurados e a própria Administração Pública.
segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Stock Options e contribuição previdenciária

Nos últimos anos, alguns temas relevantes têm ingressado no longevo debate sobre a base imponível das contribuições previdenciárias. Dentre eles, os programas de opções de ações, fornecidos a empregados, assumiram proeminência no debate, da mesma forma que as conhecidas discussões sobre a tributação previdenciária dos lucros e resultados. Aqui, como sempre, exsurge a dificuldade quanto ao alcance do art. 28 da lei 8.212/91, ao disciplinar a base de cálculo previdenciária, como decorrência do aspecto material do fato gerador da contribuição, que é a prestação de serviços remunerados. Haveria a incidência sobre toda e qualquer vantagem fornecida a empregados? Tais discussões, como não poderia deixar de ser, devem ter avaliação inicial na Constituição de 1988. O art. 195, I, "a" da Carta, de forma cristalina, delimita a competência impositiva estatal aos rendimentos do trabalho, somente. Devemos observar que, mesmo com as modificações da EC 20/98, ao viabilizar a incidência sobre valores pagos a pessoas sem vínculo empregatício - autônomos - não houve mudança quanto à natureza da verba tributada. Tal aspecto é relevante, pois, não raramente, confundem-se as bases previdenciárias e do imposto de renda. Esta, ao contrário da primeira, alcança toda sorte de rendimentos, do trabalho ou do capital, desde que viabilizem incremento patrimonial (renda líquida). A contribuição previdenciária, por sua vez, como instrumento de financiamento de prestações previdenciárias, substituidoras do rendimento do trabalho de segurados, não possui qualquer liame com rendimentos do capital, haja vista a irrelevância dos mesmos para a proteção social. Tal aspecto, na realidade brasileira, tem sido ignorado no debate dos planos de ações. As instâncias administrativas, nas últimas decisões exaradas pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, têm adotado premissa de que os planos de ações são dotados de natureza salarial e, portanto, devem ser tributados como tal. Apesar de alguma celeuma quanto ao momento de ocorrência do fato gerador e da base tributável, a incidência tem sido a tese dominante. Antes, tal conclusão era limitada a programas claramente falhos, os quais, de forma geral, visavam unicamente premiar empregados. Agora, pelos precedentes mais atuais, o quadro parece mudar. Não podemos estabelecer uma sinonímia entre rendimentos do trabalho e pagamentos derivados do contrato de trabalho. Somente os primeiros, por possuírem natureza contraprestacional, podem ser objeto de incidência previdenciária. Nem toda vantagem fornecida a empregados terá, como finalidade, remunerá-los pela prestação do serviço. Tal aspecto é ainda mais relevante em planos de ações, quando empregados são estimulados a aderir como forma de fidelização da mão-de-obra, comprometimento profissional e alinhamento com acionistas. A lei 8.212/91 não destoa de tais premissas, ao expor que, independente da denominação, somente parcelas remuneratórias devem ser tributadas. A remuneração, em sua acepção jurídica - e não econômica ou contábil - possui delimitação tradicionalmente reconhecida, seja pela doutrina ou jurisprudência. O alargamento artificial de tais fronteiras em nada ajudará o combalido sistema protetivo brasileiro. Naturalmente, modelos fraudulentos que visem, unicamente, remunerar empregados de forma habitual sem a devida incidência previdenciária, devem ser rechaçados, tendo em vista o aviltamento de receitas previdenciárias e benefícios do sistema, mediante redução do salário-de-contribuição com a consequente minoração do salário-de-benefício. Não sendo o caso, a posição deve ser pela deferência das escolhas razoáveis dos empregadores frente aos objetivos das empresas.
A desaposentação, nos últimos vinte anos, tornou-se um dos temas de maior relevância no Direito Previdenciário nacional. Durante muito tempo, dominou as principais discussões e foi central em diversos eventos especializados. Nem sempre foi assim. Quando escrevi a primeira obra sobre o assunto no Brasil, a discussão era bastante limitada e circunscrita a alguns círculos acadêmicos. Para minha surpresa, a recepção foi estupenda e, em pouco tempo, o tema espalhou-se país afora, tumultuando os tribunais com diversos pedidos. Não pretendo, novamente, apontar as dificuldades e impedimentos que, em geral, a Administração apresenta como obstáculos à obtenção de novo benefício mediante a renúncia de prestação anterior, os quais, de forma geral, foram admitidos pelo STF. O que ainda me motiva a tratar do tema é a premissa interpretativa equivocada que é sempre utilizada nessa e em outras discussões. O modelo previdenciário brasileiro - assim como todo o restante da América Latina - adota, em seus fundamentos, a dinâmica do seguro social, ainda que com certos temperamentos. Em resumo, tais modelos de previdência social têm, como características básicas, a contributividade do regime, a ausência de universalidade real, o financiamento por contribuições sociais e, por fim, a correlação entre a contribuição e o respectivo benefício. Ou seja, a solidariedade, que é elemento inerente a qualquer modelo protetivo, existe, aqui, em grau menor, seja pela abrangência restrita - cobertura limitada a segurados e dependentes - seja pela necessária correlação custeio versus benefício, como exteriorizado no art. 195, § 5º da Constituição de 1988. O modelo de financiamento, por contribuições sociais, ao invés de impostos, possui justamente a finalidade de restringir os encargos à clientela protegida, e não toda a sociedade. Ao revés, em modelos universalistas de proteção, a cobertura é verdadeiramente ampla, não demandando atributos do seguro social, como filiação, qualidade de segurado e carência. Nesses sistemas, tendo em vista a solidariedade em grau máximo, o instrumento tributário adequado é o imposto. Pois bem, com esses aspectos conceituais em mente, nota-se, com facilidade, o erro da jurisprudência nacional. Tendo o segurado efetuado novas contribuições, após a aposentadoria, a premissa do sistema é a necessidade do recálculo, sob pena de atribuir, em contrariedade à Constituição, um modelo desconexo de proteção social, no qual se misturam elementos de modelos previdenciários diversos. Infelizmente, é justamente o que ocorre hoje. Sempre que surgem demandas legítimas, de segurados e dependentes, visando incrementos e correções de benefícios, em contrariedade à interpretação estatal, o inevitável argumento oficial é, justamente, a natureza contributiva do sistema, com a estreita vinculação ao equilíbrio financeiro e atuarial, no qual a prestação somente existe com a rigorosa correlação com o custeio. Por outro lado, quando surge nova imposição estatal, travestida de contribuição social, sem qualquer contraprestação estatal, o argumento onipresente, por parte do governo Federal, é sempre a solidariedade, a qual, nessa concepção parcial e tendenciosa, permitiria a redução patrimonial de segurados e dependentes mesmo sem qualquer contraprestação protetiva. Ou seja, adota-se o fundamento que mais se adequa às finalidades desejadas. Ao incrementar receita sem contraprestação, os fundamentos de modelos universalistas são apresentados. Já no momento de negar pretensões legítimas, as premissas são do seguro social, objetivando restrições a direitos legítimos e, também, sinalizar ao Judiciário a necessidade de submissão ao aspecto atuarial. Dois pesos, duas medidas. É equivocada e desleal tal conduta, pois desvirtua as premissas do sistema de acordo com os objetivos desejados. É certo que o modelo previdenciário carece de ajustes, mas não será vulnerando o alicerce do sistema e expropriando o patrimônio dos segurados que isso se resolverá.
O modelo previdenciário brasileiro, originário dos antigos sistemas de seguro social, demanda, para fins de concessão de prestações previdenciárias, um requisito prévio que é a qualidade de segurado. Ou seja, não basta a ocorrência do sinistro para o pagamento do benefício. A pessoa deve possuir cobertura, ou melhor, deve ser segurada. Além deste quesito, alguns benefícios exigem, também, um período prévio de contribuições mensais mínimas, a chamada carência. Tais atributos do sistema, com muita clareza, retratam a ausência de universalidade de nosso modelo protetivo, o qual, mesmo após o advento da Constituição de 1988, ainda peca pela limitada cobertura. Tal aspecto já foi objeto de questionamento em textos anteriores. Aqui, o objetivo é tão somente explicitar as mudanças relevantes da lei 13.457/17. Em um seguro privado típico, o fato de o interessado participar e pagar o prêmio do seguro durante anos, sem qualquer sinistro, não assegura a cobertura gratuita no futuro, tendo em vista a lógica do negócio, que é a divisão do risco dentro do grupo coberto. Sendo assim, se uma pessoa paga o seguro de seu veículo por dez anos e nada ocorre, caso não haja renovação do mesmo no ano seguinte e subsequente sinistro, não haverá indenização devida pela seguradora, pois a vítima não mais ostenta a qualidade de segurada. No modelo previdenciário nacional, ainda que construído nos moldes do seguro social, há alguns temperamentos. Afinal, a previdência brasileira atende riscos previstos e imprevistos. Sendo assim, na hipótese de necessidades sociais previsíveis, como idade avançada, não seria razoável admitir que todas as contribuições pretéritas sejam perdidas, pois os recolhimentos não foram unicamente voltados a benefícios de risco. Por essas e outras razões, a legislação previdenciária admite não só a manutenção temporária da qualidade de segurado, após a cessação da atividade remunerada, mesmo sem recolhimentos - momento conhecido como período de graça - como, também, a possibilidade de recuperação dos recolhimentos pretéritos à perda da qualidade, mediante o reingresso no sistema e pagamento de período mínimo. A regra geral do modelo, desde 1991, era no sentido de exigir pagamento equivalente a um terço das contribuições necessárias para fins de carência, permitindo, assim, o resgate das contribuições do passado. Mais recentemente, tal regra limitou-se a auxílios-doença, aposentadorias por invalidez e salários maternidade, pois as demais aposentadorias foram excluídas da sistemática pela lei 10.666/03. Assim, por exemplo, caso um segurado tenha 30 meses de contribuição prévios a perda da qualidade de segurado, quando do seu reingresso, teria de contribuir com no mínimo quatro meses (1/3 de 12) para, então, resgatar as 30 anteriores e, no caso, obter auxílio-doença para incapacidades posteriores. Basicamente, este pagamento funcionaria como uma forma de "pedágio" ao segurado que perdeu a qualidade e voltou ao sistema protetivo. Com a lei 13.457/17, a situação muda. Em condição menos gravosa frente à pretendida pelo Governo Federal - que deseja impedir tal expediente e exigir o alcance da carência plena - adotou-se solução intermediária, aumentando o gravame do segurado após seu reingresso no sistema, mas em menor escala. Ao invés de um terço da carência, passa a ser necessária a metade. No exemplo citado, ao invés de quatro contribuições, seriam necessárias seis contribuições após o reingresso e prévias à incapacidade. Mediante análise isolada da lei 13.457/17, seria possível vislumbrar um severo endurecimento nas regras das demais aposentadorias, pois, para estas, tem-se a impressão que não há previsão de adimplemento da metade da carência, mas, em verdade, a exclusão total do tempo anterior à perda da qualidade de segurado (Art. 27-A da lei 8.213/91: "No caso de perda da qualidade de segurado, para efeito de carência para a concessão dos benefícios de que trata esta lei, o segurado deverá contar, a partir da nova filiação à Previdência Social, com metade dos períodos previstos nos incisos I e III do caput do art. 25 desta lei"). No entanto, a impressão é somente aparente. Deve-se ter em mente que o art. 3º da lei 10.666/03 continua válido, prevendo regramento específico sobre as aposentadorias por idade, tempo de contribuição e especial. Sendo assim, para estas, nada muda com a lei 13.457/17. Como se sabe, a principal razão da mudança foi, justamente, a alegada necessidade de maior rigor nos benefícios por incapacidade. Justamente neste aspecto, relacionado à gestão dos benefícios por incapacidade, há outra mudança relevante na legislação previdenciária, ao inserir o art. 60, § 8º na lei 8.213/91, dispondo que "sempre que possível, o ato de concessão ou de reativação de auxílio-doença, judicial ou administrativo, deverá fixar o prazo estimado para a duração do benefício". Pelo que se nota, pretende a lei 13.457/17 alargar a técnica conhecida como alta programada, ou seja, a dinâmica de concessão do benefício que, desde já, estipula a duração do mesmo, de acordo com a evolução esperada da patologia e cura do segurado. A motivação de sua extensão aos benefícios decorrentes de decisão judicial é calcada na incapacidade da Administração em controlá-los, o que tem permitido, não raramente, a manutenção de prestações indevidas por anos. No entanto, como já havia me manifestado sobre a alta programada em si, não é correto transferir aos segurados o ônus da ineficiência do sistema. Como não se consegue superar o gargalo do atendimento previdenciário, especialmente quanto à perícia médica, adota-se premissa normativa que transfere ao segurado o encargo de observar e avaliar sua condição clínica, para, se for o caso, postular prorrogações ou revisões. Incrivelmente, já se antecipando ao provável descaso das instâncias judiciais a este preceito, a própria lei 13.457/17 discorre que "na ausência de fixação do prazo de que trata o § 8º deste artigo, o benefício cessará após o prazo de cento e vinte dias, contado da data de concessão ou de reativação do auxílio-doença, exceto se o segurado requerer a sua prorrogação perante o INSS, na forma do regulamento, observado o disposto no art. 62 desta lei" (art. 60, § 9º, lei 8.213/91). Ou seja, ainda que a decisão judicial seja omissa, o prazo será aplicado. Caberá aos advogados, em suas demandas, expressamente pleitear o afastamento de tal medida. Sabe-se que a situação do INSS, atualmente, é dramática. A aposentadoria de parte relevante de seus quadros, o aumento expressivo dos requerimentos administrativos, em conjunto com a retração da economia têm colocado em xeque a capacidade administrativa de atendimento. É natural e mesmo desejável que, em tais situações, a Administração Pública e o Poder Legislativo tentem buscar soluções inovadoras, como forma de produzir melhores resultados com menor custo. Todavia, tal desiderato deve ser alcançado sem transferir à clientela protegida o encargo que é do sistema.
De acordo com o Dicionário Houaiss, prioridade significa a condição do que é o primeiro em tempo, ordem, dignidade, ou, ainda, possibilidade legal de passar à frente dos outros; preferência, primazia. Como se nota, prioridade é a admissão de uma ordem no atendimento de demandas ou anseios em geral, como forma de prestigiar algum tipo de valor ou comando. Já a ideia de absoluta prioridade traduz possível pleonasmo, salvo a admissão de graus de preferência no atendimento de demandas, o que seria de complexa disciplina. De toda forma, na Constituição de 1988, a previsão de absoluta prioridade surge uma única vez, no caput do art. 227, ao prever ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. A previsão original da Constituição somente estabelecia a indigitada precedência para crianças e adolescentes, conforme consta do Estatuto da Criança e do Adolescente (at. 4º, lei 8.069/90). A Emenda Constitucional 65/2010 a estendeu para os jovens, os quais, nos termos da lei 12.852/2013, são as pessoas de quinze a vinte e nove anos (art. 1º, § 1º). Sendo assim, estariam os brasileiros albergados pela priorização absoluta no trato social do nascimento até os 29 anos. Todavia, a precedência incondicional não se encerra aqui. O Estatuto do Idoso, aprovado pela lei 10.741/03, em preceito normativo quase idêntico aos anteriores, externa que é obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária (art. 3º). A mesma lei estabelece o marco etário de sessenta anos como referência a idosos de qualquer gênero. Sendo assim, nossa conclusão inicial deve ser alterada: todos os brasileiros, de zero a 29 anos, e após os 60 anos de idade, terão absoluta prioridade. Adotando uma expectativa de vida média do brasileiro de 75 anos, podemos afirmar que teremos total primazia frente aos nossos compatriotas durante, aproximadamente, 60% de nossas existências terrenas. Não acredito que seja necessária formação econômica ou matemática para inferir o absurdo de tal realidade. É certo afirmar que a Constituição de 1988 deseja, na melhor medida, que todos os brasileiros sejam capazes de alcançar patamar de vida digno, mas, também, que tais demandas sejam atendidas no contexto dos recursos disponíveis, em parâmetros de seletividade, haja vista a inexorável teoria da escassez. Alguma prioridade pode e deve ser estabelecida, o que, convenhamos, já foi feito pela Assembleia Nacional Constituinte. Sem qualquer sombra de dúvida - e de forma absolutamente correta - nossos constituintes elegeram crianças e adolescentes como prioridade no gasto estatal. Seres humanos em formação não são capazes de lutar por seus direitos e interesses e, portanto, o cuidado e investimento do Estado devem a eles ser dirigido. Tal perspectiva encontra elevado consenso em quase todas as correntes de pensamento. A proteção de crianças e adolescentes deve ser a meta primeira. Tal percepção é possivelmente instintiva, tendo em vista que quase todos os animais buscam, com elevado esforço, a proteção de sua prole e seu desenvolvimento saudável. O mais racional dos animais não poderia agir de forma distinta. Ou poderia? No caso brasileiro, temos presenciado uma absoluta irracionalidade no plano normativo. Buscando atender interesses de segmentos da sociedade e, principalmente, assegurar apoio nas urnas, nossos congressistas têm aprovado alargamentos da prioridade protetiva a pessoas que não foram albergadas no plano original da Constituição de 1988. A discussão aqui desenvolvida não implica desconsiderar direitos e garantias constitucionais de jovens, adultos e idosos. Não se trata de descortinar teses que qualifiquem idosos como privilegiados ou mesquinhos beneficiários do sistema protetivo, como se fez em passado recente. Aqui busco, unicamente, expor a inviabilidade do sistema vigente. Acredito que qualquer jovem ou idoso daria preferência a seus parentes em tenra idade. Como pode o Estado tentar igualar o que a própria natureza reconhece como diferente? Crianças e adolescentes não possuem condições fisiológicas ou maturidade para demandar seus direitos e questionar a sociedade sobre o tratamento adequado. Quando são deixados sem proteção mínima, ao alcançar idade suficiente a garantir força física para lutar por sua sobrevivência, finalmente chamam a atenção da sociedade e são encarcerados ou mortos. Aposentados e pensionistas, em regra, recebem seus benefícios rigorosamente em dia e contam com suporte administrativo e judicial para resolução de suas querelas. Crianças e adolescentes contam com instituições depreciadas, recursos escassos e unidades de internação indignas. Não é difícil perceber que as previsões alargadas de absoluta prioridade estabelecidas por Emenda Constitucional e leis são inconstitucionais, por desrespeitar a ordem já estabelecida. Além do plano normativo, é intuitivo que investimentos maciços e prioritários na educação e saúde de crianças e adolescentes terão a condição de mudar o Brasil em alguns anos. Neste contexto, devemos rever nossas percepções de como a proteção social deve funcionar, o que inclui a previdência brasileira. Nossa leitura atual do sistema protetivo é voltada, em regra, a idosos e trabalhadores incapacitados, mas deixamos de lado as pessoas em formação, como se fosse problema alheio ao sistema. A prioridade de crianças e adolescentes exige revisão do plano de benefícios, incluindo serviços especializados, como creches e pré-escolas em horário integral, com alimentação, pessoal e equipamentos capazes de subsidiar a formação plena. Tal perspectiva deve ser levada em consideração em uma reforma previdenciária. O foco unicamente econômico, com redução de gastos do sistema, não atende aos anseios constitucionais. O endurecimento nas regras de benefício, desde que acompanhadas de uma revisão das reais prioridades da Constituição de 1988, é o caminho correto e necessário, como forma de mudarmos o Brasil. Para melhor.
O alcance da base-de-cálculo previdenciária, delimitado constitucionalmente pelo art. 195, I, "a" da CF/88, sempre encerrou divergências das mais variadas. Tendo em vista o aspecto material da hipótese de incidência implicitamente previsto - prestar serviços remunerados - a questão até parece simples, pois bastaria excluir da imposição fiscal qualquer verba indenizatória. Somente a retribuição pecuniária pelo trabalho seria tributada. Todavia, a segurança se dissipa em pouco tempo. Além de não restar claro, em todas as situações, o que pode ser considerado como verba propriamente salarial, é também sabido que parcelas ditas "indenizatórias", no contexto laboral e previdenciário, possuem sentido mais amplo que a clássica conceituação do direito privado, decorrente de sanção de ato ilícito ou de recomposição de patrimônio de outrem. Enfim, há uma razoável zona de penumbra na identificação das rubricas tributáveis. A lei 8.212/91, na tentativa de lançar luzes sobre a questão, apresentou descrição abstrata da base imponível e, também, excluiu determinadas parcelas, de forma expressa (art. 22 e seguintes). Tudo isso não impediu os embates entre o fisco e contribuintes. Por exemplo, não há certeza se as exclusões de incidência do art. 28, § 9º da lei 8.212/91 são taxativas ou exemplificativas, se possuem natureza de isenção ou meramente expletivas e, ainda, se devem ser interpretadas restritivamente ou não. Em um contexto no qual as empresas bonificam empregados e dirigentes por lucros e resultados, programa de ações e ganhos eventuais, a questão assume relevância brutal. No âmbito da Administração Pública, nota-se a acolhida de teses favoráveis ao fisco, com interpretações de clara índole arrecadatória, viabilizando a incidência sobre qualquer parcela paga, devida ou credita a pessoas físicas, salvo se expressamente excluída pela lei. Confundem-se, aqui, os valores decorrentes do trabalho - passiveis de tributação previdenciária - com os valores decorrentes do contrato de trabalho, que abarcam parcelas remuneratórias, indenizatórias e ressarcimentos em geral. Tal medida reflete, em algum grau, a tentativa do Estado em usar a lógica da "tipicidade fechada" em seu favor, adotando premissa no sentido da tributação de todas as parcelas, salvo as expressamente excluídas em lei. A pré-compreensão é interessante, mas contraria frontalmente o texto constitucional, o qual, mesmo após a edição da Emenda Constitucional 20/98, ainda delimita a incidência a valores decorrentes do trabalho, unicamente. A referida Emenda, elaborada no Governo FHC visando aprimorar nosso modelo previdenciário, somente buscou alargar as fontes de custeio quanto a trabalhadores sem vínculo empregatício, tendo em vista o entendimento pretérito do STF de que a incidência seria restrita a empregados, pois somente estes receberiam salário (ADIN 1.102-2/DF). Na sequência, surgiram novas teses de exclusão do salário-de-contribuição (terminologia adotada pela lei 8.212/91 para qualificar a base-de-cálculo previdenciária) das parcelas sem natureza salarial direta. Com bastante exagero, tentou-se esvaziar a incidência quase que à retribuição com liame direto e evidente ao trabalho, em posição diametralmente oposta àquela defendida pelo fisco. Aqui, além de novo erro quanto à apreciação da competência constitucionalmente estabelecida, havia o esquecimento da base tributável conectada com a base de quantificação da renda mensal de benefícios previdenciários. Quanto menor aquela, menor esta. Após algumas idas e vindas, o STJ acabou por fixar entendimento quanto a não incidência da contribuição previdenciária somente sobre a gratificação de férias (1/3 de férias), aviso prévio indenizado e os primeiros 15 dias que antecedem o auxílio-doença (acidentário ou não)1. Todavia, os problemas estavam longe de serem resolvidos. A jurisprudência consolidada sobre as rubricas citadas, na imensa maioria, somente exclui a cota patronal previdenciária, prevista no art. 22, I da lei 8.212/91. Restaram as demais incidências, como o seguro de acidentes, o Sistema S e o FGTS. Aproveitando-se das falhas de controle do fisco, muitas empresas simplesmente optaram por deixar de recolher todas as imposições sobre tais parcelas e, ainda, recuperar os valores pagos nos últimos cinco anos, em procedimento eufemisticamente rotulado de "compensação administrativa". Tal conduta apresenta certo grau de risco, pois ainda não é plenamente admitida pelo fisco e, mesmo quando acolhida, como o aviso prévio indenizado (SC COSIT 249/17), não implica admissão da exclusão das demais exações. No caso particular do FGTS, a questão é ainda mais intrincada, pois o STJ tem se manifestado pela incidência em todas as rubricas questionadas, ignorando a alteração legislativa provocada pela lei 9.711/98, ao incluir o art. 15, § 6º na lei 8.036/90, no contexto da desejada unificação das bases previdenciárias e fundiárias, proporcionando a criação de documento único de informação (GFIP) e permitindo a melhor incorporação das informações de vínculos e remunerações ao Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS). Ou seja, em contrariedade à interpretação dada pelo próprio Poder Executivo, tem decidido o STJ pela incidência do FGTS sobre as mesmas rubricas admitidas como indenizatórias no REsp 1.230.957-RS2. Neste imbróglio, surge o precedente do STF no RE 565.160, submetido ao rito da repercussão geral. O caso concreto, abordando rubricas diferentes daquelas fixadas no REsp 1.230.957-RS, acabou propiciando a seguinte tese, ainda pendente de publicação: "A contribuição social a cargo do empregador incide sobre ganhos habituais do empregado, quer anteriores ou posteriores à Emenda Constitucional 20/1998". O precedente, data venia, pouco ajuda. Além da evidente complexidade de delimitar-se o alcance da habitualidade, parece a decisão excluir parcelas que, mesmo eventuais, tenham claro conteúdo remuneratório, como um prêmio pago uma única vez pelo alcance de meta de vendas. Mesmo quando confrontada com outras decisões emanadas da Corte, e.g. pagamento de lucros e resultados, a depender da configuração do habitual, seria possível vislumbramos até uma possível mudança jurisprudencial. O que me parece é que tal julgamento foi possivelmente resultado de uma Corte assoberbada de encargos e sem o tempo necessário à reflexão de temas complexos. Talvez a habitualidade até possa, no limite, ser entendida como capaz de incluir toda e qualquer verba remuneratória, pois potencialmente habituais, desde que razoavelmente demonstrada sua conexão com a retribuição pelo trabalho prestado ou pelo tempo despendido. De toda forma, é forçoso reconhecer que o tão esperado precedente pouco ajudou na fixação de premissas interpretativas para as demandas ainda em andamento. Tal debate assumirá importância ímpar em 2018, quando, finalmente, entrará em operação o eSocial para as empresas. Tal obrigação, ao fixar a necessidade de transmissão eletrônica de todas as parcelas pagas a pessoas físicas, com ou sem natureza salarial, irá expor de forma clara as empresas que já se beneficiam de forma ampliada dos precedentes judiciais. Em suma, os debates jurídicos sobre o alcance do salário-de-contribuição ainda terão forte presença nos próximos anos. __________ 1 REsp 1.230.957-RS. 2 REsp 1.448.294/RS, entre outros.
segunda-feira, 12 de junho de 2017

Royalties do petróleo e reforma da Previdência

Ao vislumbrar o título, indagamos: qual a relação entre os temas? Seria uma tentativa de usar royalties do petróleo para pagar benefícios previdenciários? Nada disso. A intenção, somente, é demonstrar a repetição de um mesmo erro, tão comum em nosso país, que é ignorar os necessários controles no gasto estatal. Como vimos nos últimos quinze anos, o boom do preço do petróleo teve relevante impacto em países produtores, como a Venezuela, que foram capazes de manter governos descompromissados com o equilíbrio financeiro mediante receitas abundantes. No caso brasileiro, notamos alguns Estados, como o Rio de Janeiro, que, obtendo valores vultosos dos royalties do petróleo, conseguiram, ao mesmo tempo, atender demandas sociais relevantes e ignorar as boas práticas de gestão financeira. Diante de uma fonte aparentemente segura e robusta de receita, capaz de durar muitos decênios, sentiu-se o governante compelido a ignorar as poucas advertências sobre a necessidade de adequações financeiras e, como o dito popular, gastou-se como se não houvesse amanhã. Infelizmente - e previsivelmente - o boom das commodities se foi. No caso particular do Rio de Janeiro, a violenta queda do preço do barril de petróleo, ao lado da retração econômica que a acompanhou, arrasou as fontes de receita estaduais. Servidores públicos, na maioria, sequer recebem seus salários. O que deu errado? O erro, como de hábito, foi optar pelo ganho político imediato - além da corrupção - em detrimento de modelo economicamente austero de gestão. Naqueles anos, qualquer discussão governamental sobre controle de gastos públicos esbarrava em obstáculo instransponível: a avassaladora quantidade de dinheiro oriunda dos royalties. Poderiam acabar? Sim, mas até lá... E onde se encaixa a previdência social? Vivemos na proteção social brasileira situação similar. Do ponto de vista populacional, passamos, hoje, pelo chamado bônus demográfico, o que significa, resumidamente, um predomínio de adultos, em detrimento de idosos e crianças. Ou seja, a maior parte da população brasileira é hoje formada por pessoas que trabalham, pagam seus impostos, mantêm o sistema funcionando e, ainda, não o utilizam. Nos próximos quinze anos, o quadro se inverterá: teremos um crescimento acelerado de idosos, com uma retração de jovens financiando o modelo protetivo. Em tais circunstâncias, a previdência social será insolvente em pouco tempo. O bônus demográfico brasileiro é, em termos previdenciários, o que foi o boom dos royalties para alguns Estados. Apesar de algumas análises apontarem que a previdência brasileira como superavitária, a depender das premissas contábeis adotadas, o fato é que, mesmo sendo isso verdade, nosso modelo é inviável no longo prazo. Fosse a previdência brasileira equilibrada neste momento, nosso sistema deveria possuir superávit de vários trilhões de reais, de forma a se preparar para as dificuldades vindouras. Novamente, gastamos hoje como se não houvesse amanhã. E talvez não haja.