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A teoria das incapacidades 10 anos depois do EPD

quarta-feira, 21 de maio de 2025

Atualizado em 20 de maio de 2025 10:10

No dia 6 de julho, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, lei 13.146/15, completa 10 anos; estamos há uma década, portanto, podendo observar os reflexos da alteração promovida em relação à teoria das incapacidades no Ordenamento e quais foram as consequências que isso ensejou à interpretação e às premissas dos direitos relativos à pessoa natural.

A referida lei tem como fundamento a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e o seu Protocolo Facultativo, ratificado pelo Congresso Nacional, por meio do decreto Legislativo 186, de 9/7/08. Sem sombra de dúvida, entre os seus 127 arts., criou e modificou institutos essenciais, garantindo uma série de direitos fundamentais às pessoas com quaisquer formas de deficiência;

É exatamente neste ponto que reside o nó górdio. Existem leis inúteis (lei que modifica o nome da LINDB, lei 12.376, por exemplo) ou leis desarrazoadas (sem fundamento) que são de fácil percepção, o que não é o caso do EPD, na medida em que esta última, como já dito, foi necessária para estabelecer institutos vitais à cidadania. O mal nunca é mal por se apresentar dessa forma, é mal exatamente por trazer uma pitada de engodo (ardil) num universo de verdades.

É o que ocorreu com o EPD ao destruir a teoria das incapacidades, modificando os arts. 3º e 4º do CC (art. 114 do EPD), num universo de contribuições importantes para o sistema, como a tomada de decisão apoiada, por exemplo.

A teoria das incapacidades é uma teoria que tem sua base histórica no Direito Romano e foi sendo construída com o objetivo de garantir segurança para a prática de atos da vida civil, empresarial, emprestando sentido inclusivo ao Direito Público (Administrativo, Tributário, etc).

Duas são as formas dos atos a serem praticados: pelo próprio titular (presentação), quando possui a autodeterminação necessária para tal ou por meio de um terceiro (representação). Neste último caso, na hipótese de representado não ter condições de manifestar vontade, haverá a pura representação, mas caso o titular possa manifestar vontade, ele será assistido, e sua vontade preponderará sobre a do assistente. 

Havia, por conseguinte, um sistema equilibrado, no qual a pessoa sem qualquer discernimento ou quando este era extremamente reduzido, outro (titular do poder familiar, tutela, curatela comum ou especial) tomava a decisão por ele com o único intuito de protegê-lo ou defendê-lo ante inevitáveis obrigações decorrentes de vontade manifestada. O terceiro que manifestava vontade por ou com o titular de direitos normalmente gozava de confiança do incapaz, da lei ou do Poder Judiciário.

Nas mesmas palavras outrora aclaradas em conjunto com a doutora Carla Modina Ferrari, no Tratado Notarial e Registral, vol. 2, "a capacidade de fato, tal como tradicionalmente concebida, tem por pressuposto a autodeterminação [...]. Incapaz, portanto, é aquele que, muito embora desfrute de capacidade de direito, por ter personalidade, não possui o discernimento necessário para a prática dos atos da vida civil, o que impede que sua autonomia individual se desenvolva em sua integralidade. Se o instrumento elementar da realização da autonomia individual é o negócio jurídico, e se, em decorrência de fatores como a idade, a saúde, ou o desenvolvimento intelectual, determinadas pessoas não possuem idoneidade suficiente para se autodeterminar de forma plena, não há como se admitir que tais pessoas possam figurar em negócios jurídicos em pé de igualdade com as demais, pois verifica-se uma vulnerabilidade intrínseca que deve atrair a proteção do ordenamento jurídico"1.  

O sistema de incapacidades tinha por fundamento ontológico a proteção da pessoa, na medida em que quanto menos ela pudesse exprimir vontade, mais protegida ela seria. Porém, como já apontamos em outros momentos nesta coluna2, o EPD descaracterizou esse sistema e desprotegeu juridicamente pessoas que não conseguem manifestar integralmente sua vontade. 

Quando o EPD entrou em vigor, ele literalmente implodiu esse sistema harmônico e destruiu a teoria das incapacidades como se a interdição de uma pessoa fosse uma verdadeira maldição e o correto seria a lei estabelecer uma capacidade plena ficta para que pessoas, em estado de coma, por exemplo, pudessem casar ou procriar (art. 6º, EPD).

Além de estabelecer capacidade civil plena para pessoas antes absolutamente incapazes, extinguiu a incapacidade absoluta para doentes ou deficientes mentais gravíssimos (idade mental de dois anos, por exemplo), transformando todos em relativamente incapazes, como se esse fato pudesse melhorar a vida das pessoas.

Ao contrário, o sistema anterior das incapacidades protegia o doente ou deficiente mental grave a tal ponto que era impossível seu direito prescrever. Numa situação prática, pode-se observar que o sistema permite, por exemplo, que corra o prazo de usucapião de uma pessoa que não tem o discernimento para compreender os efeitos prejudiciais que isso lhe pode causar. Quando antes considerada incapaz, ela jamais poderia ser atingida pela usucapião e perder seu bem (art. 198, I, CC).

Acreditamos, há 10 anos atrás, quando das primeiras leituras, que as bizarrices acima narradas jamais entrariam em vigor (a lei estabelecia um prazo de 6 meses de vacatio legis). Contudo, não só entraram em vigor com muitos "entusiastas" à época, como remanescem no sistema agora por 10 anos com uma letargia por parte da comunidade jurídica.

A autodeterminação, chamada na teologia cristã de livre arbítrio, é a pedra angular na qual está centrada, não apenas a capacidade (aptidão para praticar atos da vida jurídica), mas o poder de intercessão divina, para fins de salvação, tema impertinente neste artigo, mas necessário para chamar a atenção para a gravidade da mudança legislativa no campo ideológico.

Retomando o texto, não há mais o absolutamente incapaz afora o menor de 16 anos que, quando adolescente, tem muito mais consciência na tomada de decisão de que o deficiente mental gravíssimo, que precisa ser protegido com amor e cuidado pelo Direito.

Mas, para além das críticas que já fizemos às alterações do sistema das incapacidades, o que se percebe é que essa inversão de medidas protetivas abriu portas para muitas outras no sistema jurídico.

Vários fenômenos se desdobraram nesta última década. Observa-se, por exemplo, as discussões sobre os animais. Não há qualquer problema em modificar a natureza jurídica e o regime jurídico dos animais de estimação, do atual quadro de semoventes para seres sencientes (capacidade se sentir e perceber através de sentidos), desde que não alcancem a condição de pessoa ou que lhes seja atribuída capacidade material e processual.

Nos últimos anos, foi possível observar a criação de cenários de discussões e, até mesmo, reconhecimento pelo Judiciário de casos de guarda compartilhada de animais ou animais integrando o polo ativo de ações. Assim, os animais estão sendo equiparados às pessoas dentro do nosso sistema, perdendo sua tutela como bens e também fazendo com que as próprias pessoas percam a sua proteção.

Os animais são seres vivos que merecem sim proteção jurídica, assistência e medidas de coibição a maus tratos, mas não se pode inverter a lógica do sistema jurídico e entender que eles manifestam vontade ou que tem as mesmas necessidades de uma pessoa, são campos diversos (mas que, repetindo, não descaracterizam a necessidade de proteção própria).

Aplicar-se os efeitos da guarda-compartilhada aos animais abre margem para a aplicação de outros institutos de direito de família correlacionados, tal como o direito a alimentos. Uma vez que se reconheça o direito a alimentos a um animal, o filho do alimentante vai ter o valor de sua pensão reduzido, tendo em vista que o responsável pela obrigação já estará onerado com outra parcela alimentar.

Em outro cenário, ao se permitir que um animal figure no polo de uma ação, atribuindo-lhe capacidade processual, entende-se que ele também terá as responsabilidades decorrentes da demanda. Se ele "perder" a demanda, como será a execução, a cobrança de custas processuais e honorários? Ficará a outra parte prejudicada? 

Outro fenômeno que merece menção é o de seres humanos que se identificam como animais, ou seja, Therians, uma comunidade onde pessoas se reconhecem como não-humanos, normalmente ligados a uma espécie de animal específico. Essa identificação pode ser espiritual, psicológica ou neurobiológica. Os Therians dizem querer se identificar e se conectar com a natureza e por conseguinte adotam comportamentos e habitats relacionados ao animal com o qual se identificam.

Por fim, precisamos mencionar os pais e mães e demais familiares dos famosos "bebês reborn". São bonecos hiper-realistas criados para aparentar recém-nascidos. São confeccionados com vinil ou silicone, passando por detalhado processo de pintura, aplicação de cabelo fio a fio e outros como textura de pele humana. Já estamos enfrentando discussões sobre a possibilidade de registro de nascimento ou escritura pública envolvendo a relação da pessoa com o boneco. É absurdo sob o ponto de vista jurídico cogitar essas situações, na medida em que se trata de um objeto inanimado e que não exprime qualquer vontade.

Não é desarrazoado imaginar que em menos de outra década, quando comemorarmos os 20 anos do EPD, já existirão seres robóticos, com IA sofisticada que estarão casando ou vivendo em união estável com seres humanos e que o direito precisará lidar com essa realidade.

Por tudo o que foi abordado neste pequeno texto, cremos que começamos a entender o porquê não há mais incapacidade absoluta afora a questão etária e um dos motivos talvez tenha sido a premonição do legislador antevendo a falta de racionalidade generalizada, disrupção com o que até então era um modo de vida adequado e um senso comum e que o estado de coisas atual levaria a uma interdição coletiva.

O grande questionamento que fazemos é até que ponto pode-se permitir distorções do sistema para inverter premissas e valores consolidados e, com isso, acabar mais desprotegendo as pessoas do que protegendo? A atribuição de algumas tutelas gera consequências jurídicas prejudiciais e devem ser sempre muito bem planejadas e pensadas, sob pena de lesarmos as pessoas.  

A porta aberta deixada pelo EPD tem reflexos muito além à teoria das incapacidades e não é possível, ainda, vislumbrar se existirão limites às mudanças de premissas do sistema e criação de outras figuras a ele estranhas.

Aguardemos mais 10 anos para outros fenômenos que certamente não nos surpreenderão. Voltaremos com novos comentários; sigam conosco!

Sejam felizes!

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1 KÜMPEL, Vitor Frederico; FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Regsitral. São Paulo, YK: 2022. Vol. 2. p. 73-74.

2 Disponível aqui.

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