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A publicidade registral como epicentro da aquisição da propriedade: Análise da sobreposição de aquisições originárias

terça-feira, 10 de junho de 2025

Atualizado em 9 de junho de 2025 09:59

O presente artigo tem por finalidade examinar a qualificação registral diante da sucessividade de títulos de aquisições originárias no tempo via usucapião e a expropriação judicial1. O registro, por ser declaratório nas aludidas situações, pode nem sempre refletir a realidade extrarregistral. Caso ocorra o fenômeno da usucapião contratabular, sem a titulação do usucapiente, e, simultaneamente, por outro titular a arrematação do mesmo imóvel em hasta pública, com a extração da referida carta, haverá problema paradoxal com dois titulares originários sobre o mesmo bem2.

O sistema de transmissão imobiliária no Brasil é o do título e modo híbrido, informado pelos princípios da causalidade, unidade e tradição (CC, art. 1.227 e 1.245)3. As aquisições derivadas dependem de títulos hábeis para transmitir a propriedade, o que só ocorre com o registro no fólio real4. O princípio da continuidade ou trato sucessivo ou consecutivo determina que exista a correspondência entre o titular do direito que outorga o título e o titular tabular, bem como a coincidência do objeto, para que se execute a qualificação positiva e o registro na referida matrícula (LRP, art. 195 e 237).

A regra é o efeito constitutivo do ato registral, contudo, em diversas hipóteses a lei abdica do registro, e tem-se a eficácia declaratória, uma vez que o referido título ingresse na matrícula. Assim, a propriedade ou o direito real sobre o bem de raiz sucede no título - de modo extratabular - como na usucapião e na arrematação judicial e extrajudicial5.

Contudo, a disponibilidade quantitativa e qualitativa do imóvel depende do registro do título anterior ou da abertura de matrícula, visto que o sistema de transmissão é causal e informado pelo princípio da continuidade (LRP, art. 195 e 237), conforme já enunciado. Assim, a alienação ou a oneração do direito real só será concretizada pelo registro, o qual apenas ocorrerá caso conste do título a manifestação do seu titular tabular.

A aquisição originária da propriedade caracteriza-se pela inexistência de vínculo jurídico volitivo entre o titular atual e anterior. O princípio da continuidade não tem incidência diante de títulos originários, ou seja, aqueles que independam de ato volitivo do titular anterior para o atual6. O adquirente não recebe a propriedade por meio de transmissão volitiva, mas inaugura situação jurídica nova, livre de encargos pretéritos. Os efeitos mais relevantes da independência da causa são: (i) a extinção de ônus anteriores desvinculativo, (ii) a dispensa de continuidade registral e (iii) a criação de nova situação dominial.

A usucapião é o modo originário de aquisição da propriedade mais festejado baseado na posse prolongada, contínua, com animus domini, e requisitos temporais e legais previstos no CC, nos arts. 1.238 a 1.244. É o processo declaratório, judicial ou extrajudicial, que reconhece situação jurídica preexistente7.

A arrematação, por sua vez, decorre de ato judicial vinculado à execução de dívida. Por meio de leilão, transfere-se a propriedade a terceiro adjudicatário. A sua formalização exige a confecção de um auto e consequente expedição de carta de arrematação, título hábil para registro (CPC, art. 903), sendo oponível a terceiros após o registro8. Logo, a alienação judicial se aperfeiçoa na assinatura da carta pelo juiz, prescindindo do registro para a transmissão imobiliária9.

A usucapião e a arrematação judicial, embora compartilhem a natureza de aquisições originárias da propriedade, distinguem-se profundamente quanto à sua natureza jurídica, fundamentos, procedimento e repercussão registral.

A usucapião é forma de aquisição fundada no exercício da posse prolongada, contínua, com animus domini, desde que preenchidos os requisitos legais de tempo e forma previstos no CC (arts. 1.238 a 1.244). Trata-se de um modo de aquisição por fato jurídico, cuja consolidação independe da vontade do proprietário anterior, dispensando sua anuência ou participação. Sua finalidade é reconhecer uma situação fática consolidada, transformando a posse qualificada em domínio. O procedimento pode ser judicial, mediante sentença declaratória, ou extrajudicial, por ata lavrada em cartório, conforme disciplinado pelo CPC (art. 1.071) e pela lei 6.015/1973, com as alterações da lei 13.105/15, seguida de rígido procedimento registral.

Por sua vez, a arrematação judicial é um ato jurídico resultante de processo executivo. Trata-se de alienação forçada de bem penhorado em sede de execução, geralmente por dívida. Sua origem está vinculada ao inadimplemento do devedor, e seu fundamento legal encontra-se nos arts. 879 a 903 do CPC. A arrematação, uma vez homologada judicialmente, dá origem à carta de arrematação, título formal que permite o registro da aquisição da propriedade em nome do arrematante.

Quanto ao procedimento, a usucapião demanda prova da posse qualificada, seja por documentos, testemunhas ou planta e memorial descritivo do imóvel. Já a arrematação segue rito processual específico de expropriação, mediante edital e pregão, conduzido por leiloeiro oficial, após a constrição judicial do bem.

No plano registral, ambas têm impacto relevante, mas com implicações distintas. A usucapião, por constituir aquisição originária, prescinde da continuidade registral; não é necessário que o possuidor figure em cadeia dominial formal. A propriedade nasce do fato (posse qualificada), não da transmissão. Já a arrematação, embora também seja aquisição originária, exige que o imóvel esteja matriculado em nome do executado, pois a carta de arrematação só será registrada se houver correlação entre o bem penhorado e o titular constante no fólio real. Ainda que a aquisição seja desvinculada do consentimento do antigo proprietário, a continuidade registral deve ser observada para fins de regularidade formal do registro10.

Ambas as formas de aquisição têm, como efeito relevante, a purgação de ônus anteriores. O adquirente, seja por usucapião ou por arrematação, recebe o bem livre de gravames anteriores, exceto se houver previsão expressa em contrário ou se o ônus estiver registrado com eficácia contra terceiros e subsistir por força legal. Contudo, esse efeito depende da consolidação jurídica da titularidade dentro do fólio real, conferindo-lhe publicidade e oponibilidade erga omnes.

As distinções são fundamentais para compreender os conflitos que emergem na prática registral, especialmente quando se apresenta ao Ofício de Registro de Imóveis título de arrematação sobre imóvel cuja posse já enseja ou ensejou aquisição por usucapião, ainda não formalizada no fólio real.

A sobreposição de títulos com origem em aquisições originárias pode gerar conflito na cadeia dominial. Imagine que alguém exerça a posse mansa, pacífica e com animus domini sobre um imóvel por tempo suficiente à usucapião. Contudo, o imóvel continua registrado em nome de um terceiro (ex-proprietário), que é posteriormente executado judicialmente por dívidas. O bem vai a leilão e é arrematado por terceiro. A carta de arrematação é então levada ao cartório de registro de imóveis para ser registrada.

Ocorre então um choque entre a realidade e a formalidade registral, na medida em que a propriedade já foi usucapida por preenchimento dos requisitos legais, mas tal aquisição não consta na matrícula, e há a execução judicial em face do titular matricial. 

A qualificação registral nas aquisições originárias impõe desafios técnicos relevantes. Quando há sobreposição temporal entre a usucapião e a arrematação judicial, o registrador deve atentar para a realidade jurídica fora do fólio real. Embora ambas dispensem, em tese, o encadeamento com registros anteriores, a coexistência dos dois títulos pode impedir o registro de um deles, especialmente se a situação usucapiente já estiver consolidada. 

Nesse cenário, são possíveis as seguintes hipóteses: i) a usucapião já tenha sido declarada (judicial ou extrajudicialmente), mas ainda não tenha sido registrada; ii) há ação judicial de usucapião ou procedimento extrajudicial; ou iii) a usucapião já se concretizou pelo preenchimento dos requisitos legais, mas não há qualquer ação ou procedimento em curso. 

Diante das aludidas situações, o princípio da continuidade registral exige que, para que se registre a carta de arrematação, o imóvel esteja devidamente matriculado em nome do executado. Mas, se o usucapiente já tiver adquirido originariamente o domínio (inclusive com sentença transitada em julgado), mesmo que ainda não registrada, essa nova realidade jurídica não obstará o registro da arrematação por não estar inscrita no fólio real.

Com efeito, o registrador enfrentará um conflito entre a aparência jurídica (registro anterior em nome do executado) e a realidade jurídica consolidada (aquisição originária via usucapião, mesmo que ainda não registrada). A realidade e a aparência é ex vi legis um conflito axiológico: de um lado, o verdadeiro titular reclama que se reestabeleça a realidade jurídica e, de outro, o arrematante deseja a manutenção de sua situação, baseada na aparência11.

O sistema registral brasileiro tem como elemento central a publicidade, ou seja, ela é o epicentro que baseia a aquisição da propriedade. Dessa forma, seguindo-se a lógica do sistema e os princípios registrais, entende-se que o mais adequado é que prevaleça o direito daquele titular que foi diligente e adotou as medidas necessárias para registrar seu direito ou minimamente publicizar a sua expectativa de um título registrável12.

A lei deve defender, portanto, o titular mais diligente. O usucapiente que já tenha um título registrável deve efetivamente promover seu registro e, se estiver com uma ação ou procedimento em curso, o ideal é criar um mecanismo de averbação indicativa desse processo na matrícula até o seu deslinde, para assegurar que outros títulos de aquisição originária não sejam registrados antes - poderia ser uma averbação tal como a que ocorre de uma citação em ação real ou pessoal reipersecutória. 

Por outro lado, se o usucapiente não tomar as ações jurídicas necessárias para consolidar seu título de usucapião e a consequente publicização do direito de propriedade ou da expectativa do título, o sistema deveria proteger o arrematante diligente, que leva ao registro o seu título originário de arrematação. Nesse caso, apesar de os requisitos da usucapião estarem cumpridos, ele se mantém inerte e, segundo o princípio da publicidade, o sistema deveria proteger o terceiro de boa-fé que toma como base a matrícula do imóvel. A lei não pode punir o cidadão diligente e premiar aquele que foi desidioso. 

Propõe-se, assim, lege ferenda a alteração do parágrafo único do art. 1.247 do CC, para conferir preferência a realidade registral sobre a realidade jurídica extratabular. A aplicação da teoria da aparência seria o prêmio ao cidadão diligente, que resolveu a dívida do executado no digno processo judicial, e registrou a carta de arrematação para oponibilidade erga omnes.

Sejam felizes!

____________________

1 É conhecida a divergência entre o posicionamento do STJ (aquisição originária) e do CSMSP (aquisição derivada).

2 A questão foi posta no 1º Exame Nacional dos Cartórios, no 1º semestre de 2025.

3 Pressupõe-se do leitor maior conhecimento de V.F. KÜMPEL, Sistemas de Transmissão Imobiliária sob a Ótica do Registro. 2020, Livre Docência. em Direito Notarial e Registral, Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, 2020, p. 27 e seguintes.

4 Cf. AFRÂNIO DE CARVALHO (in Registro de imóveis, 4ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1997, p. 285) "Ao exigir que cada inscrição encontre sua procedência em outra anterior, que assegure a legitimidade da transmissão ou da oneração do direito, acaba por transformá-la no elo de uma corrente ininterrupta de assentos, cada um dos quais se liga ao seu antecedente, como o seu subsequente e ele se ligará posteriormente. Graças a isso o Registro de Imóveis inspira confiança ao público". Derivação existe quando há vontade nos dois polos, pois, se não existir, ocorre a ruptura do encadeamento e a originalidade do título aquisitivo.

5 O princípio da concentração dos atos na matrícula contém exceção expressa na referida da Lei nº 13.097, de 19 de janeiro de 2015, art. 54, § 1º, nas aquisições originárias, como a usucapião e a arrematação. Independentemente de constarem do registro, as referidas formas de aquisição da propriedade produzem efeitos de transmissão do direito real. A referida classificação tentou consertar pelas modificações feitas Lei nº 14.382/2022, visto que visou estabelecer o que é originária ou derivada.

6 No direito romano, a iusta causa traditionis era requisito para a transferência válida da propriedade de uma coisa. O efetivo conteúdo dessa iusta causa opõe grandes jurisconsultos do Digesto. Com efeito, Juliano sustenta que o consentimento das partes em relação à entrega da coisa é suficiente para transferir a propriedade, mesmo que haja divergência quanto ao motivo dessa mesma entrega. Ulpiano, por sua vez, ao discutir a mesma fattispecie, diverge da opinião de Juliano, por entender que, não havendo consentimento acerca da causa (no caso, o acordo acerca de se tratar de uma doação ou de um empréstimo de dinheiro), não pode haver transferência da propriedade. Ver. V.F. KUMPEL, Sistema de transmissão...op. cit., p. 64-66. 

7 Cf. F.K. MADY - S.L. ROCHA, Usucapião extrajudicial, in Revista Magister de Direito Ambiental e Urbanístico, v. 16, n. 91, p. 5-29, ago./set., 2020, p. 6-8.

8 Existem divergências doutrinárias e jurisprudenciais sobre o tema da arrematação ser modo de aquisição originário ou derivado. Ver. Josué Modesto Passos, "diz-se originária a aquisição que, em seu suporte fático, é independente da existência de um outro direito; derivada, a que pressupõe, em seu suporte fático, a existência do direito por adquirir. A inexistência de relação entre titulares, a distinção entre o conteúdo do direito anterior e o do direito adquirido originariamente, a extinção de restrições e limitações, tudo isso pode se passar, mas nada disso é da essência da aquisição originária" (J.M.PASSOS, A arrematação no registro de imóveis: continuidade do registro e natureza da aquisição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 111-112).Na apelação cível nº 1007812-57.2021.8.26.0223, São Paulo, 24 de fevereiro de 2022, o relator e Corregedor Geral, Des. Fernando Antonio Torres Garcia, (Corregedor Geral da Justiça e Relator) VOTO Nº 38.537 , nos seguintes termos: Ementa: "Registro de Imóveis - Carta de arrematação - Título judicial que se sujeita à qualificação registral - Modo derivado de aquisição da propriedade - Desqualificação por inobservância ao princípio da continuidade - Dúvida julgada procedente - Precedentes do Conselho Superior da Magistratura - Nega-se provimento à apelação".

9 Cf. V.F. KÜMPEL - C.M. FERRARI, Tratado de direito notarial e registral - vol. 5, t. 1, São Paulo, YK, 2020, p. 313.

10 No Tratado Notarial e Registral vol. 5, já se defendeu uma classificação diferenciada, no seguinte sentido: 

"i. Propriedade originária própria, ou típica, pura: trata-se do bem que nunca teve um titular. Nessa forma de aquisição, não há qualquer "relação causal" da propriedade com a sua situação jurídica anterior6360, visto que o imóvel nunca esteve sob o domínio de ninguém. A propriedade originária típica pura era comum nos tempos mais antigos, quando boa parte dos territórios se encontravam desocupada e fora do domínio de particulares ou dos Estados (ainda em desenvolvimento)6361. Atualmente, ante inexistirem imóveis sem titularidade, essa forma de aquisição ocorre apenas em relação às acessões naturais. Nelas, o acréscimo do terreno surge com o passar do tempo e, por isso, sem um titular anterior pré-estabelecido juridicamente. Quando a aquisição da propriedade decorrer de uma acessão, o oficial do Registro de Imóveis poderá deixar de observar os princípios da continuidade e da disponibilidade. Tratando-se de um terreno novo, formado ao longo do tempo, não há como existir um elo entre titulares, visto que a propriedade nunca esteve sob domínio anterior, tampouco disponibilidade ou descrição pré existente do bem, que é novo. Dessa forma, tais princípios poderão ser ponderados no momento da qualificação registral, não havendo necessidade de sua observância rígida como ocorre na análise dos demais títulos.

ii. propriedade originária própria, ou típica, impura: no ordenamento jurídico brasileiro, é a usucapião. Como se sabe, a usucapião, por ser forma de aquisição orginiária da propriedade, dispensa a observância da continuidade 

iii. propriedade originária imprópria, ou atípica: é a arrematação e a adjudicação. A qualificação registral da propriedade originária atípica é um pouco mais rígida do que a da típica, visto que a arrematação e a adjudicação não tem o condão de extinguir todos os direitos reais sobre o bem. Além disso, a ponderação dos princípios ocorre a depender do caso concreto, conforme se verá nos itens seguintes. A arrematação ou adjudicação, por si, não resolve certos ônus reais (direitos reais de garantia, uso, gozo e fruição), especialmente porque seus titulares precisam ser certificados. Eventuais direitos reais, como servidão, usufruto, uso, habitação, não são extintos com a aquisição judicial. Dessa forma, o registro das cartas deverá ser realizado com as ressalvas da disponibilidade do bem, preservando os ônus não extintos".

V. F. KÜMPEL - C. M. FERRARI, Tratado Notarial e Registral, vol. 5, tomo II, São Paulo, YK, 2020, pp. 2038-2039.

11 Cf. V. F. KÜMPEL, Teoria da Aparência: no código civil de 2002, 2ª ed., São Paulo, YK, 2023, p. 37.

12 A publicidade é um desencadeamento lógico e ontológico da boa-fé. A Lei nº 13.097/2015 deixa isso evidenciado ao aduzir a boa-fé tanto daquele que é titular de direito e tem isso registrado na tábula registral assim como do terceiro que consulta a matrícula e obra em consonância com o que nela consta.