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Registralhas

Análises do Direito Notarial e Registral.

Vitor Frederico Kümpel
A união estável é a convivência pública, contínua e duradoura entre duas pessoas, tendo, por fim, a constituição de uma família (informal). É uma situação de fato que gera efeitos jurídicos, a qual a Constituição Federal classifica como entidade familiar. A união estável é marcada pela informalidade na sua formação, além de manter-se e extinguir-se livremente - no mundo do ser, pois situa-se no plano dos fatos com efeitos jurídicos. No mesmo sentido ensina Euclides de Oliveira: "A união estável é tipicamente livre na sua formação. Independe de qualquer formalidade, bastando o fato em si, de optarem, homem e mulher, por estabelecer vida em comum. Bem o diz ANTONIO CARLOS MATHIAS COLTRO, assinalando que a união de fato se instaura 'a partir do instante em que resolvem seus integrantes iniciar a convivência como se fossem casados, renovando dia a dia tal conduta, e recheando-a de afinidade e afeição, com vistas à manutenção da intensidade. Na união estável basta o mútuo consentimento dos conviventes, que se presume do seu comportamento convergente e da contínua renovação pela permanência" (g.n)1 Seu regime jurídico disciplina-se mormente no arts. 226, §3º, da CF e 1.723 a 1.727 CC, afora as Leis Extravagantes anteriores. O comando constitucional determina ainda a facilitação da conversão da união estável em casamento; a ser concretizada através do procedimento de habilitação de casamento perante o Registro Civil de Pessoas Naturais do domicílio dos conviventes. Aliás, independentemente de sua celebração por juiz de paz, consuma-se com o registro no Livro B, após a publicação de editais na serventia extrajudicial e em jornal de circulação local ou eletrônico (art. 1.726, CC).2 Todavia, não é obrigatória a sua conversão, embora igualmente seja possível dar publicidade à relação de fato, através de sua formalização via escritura pública lavrada em Tabelionato de Notas do domicílio dos conviventes e registrada no Livro-E. Para disciplinar a questão, editou-se o Provimento nº 37/2004 da Corregedoria Nacional de Justiça, em que consta o ato de registro da união estável no Registro Civil das Pessoas Naturais como faculdade aos companheiros. Justifica-se tal liberdade das partes por se tratar de uma relação que independe de outra publicidade para sua existência, "in verbis": "Art. 1º. É facultativo o registro da união estável prevista nos artigos 1.723 a 1.727 do Código Civil, mantida entre o homem e a mulher, ou entre duas pessoas do mesmo sexo". Em consequência, a eficácia de sua constituição e dissolução, nos termos art. 5º do mesmo Provimento, via registro da união estável no Livro "E" do Registro Civil, produzirá efeitos patrimoniais entre os companheiros, sem prejudicar terceiros que não tiverem participado da escritura pública, como se aduz: "Art. 5º. O registro de união estável decorrente de escritura pública de reconhecimento ou extinção produzirá efeitos patrimoniais entre os companheiros, não prejudicando terceiros que não tiverem participado da escritura pública" A questão que se põe no presente artigo é a seguinte: a dissolução informal da união estável, para eventual casamento de um dos companheiros com um terceiro, pressupõe alguma formalidade legal? Ou seja, constituição formal leva à ruptura formal? Pelas características da relação entre os conviventes - informalidade e consensualismo - a resposta parece que não. Ademais, nos impedimentos matrimoniais não se vislumbra restrição nesse sentido, a despeito de corrente jurisprudencial que traça entendimento divergente. Todavia, as normas excepcionais de direito devem ser interpretadas restritivamente. Inclusive, se é possível a constituição de união estável em relação à pessoa casada separada de fato (art. 1.723, § 1 º, CC), não seria lógico restringir-se com proeminência à situação de fato, diante da liberdade conferida à união formal (casamento). Esta tem natureza jurídica institucional e contratual - regime de bens. Confere ao relacionamento publicidade ampla, fidelidade e domicílio conjugal. Para se dissolver, pressupõe a lei civil a separação ou o divórcio, morte, declaração de nulidade ou anulação por decisão judicial, neste caso.3 Neste caso, para o casamento do nubente - que convivia em união estável com terceiro - deve se exigir, por prudência e segurança jurídica, somente a colheita de sua declaração de que se dissolveu anterior união estável, no próprio procedimento de habilitação para o casamento. Ao oficial de registro civil caberá, por conseguinte, anotação na Central de Registro Civil (CRC) com o fim de se extinguir a publicidade do registro no Livro E. Por não produzir efeitos perante terceiros, o presente assento não se condiciona a averbação de dissolução, devido à inexistência de pressuposto jurídico à dissolução da união estável. Finda a consensualidade entre as pessoas, termina a relação de fato. Não se pode olvidar que a Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso II, é clara: "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". Assim sendo, se não há regra impediente, jamais se impede; salvo em regimes totalitários, onde inexiste Estado de Direito. A Associação dos Registradores Civis de São Paulo (ARPEN-SP) publicou enunciado orientativo nesse sentido, a saber: "Enunciado 20: Para a habilitação para o casamento não é necessário previamente cancelar ou dissolver eventual registro de união estável com outra pessoa". Nas palavras de Jean Jacques Rousseau: "Junto do estado civil vem a liberdade moral, a única que torna o homem verdadeiramente dono de si, já que obedecer apenas aos desejos é escravidão, e a obediência à lei é a liberdade". Entretanto, apesar dessas características, a união estável convive no ordenamento jurídico com os direitos reais, os quais são marcados pela observação de forma específica para que certos atos e negócios jurídicos produzam plenamente seus efeitos jurídicos. Em especial, a constituição de direitos reais sobre imóveis, oponíveis erga omnes, por força da publicidade de seu registro. Em regra, aplica-se às relações econômicas da união estável o regime da comunhão parcial de bens, salvo se existir instrumento público ou particular em sentido diverso. Através da lavratura de escritura pública declaratória de sua existência, permite-se aos companheiros optarem por qualquer regime previsto no Código Civil, ou mesclá-lo de forma livre.4 Pois bem, o registro de aquisição de bem imóvel gera efeitos jurídicos de direito real. Por isso, tem por finalidade a publicidade e a garantia de segurança jurídica estática (posição jurídica de titular de direito real com eficácia erga omnes) e dinâmica (do tráfego negocial do bem). Para atingir a esse desiderato, deve respeitar a certos princípios, como o da especialidade subjetiva. Desse modo, seu titular não será classificado apenas como companheiro ou "em união estável", em virtude da necessidade de se preencher os requisitos da especialidade subjetiva. Caso conste seu estado civil de casado, não poderá de forma concomitante receber tal qualificação subjetiva, já que o Registro de Imóveis não permite a simultaneidade de inscrições do direito de propriedade que sejam conflitantes. De modo que, ou o titular de direito é solteiro, viúvo, separado ou divorciado e mantém união estável - neste caso, sem a existência de conflitos de direito - ou seu estado civil é de casado. Frente a esse estado civil, em específico, é impossível a permanência de qualificação concomitante da existência de companheiro, sob pena de se gerar prejuízo a terceiro, salvo se reconhecida por decisão judicial. Somente sob essa perspectiva, o oficial de registro deve exigir a certidão do registro no Livro E ou da sentença judicial que assim o declare, porquanto esse ato registral é facultativo, pelo art. 1º do Provimento n. 37/2004, todavia, proibido se constar o estado civil de casado (art. 8º do Prov. 37/2004 da Corregedoria Nacional de Justiça). Ressalta-se que união estável não é estado civil, mas situação de fato que produz efeitos jurídicos, sendo esse o entendimento do atual Corregedor Geral da Justiça. Para sua inscrição no fólio real, em regra, é inexigível seu registro no Livro E do RCPN do atual ou último domicílio dos companheiros, ou ainda, seu registro no Livro n. 3 - Registro Auxiliar do Registro de Imóveis - para que conste essa condição na aquisição de direito real. Porém, é requisito para o ingresso de aquisição de direito real dentro do fólio a declaração conjunta dos companheiros, ou sentença judicial transitada em julgado, na medida que a declaração unilateral de vontade obriga somente quem a realizou, sem criar ou prejudicar direito de terceiro que dela não tenha participado. Da aplicação da separação obrigatória de bens à união estável e seus efeitos O regime patrimonial de bens que deve regular a partilha de bens dos conviventes em união estável, tanto em decorrência do término, em vida, do relacionamento, quanto em razão do óbito do companheiro, deve observar o ordenamento jurídico vigente ao tempo da aquisição de cada bem a partilhar, e não o vigorante no momento do partilhamento, como forma a ser preservado o ato jurídico perfeito que então se aperfeiçoara (Enunciado 346, IV Jornada de Direito Civil). Mesmo diante de contrato escrito em que se elege outro regime de bens, ou então do silêncio eloquente dos companheiros, é aplicável o regime de separação obrigatória de bens à união estável entre septuagenários, por ser imperativo, cogente, conforme entendimento do STJ. Com efeito, produz efeitos, inclusive, sucessórios, sendo inexistente direito hereditário entre os cônjuges aos bens particulares, quando houver concorrência com descendentes (art. 1.829, I, CC). Ademais, é desnecessário o consentimento do companheiro para alienação ou doação de bens particulares, e ausente a comunhão de bens, salvo na hipótese de aquestos, desde que provada a participação em sua aquisição. A determinação do regime jurídico aplicável à partilha de bens, seja pela dissolução da união estável ou óbito de um companheiro, será aquela vigente no momento da aquisição do bem. A finalidade de tal exegese é a proteção da segurança jurídica dos atos jurídicos perfeitos e dos interesses de terceiros de boa-fé. Outrossim, para produção de publicidade, o contrato de convivência ou a decisão declaratória da existência de união estável deve ser averbado no Registro de Imóveis em que registrado os bens comuns, ou pela demonstração de má-fé pelo adquirente. Da dissolução da união estável sob o regime da separação obrigatória É sabido que o regime da separação obrigatória de bens é aplicável às uniões estáveis. Assim sendo, diante da idade de 60 anos do homem ou 50 anos da mulher, antes da vigência do novo Código Civil, aplicar-se-á aos companheiros esse regime, de acordo com art. 258. Neste contexto, a partilha de bens no regime de separação obrigatória, conforme previsto na Súmula 377 do STF, dependerá da comprovação do esforço comum na aquisição do bem a título oneroso pelo companheiro. Inclusive, a contribuição pode ser material ou imaterial. "nos moldes do art. 258, II, do Código Civil de 1916, vigente à época dos fatos (matéria atualmente regida pelo art. 1.641, II, do Código Civil de 2002), à união estável de sexagenário, se homem, ou cinquentenária, se mulher, impõe-se o regime da separação obrigatória de bens. Nessa hipótese, apenas os bens adquiridos onerosamente na constância da união estável, e desde que comprovado o esforço comum na sua aquisição, devem ser objeto de partilha" (EREsp 1171820/PR, Rel. Ministro Raul Araújo, Segunda Seção, julgado em 26/08/2015, DJe 21/09/2015).  Do regime da sucessão do companheiro e do reserva da quarta parte Em decorrência da decisão do STF que julgou inconstitucional o art. 1.790 do CC, a sucessão do companheiro será feita da maneira equivalente à do cônjuge. Assim, aplica-se o regime jurídico do art. 1.829 do CC, quando o companheiro concorrer com herdeiros do de cujus, sejam exclusivos ou comuns. Por consequência, o companheiro é herdeiro necessário, concorre com descendentes aos bens particulares do de cujus, e lhe é reservada a quota de ¼ do patrimônio se concorre com descendentes comuns. Em relação a essa última hipótese, se houver concorrência híbrida, ou seja, descendentes exclusivos, será inaplicável essa reserva.5 __________ 1 (OLIVEIRA, Euclides de, "União Estável: do concubinato ao casamento: antes e depois do Código Civil", 6º ed., São Paulo: Editora Método, 2003, p. 122 -124). 2 Art. 1.726. CC: "A união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil". 3 Art. 1.571, CC. "A sociedade conjugal termina: I - pela morte de um dos cônjuges; II - pela nulidade ou anulação do casamento; III - pela separação judicial; IV - pelo divórcio. § 1º O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio, aplicando-se a presunção estabelecida neste Código quanto ao ausente. § 2º Dissolvido o casamento pelo divórcio direto ou por conversão, o cônjuge poderá manter o nome de casado; salvo, no segundo caso, dispondo em contrário a sentença de separação judicial". 4 "Art. 1.725 do CC. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens". 5 RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. SUCESSÃO. INVENTÁRIO. UNIÃO ESTÁVEL. CONCORRÊNCIA HÍBRIDA. FILHOS COMUNS E EXCLUSIVOS. ART. 1790, INCISOS I E II, DO CC/2002. INCONSTITUCIONALIDADE DECLARADA PELO STF. APLICAÇÃO AO CÔNJUGE OU CONVIVENTE SUPÉRSTITE DO ART. 1829, INCISO I, DO CC/2002. DOAÇÃO. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. INEXISTÊNCIA DE RECONHECIMENTO DA VIOLAÇÃO DA METADE DISPONÍVEL. SÚMULAS 282/STF E 7/STJ. (REsp 1.617.650-RS, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 11/06/2019, DJe 01/07/2019).  
Introdução Locação de coisas é contrato pelo qual uma das partes se obriga a ceder a outra, por tempo determinado ou não, o uso e gozo de coisa não fungível, mediante certa remuneração (art. 565, CC). A locação é regulada pela lei 8.245/1991, com as alterações introduzidas pela lei 12.112/2009. A locação caracteriza-se como uma relação bilateral, sinalagmática, onerosa, consensual, comutativa e não solene. Outrossim, por ser direito pessoal, em regra, vincula as partes à prestação de dar coisa em troca de dar quantia pecuniária, em períodos certos ou integralmente, no início e no término da relação contratual (natureza de trato sucessivo ou de execução continuada). Ademais, pode ser ajustado por qualquer prazo, dependendo de vênia conjugal, se igual ou superior a dez anos, sob pena de o consorte não estar obrigado a observar o prazo excedente1. Tratando-se de locação de imóvel urbano, o contrato de locação poderá ser averbado na matrícula do bem de raiz, para fins de exercício do direito de preferência (art. 167, II, 16, LRP). O contrato de locação de prédio poderá, ainda, ser registrado, quando for consignada cláusula de vigência para o caso de alienação de coisa locada (art. 167, I, 3, LRP). O direito de preempção é aquele conferido ao condômino de coisa indivisa, e exercido diante de alienação onerosa da fração ideal de outro coproprietário, mediante a anulação do negócio com terceiro, o depósito do valor pago pelo adquirente e a decisão judicial adjudicatória fração cedida. A venda de fração ideal indivisa a terceiro se viabiliza, portanto, quando: a) for comunicada previamente aos demais condôminos; b) for dada preferência aos demais condôminos para aquisição da parte ideal, pelo mesmo valor que o estranho ofereceu; c) os demais condôminos não exercerem o direito de preferência dentro do prazo de 180 dias da notificação do potencial negócio. O direito de preferência é de natureza real, pois não se resolve em perdas e danos. O condômino que depositar o preço haverá para si a parte vendida. Tal não ocorrerá se este fizer contraproposta diferente da que ofereceu o estranho. O aludido direito de preferência dentro do prazo decadencial de 180 (cento e oitenta) dias. Far-se-á, neste artigo, uma breve análise de questões jurisprudenciais relacionadas às referidas cláusulas, bem como apresentar-se-á um panorama geral de seus efeitos relativos ao Registro de Imóveis. Princípio da especialidade objetiva Para que ocorra o registro ou a averbação do contrato de locação no Registro de Imóveis, por óbvio, deve haver o cumprimento do princípio da especialidade subjetiva. Nessa toada, sendo a infungibilidade um requisito para a locação do imóvel, o título somente será registrado ou averbado quando a coisa locada estiver perfeitamente descrita. Da mesma forma, no caso de locação fara fins comerciais, o prédio onde funcionará o estabelecimento também deverá estar descrito de maneira completa. Significa dizer que as construções efetivamente locadas devem estar averbadas na matrícula em momento anterior ao contrato de locação. Ademais, para as locações comerciais, o nome da parte usado no momento da assinatura do contrato deve corresponder àquele consignado em seu registro no Registro Público de Empresas Mercantis. Caso seja usado nome distinto no ato de celebração da locação, mesmo que ocorrida sua alteração em momento posterior, será impedido o seu ingresso no fólio real.REsp 475.033/SP - Oponibilidade das cláusulas de vigência e preferência Já decidiu o Superior Tribunal Federal no REsp 475.033/SP, acerca da oponibilidade das cláusulas de vigência e preferência: RECURSO ESPECIAL. LOCAÇÃO. REGISTRO DO CONTRATO COM CLÁUSULA DE VIGÊNCIA NO CASO DE ALIENAÇÃO. REQUISITOS. SOLIDARIEDADE EM LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. CONCERTO ENTRE OS LITISCONSORTES. REEXAME DE PROVA. 1. Não há falar em nulidade do registro do contrato de locação se o co-proprietário que o celebra detém autorização para a administração do imóvel. 2. A averbação no registro de imóveis, de que depende a oponibilidade do contrato de locação ao novo adquirente, tem como requisitos legais a "apresentação de qualquer das vias do contrato, assinado pelas partes e subscrito por duas testemunhas, bastando a coincidência entre o nome de um dos proprietários e o locador." (artigo 169, inciso III, da Lei nº 6.015/73, com redação dada pelo artigo 81 da Lei nº 8.245/91). 3. Possui legitimidade para o registro do contrato de locação com cláusula de vigência em caso de alienação não apenas o proprietário locador, mas também e, sobretudo, o próprio locatário, em cujo interesse dispôs o artigo 81 da Lei do Inquilinato. 4. A inexistência de concerto entre os litisconsortes, no intuito de lesar a parte contrária, a excluir a condenação solidária nos ônus da sucumbência, insula-se, por inteiro, no universo fático-probatório, o que impede o seu conhecimento, por força do Enunciado nº 7 da Súmula deste Superior Tribunal de Justiça. 5. Recurso parcialmente conhecido e improvido. (REsp 475.033/SP, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, SEXTA TURMA, julgado em 16/12/2003, DJ 09/02/2004, p. 215). Do julgado, portanto, pode-se afirmar o seguinte sobre a oponibilidade das cláusulas de vigência e preferência a terceiros: A oponibilidade depende do registro/averbação de uma das vias contratuais de locação na matrícula do imóvel pelo interessado (locador ou locatário); No caso de cláusula de vigência, é necessário que ela tenha sido registrada precedentemente à alienação, em pelo menos 30 dias; Em caso de mais de um proprietário do imóvel, a celebração da cláusula será válida quando realizada com todos eles ou com o coproprietário que detém autorização para administrar o bem; Esses proprietários serão solidariamente responsáveis pela quebra da cláusula de vigência, não podendo se esquivar da responsabilidade por simples alegação de inexistência de acordo entre eles para o estabelecimento da cláusula.   Nulidade da locação por dupla modalidade de garantia É causa de nulidade a averbação de contrato de locação em imóvel quando presente dupla modalidade de garantia, sob fundamento da Lei n. 8.245/1991, in verbis: Art. 37. No contrato de locação, pode o locador exigir do locatário as seguintes modalidades de garantia: I - caução; II - fiança; III - seguro de fiança locatícia. IV - cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento. Parágrafo único. É vedada, sob pena de nulidade, mais de uma das modalidades de garantia num mesmo contrato de locação. Há corrente jurisprudencial reconhecedora da primazia da primeira garantia diante da presença de nulidade pelo vício da dupla garantia que, no entanto, é inaplicável em sede administrativa. Nesse sentido: Registro de Imóveis - Averbação de caução constituída sobre imóvel em locação - Contrato de locação com dupla garantia (fiança e caução real) - Inadmissibilidade à luz do disposto no art. 37, p.u., da Lei nº 8.245/1991 - Nulidade da caução, como garantia subseqüente à fiança - Inviabilidade da averbação correspondente - Cancelamento que se determina, com amparo no poder de revisão hierárquica da Corregedoria Geral da Justiça. CGJSP - Processo: 34.906/2005 CGJSP - Processo/LOCALIDADE: Guarulhos DATA JULGAMENTO: 09/08/2006 Relator: Álvaro Luiz Valery Mirra. Importante, destacar, contudo, que a dupla garantia não impede a averbação do contrato para fins de cláusula de vigência: REGISTRO DE IMÓVEIS - Contrato de locação predial urbana com dupla garantia vedada pelo artigo 37, parágrafo único, da Lei 8.245/91 -Nulidade da garantia que, embora se constitua em obstáculo à averbação desta, não impede, porém, a averbação do contrato locatício para fins de exercício do direito de preferência - Recurso não provido (CGJSP Parecer 303/2008-E - Processo CG 2008/32518, rel. Walter Rocha Barrone, j. 24.09.2008). Natureza da caução locatícia Ao locador, a Lei do Inquilinato confere o direito de exigir uma das modalidades de garantia prevista, dentre elas a caução locatícia. Sua natureza jurídica é de garantia real anômala. A característica "real" se deve, logicamente, ao fato de recair sobre um bem. Já a anomalia ocorre visto que essa garantia ingressa no fólio registral por meio de ato de averbação (e não de registro, como de costume) e pela desnecessidade de lavratura de instrumento notarial (escritura pública) para a constituição do gravame. Em relação ao regime jurídico, aplica-se à caução locatícia as mesmas regras da hipoteca no que diz respeito os seus princípios gerais, como o da causalidade (vinculação da garantia a obrigação principal), indivisibilidade (a garantia não se reduzirá, ainda que a obrigação principal tenha sido parcialmente paga), vedação ao pacto comissório, e o direito à excussão, mediante o procedimento adequado, com realização de hasta pública. Nesse sentido: AI n° 2171847-51.2014.8.26.0000, 30ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Marcos Ramos, j. em 12/11/2014 e AI n° 0004713-39.1999.8.26.0362, 30ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Andrade Neto, j. em 12/8/2015). A caução locatícia gera efeito de sequela, isto é, o direito do credor persegue o bem em caso de alienação do imóvel, o qual é essencial aos direitos de garantia, mesmo que previsto também o direito ao locador de pedir sua substituição presente estas circunstâncias; bem como a impossibilidade de o credor de segunda caução ou de créditos quirografários de executar a garantia antes do vencimento da primeira, caso se trate de direito real (direito de preferência). Cumpre salientar, neste ponto, que é incabível a qualificação negativa pelo oficial de registro se o contrato de locação, cuja caução é prevista, omitir-se de constar que se trata de direito de garantia de segundo grau, frente à de primeiro inscrita na matrícula. Com efeito, os direitos reais revestem-se, quando registrados, de publicidade erga omnes, assim, o credor da caução não poderá alegar ignorância do gravame, diante da presunção que todos têm ciência dos fatos lá registrados (art. 54 da lei 13.097). No entanto, se houver menção no título da segunda garantia de que seria de primeiro grau, insta o oficial obstar o seu ingresso no fólio real, uma vez que haverá contradição entre o que está previsto no instrumento do constante no fólio real. Eficácia da cláusula de vigência Em regra, quando o imóvel for alienado na vigência da locação, a lei 8.245/1991, em seu art. 8º, confere ao comprador direito de denunciá-lo no prazo de noventa dias, e o mesmo para desocupação do imóvel, contados da data do registro. Contudo, se o promissário comprador e ao promissário cessionário não fizerem a referida denúncia, traspassado o prazo para o exercício de direito em comento, presumir-se-á que aceitou a manutenção da locação. Nesse caso, é desnecessário o cancelamento de eventual registro anterior do contrato realizado entre locatário e antigo proprietário, pois sucede de forma automática com a decorrência do prazo da locação. Nessa toada, havendo a manutenção da locação pelo comprador, a prorrogação de seus efeitos por prazo indeterminado, ou, o contrato com prazo determinado, dependerá de novo registro. Além disso, como se sabe, a locação poderá conter o prazo certo e a previsão da cláusula de vigência em caso de alienação, registrada na matrícula do imóvel. Caso em que o comprador não poderá exercer o direito e deverá respeitar o término da locação. Com relação a esta cláusula, importante elucidar alguns pontos. É possível a convalidação das cláusulas do contrato original e seus aditamentos em ato futuro, sendo exigível deste último prova da representatividade da pessoa jurídica pelo seu signatário e não de todos os representantes dos atos anteriores. Contudo, pressupõe-se o reconhecimento da firma da assinatura no último ato. Assim, não se estende a exceção prevista aos órgãos da Administração direta, autárquica e fundacional, prevista no decreto estadual 52.658/2008, às serventias extrajudiciais, geridas em caráter privado por delegação. Não é possível, v.g., o reconhecimento pelo oficial da expiração do prazo prescricional, salvo se a parte apresentar ata notarial (CPC, art. 284, c.c. LRP art. 252, II). Isso é efeito do sistema adotado para transmissão de propriedade no Código Civil de 1916, herdado pelo vigente. Trata-se do sistema do título e modo, em que a transmissão opera efeitos erga omnes, embora haja presunção relativa, admitindo-se assim prova em contrário (LRP, arts. 216 e 252). Em verdade, o ato de registro não se desatrela do título e, assim, sujeita-se às intempéries do ato volitivo. As partes, em um contrato, devem concordar com seus termos, bem como para cancelá-lo, salvo o cumprimento de decisão judicial com trânsito em julgado, prova da quitação ou aquiescência declarada pelas partes, além de documento oficial comprobatório. É o que se aduz da jurisprudência administrativa igualmente, a saber: REGISTRO DE IMÓVEIS - Pedido de cancelamento de cláusulas restritivas - Necessidade de prova de quitação do preço, condição resolutiva - Impossibilidade de presunção de prescrição do débito - Incidência, ademais, do disposto no art. 250, incisos I, II e III, da Lei de Registros Públicos - Pedido de Providências improcedente - Recurso não provido (proc. n. 1019022-86.2016.8.26.0577, j. 01.12.2017). REGISTRO DE IMÓVEIS - Hipoteca - Pedido de averbação de cancelamento negado - Ausência de prova de quitação da obrigação principal ou da anuência do credor hipotecário - Impossibilidade do reconhecimento administrativo da alegação de prescrição da pretensão à cobrança da dívida garantida pela hipoteca - Necessidade de discussão da matéria na esfera jurisdicional - Recusa acertada da averbação pretendida - Recurso desprovido (proc. n. 1018185-70.2017.8.26.0100, j. 20.10.2017). Notificação A notificação deve ser, em regra, judicial ou extrajudicial, de modo expresso e com comprovante de recebimento. Exige-se-lhe para o fim de demonstrar a inequívoca ciência, por parte dos outros condôminos, da intenção de venda. A doutrina pátria aduz: "Para que um condômino venda sua parte ideal a estranhos sobre coisa indivisível, deve oferecê-la aos demais condôminos para que possam livremente exercer seu direito de preferência a essa compra. Por tal razão, deve ser dado conhecimento dessa venda por instrumento que liberará o condômino vendedor de responsabilidade. Esse instrumento pode ser uma interpelação judicial ou extrajudicial, por Cartório de Títulos e Documentos ou por carta protocolada, ou com ciência de recebimento em sua cópia, sempre provando que esse conhecimento foi dado".2 É possível, ainda que pelo art. 107 do CC/2002, que o conhecimento aos outros consortes se dê por meios informais, uma vez que a lei não prevê forma específica para tal ato. Todavia, adverte-se que é exigida a comprovação da ciência inequívoca mediante outra prova que não seja a documental. Neste caso, pode-se utilizar de analogia com a Lei do Inquilinato, conforme a redação do dispositivo legal: Art. 27. No caso de venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de direitos ou dação em pagamento, o locatário tem preferência para adquirir o imóvel locado, em igualdade de condições com terceiros, devendo o locador dar-lhe conhecimento do negócio mediante notificação judicial, extrajudicial ou outro meio de ciência inequívoca. (Sem grifo no original) Ora, por que não se abranger nestas um instrumento de segurança jurídica e presunção iuris tantum de veracidade? Primeiramente, a falta de notificação gera anulabilidade com prazo preclusivo. O direito do adquirente fica sob o regime de uma condição resolutiva. Enquanto não ocorrer a manifestação da preferência, o terceiro é tido como adquirente do bem e poderá exercer plenamente o domínio. Por outro lado, o termo a quo é momento da publicidade decorrente do registro imobiliário. "O prazo de seis meses é prazo preclusivo", diz Pontes de Miranda. "Dentro dele há de ser exercido o direito de preferência, depositando o preço (não basta a oferta de depósito).3 Ademais, a escritura pública, lavrada por notário, é documento dotado de fé pública, com eficácia de prova plena das informações que nela contidas, nos termos do art. 215, caput, do CC/2002, mormente em relação à manifestação de vontade das partes e dos eventuais intervenientes (art. 215, § 1º, IV, do CC/2002). Essa formalidade, será exigida na compra e venda de imóveis, em regra (CC, art. 108), sendo requisito formal ad soleminitratem E a transmissão da propriedade imobiliária, pressupõe o registro do título translativo no Cartório de Registro de Imóveis (art. 1.245 do CC/2002, c/c o art. 172 da Lei n. 6.015/1973), ocasião em que produzirá efeitos erga omnes, constitutivos, eficaz perante terceiros, notadamente em virtude do atributo da publicidade real. Se não registrado o título, a avença produz efeitos apenas inter partes; ao passo que, realizado o registro, tais efeitos atingem toda a sociedade. Compartilham desse entendimento Nelson Rosenvald e outros: "Sendo os direitos reais oponíveis em caráter erga omnes, há a necessidade de cientificar a sociedade sobre a situação jurídica dos bens imóveis, tornando conhecidas por quem tenha interesse toda e qualquer mutação no cadastro imobiliário. A gênese da publicidade se dá pelo ato de registro ou averbação, em que surge em potência a função qualificadora dos títulos apresentados ao oficial. A ausência de registro produz duas ordens de consequências: (a) entre as partes o título se resume a gerar eficácia obrigacional; (b) perante terceiros: não se pode exigir o conhecimento daquilo que não se pública".4 Assim, omissa a comunicação prévia aos demais condôminos, pelo alienante, de sua fração ideal do imóvel comum indiviso ao terceiro estranho à relação condominial, esta será suprida  com o registro da escritura pública de compra e venda, iniciando-se, deste ponto, o transcurso do prazo decadencial do direito de preferência, porquanto presumida a ciência do negócio, nos limites das informações constantes do título levado a registro. O preço do negócio será justamente aquele convencionado na escritura pública outorgada pelo condômino-alienante e terceiro, porquanto é dotada de fé pública e presunção de veracidade das informações nela contidas. Esse raciocínio se aplica às locações com cláusulas de preferência e vigência, posto que são direitos pessoais e, desta forma, menores do que o direito de preferência do condômino, que inclusive prevalece. A autonomia das partes na alienação de bem locado com vigência e preferência na matrícula permite que contratem livremente vendedor-locador e terceiro. Não tem sentido outra conclusão, senão apresente, diante da oponibilidade erga omnes. O locatário, mesmo com prazo indeterminado somente poderá se manifestar no prazo decadencial. Ressalte-se que a cláusula de vigência pressupõe contrato de locação com prazo determinado. Terminado esse prazo, a referida obrigação ao adquirente se esvai. Não existe direito real menor permanente, salvo a propriedade. A enfiteuse, inclusive, foi revogada. Não havendo de se exigir ad eternum. Cabe ao registrador o cancelamento, mediante requerimento do novo titular, diante da eficácia ex vi lege da alienação do imóvel, quando encerrado o prazo. Cancelamento das cláusulas O cancelamento "ex officio" é possível, diante do término do prazo estabelecido, sem que ocorra a sua prorrogação automática. Nas demais hipóteses de cancelamento que não sejam o transcorrer do prazo, em geral, é condição para o ato o requerimento prenotado com documento oficial comprobatório, com uma ata, ou termo, assinado por ambas as partes, com firma reconhecida (LRP, arts. 221, II, c.c.art. 250, inc. II e III). Nesse sentido, é o posicionamento da CGJ/SP:  REGISTRO DE IMÓVEIS. DÚVIDA. REGISTRO DE CONTRATO DE LOCAÇÃO DE BEM IMÓVEL. INEXISTÊNCIA DE CLÁUSULA DE VIGÊNCIA. INADMISSIBILIDADE. ART. 167, I, 3, DA LEI Nº 6.015/73. EVENTUAL POSSIBILIDADE DE AVERBAÇÃO, A FIM DE ASSEGURAR O DIREITO DE PREFERÊNCIA DA LOCATÁRIA, NOS TERMOS DO ART. 167, II, 16, DA LEI Nº 6.015/73. NECESSIDADE, ENTRETANTO, DE PRÉVIO CANCELAMENTO DO REGISTRO DE ANTERIOR CONTRATO DE LOCAÇÃO CONSTANTE DA MATRÍCULA DO IMÓVEL. ELEMENTOS SUFICIENTES À AUTORIZÁ-LO, O QUE, CONTUDO, DEVERÁ SER PROVIDENCIADO EM REQUERIMENTO AUTÔNOMO AO REGISTRADOR E NÃO NESTES AUTOS. RECURSO NÃO PROVIDO (Apelação n° 0012529-40.2013.8.26.0602, rel. HAMILTON ELLIOT AKEL, j. 7.07.2014). Com efeito, é pressuposto a novos atos de registro, o prévio cancelamento do contrato de locação registrado na matrícula do imóvel, onde figura registro de cláusula de vigência e/ou averbação de preferência. Isso porque, de acordo com o art. 252, da lei 6.015/73, o registro, enquanto não cancelado, produz todos os efeitos legais, ainda que, por outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido. __________ 1 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil: contratos e atos unilaterais - vol. 3. 17ª ed., São Paulo: Saraiva, 2020, p. 326-329. 2 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Curso de direito civil: contratos típicos e atípicos, volume 4. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, livro digital. 3 RIZZARDO, Arnaldo. Contratos, 18ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 2019, pp. 342-343. 4 FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Braga; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil -volume único, Salvador: JusPodivm, 2017.
Em 13/01/2021 entrou em vigor a lei 14.119/21, que institui a Política nacional de pagamentos por serviços ambientais, definindo conceitos, objetivos, diretrizes, ações e critérios de implantação da Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais (PNPSA). A Constituição Federal, no art. 225, caput, impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Quanto ao Poder Público vigora o princípio da intervenção estatal obrigatória, e para a coletividade o princípio da participação, do compartilhamento. Entre os instrumentos adotados para a coletividade contribuir de forma participativa para a preservação ambiental, a sanção punitiva sempre foi empregada. Em matéria ambiental, além de eventuais sanções administrativas e penais, incide, em caso de dano ambiental, a responsabilização civil (CF, art. 225 § 3º), sendo aplicável o princípio do poluidor-pagador (art. 4º inciso VII da lei 6.938/81). Todavia, o mero sancionamento punitivo não conseguiu frear o avanço da degradação ambiental. Adotou-se, então, um caminho virtuoso - a educação ambiental. A Carta Constitucional, no art. 225, § 1º inciso VI, impõe ao Poder Público, como política pública obrigatória, "promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente". Em razão disso foi editada a Lei da Política Nacional da Educação Ambiental - lei 9.795/99 - cujo art. 3º caput e inciso I dispõem que, como parte do processo educativo mais amplo, todos têm direito à educação ambiental, incumbindo ao Poder Público, nos termos dos arts. 205 e 225 da Constituição Federal, definir políticas públicas que incorporem a dimensão ambiental, promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e o engajamento da sociedade na conservação, recuperação e melhoria do meio ambiente. Todavia, a transformação da sociedade para um pensar e agir ecológicos, não é tão simples e rápido. O "pensamento e postura ecológicos" serão progressivamente atingidos com políticas públicas adequadas e eficientes, somando-se a conscientização e o engajamento social, posto ser necessária a participação ativa da sociedade na construção de um viver sustentável. Na edificação do Estado Socioambiental de Direito, é imprescindível a "democracia ambiental participativa" e seu marco axiológico fincado no "princípio constitucional da solidariedade"1. Além desses dois, um terceiro instrumento veio juntar-se para alavancar a participação da sociedade - a sanção premial (o direito premial). A punição, diz Terence Dorneles Trennepohl, "através da aplicação da sanção negativa, representando castigo e represália, mostra-se, no mundo contemporâneo, em flagrante decadência, seja pela falência das instituições punitivas, seja pela ineficácia da tão pretendida ressocialização, pelas vias da prisão ou das penas restritivas de direito"2. Assim, com inspiração nos ares de liberdade e no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, busca-se, cada vez mais, diminuir a intervenção estatal, fazendo prevalecer medidas de prevenção, isto porque, "quanto mais de previne, tanto menos se reprime"3.  É nesse contexto que o direito premial, o incentivo e o prêmio para regular e incentivar condutas, vem sendo cada vez mais aplicado. Há, "no momento legislativo atual, uma forte tendência de moralização, que não se apresenta sob a forma de leis punitivas, mas frequenta o cenário da legislação sob as formas de recompensa às condutas racionais e consoantes à ordem e à moral, ao justo e ao certo"4. Maurício Benevides Filho5 ilustra que a obra de Jeremy Bentham (Teoria das Penas e das Recompensas), publicada no século XIX, é considerada marco do direito premial, pois ali encontramos a primeira sistematização da técnica motivacional positiva de indução a comportamentos humanos. Depois, Norberto Bobbio editou trabalho em 1977, denominado Dalla Struttura alla Funzione, com o que passou a ser considerado sucessor de Bentham quanto ao direito premial6. Assim, a recompensa premial é uma constante no Estado intervencionista, isto porque a coação e punição não mais representam o único meio de orientação social. Inclusive, Norberto Bobbio distinguia ordenamento repressivo e ordenamento promocional. Para o primeiro, "existiam três formas de impedir uma ação: a) torná-la impossível; b) torná-la difícil; e c) torná-la desvantajosa". Já no segundo caso, de um ordenamento promocional, "as formas de impedir a ação eram: a) torná-la necessária; b) torná-la fácil: e c) torná-la vantajosa"7. E é neste último que se encaixa a instrumentação econômico-financeira positiva ambiental. Como assinala Gabriel Wedy, "De fato, o referido princípio invoca a regulação por indução e estímulo a práticas sustentáveis, normalmente mais eficientes do que as tradicionais medidas repressivas e punitivas, de "comando-e-controle", que ensejam a atuação estatal para depois de cometida a infração ambiental". E acrescenta: "O princípio do protetor-recebedor, importante destacar, envolve o mecanismo que se convencionou denominar de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), o qual "consiste no aporte de incentivos e recursos, de origem pública e/ou privada, para aqueles que garantem a produção e a oferta do serviço e/ou produto obtido direta ou indiretamente da natureza"8. Portanto, no pagamento por serviços ambientais (PSA), um agente financiador, público ou privado, remunera quem preserva áreas naturais próprias em benefício da sociedade. Eduardo Coral Viegas traz um exemplo internacional, que é o abastecimento de água na cidade de Nova York9.  No Brasil, entre outras situações previstas, a lei 12.651/2012 -  Código Florestal -, tratou da temática no artigo 41, elencando como linha de ação, dentre outras, o pagamento ou incentivo a serviços ambientais como retribuição, monetária ou não, às atividades de conservação e melhoria dos ecossistemas e que gerem serviços ambientais, tais como a conservação das águas e dos serviços hídricos10. Há que se lembrar, ainda, do princípio do usuário-pagador, expresso no art. 4º inciso VII da lei 6.938/81, que dispõe que todo aquele que utiliza recursos ambientais com fins econômicos deve contribuir em razão da utilização de um bem difuso, de uso comum do povo. Ou seja, o princípio do usuário-pagador não ostenta caráter punitivo, pois, independentemente da legalidade do comportamento do usuário, ele pode ser cobrado pelo mero uso do bem ambiental. Assim, pode-se dizer que "PSA é um instrumento baseado no mercado para financiamento da conservação que considera os princípios do usuário-pagador e provedor-recebedor, pelos quais aqueles que se beneficiam dos serviços ambientais (como os usuários de água limpa) devem pagar por eles, e aqueles que contribuem para a geração desses serviços (como os usuários de terra a montante) devem ser compensados por proporcioná-los. Assim, essa ferramenta busca conservar e promover o manejo adequado por meio de atividades de proteção e de uso sustentável. Para o PSA funcionar deve haver provedores, pessoas engajadas capazes de preservar e manter o serviço ambiental. E também os compradores, pessoas interessadas que irão se beneficiar da proteção de tal serviço, como ONGs, empresas privadas, poder público, pessoas físicas, entre outros. Vale ressaltar que essa é uma prática voluntária, e também pode ser adotada por empresas que visem melhorar sua imagem ou mesmo por pessoas que queiram mitigar os impactos de suas ações cotidianas"11. No que toca aos imóveis privados, regidos, portanto, pelo Código Civil, notadamente pelos artigos 1.228 e seguintes, foram escolhidos para provimento de serviços ambientais, três categorias: a) os situados em zonas rurais inscritos no Cadastro Ambiental Rural (CAR), sendo dispensados da inscrição as terras indígenas, territórios quilombolas e outros ocupados por populações tradicionais; b) os situados em zona urbana que estejam em consonância com o Plano Diretor do município (devidamente edificados e adequadamente utilizados); c) as reservas particulares do patrimônio natural (RPPNS) e as áreas das zonas de amortecimento e dos corredores ecológicos cobertas por vegetação nativa. Nestas três categorias de imóveis privados, eleitas para pagamento por serviços ambientais, mediante, inclusive, a utilização de recursos públicos, dando-se preferência para áreas localizadas em bacias hidrográficas consideradas essenciais para o abastecimento público de água, abrangendo ainda em áreas prioritárias para conservação da diversidade biológica em processo de desertificação ou avançada fragmentação. Uma das questões deveras interessantes, ainda em âmbito privado, é o contrato de pagamento por serviços ambientais. Uma das discussões a ser travada pela doutrina e pela práxis será a incidência ou não do art. 108 do Código Civil que impõe escritura pública para todos os negócios que visem a constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a 30 (trinta) vezes o maior salário mínimo vigente no país. Tal questão não foi pensada no texto legal tendo sido cogentes três naturezas de cláusulas: 1) direitos e obrigações do provedor; 2) direitos e obrigações do pagador; 3) as condições de acesso, pelo poder público, a área objeto do contrato, podendo ser instituída nos imóveis rurais servidão ambiental. Como última observação relevante, está o acréscimo ao rol taxativo dos atos de registro do art. 167 da Lei dos Registros Públicos. Passa a estabelecer o item 45, como um ato de registro "do contrato de pagamento por serviços ambientais, quando este estipular obrigações de natureza propter rem". Como é sabido, os atos de registro, ao contrário dos atos de averbação, são aqueles essenciais e que conferem posição jurídico-real, estando enumerados de forma fechada no inciso I do art. 167 da LRP, porém não de forma exauriente.12 O contrato de pagamento de serviços ambientais, ao estipular obrigações de natureza propter rem, estabelece um ônus real sobre o imóvel equiparável a servidões prediais, merecendo um estudo a parte que refoge a alçada da presente pesquisa. Conclui-se o presente trabalho apresentando apenas uma primeira reflexão sobre a lei 14.119 de 13 de janeiro de 2021, primeira de outras que virão neste queridíssimo Registralhas. Sejam felizes! __________ 1 SARLET, Ingo, e FENSTERSEIFER, Tiago, Direito Constitucional Ambiental, RT, 3ª edição, 2013, p. 56. 2 Terence Dorneles Trennepohl, Incentivos Fiscais no Direito Ambiental, São Paulo, Editora Saraiva, 2011, 2ª edição, p. 45. 3 idem, p. 46. 4 Idem, p. 46. 5 Maurício Benevides Filho, A Sanção Premial no Direito, Brasília, Brasília Jurídica, 1999, p. 56. 6 Terence Dorneles Trennepohl, obra citada, p. 47 destaca que "O autor italiano, em passagens de sua obra, ressalta a importância dos incentivos, subsídios e prêmios, onde o Estado não mais age como mero partícipe das relações sociais, como se passava no L'État Gendarme, mas sim, dada a intensa participação atual, em vista do Welfare State, intervencionista, portanto, urge sua intensa presença, em quase todos os setores da sociedade". Ainda complementa que o autor italiano " ... destaca as sanções positivas em retributivas e indenizatórias. As primeiras sintetizam as condutas pautadas no que é desejado socialmente; as segundas são compensações pelo dispêndio de esforços na busca de vantagens para sua comunidade". E Maurício Benevides Filho, obra citada, p. 82, ressalta que Norberto Bobbio ainda previa "sanções positivas preventivas e sucessivas", sendo as primeiras "anteriores à ação, por exemplo, isenções", enquanto "as segundas, posteriores, recompensas, meritórias". 7 Terence Dorneles Trennepohl, obra citada, p. 132. 8 Wedy, Gabriel, "Os princípios do poluidor-pagador, do protetor-recebedor e do usuário-pagador", CONJUR, 12.10.2019 - o articulista, como exemplo, refere que em recente estudo, a World Resource Institute (WRI) concluiu que só no Brasil as florestas em terras indígenas podem "render" em serviços prestados até um trilhão de dólares nos próximos 20 anos (cerca de 3,2 trilhões de reais), o que equivale a quase metade do Produto Interno Bruto (PIB) do país em 2015. São os chamados "serviços ecossistêmicos", que não aparecem nas contas públicas, mas geram resultados positivos relativos à produção e conservação da água, retenção de nutrientes no solo, regulação da temperatura e chuvas, polinização, recreação e turismo (DING, Helen; VEIT, Peter. Protecting Indigenous Land Rights Makes Good Economic Sense.World Resource Institute (WRI). Disponível aqui. Acesso em: 10 out. 2019). 9 VIEGAS, Eduardo Coral, Pagamento por serviços ambientais é importante instrumento de conservação, CONJUR, 17.09.2016: "No plano internacional, um modelo bastante referido na literatura é o caso de Nova York. A bacia hidrográfica dessa grande cidade americana atende por dia a demanda de aproximadamente 9 milhões de pessoas. Por sua vez, a prefeitura nova-iorquina investe há longos anos em propriedades rurais situadas a até 200km de distância de sua sede. Os resultados são surpreendentes tanto em termos do aumento de volume de água quanto de sua qualidade. Atualmente, os moradores e visitantes de Nova York podem tomar água da torneira, sendo que antes ela passa apenas por processo de filtragem e adição de cloro e flúor. Não há outras formas de tratamento. Assim, um investimento na área rural, inclusive em outros municípios, reflete diretamente no ambiente urbano, que é densamente povoado e grande demandante de água de qualidade". 10 Art. 41. É o Poder Executivo federal autorizado a instituir, sem prejuízo do cumprimento da legislação ambiental, programa de apoio e incentivo à conservação do meio ambiente, bem como para adoção de tecnologias e boas práticas que conciliem a produtividade agropecuária e florestal, com redução dos impactos ambientais, como forma de promoção do desenvolvimento ecologicamente sustentável, observados sempre os critérios de progressividade, abrangendo as seguintes categorias e linhas de ação:  I - pagamento ou incentivo a serviços ambientais como retribuição, monetária ou não, às atividades de conservação e melhoria dos ecossistemas e que gerem serviços ambientais, tais como, isolada ou cumulativamente: a) o sequestro, a conservação, a manutenção e o aumento do estoque e a diminuição do fluxo de carbono; b) a conservação da beleza cênica natural; c) a conservação da biodiversidade; d) a conservação das águas e dos serviços hídricos; e) a regulação do clima; f) a valorização cultural e do conhecimento tradicional ecossistêmico; g) a conservação e o melhoramento do solo; h) a manutenção de Áreas de Preservação Permanente, de Reserva Legal e de uso restrito; (...) § 5º O programa relativo a serviços ambientais previsto no inciso I do caput deste artigo deverá integrar os sistemas em âmbito nacional e estadual, objetivando a criação de um mercado de serviços ambientais. (...) § 7º O pagamento ou incentivo a serviços ambientais a que se refere o inciso I deste artigo serão prioritariamente destinados aos agricultores familiares como definidos no inciso V do art. 3º desta Lei.  11 Nesse sentido "O que é Pagamento por Serviços Ambientais e como funciona?". 12 V. F. Kümpel - C. M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral: Registro de Imóveis, v. 5, t. 1, página, 533-538, São Paulo, YK Editora, 2019.
A prefeitura municipal de São Paulo e o Governo Estadual extinguiram o direito à gratuidade no transporte coletivo para idosos na faixa entre 60 anos e 65 anos, medida que passa a valer a partir de 1º de janeiro de 2021. A medida, no Estado de São Paulo, veio por meio do decreto estadual  65.414/20. A lei municipal sancionada é a de nº 17.542, de 22 de dezembro de 2020, já em vigor, que, entre outras medidas, revoga a lei 15.912, de 16 de dezembro de 2013. Somente continuarão a viajar gratuitamente em ônibus, trens e metrô, além dos ônibus intermunicipais da Região Metropolitana, os idosos acima de 65 anos, conforme garante a Constituição Federal e o Estatuto do Idoso, cujo art. 39, § 3º, dispõe que "No caso das pessoas compreendidas na faixa etária entre 60 (sessenta) e 65 (sessenta e cinco) anos, ficará a critério da legislação local dispor sobre as condições para exercício da gratuidade nos meios de transporte previstos no caput deste artigo". A questão a ser debatida é a eventual inconstitucionalidade da medida. Muitos irão invocar que esse direito é garantido apenas aos idosos acima de 65 anos, e que entre 60 e 65 anos, a concessão da gratuidade está no âmbito da discricionariedade administrativa. Mas é possível contrapor esse pensamento. Vejamos: O STJ, no REsp 1.192.577/RS, entendeu que a condição de vulnerabilidade dos idosos é reconhecida na própria CF, ao dispor no art. 230 que "A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida". Mais que isso, tem reconhecido aos idosos a condição de hipervulneráveis (REsp 1.793.332/MG). Como o direito à vida é um direito fundamental, o direito ao envelhecimento e sua proteção1, que é uma extensão do direito à vida e estão intrinsecamente ligados, tem a natureza de direito social (por força do Estatuto do Idoso) e fundamental (o direito à vida, ao idoso, abarca o envelhecer com dignidade). Inclusive a Constituição Federal, no art. 3º inciso IV, ao garantir como objetivo fundamental da República a promoção do bem de todos, sem qualquer preconceito relativo à idade, autoriza a equiparação do direito ao envelhecimento digno aos direitos formalmente fundamentais por seu conteúdo e relevância - trata-se, pois, de direito fundamental material. Além disso, o art. 10 § 1º inciso I garante ao idoso o direito de ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários. Trata-se, mais amplamente, da liberdade pública relativa ao direito de locomoção, ou seja, garantia de ir e vir sem qualquer restrição de caráter urbanístico, e que engloba o direito de frequentar ambientes públicos fechados (direito de acesso arquitetônico), de percorrer ruas, praças e avenidas (direito de trânsito) e de utilizar-se, nesse trajeto, de meios de transporte público financeira e ergonomicamente acessíveis (direito a transporte acessível), que muitas vezes é restringido ou impedido em virtude da inadequação arquitetônica dos prédios, de concepções urbanísticas falhas e de desenho industrial impróprio dos veículos de transporte que circulam pela malha viária urbana, e ainda pelo valor da tarifa. Na ADI 3.768-4/DF, o ministro Carlos Britto, ao votar pela constitucionalidade do art. 39 do Estatuto do Idoso, acentuou "o advento de um novo constitucionalismo fraternal ou, como dizem os italianos, 'altruístico', com ações distributivistas e solidárias". Segundo o ministro, "não se trata de um direito social, mas de um direito fraternal para amainar direitos tradicionalmente negligenciados". Falta ainda um olhar para o Estatuto da Pessoa com Deficiência - lei 13.146/15, que define, no art. 3º inciso IX, "pessoa com mobilidade reduzida", entendendo assim toda aquela que tenha, por qualquer motivo, dificuldade de movimentação, permanente ou temporária, gerando redução efetiva da mobilidade, da flexibilidade, da coordenação motora ou da percepção, incluindo os idosos. Além disso, o art. 46 garante que o direito ao transporte e à mobilidade da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida será assegurado em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, por meio de identificação e de eliminação de todos os obstáculos e barreiras ao seu acesso, e o art. 53 assegura o direito à acessibilidade à pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida, para que possa viver de forma independente e exercer seus direitos de cidadania e de participação social. Diante disso, podemos concluir que o idoso tem direito fundamental à vida com dignidade, a envelhecer em estado de bem-estar, direito de locomoção, acesso arquitetônico, trânsito e transporte acessível, e por se tratar de pessoa com mobilidade reduzida, tem incorporado os direitos concedidos às pessoas com deficiência. E assim, como a Carta de 1988 institui o Estado Social Democrático de Direito, reconhecendo os direitos sociais como direitos fundamentais, não pode o Estado extirpar direitos fundamentais já conquistados, ou seja, proíbe-se a diminuição de proteção aos bens jurídicos fundamentais já alcançados e implementados em determinada sociedade. Logo, se o Estado diminui, restringe ou extingue direitos fundamentais, isso viola o princípio da proibição do retrocesso, violando-se o próprio Texto Constitucional. Ingo Sarlet refere inexistir Estado de Direito sem segurança jurídica, razão pela qual é exigível a proteção (por meio de prestações normativas e materiais) contra atos - do poder público - violadores dos diversos direitos pessoais, garantindo a estabilidade da ordem jurídica2. Nesse sentido o STF enuncia que "O conjunto dos Direitos Sociais foi consagrado constitucionalmente como uma das espécies de direitos fundamentais, caracterizando-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria das condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, e são consagrados como fundamentos do Estado Democrático, pelo art. 1º, IV, da Constituição Federal" (STF, ADI 5038). Como decidiu o STF, "O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Em consequência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar - mediante supressão total ou parcial - os direitos sociais já concretizados". [...] (Ag. no RE 639.337/SP). Portanto, na medida em que a Constituição Federal reconhece o idoso como vulnerável e detentor do direito à proteção, segurança e bem estar, e como o direito à gratuidade, por força de lei municipal (de 2013), é um direito social e fundamental que foi incorporado ao ordenamento, tal concessão afigura-se direito adquirido de natureza difusa, de todos os idosos entre 60 e 65 anos, daí porque pode-se considerar inconstitucional a nova legislação que suprimiu a gratuidade aqui considerada, por força da proibição do retrocesso social. Ademais, as relações exigem condutas adequadas, que detenham um padrão, um standard de comportamento, ou seja, exige-se que toda e qualquer relação se faça por meio de condutas impregnadas de cooperação, probidade e lealdade. Essa concepção tem raízes no princípio da boa-fé objetiva, que é um standard de comportamento que deve vigorar conforme as expectativas da sociedade. E o comportamento com lealdade, dentro da expectativa e conforme os usos do tráfico, gera relações jurídicas de confiança, não somente relações morais.3 Assim, é exigível, nas relações, a observância dos deveres gerais de conduta, pautados pela boa-fé objetiva, sem o que estará instaurada a abusividade repudiada pelo sistema.4 Diante de algumas situações que se apresentam abusivas por quebrarem a expectativa, a boa-fé instaurada nas relações, o Direito proporciona o enfrentamento através da doutrina do venire contra factum proprium (teoria dos atos próprios), apta a reequilibrar a conduta dos parceiros nas relações sociais5. Ruy Rosado de Aguiar Júnior6 releva a importância do tema, apto a reconduzir as relações ao status que os seus comportamentos anteriores ditaram: "A teoria dos atos próprios, ou a proibição de venire contra factum proprium protege uma parte contra aquela que pretenda exercer uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente. Depois de criar uma certa expectativa, em razão de conduta seguramente indicativa de determinado comportamento futuro, há quebra dos princípios de lealdade e de confiança se vier a ser praticado ato contrário ao previsto, com surpresa e prejuízo à contraparte". Não há dúvida de que a revogação da gratuidade configura venire contra factum proprium, francamente abusiva. Em 06 de janeiro de 2021 o Sindicato Nacional dos Aposentados, Pensionistas e Idosos da Força Sindical - SINDNAPI e outras entidades associativas ajuizaram ação civil pública7 para restabelecer a gratuidade do transporte público para pessoas entre 60 e 64 anos, sustentando, em linhas gerais, que o artigo 3º do Decreto Estadual nº 65.414/2020 retirou a eficácia da Lei Estadual 15.187/2013. Argumentam que a revogação da gratuidade para idosos com faixa etária de 60 a 64 anos depende de lei e que o ato do Poder Executivo seria ilegal por violar o direito adquirido ao benefício tarifário. Em decisão liminar, o Juízo da 3ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de São Paulo deferiu os efeitos da tutela provisória para manter a isenção de pagamento aos maiores de 60 anos. Em 12 de janeiro de 2021, a Presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo suspendeu a liminar8. De acordo com a decisão, a liminar poderia acarretar lesão à ordem, economia e segurança públicas ao afastar do Poder Executivo estadual "seu legítimo juízo discricionário de conveniência e oportunidade de organização dos serviços públicos, o que inclui o transporte público". É certo que o art. 12 §1º da LACP - lei 7.347/85 autoriza a suspensão da liminar ao dispor que a requerimento de pessoa jurídica de direito público interessada, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública, poderá o Presidente do Tribunal a que competir o conhecimento do respectivo recurso suspender a execução da liminar, em decisão fundamentada. Todavia, há necessidade de que haja juridicidade para tanto. No caso, a liminar não causa grave lesão à ordem, à saúde e à segurança, isto porque a fundamentação espelhada no pedido de suspensão da liminar é que o subsídio subiu de cerca de 200 milhões/ano, quando instituído em 2014, para 600 milhões/ano (custo estimado pra 2021), ou seja, o único fundamento é a consideração de que tal gratuidade agravaria a situação fiscal. Então, aqui há um confronto entre o interesse público primário e o secundário. Este último é meramente o interesse patrimonial da administração pública, que deve ser tutelado, mas não pode sobrepujar o interesse público primário, que é a razão de ser do Estado e sintetiza-se na promoção do bem-estar social. Nos dizeres de Celso Antônio Bandeira de Mello: "O Estado, concebido que é para a realização de interesses públicos (situação, pois, inteiramente diversa da dos particulares), só poderá defender seus próprios interesses privados quando, sobre não se chocarem com os interesses públicos propriamente ditos, coincidam com a realização deles." (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 19ª edição. Editora Malheiros. São Paulo, 2005, pág. 66.) [...] (REsp 1356260/SC, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, j. 07/02/2013, DJe 19/02/2013). No caso, a ancoragem para a manutenção do benefício é o fato de que temos um direito fundamental efetivado, que não pode ser afastado por receber a blindagem de "direito adquirido coletivo" e de "proibição do retrocesso". Nesse sentido, Gomes Canotilho diz que "o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa anulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo essencial"9. Dessa maneira, a discricionariedade administrativa não pode ser invocada quando direitos fundamentais estão em pauta, razão pela qual a manutenção da gratuidade tornou-se uma obrigação vinculada, não passível de revogação, a não ser que fossem editadas medidas alternativas ou compensatórias que promovessem a devida modulação, e que não existem. Há, pois, ofensa aos princípios constitucionais da proibição do retrocesso, da razoabilidade e da proporcionalidade. *Luiz Antônio de Souza é procurador de Justiça (28º Procurador de Justiça da Procuradoria de Interesses Difusos e Coletivos); mestre e doutor em Direito pela PUC/SP; professor Assistente-Doutor da PUC/SP; professor do Curso Damásio e do Instituto Damásio de Direito; professor dos Cursos de Pós-Graduação da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, do COGEAE - Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão da PUC/SP, da ESA - Escola Superior de Advocacia. Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Direito Ambiental e Urbanístico do Instituto Damásio de Direito chancelado pela Faculdade de Direito IBMEC-SP. __________ 1 O art. 8º do Estatuto do Idoso proclama que o envelhecimento é um direito personalíssimo e a sua proteção um direito social. 2 SARLET, Ingo Wolfgang. Proibição de Retrocesso, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Sociais: manifestação de um constitucionalismo dirigente possível. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre, n. 2, 2004. p. 4. 3 Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti, Tratado de Direito Privado, Tomo XXXVIII, 3ª edição, Rio de Janeiro, Borsoi, 1972, § 4.242, p. 321. 4 Paulo Luiz Netto Lobo, Condições Gerais dos Contratos e Cláusulas Abusivas, Saraiva, São Paulo, 1991, p. 145, falando sobre a boa-fé que deve nortear os indivíduos nas suas relações, considera que "A boa-fé objetiva é regra de conduta dos indivíduos nas relações jurídicas obrigacionais, interessam as repercussões de certos comportamentos na confiança que as pessoas normalmente neles depositam. Confia-se no significado comum, usual, objetivo da conduta ou comportamento reconhecível no mundo social. A boa-fé objetiva importa em conduta honesta, leal, correta. É a boa-fé que podemos chamar de boa-fé de comportamento". 5 Cf. KÜMPEL, Vitor Frederico. Teoria da Aparência no Código Civil de 2002. São Paulo: Método, 2007. 6 Na obra A Extinção dos Contratos por Incumprimento do Devedor, 1ª edição, Rio de Janeiro, Aide, 1991, p. 240 e seguintes. 7 Sob nº 1000277 - 05.2021.8.26.0053 8 Feito nº 2002288 - 52.2021.8.26.0000   9 Fachin, Luiz Edson, Comentários ao Código Civil, Direito das Coisas, volume XV, Saraiva, 2003, p. 374.
terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Retrospectiva 2020

2020, sem sombra de dúvidas, foi um ano histórico, marcado pelos devastadores e inesperados efeitos da pandemia do COVID-19, cujo combate exigiu uma mobilização em todos os níveis institucionais e setores da sociedade. As repercussões geradas pela pandemia são incontáveis e, como não poderia deixar de ser, alcançaram inclusive o universo jurídico. Pode-se afirmar que um dos principais efeitos colaterais da pandemia, na práxis jurídica, foi um salto significativo no processo de migração para os sistemas informatizados. É claro que esse movimento já se verificava há muito tempo, mas o isolamento imposto pela pandemia demandou medidas drásticas, que não podiam esperar o ritmo natural do processo de informatização. Diversas tarefas e procedimentos que se realizavam pessoalmente passaram a ser realizados de forma virtual. Em alguns casos, essas medidas exsurgiram como soluções temporárias, mas, em outros, as mudanças estão se consolidando como definitivas. No âmbito extrajudicial, foram editados diversos provimentos pela Corregedoria Nacional de Justiça, com o objetivo de criar alternativas ao tradicional atendimento presencial nas serventias e, assim, reduzir os riscos de contágio sem comprometer a continuidade dos serviços durante o período de quarentena. O primeiro ato normativo expedido pela Corregedoria Nacional de Justiça, com esse objetivo, foi o Provimento 91, de 22 de março de 2020, que determinou a suspensão ou redução do atendimento ao público, além da suspensão do funcionamento das serventias extrajudiciais, além de regular a suspensão de prazos para a lavratura de atos notariais e de registro. Em seguida, foi editado o Provimento 93, de 26 de março, que regulou o funcionamento dos registros públicos de nascimento e óbito durante o período de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN). No que diz respeito ao Registro de Imóveis, a Corregedoria Nacional de Justiça editou o Provimento 94, de 28 de março de 2020, regulando seu funcionamento pelo sistema de plantão (presencial ou à distância) nas localidades em que foi decretada a quarentena. Em 1º de abril de 2020, a edição do Provimento 95 trouxe novas regras sobre o funcionamento das serventias extrajudiciais durante a pandemia. No dia 27 do mesmo mês, a Corregedoria Nacional de Justiça editou o Provimento 97, regulamentando os procedimentos de intimação nos Tabelionatos de Protesto do país; bem como o Provimento 98, dispondo sobre o pagamento dos emolumentos, acréscimos, dívidas e demais despesas por meios eletrônicos, nas serventias extrajudiciais, durante a pandemia. Com o passar dos meses e o avanço implacável do vírus, as medidas mencionadas foram objeto de sucessivas prorrogações (Provimentos 96, 99, 101 e 105). Na última dessas prorrogações, os Provimentos 91, 93, 94, 95, 97 e 98 tiveram sua vigência estendida para o dia 31 de dezembro de 2020, pelo Provimento nº 105. O que se nota é que, além dos atos normativos voltados diretamente a instituir medidas de combate à disseminação do COVID-19 - que envolvem o recurso à informática e ao trabalho remoto, como visto - o CNJ também normatizou assuntos que, embora não diretamente referentes à pandemia, também se relacionam com o avanço da informatização e da implementação de alternativas digitais aos tradicionais procedimentos físicos. Nessa linha, o Provimento nº 100, de 26 de maio de 2020, dispôs sobre a prática de atos notariais eletrônicos utilizando o sistema e-Notariado, além de criar a Matrícula Notarial Eletrônica-MNE e dar outras providências. Em seguida, foi editado o Provimento nº 103, de 04 de junho de 2020, dispondo sobre a Autorização Eletrônica de Viagem nacional e internacional de crianças e adolescentes até 16 anos desacompanhados de ambos ou um de seus pais. Levando em consideração o papel de Ofício da Cidadania exercido pelos RCPN, e colocando em benefício da população os progressos derivados da informatização dos serviços notariais e registrais, a Corregedoria Nacional de Justiça editou o Provimento nº 104/2020, dispondo sobre o envio de dados registrais, das pessoas em estado de vulnerabilidade socioeconômica, pelo RCPN aos Institutos de Identificação dos Estados e do Distrito Federal, para fins exclusivos de emissão de registro geral de identidade. Essa emissão pode ser feita diretamente ou por intermédio da Central de Informações de Registro Civil de Pessoas Naturais- CRC, e se alinha ao compromisso assumido em nível nacional para a ampliação do acesso do cidadão brasileiro à documentação civil básica, mediante colaboração e articulação dos entes públicos (art. 1º do Decreto n. 6.289, de 6 de dezembro de 2007). Dando continuidade ao propósito de impulsionar a informatização em nível nacional, a Corregedoria Nacional de Justiça editou o Provimento nº 106, de 17 de junho de 2020, dispondo sobre a adoção e utilização do sistema eletrônico "APOSTIL" para a confecção, consulta e gestão de apostilamentos em documentos públicos, realizados em todas as serventias extrajudiciais do país. Já por meio do Provimento 107, de 24 de junho de 2020, a Corregedoria Nacional de Justiça esclareceu ser vedada a cobrança de quaisquer valores dos consumidores finais dos serviços prestados pelas centrais cartorárias em todo o território nacional. Seguindo essa linha, a Corregedoria Nacional de Justiça deu também mais um passo na implementação do sistema de registro de imóveis eletrônico, ao disciplinar, por meio do Provimento nº 109, de 14 de outubro de 2020, a sua atuação como Agente Regulador do ONR - Operador Nacional do Registro Imobiliário Eletrônico. O ato normativo tem por objetivo disciplinar a forma de funcionamento do Agente Regulador para que se estabeleçam os meios de interação entre ele e o ONR, bem como para definir como se dará a atividade de regulação própria do Poder Judiciário que decorre de sua atividade fiscalizatória dos serviços prestados pelos órgãos incumbidos dos serviços delegados de notas e registro. Em nível legislativo, um dos mais importantes acontecimentos do ano foi a entrada em vigor da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, denominada Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que dispôs sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural. Observe-se que, muito embora a LGPD tenha entrado em vigor no dia 18 de setembro de 2020, os dispositivos que tratam das sanções administrativas impostas àqueles que violam seus preceitos (arts. 52, 53 e 54) apenas entrarão em vigor em 1º de agosto de 2021. Não se pode negar que 2020 foi recheado de surpresas, o que deixa incertezas quanto ao que nos reserva 2021. De nossa parte, podemos prever que no ano vindouro estaremos mais presentes aqui no Portal Migalhas, agora que retomamos com muito carinho nossa coluna quinzenal. Fiquem conosco e sejam felizes! Até o próximo Registralhas.
A Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, (Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD) foi publicada há pouco mais de dois anos e, desde o seu nascimento, suscitou inúmeras discussões sobre os seus impactos no cotidiano das mais diversas entidades. Como se sabe, seus preceitos alcançam tanto pessoas naturais quanto jurídicas, de direito público ou privado e, como não poderia deixar de ser, também estão contemplados os serviços notariais e registrais. O art 23, § 4º, da LGPD faz menção expressa ao enquadramento desses profissionais, dispondo que "Os serviços notariais e de registro exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público, terão o mesmo tratamento dispensado às pessoas jurídicas referidas no caput deste artigo, nos termos desta Lei.". O tratamento de dados pessoais pelas pessoas jurídicas de direito público - inclusive os serviços notariais e registrais, dada a equiparação acima mencionada -, nos termos da lei, deverá "ser realizado para o atendimento de sua finalidade pública, na persecução do interesse público, com o objetivo de executar as competências legais ou cumprir as atribuições legais do serviço público" (art. 23, caput, da LGPD). Tendo em mente esses pressupostos, interessante discussão que se coloca diz respeito aos impactos da LGPD no tráfego de dados entre os ofícios de Registro de Imóveis e as centrais eletrônicas de serviços compartilhados. Ocorre que, no Estado de São Paulo, determinadas informações sobre operações imobiliárias são remetidas dos ofícios de registro de imóveis à central eletrônica, a partir da qual os dados são tratados tendo em vista a formulação de índices e estatísticas sobre os negócios e atos jurídicos praticados. Esse fluxo é previsto pelas Normas de Serviço estaduais, cujo item 414 do Cap. XX determina que, para formação de índices e indicadores, os oficiais de registro deverão informar eletronicamente até o dia 15 de cada mês, à Central Registradores de Imóveis, os dados arrolados no dispositivo, referentes ao mês anterior1. Tais dados abrangem informações sobre o mercado, a regularização fundiária, a alienação fiduciária, as incorporações e instituições de condomínio edilício, os loteamentos e parcelamentos e os processos extrajudiciais de usucapião. Ainda, segundo o subitem 414.1, "A ARISP ficará responsável pelo armazenamento, proteção, segurança e controle de acesso aos dados sobre operações imobiliárias, fazendo-o de modo a omitir quaisquer informações, que porventura lhe forem encaminhadas, sobre a identificação das pessoas nelas envolvidas." Para a finalidade em comento, eram geralmente enviadas, à central, as Declarações de Operações Imobiliárias (DOI) emitidas na serventia. Contudo, esses documentos contêm informações pessoais sobre os envolvidos nas operações, de forma que sua remessa deve ser cercada de cautelas que garantam a correta aplicação da LGPD. Em princípio, a ARISP assumiu a incumbência de filtrar as informações constantes nas DOI encaminhadas pelos oficiais de registro, de modo a torná-las anônimas. No entanto, em representação formulada perante a CGJ, questionou-se caberia aos próprios oficiais de registro de imóveis efetuar essa filtragem, de modo a enviar à central as informações já anonimizadas2. Em seu Parecer 458/2020-E, a respeito da controvérsia, o Juiz Assessor da Corregedoria Josué Modesto Passos sustentou que, sendo os oficiais de registro considerados "controladores" para os fins da LGPD3, são diretamente responsáveis pelas decisões referentes ao tratamento de dados, o que inclui, justamente, as decisões relacionadas à anonimização de dados pessoais para a transferência de informações para a central eletrônica de serviços compartilhados. Daí concluir que caberia aos próprios oficiais decidir quais dados podem ou não ser transmitidos para fins de estatística, sob a égide da LGPD. Vale dizer, mesmo se optassem por enviar a DOI na íntegra, deixando à central a incumbência de proceder à anonimização, não se eximiriam da responsabilidade, que passaria a ser conjunta com a central. Sendo assim, e considerando ainda que a DOI é revestida pelo sigilo fiscal (art. 198 do CTN e IN 1.112/2010 da RFB), argumentou-se não caber à CGJ, tampouco à central de serviços eletrônicos compartilhados, exigir dos oficiais de registro o envio da íntegra da DOI para os fins dos itens 397, 414 e 415 das NSCGJSP. Para o autor do parecer, os dados transmitidos à central devem ser apenas os estritamente necessários para o cumprimento das finalidades estatísticas mencionadas, de modo a reduzir ao máximo os riscos à privacidade, à intimidade, à honra e à imagem, em consonância com o regime fixado pelo pela LGPD. Dessa forma, entendeu-se razoável a proposta de esclarecer aos oficiais de RI do Estado que, para os fins mencionados, não podem ser transmitidos dados que de qualquer forma possam ser relacionados a pessoa física (inclusive o número de matrícula do imóvel). Assim, basta o envio das seguintes informações: (1) o tipo de transação; (2) a data da transação; (3) a forma de alienação; (4) o valo base de ITBI; (5) o tipo de imóvel; (6) a localização (limitada ao bairro, CEP, cidade e unidade federativa). O parecer com tal orientação foi aprovado, em 28 de outubro de 2020, pelo Corregedor Geral da Justiça Ricardo Anafe. Muito embora se reconheça a tecnicidade da argumentação esposada no Processo em comento, é importante ressaltar que tal decisão não é desprovida de impactos no cotidiano dos registradores de imóveis. Afinal, efetuar a referida filtragem sobre cada operação imobiliária demandará, sem sombra de dúvidas, um investimento significativo de tempo e recursos por parte dos oficiais, que até então apenas tinham que encaminhar a íntegra da DOI à Central. Assim, com a nova orientação, os oficiais passam a assumir mais uma incumbência dentre tantas outras que já possuem. __________ 1 O fornecimento de dados pelos ofícios de registro para fins estatísticos encontra respaldo, também, no Decreto nº 8.764/2016, cujo art. 5º define, em seu caput, que "Os serviços de registros públicos disponibilizarão à administração pública federal, sem ônus, documentos nato digitais estruturados que identifiquem a situação jurídica do imóvel, do título ou do documento registrado, na forma estabelecida pelo Manual Operacional.", e, em seu § 3º, que "Os critérios para a identificação do imóvel e do negócio jurídico poderão abranger outras informações que sirvam para fins de estatística." 2 A referida representação foi formulada pelo Dr. Ruy Veridiano Patu Rebello Pinho, 2º Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas da Comarca de Osasco, e deu origem ao Processo nº 2020/53702 3 Controlador, segundo a definição do art. 5º, VI, da LGPD, é a "pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado, a quem competem as decisões referentes ao tratamento de dados pessoais".
terça-feira, 17 de novembro de 2020

Retomada do Registralhas

Caríssimos leitores e amigos do Portal Migalhas, é com grande alegria que retomo minha querida coluna Registralhas nesta data. Separei a coluna de hoje para contar um pouco sobre o motivo do afastamento deste ano: o desafio da Livre Docência. Após a abertura do Edital para o concurso de Livre Docência em Direito Notarial e Registral pela USP, no final de 2019, bem como após muitas conversas e aconselhamentos de meu estimado amigo, e brilhante acadêmico, prof. titular Eduardo C. Silveira Marchi, ex-diretor da Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, decidi tentar o concurso e redigir minha tese: Sistemas de transmissão imobiliária sob a ótica do registro. Não foi uma tarefa fácil. O concurso exigiu-me imensa dedicação, muito embora eu já venha estudando o referido tema há muitos anos. Foi necessário o amadurecimento e aperfeiçoamento de algumas ideias, além, é claro, da escrita propriamente dita da tese, a qual totalizou 393 laudas. Propus, em meu trabalho, uma análise aprofundada dos sistemas de transmissão da propriedade imobiliária de civil law, classificados quanto aos efeitos substantivos: título, título e modo ou modo. Foram analisados os sistemas de Portugal, Espanha, Inglaterra, Alemanha e Brasil. Para o estudo de cada modelo, tomei como pressuposto os princípios aplicados em cada sistema.   Em resumo, pude entender o funcionamento da transmissão da propriedade imobiliária nos países supracitados, bem como concluir como se deu a evolução do sistema brasileiro, extremamente sincrético, e quais são as dificuldades práticas atualmente enfrentadas em nosso Ordenamento. Além da rápida menção ao tema da tese, abro espaço para comentar sobre as etapas do concurso. Após o depósito da tese, passei ainda por 4 etapas: prova escrita, prova didática, arguição do memorial e arguição da tese. Todas elas foram realizadas em 3 dias subsequentes (terça, quarta e quinta feira). Na segunda feira, um dia antes do início do processo, dentre os 30 temas elencados no Edital, 10 foram sorteados. Terça-feira, viajei para Ribeirão Preto para a realização da prova escrita, momento em que foi sorteado 1 tema dentre esses 10 já escolhidos. Escrevi minha prova sobre "O Sistema de Registro no ordenamento jurídico brasileiro. O Direito Registral como microssistema e como unidade normativa". Após o término da prova escrita, houve um novo sorteio do ponto que deveria ser trabalhado na aula didática do dia seguinte. Assim, na quarta feira, apresentei uma aula à banca examinadora sobre o tema "Separação e Divórcio extrajudicial (Lei 11. 441/07) e resoluções do CNJ". Na sequência, realizei a arguição de meu memorial. Na quinta-feira (o grande dia), ocorreu a arguição da minha tese. Tive a honra de ser arguido por brilhantíssimos juristas: dr. Fernando Scaff, Dr. Otavio Luiz Rodrigues Junior, dr. Torquato da Silva Castro e dra. Flavia Trentini. Por fim, não posso deixar de lado, a insigne profa. Cintia Rosa Pereira de Lima, que presidiu minha banca. Faço a ela um agradecimento especial por toda atenção e disposição no acompanhamento de perto das fases do concurso, que foram fatores essenciais para minha motivação e persistência. Agradeço, finalmente, aos queridos leitores de minha coluna, que se dispuseram a ler brevemente sobre minha gratificantíssima conquista e que continuaram acompanhando com carinho a coluna. Espero, após esse desafio da Livre Docência, poder agregar ainda mais com os próximos artigos, trazendo aos senhores novas reflexões sobre o direito notarial e registral. Sejam felizes! Até o próximo Registralhas.
Vitor Kümpel e Giselle de Menezes Viana O inventário extrajudicial Em que pese a incidência do princípio da saisine, determinando a transmissão automática da herança no momento de abertura da sucessão (art. 1784 do Código Civil), é necessário um procedimento posterior de apuração de ativos e passivos, para permitir o pagamento de eventuais dívidas e a partilha aos herdeiros. De fato, com a abertura da sucessão, os bens são transferidos aos sucessores, mas como um todo unitário e indivisível (art. 1.790, parágrafo único, do Código Civil). Daí a necessidade do inventário e da partilha, permitindo a divisão por quinhões a cada herdeiro e a consolidação da transmissão patrimonial1. No que diz respeito ao aspecto procedimental, antes da lei 11.441/2007, os inventários processavam-se exclusivamente no âmbito judicial. Porém, com a entrada em vigor da referida Lei - que, dentre outras providências, modificou o art. 982 do antigo Código de Processo Civil de 1973 - conferiu-se um inédito protagonismo aos notários na operacionalização da transmissão causa mortis, tanto na etapa do inventário quanto da partilha. Assim, admitiu-se o processamento dos inventários e partilhas também pela via extrajudicial, possibilidade preservada pelo atual Código de Processo Civil (art. 610, §§ 1º e 2º)2. Desde 2007, portanto, o procedimento de apuração do patrimônio líquido deixado pelo falecido, culminando na partilha aos herdeiros, pode ser realizado não apenas em juízo, mas também por escritura pública, perante o tabelião de notas de livre escolha dos interessados. Vale dizer, desde que atendidos os pressupostos e requisitos legalmente fixados, os interessados poderão escolher entre a via judicial e a extrajudicial para a operacionalização do inventário e da partilha3. A escritura, assim concebida, constitui título hábil para o registro imobiliário e demais órgãos e repartições públicas e privadas para a transferência de bens e direitos, bem como para promoção de todos os atos necessários à materialização das transferências de bens e levantamento de valores, independentemente de homologação judicial4. Essa inovação se alinhou a uma tendência crescente nas últimas décadas em prestigiar a atividade dos notários e registradores, ampliando seu âmbito de atuação. Isso não apenas pela destacada celeridade e segurança jurídica que as serventias extrajudiciais garantem, mas também pelo consequente desafogamento do Poder Judiciário, que pode então se concentrar na resolução de questões efetivamente litigiosas. É neste ponto, aliás, que reside a nota característica dos procedimentos atribuídos às serventias extrajudiciais: a ausência de litigiosidade. Por isso, a lei exige como pressuposto para a viabilidade do processamento extrajudicial do inventário que as partes sejam plenamente capazes e concordes, exigindo também a inexistência de testamento válido e eficaz deixado pelo falecido. A inexistência de testamento como pressuposto para a via extrajudicial Como acima mencionado, a opção pela via extrajudicial não se compatibiliza com a existência de litigiosidade, daí se exigir a concordância entre os interessados. Estes, até para que possam expressar sua concordância, devem ser plenamente capazes. O art. 610 do CPC é claro nesse sentido, afirmando, em seu § 1º, que o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública "se todos forem capazes e concordes". Essa exigência complementa o disposto no caput, segundo o qual impõe-se a via judicial se houver testamento ou interessado incapaz. Do referido caput, se depreende o outro pressuposto do inventário extrajudicial, qual seja, a inexistência de testamento válido e eficaz do falecido. Visando operacionalizar essa exigência, o provimento 56/2016 do Conselho Nacional de Justiça tornou obrigatório, para a lavratura de escrituras públicas de inventário extrajudicial, a juntada de certidão acerca da inexistência de testamento deixado pelo autor da herança. Tal certidão é expedida, a pedido de interessado e mediante apresentação da certidão de óbito, pela CENSEC - Central Notarial de Serviços Compartilhados, que engloba, dentre seus módulos de informação, o Registro Central de Testamentos OnLine (RCTO), responsável por recepcionar informações sobre a lavratura de testamentos públicos e instrumentos de aprovação de testamentos cerrados em todo o Brasil5. Flexibilização da exigência: precedentes A regra do caput do art. 610 do Código de Processo Civil, no que diz respeito à imposição da via judicial ante a existência de testamento, não foi considerada absoluta pela doutrina nem pela jurisprudência. Cite-se, por exemplo, o Enunciado nº 600 da VII Jornada de Direito Civil do CJF, segundo qual "após registrado judicialmente o testamento e sendo todos os interessados capazes e concordes com os seus termos, não havendo conflito de interesses, é possível que se faça o inventário extrajudicial". Também nessa linha se posicionaram as Corregedorias das Justiças dos diversos estados, editando normas que igualmente excepcionam a referida exigência. É o caso das normas extrajudiciais paulistas, que, com a edição do Provimento 37/20166, passaram a permitir o processamento do inventário, pela via administrativa, quando houver expressa autorização do juízo sucessório competente, nos autos do procedimento de abertura e cumprimento do testamento, com todos os interessados capazes e concordes7. Regra idêntica foi incorporada à Consolidação Normativa do Rio de Janeiro8, a partir do Provimento 24/2017. As normas paulistas também admitiram o inventário extrajudicial nas hipóteses de testamento revogado ou caduco ou, ainda, quando houver decisão judicial, com trânsito em julgado, declarando a invalidade do testamento, observadas a capacidade e a concordância dos herdeiros9. Porém, nesse caso, cabe ao notário, de forma prévia, solicitar a certidão do testamento, a fim de constatar a existência de disposição reconhecendo filho ou qualquer outra declaração de caráter irrevogável, caso em que a lavratura de escritura pública de inventário e partilha ficará vedada, processando-se o inventário exclusivamente pela via judicial10. De forma semelhante determinou o Código de Normas da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de Santa Catarina, tanto ao permitir o inventário por escritura pública na hipótese de testamento revogado, caduco ou invalidado por decisão judicial transitada em julgado11, quanto ao admiti-lo se já ocorrida a abertura do testamento em juízo e o cumprimento de todas as disposições testamentárias12. Posicionamento do STJ A questão da compatibilidade entre o processamento extrajudicial do inventário e a preexistência de testamento foi recentemente abordada pela 4ª Turma do STJ, por ocasião do julgamento do REsp 1.808.767/RJ, ocorrido em 15/10/2019 e relatado pelo ministro Luis Felipe Salomão. A Corte concluiu, de forma unânime, pela possibilidade de inventário extrajudicial mesmo havendo testamento do falecido, desde que este tenha sido previamente registrado judicialmente ou se tenha a expressa autorização do juízo competente. Isso se, atendendo à exigência da lei, os interessados forem capazes e concordes e estiverem devidamente assistidos por advogados. No caso analisado, a autora da herança falecera em 2015, deixando testamento público que atribuía a parte disponível da herança ao viúvo. O referido testamento foi aberto, processado e concluído perante a 2ª Vara de Órfãos e Sucessões do Rio de Janeiro, com a plena concordância dos herdeiros - todos maiores e capazes - bem como da Procuradoria do Estado. Muito embora o inventário tenha sido iniciado na via judicial, os interessados solicitaram a extinção do feito e a autorização para o proceder pela via administrativa. Tal pedido foi indeferido em primeiro grau - decisão confirmada posteriormente pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro - com fundamento no art. 610, caput, do CPC/2015. Argumentou-se que, de acordo com o dispositivo, a existência de testamento impõe o processamento judicial do inventário e da partilha, obstaculizando, consequentemente, a via extrajudicial. Em recurso ao STJ, os recorrentes invocaram o disposto no § 1º do mesmo art. 610, alegando que o preceito, ao permitir o inventário extrajudicial na hipótese de herdeiros capazes e concordes, excepcionaria o caput, de modo que a existência de testamento não seria, por si só, um empecilho à via administrativa. No julgamento do Recurso Especial, tal argumento foi confirmado pelo relator, que deu uma interpretação sistemática ao § 1º, considerando-o uma exceção ao caput. Ou seja, muito embora a regra do caput estabeleça que tanto a existência de testamento como de interessado incapaz impõem a via judicial, o § 1º, ao exigir tão somente a capacidade e concordância dos envolvidos para autorizar o processamento extrajudicial do inventário, estaria restringindo a hipótese de incidência do caput. Vale dizer, a existência de testamento em princípio impede a via extrajudicial, salvo na situação de interessados plenamente capazes e concordes. Reforçando essa possibilidade, argumentou o relator que o inventário extrajudicial é fomentado pela legislação hodierna, pois representa uma redução na carga burocrática - e consequentemente de tempo e custos - de modo a facilitar a operacionalização da transmissão hereditária. Essa finalidade social é endossada, segundo o ministro, pelos arts. 5º da LINDB e 3º, 4º e 8º do CPC. Afirmou, ainda, que sendo todos os herdeiros e interessados maiores, capazes e plenamente concordes quanto à destinação e à partilha de bens, inexiste conflito de interesses, e por isso não seria razoável impor a judicialização do inventário para efetivar um testamento inclusive já tido como válido pela Justiça. __________ 1 V. F. Kümpel - C. M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral, São Paulo, YK Editora, 2017, pp. 918-919. 2 Note-se que a matéria foi também regulamentada pela Resolução nº 35, de 24 de abril de 2007, do Conselho Nacional de Justiça. Deve-se também considerar as normas editadas pelas Corregedorias da Justiça dos Estados atinentes à atividade notarial. No Estado de São Paulo, por exemplo, a matéria é regida pelos itens 105 e seguintes do Cap. XIV, Tomo II, das NSCGJSP. 3 Ressalte-se o caráter facultativo do inventário e partilha extrajudiciais. Disso decorre ser possível optar pela via judicial, ainda que presentes todos os requisitos legais para o processamento administrativo. Essa natureza facultativa deriva da própria dicção legal, haja vista ter a lei utilizado o vocábulo "poderão" no § 1º, do art. 610 do CPC/2015. Fica claro, pois, o objetivo do legislador de criar uma alternativa aos interessados, sem obrigá-los e sem prejudicar o direito de ação das partes. O art. 2° da Resolução nº 35/2007 é ainda mais claro nesse sentido, determinando: "é facultada aos interessados a opção pela via judicial ou extrajudicial; podendo ser solicitada, a qualquer momento, a suspensão, pelo prazo de 30 dias, ou a desistência da via judicial, para promoção da via extrajudicial". Não obstante, até por um imperativo de segurança jurídica, não se deve admitir a tramitação simultânea dos dois procedimentos, judicial e extrajudicial. 4 V. F. Kümpel - C. M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral, São Paulo, YK Editora, 2017, pp. 918-919. 5 Art. 2º do Provimento nº CNJ 56/2016. 6 O provimento teve fundamento no parecer 133/2016-E, emitido no Processo nº 2016/52695, relatado pelo então juiz assessor da Corregedoria, Swarai Cervone de Oliveira. 7 Item 129, Cap. XIV, Tomo II. 8 Art. 286, § 1º, II. 9 Item 129.1, Cap. XIV, Tomo II, das NSCGJSP. 10 Item 129.2, Cap. XIV, Tomo II, das NSCGJSP. 11 Art. 814-A, caput, acrescido pelo Provimento n. 18, de 23 de novembro de 2017. 12 Art. 814-A, § 1º.
Mais um passo no combate aos crimes de lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo foi dado com a regulamentação, pelo CNJ, dos dispositivos das leis 9.613, de 3 de março de 1998 e lei 13.260, de 16 de março de 2016 aplicáveis às serventias extrajudiciais, por meio do Provimento n. 88, que entrará em vigor em 3 de fevereiro de 20201. Ao dispor sobre o crime de lavagem de dinheiro, a lei 9.613/1998, com as alterações da lei 12.683/2012, sujeitou diversas atividades aos mecanismos de controle, dentre as quais os registros públicos (art. 9º, XIII) bem como as pessoas físicas que prestem serviços de assessoria, consultoria, aconselhamento ou assistência em operações de compra e venda de imóveis (art. 9º, XIV, "a"). Esses mecanismos, que implicam uma série de obrigações às pessoas abrangidas, foram elencados sobretudo nos arts. 10 e 11, mas careciam de regulamentação específica no âmbito das serventias notariais e registrais. Assim, dando concretude às diretrizes fixadas pelas referidas leis, o Provimento n. 88 do CNJ dispõe sobre a política, os procedimentos e os controles a serem adotados pelos notários e registradores visando a prevenção desses crimes. Note-se que a edição do Provimento n. 88 se alinha à Ação n. 12/2019 da ENCCLA (Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro), cujo objetivo é integrar notários e registradores no combate e prevenção aos crimes de lavagem de dinheiro e corrupção. Essa meta é compartilhada pelo CNJ, cuja atuação nos últimos anos faz transparecer um esforço institucional no combate à corrupção, à lavagem de capitais e financiamento do terrorismo2. No presente artigo, serão esplanadas as disposições gerais do Provimento 88, e esmiuçados os aspectos específicos concernentes ao registro de imóveis. Confira a íntegra da coluna. __________ 1 Art. 45 do Provimento CNJ 88/2019. 2 "Segundo o presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, o provimento se alinha ao esforço institucional promovido do CNJ nos últimos anos para combater a corrupção. "A edição do Provimento n. 88, pela Corregedoria Nacional de Justiça, em conjunto com outras ações adotadas na atual gestão - como a instituição, em dezembro de 2018, do Ranking da Transparência, em compasso com a Ação da Enccla nº 4/2015 - simboliza o resgate do protagonismo do Judiciário no combate à corrupção, à lavagem de capitais e financiamento do terrorismo", disse, na solenidade de assinatura do Provimento n. 88". Acesso em 28-10-2019.
Vitor Frederico Kümpel e Giselle de Menezes Viana I) Introdução A Medida Provisória 897, de 1º de outubro de 2019, instituiu o Fundo de Aval Fraterno e, dentre outras providências, dispôs sobre o patrimônio de afetação de propriedades rurais e instituiu a Cédula Imobiliária Rural. No que diz respeito ao patrimônio de afetação - ao qual a MP 897/2019 dedicou todo o seu Capítulo II (arts. 6º ao 13) - ficou estabelecido que o proprietário de imóvel rural, pessoa natural ou jurídica, poderá submeter seu imóvel rural ou fração dele a este regime1. Ou seja, ao proprietário fica reconhecido o direito de constituir a sua propriedade ou parte dela como patrimônio de afetação. Esse patrimônio de afetação poderá ser vinculado à chamada Cédula Imobiliária Rural (CIR), disciplinada no Capítulo III da MP 897/2019 (arts. 14 a 25). No presente artigo, serão analisados os principais aspectos desses novos institutos, como eles se associam a outras figuras jurídicas já existentes e como se relacionam entre si na sistemática inaugurada pela MP 897/2019. II) Teoria da Afetação2 A teoria da afetação diz respeito à possibilidade de segregação patrimonial ou qualificação de determinado acervo patrimonial por meio da imposição de encargos que vinculam os bens englobados a uma finalidade específica. De acordo com essa teoria, admite-se a existência de múltiplas massas patrimoniais sob titularidade de um mesmo sujeito, constituídas com o fim de proteger um bem socialmente relevante ou viabilizar a exploração determinada econômica3. A afetação, nesse sentido, significa "prender ou ligar um patrimônio a um empreendimento, a uma obrigação, a um compromisso, não se liberando enquanto perdura a relação criada entre aquele que se obriga e os credores da obrigação"4. Assim, ela não retira o bem do patrimônio do titular, mas apenas o mantém apartado5, de modo que não se comunique com o restante do patrimônio. Vale dizer, não há uma quebra na titularidade da propriedade, que permanece em nome daquele em cujo nome está registrada6. Isto porque na afetação não há a saída daquela parcela de bens e direitos do patrimônio geral, mas apenas a sua indisponibilidade, tornando nula eventual alienação e assegurando ao beneficiário o direito de sequela, em caso de transferência total ou parcial do bem para patrimônio alheio7. O patrimônio de afetação, em suma, pode ser definido como um regime especial da propriedade, sendo considerado uma garantia em favor dos credores, especialmente dos adquirentes8. Sob esse viés, pode-se afirmar que tem natureza jurídica de garantia real9. Sob outro viés, partindo da definição jurídica de patrimônio, tem-se que o patrimônio de afetação constitui uma universalidade de direitos e obrigações, vinculada ao cumprimento de uma finalidade específica, para a qual reveste-se de autonomia funcional. É, assim, uma massa de bens que constitui, no bojo de um patrimônio geral, uma universalidade de direito, dotada de autonomia funcional10. De toda forma, importa ressaltar que o traço característico do patrimônio de afetação - e o que permite que cumpra sua finalidade social e econômica - é a incomunicabilidade. Por meio desta, os bens afetados ficam a salvo dos eventuais efeitos negativos de negócios estranhos ao objeto da afetação11. III) Regime de afetação da MP nº 897/2019 Optando o proprietário do imóvel rural por adotar o regime de afetação da MP nº 897/2019, o terreno, as acessões e as benfeitorias fixadas no imóvel constituirão patrimônio de afetação, destinado a prestar garantias em operações de crédito contratadas pelo proprietário junto a instituições financeiras12. Esse patrimônio de afetação, então, poderá ser vinculado a uma ou mais Cédulas Imobiliárias Rurais, hipótese na qual os bens e os direitos dele integrantes não se comunicarão com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do proprietário ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos. Ressalte-se, ainda, que essa incomunicabilidade é limitada às garantias vinculadas à Cédula Imobiliária Rural13. Percebe-se que conceito dado pela MP 897/2019 ao patrimônio de afetação é o mesmo empregado pela lei 4.591/1964, para o patrimônio de afetação da incorporação imobiliária. Com efeito, ao submeter a incorporação imobiliária ao regime da afetação, o acervo patrimonial que a compõe (o terreno, as acessões e os demais bens e direitos vinculados à incorporação) fica apartado do patrimônio geral do incorporador, assumindo como destinação exclusiva a construção do empreendimento e entrega das unidades aos adquirentes14. A grande diferença em relação ao patrimônio de afetação da MP nº 897/2019 é, naturalmente, a destinação, sendo o último destinado a prestar garantias em operações de crédito junto a instituições financeiras. IV) A Cédula Imobiliária Rural - CIR No que diz respeito à Cédula Imobiliária Rural - CIR, a MP 897/2019 a conceitua como um título de crédito nominativo, transferível e de livre negociação, representativo de15: a) promessa de pagamento em dinheiro, decorrente de operação de crédito, de qualquer modalidade, contratada com instituição financeira; e b) obrigação de entregar, em favor do credor, bem imóvel rural ou fração deste vinculado ao patrimônio de afetação, e que seja garantia da operação de crédito de acima mencionada, nas hipóteses em que não houver o pagamento da operação de crédito. A CIR, assim definida, é título executivo extrajudicial e representa dívida em dinheiro, certa, líquida e exigível correspondente ao valor nela indicado ou ao saldo devedor da operação de crédito que representa16. A legitimidade para emissão da CIR tem como pressuposto a constituição do patrimônio de afetação. Disso decorre que essa emissão é balizada pelos limites da garantia representada pelo imóvel afetado ou fração deste, como a própria MP nº 897/2019 esclarece17. Por outro lado, nada impede que a CIR seja garantida por apenas parte do patrimônio afetado, desde que devidamente identificada18. V) Limites objetivos A MP 897/2019 previu alguns limites objetivos à possibilidade de constituição de patrimônio de afetação sobre imóveis rurais. Assim, tal regime não poderá incidir sobre19: c) imóvel já gravado por ônus real (como hipoteca, alienação fiduciária etc.); d) imóvel em cuja matrícula tenha sido registrada ou averbada qualquer uma das informações arroladas no art. 54 da lei 13.097/201520; e) a pequena propriedade rural21; f) área de tamanho inferior ao módulo rural ou à fração mínima de parcelamento, o que for menor22; g) o bem de família. VI) Efeitos Embora a constituição do patrimônio de afetação não altere a titularidade do imóvel, impõe restrições à sua disponibilidade pelo proprietário. Primeiramente, não poderá constituir sobre o ele nenhuma garantia real, com exceção da própria CIR23. Além disso, não poderá alienar o imóvel, seja por compra e venda, doação, ou qualquer outro ato translativo por iniciativa do proprietário24. O patrimônio de afetação vinculado à CIR (apenas na medida dessa vinculação) torna-se impenhorável, não se sujeitando a constrição judicial25. Ainda, tem-se que não poderá ser utilizado para realizar ou garantir o cumprimento de qualquer outra obrigação assumida pelo proprietário estranha àquela a qual vinculada a Cédula Imobiliária Rural26. A MP 897/2019 prossegue afirmando que o patrimônio de afetação (ou a fração dele) vinculado a Cédula Imobiliária Rural, não será atingido pelos efeitos da decretação de falência, insolvência civil ou recuperação judicial do proprietário de imóvel rural27, nem integrará a massa concursal28. Por fim, ressalva que esses atributos do patrimônio de afetação não se aplicam às obrigações trabalhistas, previdenciárias e fiscais do proprietário rural29. No que diz respeito ao proprietário, a constituição do patrimônio de afetação não apenas implica limitações (como as acima tratadas) mas também gera deveres. Com efeito, ficará obrigado a30: a) promover os atos necessários à administração e à preservação do patrimônio de afetação, inclusive por meio da adoção de medidas judiciais; e b) manter-se adimplente com as obrigações tributárias e os encargos fiscais, previdenciários e trabalhistas de sua responsabilidade, incluída a remuneração dos trabalhadores rurais. VII) Natureza do ato registral Questão delicada diz respeito à forma de constituição desse patrimônio de afetação. Segundo a MP 897/2019, será constituído "por solicitação do proprietário por meio de inscrição no registro de imóveis"31. Sucede que o termo "inscrição" não esclarece o ato registral que deverá ser praticado, haja vista abranger, em tese, tanto o registro em sentido estrito, quanto a averbação. Embora a MP 897/2019 não tenha especificado a natureza dessa inscrição, o mais correto é entender que o ato praticável é a averbação. Em primeiro lugar, porque o rol de atos sujeitos a registro em sentido estrito (art. 167, I, da LRP) é taxativo ou numerus clausus, e não foi ampliado pela MP 897/2019 para acomodar o patrimônio de afetação de imóvel rural. Em segundo lugar, por um motivo de ordem material: a constituição desse patrimônio de afetação não importa mutação júri-real. Apenas haverá a transmutação da propriedade em caso de inadimplemento, ocasião em que o imóvel será levado a leilão, como se verá adiante. Lembrando que o registro em sentido estrito é o ato que constitui, modifica ou declara determinada posição jurídico-real na matrícula, conferindo-lhe eficácia e publicidade erga omnes32. Tal assentamento reserva-se, em regra, a atos de oneração ou constituição de direitos reais, abarcando, por extensão, outros atos de natureza diversa, desde que respaldados em expressa previsão legal33. Além disso, é possível traçar uma analogia com o patrimônio de afetação da incorporação imobiliária, que ingressa no registro de imóveis por ato de averbação34. Observe-se que, apesar das aproximações entre os institutos, neste aspecto o patrimônio de afetação difere da alienação fiduciária. Com efeito, conforme o art. 22 da lei 9.514/1997, a alienação fiduciária importa na transferência da propriedade resolúvel do imóvel ao credor, com o escopo de garantia. Daí ser efetivada por ato de registro em sentido estrito35. Pode-se afirmar, inclusive, que o regime estabelecido pela MP 897/2019 foi uma evolução em relação àquele da lei 9.514/1997, que também é um regime de afetação. Neste, é primeiro efetuado o registro da alienação fiduciária, depois a averbação da consolidação da propriedade ao credor, em caso de inadimplemento e, finalmente, os registros das eventuais arrematações. Já pelo regime da MP 897/2019, o patrimônio afetado continua na titularidade do devedor, embora vinculado à dívida garantida pela CIR. VIII) Procedimento registral A constituição do patrimônio de afetação sobre o imóvel rural dependerá de rogação pelo proprietário, que deverá instruir sua solicitação com os documentos elencados no art. 11 da MP 897/2019. O pedido, juntamente com os documentos vinculados, serão então protocolados e autuados pelo oficial de registro de imóveis36. Qualificado negativamente o pedido - ou seja, caso o registrador o considere em desacordo com o disposto na MP 897/2019 - o interessado fará jus ao prazo de 30 dias, contado da data da decisão, para promover as correções necessárias, sob pena de indeferimento da solicitação37. Em todo caso, o interessado poderá solicitar a reconsideração da decisão do oficial de registro de imóveis38. IX) Consequências do inadimplemento A MP 897/2019 dispõe que, uma vez vencida a CIR, e não tendo sido liquidado o crédito por ela representado, poderá o credor exercer de imediato, no cartório de registro de imóveis correspondente, o direito à transferência, para sua titularidade, do registro da propriedade da área rural que constitui o patrimônio de afetação ou de sua parte vinculado à Cédula39. Como mencionado, é possível que o proprietário constitua o patrimônio de afetação sobre uma parte do imóvel rural (desde que observado o módulo rural ou a FMP, já que essa área poderá ser futuramente alienada em caso de inadimplemento da CIR). Também é possível que, uma vez constituído o patrimônio de afetação sobre a totalidade ou parte do imóvel rural, o proprietário vincula apenas uma parte desse patrimônio à CIR. Em ambos os casos, verificado o inadimplemento da CIR, será necessário o desmembramento do imóvel, para permitir a abertura de matrícula e alteração da titularidade apenas da fração efetivamente afetada e vinculada à Cédula40. Embora haja a transmutação imediata da propriedade afetada e vinculada à CIR para o credor, este fica obrigado a promover leilão público para a alienação do imóvel, a exemplo do que ocorre na alienação fiduciária de coisa imóvel em garantia. Aliás, a MP nº 897/2019 inclusive prevê a aplicação subsidiária do procedimento dos art. 26 e art. 27 da lei 9.514/199741. Não obstante, a MP nº 897/2019 traz uma peculiaridade em relação ao procedimento da lei 9.514/1997. Com efeito, dispõe que se, no segundo leilão, o maior lance oferecido não for igual ou superior ao valor da dívida, somado ao das despesas, dos prêmios de seguro e dos encargos legais, incluídos os tributos, o credor poderá cobrar do devedor, por via executiva, o valor remanescente de seu crédito42. Assim, não se aplica a regra do art. 27, ­§ 5º, da lei 9.514/1997, segundo o qual, nessa hipótese, considerar-se-á extinta a dívida. Em todo caso, ressalte-se que nessa situação o credor não terá direito de retenção ou indenização sobre o imóvel alienado. __________ 1 Art. 6º, caput, da MP 897/2019. 2 V. F. Kümpel - C. M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral: Registro de Imóveis, v. 5, t. 2, São Paulo, YK Editora, 2019 [no prelo]. 3 M. N. Chalhub, Da Incorporação Imobiliária, Rio de Janeiro, Renovar, 2003, p. 79. 4 A. Rizzardo, Condomínio Edilício e Incorporação Imobiliária, 5ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2017, p. 360. 5 M. N. Chalhub, Da Incorporação Imobiliária, Rio de Janeiro, Renovar, 2003, p. 79. 6 A. Rizzardo, Condomínio Edilício e Incorporação Imobiliária, 5ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2017, p. 361. 7 Mauro Antônio Rocha, O Regime da Afetação Patrimonial na Incorporação Imobiliária. Acesso em 5/6/2019. 8 A. Rizzardo, Condomínio Edilício e Incorporação Imobiliária, 5ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2017, p. 360. 9 Flauzilino Araújo dos Santos, Condomínios e Incorporações no Registro de Imóveis - teoria e prática, São Paulo, Mirante, 2012, p. 274. 10 M. N. Chalhub, Da Incorporação Imobiliária, Rio de Janeiro, Renovar, 2003, pp. 83-84. 11 M. N. Chalhub, A promessa de compra e venda no contexto da incorporação imobiliária e os efeitos do desfazimento do contrato, in Revista de Direito Civil Contemporâneo, 7 (2016), pp. 147-183. 12 Art. 6º, parágrafo único, da MP 897/2019. 13 Art. 9º, caput, da MP 897/2019. 14 Art. 31-A, caput, da lei 4.591/1964. 15 Art. 14 da MP 897/2019. 16 Art. 18, caput, da MP 897/2019. 17 Art. 15, caput, da MP 897/2019. 18 Art. 15, parágrafo único, da MP 897/2019. 19 Art. 7º da MP 897/2019. 20 O art. 54 da lei 13.097/2015 considera eficazes, em relação a atos jurídicos precedentes, os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis, caso não tenham sido registradas ou averbadas, na matrícula do imóvel, as citações de ações reais ou pessoais reipersecutórias, averbação premonitória, constrição judicial (penhora, arresto, sequestro), restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, indisponibilidade de bens ou de outros ônus quando previstos em lei, e decisão judicial de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência. 21 O art. 5º, caput, inciso XXVI, da Constituição Federal dispõe que "a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento". O conceito de pequena propriedade rural foi dada pela Lei 8.626/1993, que a define como o imóvel rural de área até quatro módulos fiscais, respeitada a fração mínima de parcelamento (art. 4º, II, "a"). 22 A MP 897/2019 remete ao art. 8º da lei 5.868/1972, cujo caput dispõe: "Para fins de transmissão, a qualquer título, na forma do Art. 65 da Lei número 4.504, de 30 de novembro de 1964, nenhum imóvel rural poderá ser desmembrado ou dividido em área de tamanho inferior à do módulo calculado para o imóvel ou da fração mínima de parcelamento fixado no § 1º deste artigo, prevalecendo a de menor área". 23 Art. 9º, § 1º, da MP 897/2019. 24 Art. 9º, § 2º, da MP 897/2019. 25 Art. 9º, § 3º, II, da MP 897/2019. 26 Art. 9º, § 3º, I, da MP 897/2019. 27 Art. 9º, § 4º, I, da MP 897/2019. 28 Art. 9º, § 4º, II, da MP 897/2019. 29 Art. 9º, § 5, da MP 897/2019. 30 Art. 13 da MP 897/2019. 31 Art. 8º da MP 897/2019. 32 Nas palavras de Afrânio de Carvalho, Registro de Imóveis, 4ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1997, p. 236: "(...) o registro não é o desaguadouro comum de todos e quaisquer títulos, senão apenas daqueles que confiram posição jurídico-real, como os constantes da enumeração da nova Lei do Registro (art. 167)". 33 V. F. Kümpel - C. M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral: Registro de Imóveis, v. 5, t. 1, São Paulo, YK Editora, 2019 [no prelo]. 34 Segundo o art. 31-B, caput, da lei 4.591/1964, "Considera-se constituído o patrimônio de afetação mediante averbação, a qualquer tempo, no Registro de Imóveis, de termo firmado pelo incorporador e, quando for o caso, também pelos titulares de direitos reais de aquisição sobre o terreno". 35 Dispõe o art. 23, caput, da lei 9.514/1997 que "Constitui-se a propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título". Ainda, a referida lei acresceu o item "35" ao art. 167, I, da LRP, incluindo a alienação fiduciária em garantia de coisa imóvel no rol de atos sujeitos a registro em sentido estrito. 36 Art. 10 da MP 897/2019. 37 Art. 12, caput, da MP 897/2019. 38 Art. 12, parágrafo único, da MP 897/2019. 39 Art. 24, caput, da MP 897/2019. 40 Art. 24, § 1º, da MP 897/2019. 41 Art. 24, § 2º, da MP 897/2019. 42 Art. 24, § 3º, da MP 897/2019.
quarta-feira, 22 de maio de 2019

Divórcio impositivo

Foi editado recentemente o Provimento 06/2019, da Corregedoria Geral da Justiça do estado de Pernambuco, no último dia 29 de abril, instituindo o divórcio impositivo. O referido provimento é inovador e autoriza, exclusivamente no Estado de Pernambuco, qualquer dos cônjuges a pleitear, diretamente no Registro Civil das Pessoas Naturais, onde esteja lançado o assento de casamento, a averbação do divórcio, bastando para tal preencher o formulário anexo "REQUERIMENTO DE AVERBAÇÃO DO DIVÓRCIO IMPOSITIVO". Segundo o provimento, ainda, faz-se necessário que o interessado não tenha filhos menores, incapazes ou nascituro, bastando que o requerimento seja assinado por advogado ou defensor público. O mais interessante é a dispensa da presença ou ciência do outro cônjuge, que poderá ser notificado pessoalmente ou por edital, após esgotadas as diligências para a sua localização. É possível que questões como alimentos e eventual partilha de bens remanesça para discussão superveniente. Apesar de a medida ser inovadora, aliás, uma das marcas da Corregedoria da Justiça do Estado de Pernambuco - lembrando que foi pioneira ao autorizar a exclusão da súmula 377 por escritura antenupcial, convertendo a separação obrigatória em consensual, tema analisado em Registralhas já antiga -, algumas considerações devem ser feitas nesta oportunidade. Em primeiro lugar, é bom relembrar que o nosso sistema registral civil, imobiliário, etc, é do "título e modo", de forma que o ato de registro exige a presença de um título formal. No presente caso, não nos parece que um mero requerimento potestativo configura um título idôneo a admitir um ato averbatório que rompe a sociedade conjugal e o vínculo matrimonial. Tanto isso é verdade que o próprio CNJ, na resolução 35/2007, por força da lei 11.441 do mesmo ano, passou a admitir as escrituras de separação e divórcio, desde que observada uma série de requisitos. Verifica-se, inclusive, que a Resolução n. 220, de 26 de abril de 2016, ampliou os requisitos para a lavratura de escritura de separação consensual, na medida em que o próprio CPC atual exige a inexistência de gravidez do cônjuge virago. O nosso CPC, lei 13.105, de 16 de março de 2015, indica em seu art. 733 a escritura pública de divórcio consensual, separação consensual, independentemente de homologação judicial, como título hábil a ser averbado junto ao Registro Civil das Pessoas Naturais. Por mais louvável que seja, não pode o Provimento "revogar" o Código de Processo Civil e criar um título que parece inábil, já em relação à sua forma constitutiva. Em resumo, dois são os títulos hábeis de averbação junto ao RCPN: a escritura pública e a sentença judicial, nenhum outro. Em segundo lugar, os modelos de separação e divórcio existentes no sistema são os litigiosos, com caráter resilitivo (art. 1.572 e §§), e os consensuais. Para que haja consenso, é necessária a clara manifestação e vontade de ambas as partes, não havendo em nenhum dispositivo da legislação pátria qualquer autorização para um divórcio potestativo, na medida em que, inclusive, a potestatividade só pode ser reconhecida por ato da jurisdição. Em terceiro lugar, é bom sopesar que o casamento exige uma série de liturgias constitutivas e a sua extinção por divórcio também exige cautela e até uma certa simetria com a sua constituição, para não gerar uma banalização e um ato, muitas vezes, emocional e impensado por parte de qualquer dos consortes. Tanto isso é verdade, que a resolução 35 do CNJ exige grande cautela por parte do tabelião, a começar pelo fato de ser necessário um ambiente próprio e isolado para que ocorra a profilaxia notarial. A questão é tão complexa que o art. 46 da mesma Resolução autoriza o tabelião a se negar a lavrar a escritura de separação e divórcio quando aferir prejuízo para qualquer uma das partes ou em caso de dúvida sobre a declaração de vontade. Como dito acima, não é desarrazoado imaginar a hipótese de o casal discutir, se separar de fato e algum deles, até para chamar a atenção do outro, comparecer no RCPN e dar início ao requerimento, usando do ofício de Registro Civil como meio de fomentar uma reaproximação ou a dissolução. Também não é desarrazoado apresentar um endereço não verdadeiro, o que implicará na publicação de edital, e se apresentar divorciado perante outro contraente. Em quarto lugar, o Provimento nada fala a respeito de emolumentos no ofício de Registro Civil. Além de suprimir a escritura do tabelião de notas, tudo faz crer que ou aplicar-se-á a gratuidade ou será remunerado apenas um ato de averbação de divórcio impositivo. Não haverá qualquer remuneração pela prática de procedimento desgastante para o oficial, que será obrigado a notificar o outro contraente ou expedir edital, além de ter que diligenciar, caso o outro cônjuge não seja encontrado (art. 2º, parágrafo único). Dessa sorte, tanto a averbação do divórcio quanto as anotações e eventuais averbações de retificação de nome, são atos gratuitos a onerar ainda mais serventia tão importante e tão mal remunerada como é o RCPN. O Direito de Família, para muitos estudiosos, e já faz algum tempo, deixou de ser ciência e está, aos poucos, deixando também de ser técnica. É louvável que ocorram algumas mudanças e que os serviços prestados pelas serventias extrajudiciais sejam os mais adequados e céleres possíveis, porém, com parcimônia e fulcrado em lei. É o mínimo que se espera. Sejam felizes! Até o próximo Registralhas.
terça-feira, 2 de abril de 2019

Lei do Distrato - Considerações históricas

Vitor Frederico Kümpel e Natália Sóller O Brasil colonial, no período de vigência das Ordenações, principalmente das Filipinas (1603-1916 a. d.), seguindo o modelo português, adotava o sistema registral do título, o que significa dizer que a propriedade dos bens imóveis era transmitida pelo contrato (título)1, até porque nesse período o registro imobiliário estava engatinhando no seu berço germânico (nasceu por volta de 1480 a. d.). O sistema registral do título tem por base o princípio do consenso, também chamado de consensualidade, estando a prova da transmissão dominial no próprio contrato (escritura pública), sendo esse o instrumento e a celebração, o momento da mutação dominial. Esse sistema, no Brasil, mesmo com o advento da Lei de Terras de 1850 (lei 601 que estabeleceu o registro paroquial) e da lei 1.237/1864 (pela qual o registro deixa de ser paroquial e passa aos tabeliães de notas), continuou a vigorar. Apesar de todo o respeito que deve ser nutrido pela grandiosa figura de Clóvis Bevilaqua, com a vigência do primeiro Código Civil brasileiro, a partir de 1º de janeiro de 1917, foi revogado o sistema do título, passando a incidir o complexo sistema do título e modo (art. 530, I2). Bevilaqua importou da Alemanha, em parte, o modelo registral e com uma única canetada passou a tornar obrigatório o registro, porém, ao contrário da Alemanha, manteve uma causação entre o contrato (título) e o registro (modo). O sistema do título e modo exige que, em um primeiro momento, as partes realizem um negócio jurídico obrigacional entre si, do qual extrair-se-á um título e, para que tal negócio produza efeitos, apresentem o título para registro, que constituirá o direito real negociado. Dessa forma, a transmissão da propriedade ou de direitos reais apenas terá efeitos após o registro do título (fruto da negociação entre as partes) no ofício de registro de imóveis. Esse novo modelo passou a gerar problemas absolutos, notadamente na transmissão imobiliária decorrente de aquisições em prestações periódicas. O Código Civil de 1916 foi incapaz de criar um mecanismo adequado para a grande massa da população brasileira da época, inclusive, que não tinha capacidade econômica para lavrar uma escritura de compra e venda à vista e imediatamente encaminha-la ao registro imobiliário para a transmissão da propriedade (transcrição, à época). Os imóveis precisavam ser comercializados por meio de uma promessa de compra e venda, na medida em que nenhum vendedor iria outorgar uma escritura para um comprador não quitado. Note-se, contudo, que o instituto da promessa de compra e venda tal como temos hoje ainda não era previsto no Ordenamento, de forma que o contrato era feito com base no art. 1.088 do Código Civil de 19163. Tendo em vista que a escritura pública (título registrável) somente seria lavrada após o pagamento integral da dívida, isso causava uma insegurança jurídica ao negócio, na medida em que quaisquer das partes podia se arrepender a qualquer momento, bastando, para isso, restituir o valor e reter ou restituir o sinal (Súmula n. 412 do STF4). Essa angústia afligia muito mais os compromissários compradores do que os promitentes vendedores. Isso porque a promessa não tinha qualquer ingresso no Registro Imobiliário, de forma que os promitentes vendedores alienavam a coisa a mais de um titular ou simplesmente se arrependiam por força do crescente mercado imobiliário, restituindo as quantias recebidas e até o sinal em dobro, para que pudessem reinserir o imóvel no mercado a preços mais altos. Isso era plenamente possível, na medida em que o título por si só não transferia nem garantia a aquisição da propriedade e inexistia publicidade da venda aos demais interessados no bem por conta da ausência do registro na matrícula do imóvel. Esse problema terrível gerado pela mudança de sistema só foi, em parte, solucionado com o advento do decreto-lei 58, em 1937, portanto, passados 20 anos de angústia e de vigência do CC/1916. O referido Decreto-Lei fez nascer o compromisso irretratável de compra e venda, modificado por várias legislações supervenientes, inclusive pela lei 6.766/79. Não sem razão, as legislações acima mencionadas prestigiaram o compromissário comprador, garantindo ao contrato de compromisso de compra e venda o direito à adjudicação compulsória e a irretratabilidade por parte do promitente vendedor (súmulas 239 do STJ5 e n. 166 do STF6). Aliás, o decreto-lei 58 criou um novo direito real chamado "direito real de aquisição" ou "direito real sobre coisa alheia sui generis", de forma que o próprio compromisso de compra e venda também poderia ingressar no Registro de Imóveis para fins de publicidade. Passados mais de 80 anos da existência do compromisso de compra e venda, o mundo mudou. Daquela sociedade quase agropastoril, passou-se a uma sociedade de massa, em que a incorporação imobiliária (lei 4.591/64) e os loteamentos (lei 6.766/79) reinam em termos de empreendimentos imobiliários. Agora, já no final da segunda década do século XXI, além da proteção aos compromissários compradores, tornou-se necessária a proteção aos promitentes vendedores. Com a crise que assola o país e com o índice absurdo de desemprego que de forma epidêmica atinge a mais de 13 milhões de pessoas aptas a trabalhar7, não é possível que o compromissário comprador simplesmente resolva inadvertidamente o contrato com o promitente vendedor e tenha a restituição integral e imediata do que desembolsou, com a retenção pelo promitente vendedor tão somente do sinal e eventualmente de alguma parcela do período de posse sobre a coisa (nos casos de empreendimento já concluído). Ora, garantir ao compromissário comprador a restituição quase integral das quantias pagas retira do promitente vendedor os recursos financeiros que estavam garantidos pelo contrato e pelo direito real de aquisição. Sem o investimento da compra das unidades imobiliárias, torna-se inviável ao empreendedor a conclusão da obra, pois fica ele obrigado a restituir valores que seriam destinados não só a seu lucro, mas também a cobrir as despesas da construção. Com toda a crítica que tem sido feita, a lei 13.786, de 27 de dezembro de 2018, veio em boa hora, a fim de proteger o promitente vendedor de falência ou de recuperação judicial por resolução contratual decorrente do inadimplemento por parte dos compromissários compradores. A crise no mercado imobiliário não pode ser agravada pelo desprestígio ao empreendedor, que encadeia, por força de seu inadimplemento, crise em todo o sistema habitacional. A lei procura ser equilibrada ao estabelecer regras e sanções tanto para o atraso na conclusão de obra quanto nas hipóteses de inadimplemento por parte do comprador, buscando um equilíbrio e visando retirar do Poder Judiciário a incumbência de solucionar o inadimplemento de ambas as partes. Pensando na ótica do inadimplemento do comprador e, neste artigo, focando na incorporação imobiliária, passou-se a considerar o seguinte recorte: em empreendimentos sem o regime do patrimônio de afetação, o incorporador pode reter até 25% da quantia paga e a integralidade da comissão de corretagem, nos imóveis em que não ocorreu imissão na posse. Caso tenha sido instituído o regime do patrimônio de afetação (arts. 31-A a 31-F da lei n. 4591/1964), o incorporador, em caso de inadimplemento do compromissário comprador, poderá reter até 50% da quantia paga, além da integralidade da comissão de corretagem, a mesma hipótese em que não houve imissão na posse. Muitos podem pensar ser um absurdo a retenção de metade do valor pago. Porém, o legislador certamente quis estimular o importantíssimo instituto do patrimônio de afetação. O patrimônio de afetação é uma garantia e proteção imensa ao comprador consumidor, na medida em que nenhuma dívida do incorporador, salvo do próprio empreendimento, recai no imóvel que está sendo edificado. Isso significa que o empreendimento fica blindado de eventual falência ou insolvência do incorporador. Para estimular esse instituto, o legislador autorizou a retenção de até 50%. Muito embora haja um ou outro probleminha terminológico na lei, sendo que os termos rescisão, resilição e resolução são muitas vezes utilizados de forma incorreta ou inadequada, o nome da lei "Lei do Distrato" parece perfeito, porque a ideia é que, mesmo diante da mora ou inadimplemento de qualquer das partes, com a existência da lei, essas cheguem em um consenso e, caso não optem pela permanência e vigência do contrato, escolham a via consensual do distrato, valendo-se de meio alternativo de solução de conflito e desfaçam amigavelmente o vínculo contratual, trazendo menos custo ao Estado e mais benefícios para ambas as partes. Em outra oportunidade abordar-se-ão outros aspectos relevantíssimos da referida lei que, não obstante críticas, merece aplausos num ano tão complicado como tem sido este de 2019. Sejam felizes! Continuem conosco. __________ 1 Art. 257 do Decreto n. 3.453/1865: Até a transcripção, os referidos actos são simples contractos que só obrigão as partes contractantes. Art. 258 do Decreto n. 3.453/1865: Todavia a transcripção não induz a prova do dominio que fica salvo á quem fôr. 2 Art. 530 do Código Civil de 1916: Adquire-se a propriedade imóvel: I - Pela transcrição do título de transferência no registro do imóvel [...]. 3 Art. 1.088 do Código Civil de 1916: Quando o instrumento público for exigido como prova do contrato, qualquer das partes pode arrepender-se, antes de o assinar, ressarcindo à outra as perdas e danos resultantes do arrependimento, sem prejuízo do estatuído nos arts. 1.095 a 1.097. 4 Súmula 412 do STF: No compromisso de compra e venda com cláusula de arrependimento, a devolução do sinal, por quem o deu, ou a sua restituição em dôbro, por quem o recebeu, exclui indenização maior, a título de perdas e danos, salvo os juros moratórios e os encargos do processo. 5 Súmula n. 239 do STJ: o direito a adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis. 6 Súmula 166 do STF: É inadmissível o arrependimento no compromisso de compra e venda sujeito ao regime do Decreto-Lei 58, de 10-12-1937. 7 L. Naime, Desemprego sobe para 12,4% em fevereiro, diz IBGE, disponível in 29/3/2019.
terça-feira, 19 de março de 2019

Considerações iniciais sobre a lei 13.811/2019

Entrou em vigor, no dia 12 de março de 2019, a lei 13.811, com um único dispositivo legal, sendo que o art. 2º determina a imediata entrada em vigor da referida lei. De acordo com o art. 1º, que altera o art. 1.520 do CC, "não será permitido, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil, observado o disposto no art. 1.517 deste código". O supratranscrito dispositivo sepulta o antigo art. 1.520 que excepcionava o casamento da menor ou do menor de idade, para evitar a imposição ou cumprimento de pena criminal, ou em caso de gravidez. A capacidade matrimonial ocorre aos 16 anos de idade, sendo necessária a autorização de ambos os pais ou emancipação até ser atingida a maioridade civil. Caso qualquer do pais não dê ou denegue o consentimento, é possível o suprimento judicial desse consentimento, promovido pelo interessado, aplicando-se o procedimento de jurisdição voluntária. Existia, até a entrada em vigor da lei em comento, o suprimento de idade para fins de casamento, ocasião em que o juiz verificava a presença de qualquer das duas excepcionalidades (imposição ao cumprimento de pena criminal ou gravidez) e autorizava o matrimônio, podendo na mesma oportunidade suprir, de forma concomitante, o consentimento. Tive o privilégio de judicar em ambas as demandas, sempre realizando audiência de instrução para melhor entender o desejo das partes e bem enquadrá-la na lei. Com o advento da lei 11.106 de 28 de março de 2005 houve a revogação do art. 107, VII do Código Penal. Naquela ocasião, o casamento passou a evitar a imposição ao cumprimento de pena criminal nos, então, "crimes contra os costumes", nas hipóteses de ação penal pública incondicionada ou condicionada à representação. Porém, nos "crimes contra os costumes" de ação penal privada continua a persistir a possibilidade de extinção da punibilidade pelo perdão do ofendido ou pela renúncia do direito de queixa, conforme dicção do art. 107, V do Código Penal. O casamento da vítima com o agente causador do dano era considerado uma renúncia tácita (exercido antes da propositura da ação penal) ou perdão tácito (exercido depois da propositura da ação penal), de forma a persistir, até o advento da atual lei, a possibilidade de incidência da norma civil. A questão da gravidez também autorizava o casamento da menor ou do menor de 16 anos, porque denotava a maturidade sexual que é um dos bens jurídicos tutelados em sede de capacidade matrimonial, lembrando que o Estatuto do Deficiente alberga a capacidade civil plena a qualquer deficiente mental para se casar (art. 6º). Tentei meditar sobre as razões da nova lei e tive grande dificuldade em entender por que o art. 1.520 sofreu a referida modificação, lembrando que nenhuma mudança houve no art. 1.551 que estabelece "não se anulará, por motivo de idade, o casamento de que resultou gravidez". Se tal artigo continua em vigor, significa que se o oficial de registro civil se equivocar e casar pessoa grávida com 15 anos, tal casamento remanescerá válido e eficaz. A norma apenas desautoriza que o juiz torne válido o casamento de menor de 16 anos em qualquer hipótese. A pergunta importante é: caso um casal resolva viver junto, tendo ambos 15 anos de idade e um filho, qual o status jurídico desse casal? A resposta antes da entrada em vigor da lei era simples. Estão em união estável, aplicando-se todos os benefícios da entidade familiar, inclusive com o direito de se casar ou de converter a união estável em casamento. Após a entrada da referida lei, o casal em questão está em concubinato, na medida em que o art. 1.727 do Código Civil é bastante claro ao afirmar que as relações não eventuais, de pessoas impedidas de casar, constituem concubinato, sem proteção legal. Em matéria de família, seria interessante o legislador* (começar a pensar que a alteração legislativa não implica em automática alteração das relações sociais e que, muitas vezes, ideias tidas por benéficas trazem resultados funestos, para não falar outra coisa.) Sejam felizes! Até o próximo Registralhas.
Vitor Frederico Kümpel Bruno de Ávila Borgarelli No último Registralhas abordamos o importante provimento 81 da Corregedoria Nacional de Justiça (de 6/12/2018), que dispõe sobre a renda mínima do Registrador Civil de Pessoas Naturais1. Atendendo às solicitações de alguns leitores - aos quais se dirigem sinceros agradecimentos -, voltamos ao tema para esclarecer um ponto ainda um pouco obscuro, que é o chamado "excedente de interinidade", abordado na coluna anterior sem maior aprofundamento. Antes, retomem-se certos aspectos. Como se disse, o provimento 81 atende a uma demanda antiga e estritamente necessária para a preservação da saúde financeira do RCPN, a mais importante das serventias extrajudiciais. Para que se mantenha esse serviço essencial - o "ofício da cidadania" -, é preciso corrigir as deficiências remuneratórias e garantir um retorno emolumentar adequado à estruturação da atividade. Como também se afirmou, "um mínimo remuneratório é efetivamente necessário ao equilíbrio e à manutenção da própria serventia, cujo bom preparo refletirá, evidentemente, na eficiência, imposição à administração pública (CF/88, art. 37)"2. Além disso, o ato normativo abre a oportunidade para a discussão sobre os desequilíbrios verificados no conjunto da atividade registral. É que existe um verdadeiro abismo entre Registro Civil e Registro de Imóveis em quase todos os Estados do país. O ato chama a atenção, assim, para esses desequilíbrios e para a existência de muitas serventias deficitárias e com sérias dificuldades na continuidade do serviço. De acordo com o art. 2º do Provimento, "Os Tribunais de Justiça devem estabelecer uma renda mínima para os registradores de pessoas naturais com a finalidade de garantir a presença do respectivo serviço registral em toda sede municipal e nas sedes distritais dos municípios de significativa extensão territorial assim considerado pelo poder delegante". Há Estados - como São Paulo - nos quais já existe lei prevendo renda mínima e fixando seu valor e meios de cálculo e repasse. Acredita-se, conforme recente decisão da Corregedoria Geral de Justiça de SP, não haver necessidade de adequação pelos Tribunais nessas hipóteses. Nos casos em que isso não há norma, contudo, é estritamente necessário observar o Provimento, estabelecendo renda mínima e direcionando os mecanismos para sua efetivação. Pois bem. Nos "Considerandos", o Provimento recorda que existem os fundos financeiros estaduais vinculados aos Tribunais de Justiça, destinados a complementar a renda dos registradores civis. Sem desatentar-se aos limites constitucionais de sua competência, a Corregedoria Nacional de Justiça estabelece, a partir disso, no art. 3º do Provimento, os recursos para alimentação dos fundos. É o texto: "Além de outras fontes de recursos, devem ser utilizadas para o pagamento da renda mínima a que se refere o artigo anterior, as receitas originadas do recolhimento, efetuado pelos interinos de qualquer serventia extrajudicial, aos tribunais ou aos respectivos fundos financeiros, relativamente aos valores excedentes a 90,25% do teto constitucional". Esse é o aspecto mais importante do Provimento 81 da Corregedoria Nacional de Justiça. E é também uma das mais relevantes diretrizes já promulgadas pelo órgão, por duas principais razões. Em primeiro lugar, porque vai além da mera indicação de necessidade de renda mínima do registrador civil, preocupando-se na verdade em fornecer caminhos para a superação do estado de déficit, por meio do incremento dos fundos estaduais. Em segundo lugar, porque, ao prever os recursos para efetivo pagamento do valor mínimo, o ato faz expressa menção ao que se pode chamar de "excedente de interinidade". Esse excedente corresponde àquela parcela que excede o limite de 90,25% do teto constitucional (remuneração dos Ministros do Supremo Tribunal Federal) e que não pode ser retido por quem não seja o titular delegatário do serviço extrajudicial. Em outros termos, há um valor limite a ser retido pelo interino da serventia. O que "sobra", segundo o provimento, deve ser usado como receita para os fundos destinados ao pagamento da renda mínima do Registrador Civil. Está aí a chave compreensiva do Provimento, que se soma ao também relevante Provimento 76 (a ser comentado na próxima coluna). O excedente de interinidade das serventias extrajudiciais deve ser destinado à correção dos desequilíbrios do próprio serviço, uma vez que é seu próprio numerário. A Corregedoria, muito bem assessorada, sabe que há Estados em que esse valor é recolhido e utilizado para outros fins. Dissemos na última coluna que essa situação (o não aproveitamento do excedente para investimento no próprio serviço, mas para outros) acaba gerando estagnação estadual em termos de concursos públicos para outorga de delegações. E por quê? A razão é simples: se houver muita interinidade nos cartórios, grande será a arrecadação a título de excedente dessa mesma interinidade, o que acaba estimulando os Estados a não realizarem os concursos para provimento de titulares (os quais, por óbvio, não estão sujeitos ao teto). É dizer, se houver muitos interinos, muito será o excedente. Quando o provimento 81 estabelecer que o excedente reverterá em benefício de sua atividade geratriz, "corta" a possibilidade de maior aproveitamento para outros atos do Tribunal. Com isso não há muito sentido em "segurar" os concursos. Além de oxigenar a atividade, esse direcionamento estimula a autogestão da atividade registral. Eis a explicação para quanto se expôs no último texto. Por último, é bom anotar que com essas colocações não pretendemos condenar os Tribunais que aproveitam o excedente de interinidade para outros atos. Isso, muitas vezes, acaba sendo necessário para a mantença desses atos, igualmente submetidos ao risco da insuficiência financeira e, assim, da não continuidade. Tal problema descarna uma outra realidade, tipicamente brasileira, com a qual padecem muitos Estados. Mas isso é tema para outra ocasião. Sejam felizes! Até o próximo Registralhas. __________ 1 KÜMPEL, Vitor Frederico; ÁVILA BORGARELLI, Bruno de. Da renda mínima do registrador civil de pessoas naturais: Breve anotação sobre o provimento 81 da Corregedoria Nacional de Justiça. Registralhas, 12/2/2019. 2 KÜMPEL, Vitor Frederico; ÁVILA BORGARELLI, Bruno de. Op. cit.
Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli Publicado em 06 de dezembro de 2018, o provimento 81 da Corregedoria Nacional de Justiça volta-se ao tratamento de uma importante questão: a renda do registrador civil das Pessoas Naturais. Esse ato normativo dispõe sobre a renda mínima do Oficial. Trata-se do atendimento a uma demanda relativamente antiga (e necessária) para a saúde financeira dessas serventias inegavelmente relevantes para a cidadania, e que tantas e tantas vezes caem no déficit. Além disso, o Provimento cria mais uma oportunidade, não se há de negar, para a discussão a respeito da estrutura remuneratória da atividade. É que, em face de desequilíbrios identificáveis entre os diferentes ofícios e, mais especialmente, entre unidades específicas a depender da região, abre-se aquela que talvez seja, presentemente, a mais polêmica face do universo notarial e registral. Sua observação exige atenção e cautela, devendo ficar para outra ocasião. No que toca aos emolumentos, da matriz constitucional tem-se o art. 236, §2º da CF/88, segundo o qual "Lei Federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro". A regulação desse preceito veio com a lei 10.169/2000, que estabelece as tais normas gerais. O valor dos emolumentos, segundo o art. 1º dessa normativa, deve ser fixado pelos Estados, apresentado então em tabelas (art. 2º, I). A lei não faz previsões a respeito da renda mínima do Oficial ou da situação de serventias deficitárias. Mas, como considera muito acertadamente o provimento 81 CNJ, existe a "necessidade de proporcionar a melhor prestação de serviço à população, de garantir a presença do serviço registral de pessoas naturais em todos os locais exigidos por lei, bem como de garantir a economicidade, a moralidade e a proporcionalidade na remuneração dos registradores civis de pessoas naturais (...)". Realmente, há na regulação dos emolumentos um aspecto elementar para a continuidade do serviço, o que se apresenta tanto mais relevante em se tratando do RCPN, ofício que, como se sabe, nada obstante integre o gênero "Registros Públicos"1, tem na grande singularidade de seu objeto o gatilho para toda a uma diferenciação em termos de regulamentação e, inclusive, de funcionamento cotidiano2. A esse propósito, vale recordar que a lei 8.935/1994 (art. 44) determina a presença de no mínimo um registrador de pessoas naturais em cada sede municipal, ou ainda um em cada sede distrital nos municípios de significativa extensão territorial. Por outro lado, incidem regras específicas quanto ao expediente ao público e à acessibilidade3. É o RCPN tido por muitos - com o que concordamos - como a mais relevante das serventias. Nele "se resguardam, de forma pública e perene, os status jurídicos assumidos pela pessoa natural ao longo de sua vida"4. Assentos como o de nascimento permitem "amplo acesso aos serviços públicos mais essenciais"5. Mais precisamente, tal repositório de informações "garante a oponibilidade do estado civil perante terceiros; assegura o pleno exercício da cidadania; oferece um referencial seguro para fins de imputação e direitos e obrigações; representa uma fonte precisa de dados estatísticos", dentre outros desdobramentos6. Não se pode negar, portanto, a relevância da prestação desse serviço público e a conexão existente entre sua qualidade a percepção razoável de emolumentos pelos delegatários. Um mínimo remuneratório é efetivamente necessário ao equilíbrio e à manutenção da própria serventia, cujo bom preparo refletirá, evidentemente, na eficiência, imposição à administração pública (CF/88, art. 37). Apenas julgamos interessante anotar a perplexidade quanto a certa insistência na correlação entre "moralidade" e percepção emolumentar. Há quem erroneamente derive dessa relação (feita inclusive pelo Provimento, em seus "Considerandos") a ideia de que um aporte equilibrado de recursos financeiros evita a corrupção, o que é francamente absurdo: tal afirmação, ela sim, leva a marca da imoralidade. De todo modo, ainda que nos pareça interessante uma aferição empírica mais precisa, que venha a demonstrar a medida da correlação entre o faturamento e o desenvolvimento dos serviços - o que tanto mais é necessário para que se possa traçar um planejamento adequado dessa prestação pública - o fato é que existe tal correspondência. A exigir, pois, uma normatização bem acabada. Assim, o provimento 81 determina, em seu nuclear art. 2º, que "Os Tribunais de Justiça devem estabelecer uma renda mínima para os registradores de pessoas naturais com a finalidade de garantir a presença do respectivo serviço registral em toda sede municipal e nas sedes distritais dos municípios de significativa extensão territorial assim considerado pelo poder delegante" (grifou-se). Em outros termos, esse dispositivo atrela a garantia do serviço - e da efetividade do já citado art. 44 da Lei dos Notários e Registradores - à renda mínima. É a finalidade desta última, assim, como expressamente se declara. Importante sublinhar esse aspecto, porque a norma escolheu, dentre os muitos elementos assegurados pela remuneração adequada, o elemento finalístico relacionado à efetiva presença do serviço em todas as sedes municipais e, quando o caso, também distritais. Essa disposição, bem como as demais do Provimento, escora-se também no fato (recordado nos "Considerandos") de que existem os conhecidos fundos financeiros estaduais vinculados aos Tribunais de Justiça, voltados à complementação de renda dos registradores civis para garantia do serviço. Volta-se então o Provimento, aparentemente, a pacificar ou até mesmo reforçar a necessidade de se estipular um valor de renda mínima a ser alimentado pelos fundos. Mais ainda, quer o provimento assentar - dentro dos limites constitucionalmente assegurados ao CNJ e à Corregedoria Nacional - as fontes de recursos a utilizar para o pagamento da renda mínima. É o objeto de seu art. 3º: devem-se usar, "além de outras fontes de recursos", as receitas oriundas do recolhimento, "efetuado pelos interinos de qualquer serventia extrajudicial, aos tribunais ou aos respectivos fundos financeiros, relativamente aos valores excedentes a 90,25% do teto constitucional". O ato merece assim elogios, não só porque se preocupa com o principal ofício extrajudicial (o RCPN), mas porque, além de apontar a criação da renda mínima, estabelece o meio pelo qual esta pode ser implementada, a saber o fundo decorrente do excedente da interinidade. Hoje, muitos Tribunais estaduais usam tal excedente da interinidade, ou seja, valores que ultrapassam em muito os 90,25% do teto constitucional, que podem ser retidos pelos escreventes interinos para custear seus serviços. O fenômeno faz com que muitos Estados não abram concurso, pois se valem dessa receita para a manutenção dos atos do Tribunal. Com o Provimento, esse fundo excedente reverterá em benefício do próprio serviço extrajudicial, na medida em que é numerário que decorre desse próprio serviço. Por essa medida, assim, o CNJ não só volta a "estimular" concursos em Estados estagnados, como faz a atividade extrajudicial se autogerir e equilibrar serventias muito díspares (há um "fosso" entre os Registros Imobiliários e os Registros Civis em qualquer Estado da federação). Pois bem. Apesar dessas importantes determinações, não acreditamos que a eficácia da normativa em questão resida propriamente no potencial de novidade que apresenta, mas, isto sim, no mérito que tem de chamar a atenção para o fato do déficit, do desequilíbrio econômicos das serventias e, em larga medida, dos próprios fundos estaduais, oferecendo caminhos para a superação dessa situação naquelas unidades que já não a normatizaram. É relevante dar destaque a isso. No Estado de São Paulo, por exemplo, existe previsão na lei estadual 11.331/2002 (que trata dos emolumentos) a respeito, justamente, da renda mínima das serventias que se encontrem em situação deficitária (o que não é nada incomum, como já se disse). Nesse Estado, e de acordo com o art. 25 da referida lei, tem-se por deficitária a serventia "cuja receita bruta não atingir o equivalente a 13 (treze) salários mínimos mensais". Também existe nessa norma o estabelecimento do modo de remuneração complementar. Quer-nos parecer assim, e em concordância com a recentíssima decisão proferida pela E. Corregedoria Geral da Justiça do Estado de SP, nos autos do Processo n. 2018/202971, acolhedora do parecer dos MM. Juízes Assessores, que nesse Estado "não haveria necessidade de providências do Tribunal de Justiça para instituição ou adequação da renda mínima das serventias de Registro Civil das Pessoas Naturais na forma do provimento 81/2018 da Corregedoria Nacional de Justiça, porquanto, no Estado de São Paulo, há adequada e eficaz previsão legal, bem como situação concreta, garantidora do equilíbrio econômico e financeiro das delegações de registro das Pessoas Naturais". De igual modo deve aplicar-se o entendimento em questão àquelas unidades federativas nas quais lei já se tenha dedicado à renda mínima das serventias extrajudiciais deficitárias. Seja como for, é de se aplaudir a boa atuação da Corregedoria Nacional de Justiça por meio não só do Ministro Corregedor Nacional, mas também de seus Juízes Assessores que, de forma sensível, buscam efetivar o ofício da cidadania alçando-o ao mesmo patamar dos demais serviços extrajudiciais. O Provimento n. 81, diga-se mais uma vez, abre os olhos da comunidade jurídica para um problema grave e gerador de desequilíbrios na prestação de um serviço indispensável. Cria um ambiente para discussões ainda mais férteis e mostra a sensibilidade desse órgão para, nos limites constitucionais de sua atuação, oferecer soluções efetivas e uniformizar a atuação dos Estados na correção de históricos problemas da atividade notarial e registral. Sejam felizes! Até o próximo Registralhas! __________ 1 KÜMPEL, Vitor Frederico; FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral. São Paulo: YK, 2017. Vol. 2. p. 338: "Em linhas gerais, são características comuns dos registros públicos, e aplicáveis, por consequência, aos registros civis: a) fé pública da função; b) conservação de documentos e informações constantes do acervo púbico; c) local de repositório de documentos; d) inércia do trabalho, configurada pela necessidade de provocação do interessado para a atuação registral, à luz do princípio da rogação; e) bloqueio de legitimação, de modo que somente realiza o que a lei autoriza (princípio da legalidade); f) independência na atuação, consubstanciada na autorização de interpretação razoável da lei e tomada de decisões relativas à aptidão, ou não, da registrabilidade do título apresentado, atuando sempre sob a fiscalização do judiciário". 2 KÜMPEL, Vitor Frederico; FERRARI, Carla Modina. Op. cit. p. 328. 3 KÜMPEL, Vitor Frederico; FERRARI, Carla Modina. Op. cit. p. 338. 4 KÜMPEL, Vitor Frederico; FERRARI, Carla Modina. Op. cit. p. 328. 5 SILVA, José Marcelo Tossi. Uma visão atual da prestação do serviço público de notas e de registros. in AHUALI, Tânia Mara; BENACCHIO, Marcelo (coord.). Direito Notarial e Registral: Homenagem às Varas de Registros Públicos da Comarca de São Paulo. São Paulo: Quartier Latin, 2016. p. 37. 6 KÜMPEL, Vitor Frederico; FERRARI, Carla Modina. Op. cit. p. 328.
terça-feira, 18 de dezembro de 2018

O direito notarial e registral em 2018

Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli Surpreendentemente breve, 2018 foi um ano de mudanças importantes, marco histórico de novos rumos para o país e de cisões políticas cujo impacto ainda está por aferir - o que decerto ocorrerá nos próximos anos. Foi também um período de grande importância para o Direito brasileiro, e, no que aqui interessa, para o Direito Notarial e Registral. Mais uma vez comprovando sua vocação para inserir-se nas grandes questões relativas à organização do Estado, esse ramo jurídico vai sedimentando sua posição de ponta, e as discussões sobre a efetividade dos serviços de notas e registros vão saudavelmente envolvendo cada vez mais instituições e elementos da população. Passem-se em revista, diante disso, os principais eventos do notariado e dos registros públicos no ano que se encerra. Quanto ao campo legislativo, logo no começo de 2018 foi promulgada a lei 13.606, que estabeleceu a possibilidade de a Procuradoria da Fazenda Nacional bloquear bens sem ordem judicial, fazendo averbar a indisponibilidade de bem matriculado por meio da apresentação, ao Registro Imobiliário, da Certidão de Dívida Ativa. É a chamada "averbação pré-executória". Como se afirmou em artigo especificamente voltado a esse tema, "o ataque ao direito de propriedade (art. 5º, XXII, CF/88) é evidente. Como também o é em relação ao devido processo legal (art. 5º, LIV, CF/88). À PGFN abre-se a possibilidade de aplicar a constrição de bens sem o filtro jurisdicional, de cujo crivo o cidadão não poderia jamais ser privado"1. Recentemente promulgada, a lei 13.726/18, conhecida como "lei da desburocratização", trouxe algumas inovações importantes para o serviço notarial e registral. O aspecto central dessa normativa está na desnecessidade de exigências comuns em repartições públicas da União, dos Estados, Distrito Federal e Municípios, a exemplo dos documentos com firma reconhecida e das cópias autenticadas, dispensando-se a apresentação da certidão de nascimento, substituída por outros documentos. Além disso, para viagem de filhos menores, não se exige autorização com firma reconhecida, bastando que os pais os acompanhem ao embarque. Como já se afirmou, apesar do tom efusivo com que foi recebida, "não se concorda com a ideia de que essa normativa causará grande impacto econômico no notariado. Isso porque, além das (...) regras estaduais e municipais de dispensa de documentos, deve-se recordar que os tabeliães de notas praticam esses atos extraprotocolares em muito devido à vontade dos próprios particulares. Em outras palavras, muitas das autenticações e reconhecimentos de firmas dão-se no bojo de relação cidadão-cidadão, e não cidadão-poder público"2. Em 31 de outubro, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei 10.287/18, de autoria do Senador Wilder Morais, que regulamenta a multipropriedade imobiliária (time sharing), introduzindo diversos artigos no Código Civil de 2002 e modificando também a Lei dos Registros Públicos (Lei 6.015/73). O impacto no direito registral imobiliário é evidente e, ao que se crê, o debate deve ser ainda fomentado, para que não se corra o risco de uma regulamentação deficitária (apesar da extensão do projeto). Passou também pela CCJ o Substitutivo ao PLS 757/15, que busca corrigir diversos pontos do ordenamento atingidos pela má técnica do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Há partes que podem interessar ao notariado e aos registros, como o que diz respeito à necessidade de averbação da Tomada de Decisão Apoiada. Houve um número relativamente grande de concursos de outorga de delegação. São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Ceará e Paraná são Estados que realizaram certames em 2018. A jurisprudência também forneceu material relevante para as notas e registros. Em março, o STF reconheceu aos transgêneros a possibilidade de alteração no Registro Civil sem prévia mudança de sexo. Em abril, a Corte manteve a decisão do CNJ que veta a acumulação de cargo público com a titularidade de cartório. Nas instituições, mudanças de relevo. Em 13 de setembro, o ministro José Antonio Dias Toffoli assumiu a presidência do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça. Já o ministro do STJ, Humberto Martins, assumiu em 28 de agosto o cargo de Corregedor Nacional de Justiça. Quanto aos atos do CNJ, o ano foi bastante produtivo. O Provimento 66, de 25 de janeiro, "dispõe sobre a prestação de serviços pelos ofícios de registro civil das pessoas naturais mediante convênio, credenciamento e matrícula com órgãos e entidades governamentais e privadas". Basicamente, a serventia poderá prestar serviços de biometria, fotografia, cadastro de pessoa física, entre outros, desde que exista prévia autorização das Corregedorias Estatuais, visando sempre auxiliar na emissão dos documentos. Em 26 de março veio o provimento 67, que dispõe sobre a conciliação e mediação a ser realizada nos serviços notariais e de registro. Trata-se de uma atividade de mediação e conciliação em sentido estrito. Segundo o art. 6º, "Somente poderão atuar como conciliadores ou mediadores aqueles que forem formados em curso para o desempenho das funções (...)", observadas diretrizes curriculares. O Provimento exige ainda autorização das Corregedorias Estaduais para o oferecimento, pelo cartório, do serviço de conciliação e mediação. As serventias que optarem pela adoção do serviço abrirão livros para o recebimento do pedido de conciliação e demais atos necessários, que serão remunerados através de emolumentos O provimento 70, de 12 de junho, "dispõe sobre abertura de matrícula e registro de terra indígena com demarcação homologada e averbação da existência de demarcação de área indígena homologada e registrada em matrículas de domínio privado incidentes em seus limites". O ato elenca os documentos necessários à apresentação do requerimento e traz as regras procedimentais para os casos de matrícula inexistente ou averbação em registro prévio. Além disso, impõe multa diária de R$ 1000,00 (mil reais) ao registrador que deixar de realizar o ato de maneira não fundamentada. Do dia 28 de junho data o provimento 73, sobre averbação de alteração de prenome e gênero nos assentos de nascimento e casamento de pessoas transgêneros. Não se vai entrar aqui nos veios polêmicos dessa normativa, de invulgar impacto no RCPN. O Provimento 74 (31 de julho) dispõe sobre medidas a serem adotas pelas serventias a fim de estabelecer parâmetros mínimos de tecnologia, segurança, integridade e disponibilidade de dados da atividade. Dentre tais medidas, é necessário que o titular tenha backups das informações armazenadas na serventia, com cópias na Internet, mídias digitais localizadas fora do cartório, trilha de auditoria própria, bem como formas de autenticação por certificado digital ou biometria. Já o provimento 76 (12 de setembro) altera o provimento 45 de 13/5/15, tornando trimestral a periodicidade do recolhimento da renda líquida superior a 90,25% dos subsídios de Ministro do Supremo Tribunal Federal, realizada pelos titulares ou responsáveis pelas serventias extrajudiciais. O provimento 77 (7 de novembro) dispõe sobre a nomeação de responsável interino pelas serventias vagas. Será chamado, em primeira opção, o substituto mais antigo que cumprir os requisitos elencados no provimento, seguido do titular de serventia com função semelhante localizada no mesmo município ou no município contíguo ou do substituto de outra serventia, graduado em direito, com no mínimo 10 de experiência na atividade notarial ou registral. Quanto ao provimento 78 (também de 7 de novembro), importante direcionamento sobre o exercício simultâneo de atividade notarial e registral e mandato eletivo. Há compatibilidade da atividade com mandato de vereador, desde que não haja prejuízo nos horários de trabalho, com direito à percepção integral dos emolumentos. Para os demais mandatos, o titular deverá afastar-se da atividade. O provimento 79 (8 de novembro) institui a política institucional de Metas Nacionais do Serviço Extrajudicial. A Corregedoria Nacional de Justiça definirá, anualmente, e fiscalizará as Metas Nacionais do Serviço Extrajudicial a serem cumpridas pelas Corregedorias de Justiça dos Estados. A instituição do Fórum Nacional dos Corregedores-Gerais da Justiça, responsável pelos procedimentos de políticas pública nos temas de atuação das Corregedorias e por promover interação entre as Corregedorias, foi objeto do provimento 80, de 4 de dezembro. Por fim, em 6 de dezembro expediu-se o provimento 81, que dispõe sobre a renda mínima dos titulares do RCPN, a ser estabelecida pelo Tribunal de Justiça de cada Estado. O objetivo do provimento é que o serviço seja prestado em todos os municípios e os recursos destinados à renda terão como fonte o recolhimento dos valores superiores a 90,25% do teto constitucional. Importante por em destaque, também, a Recomendação 28, de 17 de agosto. Por ela, sugere-se que os Tribunais de Justiça celebrem convênios com os oficiais do notariado e dos registros para a instalação dos centros judiciários de solução de conflitos e cidadania, os CEJUSCs. Dentre as mais relevantes decisões do CNJ em 2018 está a vedação à lavratura das chamadas "escrituras de poliafetividade", ou, em linguagem mais clara, escrituras de poligamia. Atendendo ao pedido de providências apresentado pela Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), o Conselho determinou que essas escrituras não devem ser lavradas. Trata-se, é claro, de acertadíssima decisão, uma vez que esses atos são gritantemente ilegais. Como também já se afirmou, "a lavratura das escrituras de poligamia é um atentado, antes de tudo, à própria atividade tabelioa. E torna o problema uma questão decisivamente institucional. Sem prudência e respeito à legalidade, o serviço extrajudicial perde credibilidade. O erro de poucos prejudica a todos"3. Eventos importantes tiveram lugar neste ano. Realizou-se o XX Congresso Brasileiro de Direito Notarial e de Registro, com importantes debates, a exemplo do relativo à usucapião e ao emprego de novas tecnologias na prestação dos serviços. O evento foi organizado pela Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg), em parceria com a Anoreg/SP. Em 11 de junho ocorreu o colóquio Direitos Reais versus Direitos Pessoais - A Eficácia Real de Direitos Pessoais, realizado na Faculdade de Direito da USP, com a participação da professora dra. Mónica Jardim, dos professores Celso Campilongo e Otavio Luiz Rodrigues Jr. e do dr. José Marcelo Tossi Silva. O âmbito das publicações também foi profícuo em 2018. Carlos Alberto Dabus Maluf, professor Titular da Faculdade de Direito da USP, lançou a nova edição de seu conhecido e imprescindível livro Das cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade4. A obra é a principal referência nesse tema no Brasil, e agora, além das atualizações legislativas e doutrinárias, conta com uma ampla coletânea de julgados brevemente comentados pelo autor. O desembargador Ricardo Dip, referência nos estudos em Direito Notarial e Registral, publicou o livro Notas sobre Notas (Tomo I)5, uma instigante coletânea de textos para uma reflexão crítica sobre as bases e os rumos da atividade. A ele as sinceras congratulações por mais um trabalho de indispensável leitura. Sobre o direito real de laje, uma das maiores inovações do Direito Civil brasileiro nos últimos anos, Eduardo C. Silveira Marchi, professor titular e ex-diretor da Faculdade de Direito da USP, dedicou um importante trabalho monográfico6, defendendo a natureza de verdadeiro direito de propriedade desse instituto. Com uma pesquisa minuciosa de fontes, somada a uma clara percepção da realidade social subjacente à regulação da "laje", Eduardo Marchi acrescenta a esse debate um de seus mais importantes contributos. A atualização da obra mais aprofundada sobre a usucapião extrajudicial - de Henrique Ferraz Corrêa de Mello - finalmente veio a público7. Agora de acordo com a lei 13.465/17 e com o provimento 65/17 do CNJ, o livro mantém sua posição cimeira na literatura jurídica a respeito desse importante e polêmico tema. Sob a coordenação de Arthur Del Guércio Neto e Lucas Barelli Del Guércio, veio o terceiro volume da série O Direito Notarial e Registral em Artigos8, com ricas contribuições teóricas para esse campo. De Luis Paulo Germanos o público recebe a obra Condomínio de Terrenos, fruto da dissertação de mestrado defendida pelo autor na Faculdade de Direito da USP, sob orientação do prof. Dabus Maluf. É uma pesquisa aprofundada sobre um tema que está na ordem do dia, especialmente após a lei 13.465/17, que regulamentou o chamado "condomínio de lotes" (art. 1.358-A do CC/02). Maurício Zockun publicou um instigante trabalho intitulado Regime constitucional da atividade notarial e de registro9. Com profundidade de conteúdo e elegância de forma, o autor enfrenta, desde o prisma da regulação constitucional, os mais importantes aspectos da atividade notarial e registral. Obra de leitura necessária. Após anos de admirável trabalho, Leonardo Brandelli deixa a direção da Revista de Direito Imobiliário, cujo comando será assumido por Ivan Jacopetti do Lago. A ele os sinceros votos de uma gestão de sucesso à frente desse prestigioso veículo. Toda essa movimentação indica, mais uma vez, a vocação do Direito Notarial e Registral para inserir-se nas grandes questões do Estado, como a desburocratização, o emprego de tecnologia, a uniformização de serviços públicos e, é claro, alinhavando tudo, o respeito ao cidadão e ao bem comum. Sejam felizes! Até 2019! _______________ 1 BORGARELLI, Bruno de Ávila. O primeiro tiro do ano: bloqueio de bens sem autorização judicial. Migalhas, 16/01/2018. Disponível em: clique aqui. 2 KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. Lei da Desburocratização: um passo importante. Registralhas, 27/11/2018. Disponível em: clique aqui. 3 BORGARELLI, Bruno de Ávila. De Rolandino de Passeggeri à "escritura do poliamor": a atividade notarial em tempos difíceis. Migalhas, 28/07/2018. Disponível em: clique aqui. 4 MALUF, Carlos Alberto Dabus. Das cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade. São Paulo: YK, 2018. 5 São Paulo: Editorial Lepanto, 2018. 6 MARCHI, Eduardo C. Silveira. Direito de laje: da admissão ampla da propriedade superficiária no Brasil. São Paulo: YK, 2018. 7 MELLO, Henrique Ferraz Corrêa de. Usucapião extrajudicial. 2.ed. São Paulo: YK, 2018. 8 São Paulo: YK, 2018. 9 ZOCKUN, Maurício. Regime constitucional da atividade notarial e de registro. São Paulo: Malheiros, 2018.
terça-feira, 27 de novembro de 2018

Lei da Desburocratização: um passo importante

Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli Em vigor desde o dia 23 de novembro de 2018, a lei 13.726, conhecida como lei da desburocratização, fez-se acompanhar de muitos aplausos. Em um país com a tradição burocrática do Brasil (onde, v.g., a abertura de um negócio custa ao cidadão, além do dinheiro, a saúde física e mental), uma medida simplificadora, qualquer que seja, já é sinal de esperança. Segundo o art. 1º, a lei "racionaliza atos e procedimentos administrativos dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios mediante a supressão ou a simplificação de formalidades ou exigências desnecessárias ou superpostas, cujo custo econômico ou social, tanto para o erário como para o cidadão, seja superior ao eventual risco de fraude, e institui o Selo de Desburocratização e Simplificação". Quanto ao selo, uma observação. Numa lei que objetiva desburocratizar, a criação desse tipo de chancela, por mais útil que possa parecer, já remete a uma certa simbologia burocratizante. Dessa contradição, contudo, só o tempo dará testemunho. Basicamente - e é o que tem sido divulgado - a lei estabelece a dispensa de certas exigências comuns em repartições públicas da União, dos Estados, Distrito Federal e Municípios, como as cópias autenticadas e os documentos com firma reconhecida. Fica por igual dispensada a apresentação de certidão de nascimento, estabelecendo-se sua substituição por outros documentos. Para que filhos menores possam viajar sozinhos, os pais precisam apenas acompanha-los ao embarque, sem necessidade de autorização com firma reconhecida. É difícil dimensionar a amplitude desta lei e de outras com o mesmo viés, na medida em que o país, até por questão cultural, sempre prestigiou mais a burocracia do que a palavra efetivamente dada. Ao contrário da cultura anglo-saxônica, na qual a palavra empenhada tem enorme força, por aqui a forma sempre prevaleceu sobre o conteúdo. Seja como for, numa observação centrada, será que a normativa traz tantos benefícios quanto apregoa? Analise-se aquele que talvez seja o mais destacado dispositivo, o art. 3º, que comporta as mudanças acima descritas. É a seguinte redação: Art. 3º Na relação dos órgãos e entidades dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios com o cidadão, é dispensada a exigência de: I - reconhecimento de firma, devendo o agente administrativo, confrontando a assinatura com aquela constante do documento de identidade do signatário, ou estando este presente e assinando o documento diante do agente, lavrar sua autenticidade no próprio documento; II - autenticação de cópia de documento, cabendo ao agente administrativo, mediante a comparação entre o original e a cópia, atestar a autenticidade; III - juntada de documento pessoal do usuário, que poderá ser substituído por cópia autenticada pelo próprio agente administrativo; IV - apresentação de certidão de nascimento, que poderá ser substituída por cédula de identidade, título de eleitor, identidade expedida por conselho regional de fiscalização profissional, carteira de trabalho, certificado de prestação ou de isenção do serviço militar, passaporte ou identidade funcional expedida por órgão público; V - apresentação de título de eleitor, exceto para votar ou para registrar candidatura; VI - apresentação de autorização com firma reconhecida para viagem de menor se os pais estiverem presentes no embarque. § 1º É vedada a exigência de prova relativa a fato que já houver sido comprovado pela apresentação de outro documento válido. § 2º Quando, por motivo não imputável ao solicitante, não for possível obter diretamente do órgão ou entidade responsável documento comprobatório de regularidade, os fatos poderão ser comprovados mediante declaração escrita e assinada pelo cidadão, que, em caso de declaração falsa, ficará sujeito às sanções administrativas, civis e penais aplicáveis. § 3º Os órgãos e entidades integrantes de Poder da União, de Estado, do Distrito Federal ou de Município não poderão exigir do cidadão a apresentação de certidão ou documento expedido por outro órgão ou entidade do mesmo Poder, ressalvadas as seguintes hipóteses: I - certidão de antecedentes criminais; II - informações sobre pessoa jurídica; III - outras expressamente previstas em lei. Poder-se-ia, à primeira vista, pensar que a dispensa de reconhecimento de firma e autenticação (elementos que têm sido aclamados como "centrais" na lei em exame) constituem uma novidade das mais importantes. A bem dizer, essa afirmação soa um pouco apressada. Diversas normativas estaduais e municipais já vinham, nos últimos anos, reduzindo a burocracia dos trâmites entre o poder público e o cidadão. Não significa que a medida atual não seja saudável e mesmo necessária. De fato é. O que se quer dizer é que as medidas adotadas no art. 3º dificilmente permitem falar em uma verdadeira e ampla "desburocratização". Algo desse tipo exigiria esforços legislativos muito maiores do que a simples dispensa de autenticação de documentos (ato que, na verdade, ocupa uma parcela muito pequena do problema gravíssimo da burocracia brasileira). Por outro lado, e novamente na contramão de uma leitura apressada dos fatos, não se concorda com a ideia de que essa normativa causará grande impacto econômico no notariado. Isso porque, além das já faladas regras estaduais e municipais de dispensa de documentos, deve-se recordar que os tabeliães de notas praticam esses atos extraprotocolares em muito devido à vontade dos próprios particulares. Em outras palavras, muitas das autenticações e reconhecimentos de firmas dão-se no bojo de relação cidadão-cidadão, e não cidadão-poder público. É claro que essas últimas afirmações exigem uma verificação empírica mais apurada, o que de resto apenas se consumará com certo tempo de vigência da nova Lei. Por ora, contudo, o que se pode fazer é aplaudir também a iniciativa, que, se não é inteiramente revolucionária - e certamente não foi essa a intenção - tampouco é inútil. A Lei pode contribuir para um prestígio maior, no Brasil, do conteúdo e da palavra em relação a certas formalidades. E isso influenciará - tendencialmente - o duro caminho brasileiro contra a burocracia. Sejam felizes! Até a próxima coluna.
Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli Dando continuidade à pequena série de colunas sobre a chamada legitimação fundiária, instrumento de regularização trazido pela lei 13.465/2017, discute-se neste texto o problema da aplicação de tal instrumento aos bens públicos. Recorde-se que a legitimação fundiária é meio "de aquisição originária do direito real de propriedade sobre unidade imobiliária objeto da Reurb" (art. 11, VII da lei). Corresponde, segundo o art. 23 da lei, a uma "forma originária de aquisição do direito real de propriedade conferido por ato do poder público, exclusivamente no âmbito da Reurb, àquele que detiver em área pública ou possuir em área privada, como sua, unidade imobiliária com destinação urbana, integrante de núcleo urbano informal consolidado existente em 22 de dezembro de 2016". O ocupante "adquire a unidade imobiliária com destinação urbana livre e desembaraçada de quaisquer ônus, direitos reais, gravames ou inscrições, eventualmente existentes em sua matrícula de origem, exceto quando disserem respeito ao próprio legitimado" (art. 23, §2º). As condições para concessão da legitimação fundiária vêm estampadas no art. 23, §1º da lei 13.465/17: "I - o beneficiário não seja concessionário, foreiro ou proprietário de imóvel urbano ou rural; II - o beneficiário não tenha sido contemplado com legitimação de posse ou fundiária de imóvel urbano com a mesma finalidade, ainda que situado em núcleo urbano distinto; e III - em caso de imóvel urbano com finalidade não residencial, seja reconhecido pelo poder público o interesse público de sua ocupação". Relativamente a bens particulares, como já se disse, pode-se entrever um vício de inconstitucionalidade na legitimação fundiária, na medida em que os titulares desses bens poderão sofrer confisco por ato do município - v.g. - sem direito a indenização, desde que o ente considere que a ocupação já estava consolidada em dezembro de 20161. Trata-se de uma afronta ao direito de propriedade, assegurado constitucionalmente. Quanto à aplicação aos bens públicos, a própria lei dá uma importante direção, em seu art. 23, §4º: "(...) a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e as suas entidades vinculadas, quando titulares do domínio, ficam autorizados a reconhecer o direito de propriedade aos ocupantes do núcleo urbano informal regularizado por meio da legitimação fundiária". Já havia no ordenamento instrumentos de regularização importantes para o caso de bens públicos, como a concessão de uso especial para fins de moradia, a legitimação de posse em terras devolutas e a concessão do direito real de uso. A lei 11.977/2009, por seu turno, aprimorou muito esse aparato, abrindo uma nova página na evolução da regularização fundiária no Brasil. A lei de 2017, ao estabelecer a legitimação fundiária, criou um elemento a mais dentre as possibilidades de titulação passada aos ocupantes pelo Poder Público. O grande problema, contudo, está no grau elevado de obscuridade que circunda essa figura. Para começar, poder-se-ia também visualizar aqui um vício de inconstitucionalidade, já que aparentemente se está diante de uma forma de driblar a vedação à usucapião de bens públicos2. É claro que existem algumas diferenças entre a usucapião especial constitucional e a legitimação fundiária (esta última, por exemplo, não configura propriamente uma prescrição aquisitiva, mas um ato discricionário do poder público), mas que não parecem suficientes para afastar essa "estranheza" causada pelo instituto trazido em 2017. No fundo, a legitimação fundiária garante o mesmo efeito da usucapião, afastado o requisito do tempo, bem como qualquer outra exigência a respeito da natureza da detenção3. Isso está longe de ser algo trivial. Não é apenas esse o problema. Como se afirmou na última coluna, em caso de bens de uso comum, seria preciso proceder à desafetação do bem para a aplicação da legitimação fundiária. Isso, contudo, é dispensado pela legislação, sendo tal omissão um dos seus mais criticáveis aspectos, ao lado da inexigência de prévia avaliação do bem e de autorização legislativa, o que fere a responsabilidade fiscal e a transparência da gestão pública4. São problemas graves, e que podem transformar a tão aclamada legitimação fundiária em um mero instrumento de grilagem de áreas5. Na próxima coluna abordar-se-ão algumas questões registrais envolvendo o instituto. Sejam felizes! __________ 1 CARVALHO PINTO, Victor. Mitos e verdades sobre a nova lei da Regularização Fundiária Urbana. Acesso em 11/11/2018. 2 CARVALHO PINTO, Victor. Op. cit. 3 ROSENVALD, Nelson. A legitimação fundiária - uma polêmica inovação. Acesso em 11/11/2018. 4 CARVALHO PINTO, Victor. Op. cit. 5 Cf. ROSENVALD, Nelson. Op. cit.
Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli Em texto anterior1 já se falou sobre a chamada legitimação de posse, instituto importante para a política de regularização fundiária urbana e que foi modificado pela lei 13.465/2017. Na ocasião, explicitaram-se as modalidades de Reurb, "apelido" dado à regularização fundiária urbana, que "abrange medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes", conforme o art. 9º da lei em questão. Assim, tem-se a Reurb-S (interesse social) e a Reurb-E (interesse específico). A legitimação de posse já era conhecida no Direito brasileiro, pois a lei 11.977/2009 dela já cuidava. Novidade trazida em 2017, no bojo das novas diretrizes da regularização, é a chamada legitimação fundiária. Mas, de que se trata essa figura, e como se dá sua regulamentação? É o que se pretende responder na pequena série de colunas que se inicia com este artigo. Antes de tudo, pode-se dizer que a legitimação fundiária é uma das formas de atribuição de título jurídico aos ocupantes de unidades imobiliárias ainda não formalmente integradas ao espaço urbano, justamente com o escopo de operar tal formalização. É um dos instrumentos da Reurb (art. 15, I, lei 13.465/2017), mas aplicável apenas à Reurb-S, de acordo com o art. 23, §1º da lei. As referidas unidades imobiliárias, contudo, devem ser parte de "núcleos urbanos informais consolidados", ou seja, com a marca da irreversibilidade (conforme o art. 11, III da lei 13.465/172) e existentes até 22 de dezembro de 2016. De acordo com o art. 11, VII, a legitimação fundiária é meio "de aquisição originária do direito real de propriedade sobre unidade imobiliária objeto da Reurb". Já de acordo com o art. 23 da lei, esse instrumento (legitimação fundiária), "constitui forma originária de aquisição do direito real de propriedade conferido por ato do poder público, exclusivamente no âmbito da Reurb, àquele que detiver em área pública ou possuir em área privada, como sua, unidade imobiliária com destinação urbana, integrante de núcleo urbano informal consolidado existente em 22 de dezembro de 2016". Nesse instrumento, "o ocupante adquire a unidade imobiliária com destinação urbana livre e desembaraçada de quaisquer ônus, direitos reais, gravames ou inscrições, eventualmente existentes em sua matrícula de origem, exceto quando disserem respeito ao próprio legitimado" (art. 23, §2º). Como se vê, há uma grande diferença em relação à legitimação de posse, que consiste em "ato do poder público destinado a conferir título, por meio do qual fica reconhecida a posse de imóvel objeto da Reurb, conversível em aquisição de direito real de propriedade na forma desta lei, com a identificação de seus ocupantes, do tempo da ocupação e da natureza da posse" (art. 11, VI da lei 13.465/2017) A legitimação fundiária pode contemplar tanto a unidade imobiliária sobre área privada quanto aquela existente sobre área pública. Relativamente às áreas públicas, é provável que tenha de haver, antes, a aprovação da desafetação do bem3, de modo a deixá-lo livre para a posterior regularização por meio dos instrumentos previstos em lei. Por outro lado, em se tratando de imóvel público, determina o §4º do art. 23 da lei que "(...) a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios, e as suas entidades vinculadas, quando titulares do domínio, ficam autorizados a reconhecer o direito de propriedade aos ocupantes do núcleo urbano informal regularizado por meio da legitimação fundiária". Essa questão dos bens públicos, contudo, é tema para a próxima coluna. O que para logo se pode afirmar é que a legitimação fundiária surge com um dos instrumentos a utilizar pelo poder público, no universo de recursos integrantes de sua política urbana4. Como já se afirmou no artigo anterior, pode-se entrever um vício de inconstitucionalidade nessa figura da legitimação fundiária, que já tem sido objeto de crítica por autores especializados, que a enxergam mesmo como um dos grandes problemas da lei 13.465/20175. Ocorre que a legitimação fundiária, ao atribuir aquisição a título originário por meio de ato discricionário do poder público, aparenta criar uma inconstitucional afronta ao direito de propriedade. Concorda-se com esse entendimento. Além disso, pode-se também ver um caso de inconstitucionalidade na previsão de legitimação fundiária sobre unidades localizadas em áreas públicas. Consistiria tal possibilidade em uma forma de contornar a vedação constitucional à usucapião de bens públicos? É o que se pretende discutir no próximo Registralhas. Sejam felizes. Até lá! __________ 1 KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELLI, Bruno de Ávila. Legitimação de posse na lei 13.465/2017: ligeiras observações. Migalhas - Registralhas, 6/3/2018. 2 Art. 11. "Para fins desta lei, consideram-se: (...) III - núcleo urbano informal consolidado: aquele de difícil reversão, considerados o tempo da ocupação, a natureza das edificações, a localização das vias de circulação e a presença de equipamentos públicos, entre outras circunstâncias a serem avaliadas pelo município"; 3 Cf. BARROS, Felipe Maciel P. Da (in)constitucionalidade da legitimação fundiária. Migalhas, 10 de setembro de 2018. 4 Assim BARROS, Felipe Maciel P. Op. cit.: "Por isso mesmo, o legislador restringiu o uso da legitimação fundiária aos núcleos urbanos informais comprovadamente existentes a data de 22 de dezembro de 2016, o que demonstra a preocupação de que o instrumento não represente uma carta branca para a alienação gratuita de áreas públicas, mas tão somente se preste à regularização fundiária de situações em que não exista outra opção mais adequada à solução da informalidade". 5 CARVALHO PINTO, Victor. A regularização fundiária urbana na lei 13.465/2017.
Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli Neste texto dá-se continuidade à série de colunas sobre a usucapião extrajudicial. Já se discorreu sobre diversos problemas operativos envolvendo essa figura. Para esta parte, quer-se abordar a importante questão da incidência - ou não - do Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) quando da consumação dessa modalidade de usucapião. Em outros termos, trata-se de avaliar se a usucapião administrativa constitui fato jurídico apto a atrair a incidência da norma tributária relativa. O ITBI é tributo de competência municipal (art. 156 da CF/88). Seu fato gerador constitui-se pela efetiva transmissão inter vivos da propriedade imóvel, ou ainda de direito real - excetuados os de garantia - sobre bem imóvel. Há questões importantes envolvendo esse tributo, como o que diz respeito à sua base de cálculo, sobre o que já se falou em outra ocasião1. Recorde-se que é apenas com o registro imobiliário que, no ordenamento brasileiro, a propriedade se transfere, de modo que é na fase registral que pode ser exigido o ITBI. Ordinariamente, é a transmissão proprietária o fato gerador mais usual do imposto. Para responder à pergunta aqui formulada, então, é preciso saber se a modalidade de usucapião extrajudicial constitui uma espécie de transferência dominial. A usucapião, como se sabe, é meio originário de aquisição da propriedade. Além disso, não há, nos modelos conhecidos de usucapião, uma qualquer transferência, mas, isto sim, uma consolidação da situação jurídica dada com a prescrição aquisitiva. Daí a conhecida não incidência do ITBI nessas usucapiões. A bem dizer, acredita-se que há formas puras de aquisição originária da propriedade (caso da usucapião) e formas impuras dessa aquisição, como a que se dá com a adjudicação e a arrematação. Essas formas ditas impuras, na realidade, podem atrair algumas situações jurídicas de continuidade-disponibilidade, eventualmente aptas a receber uma incidência tributária. Tais situações seriam interiores a um sistema de consenso, e não propriamente de causalidade. O que se poderia legitimamente pensar, então, a respeito da usucapião extrajudicial, é que a necessidade de anuência dos titulares de imóveis confrontantes ao usucapiendo, ou ainda dos titulares de direitos reais sobre o próprio imóvel, perfaz uma espécie de concordância relativa a uma transferência proprietária. Recorde-se: a lei 13.465/17 veio corrigir alguns problemas práticos relativos à usucapião administrativa tal qual inserida, pelo NCPC, no art. 216-A da lei de registros públicos, como o da presunção de discordância dos titulares referidos. Com a normativa de 2017, o silêncio desses agentes, no prazo determinado por lei, passa a ser interpretado como concordância. Trata-se da nova redação dada ao § 2º do art; 216-A da LRP: "Se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares de direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes, esse será notificado pelo registrador competente, pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar seu consentimento expresso em 15 (quinze) dias, interpretado o seu silêncio como concordância" Como já se afirmou, é possível entrever nessa regra uma inconstitucionalidade, na medida em que faz correr uma presunção de anuência na perda da propriedade, o que pode ser visto como atentatório a esse direito assegurado constitucionalmente. Mas, o que importa focalizar, aqui, é justamente essa manifestação dos titulares confrontantes e afins. Não poderia ser vista como um acordo de vontades - negócio jurídico - relativo à transferência do imóvel, atraindo a incidência do ITBI? Entende-se que não. Na usucapião extrajudicial, a anuência - ainda que presumida - dos titulares em questão não afasta a eficácia meramente declaratória da decisão administrativa. Esta não tem eficácia constitutiva de um direito. O registro, de seu turno, confere oponibilidade erga omnes ao direito, mas não lhe constitui. Assim, "o fato de o art; 216-A prever a necessidade de anuência expressa dos titulares de direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel não é suficiente para fazer nascer o ato de transmissão da propriedade. Referida concordância expressa seguramente não se consubstancia em negócio jurídico bilateral"2. Diante disso, é descabida a cobrança de ITBI no procedimento de usucapião administrativa. Sejam felizes! Até o próximo Registralhas! ______________ 1 KÜMPEL, Vitor Frederico; ÁVILA BORGARELLI, Bruno de. Base de cálculo do ITBI: Um problema importante para o Direito Notarial-Registral. Migalhas 30 jan. 2018. Disponível em: clique aqui. 2 BRANDELLI, Luiza Fontoura da Cunha. O ITBI na usucapião administrativa. Revista de Direito Imobiliário, vol. 81, jul.-dez. 2016.
Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli Dando continuidade à série de colunas sobre a usucapião extrajudicial, este brevíssimo texto trata da possibilidade de aplicar-se essa modalidade de usucapião às unidades autônomas em condomínios edilícios. Não havia previsão expressa quanto a isso no CPC/2015, que inseriu o art. 216-A na Lei de Registros Públicos. Agora, com a vigência da lei 13.465/2017, acrescentou-se o §11 ao art. 216-A da LRP, com a seguinte redação: "No caso de o imóvel usucapiendo ser unidade autônoma de condomínio edilício, fica dispensado consentimento dos titulares de direitos reais e outros direitos registrados ou averbados na matrícula dos imóveis confinantes e bastará a notificação do síndico para se manifestar na forma do § 2º deste artigo". Assim, e seguindo-se a imposição do §2º do mesmo dispositivo, caso o síndico não dê manifestação no prazo legalmente assinalado (quinze dias), interpretar-se-á o seu silêncio como anuência. Essa presunção de concordância, como já se disse, é uma das grandes novidades da lei 13.465/2017. Pois bem. No caso de unidade autônoma de condomínio edilício, a desnecessidade de comunicação e anuência dos titulares de direitos reais e outros sobre os imóveis confinantes é de evidente razão. Com as áreas em geral perfeitamente demarcadas, não há motivo para citar e reunir a manifestação de todos os confrontantes, bastando mesmo que se notifique o síndico. Isso veio a ser também confirmado pelo provimento 65/2017 do CNJ, em seu art. 6º. Relativamente aos titulares de direitos reais ou outros direitos sobre o próprio imóvel que se pretende usucapir, entende-se não ser possível a representação pelo síndico, o que de resto espelha a literalidade do art. 216-A, §11 da LRP. Uma dúvida que sempre se coloca é quanto à possibilidade de usucapião de unidade em condomínio não regularizado, ou seja, naqueles casos em que a instituição condominial não está devidamente registrada. No art. 216-A, §11 da LRP não se fala em constituição regular de condomínio. O provimento 65 do CNJ, por sua vez, menciona claramente a usucapião de unidade de "condomínio edilício regularmente constituído". Diante disso, fica-se com o entendimento já acolhido pelo Conselho Superior da Magistratura de SP, no sentido de ser, sim, possível a usucapião de unidade autônoma em condomínio irregular. Assim ficou a ementa1: REGISTRO DE IMÓVEIS - Usucapião - Mandado de registro - Recusa, sob o fundamento de que os imóveis são unidades de empreendimento que configura condomínio irregular - Afirmação de que o registro das incorporações, instituições e convenções de condomínio é objeto de determinação legal e, sem o seu cumprimento, as unidades autônomas não têm acesso ao fólio real - Sentença de procedência da dúvida - Reconhecimento, todavia, da usucapião como forma originária de aquisição da propriedade, hipótese que viabiliza o registro pretendido - Recurso provido. De se destacar, também, o seguinte trecho da decisão: Deveras, doutrina e jurisprudência proclamam, em uníssono, a caracterização da usucapião como modo originário de aquisição do domínio, o que faz com que o ingresso na tábua registral, excepcionalmente, não se prenda a liames com o passado. Bem por isto, não há que se afirmar que o Juízo que decretou a usucapião tenha sido "induzido em erro" e, assim, deixado de observar que as unidades usucapidas se situam em condomínio irregular. Na verdade, o que se aprecia em ação de usucapião, como oportunamente ponderado pelos apelantes, é a realidade de fato, traduzida em posse sobre bem materialmente existente. Uma vez preenchidos os requisitos legais para que isto gere a aquisição da propriedade, a realidade de fato passa a equivaler a realidade de direito, cujo ingresso no registro imobiliário é consequência. Superada essa questão, resta mais um ponto interessante a tratar em relação ao objeto de usucapião aqui observado. Acredita-se, antes de tudo, que a possibilidade da usucapião administrativa de unidade autônoma de condomínio edilício pode ter um saudável reflexo na regularização de muitos imóveis. Durante boa parte dos anos 90 e 2000, muitos proprietários de unidades autônomas tentavam, mas não conseguiam regularizar seus imóveis, livrando-se de hipotecas incidentes em relação a negócios firmados entre a construtora e o agente financeiro. Paralelamente, muitos proprietários intentavam ações de usucapião, mas o STJ entendia não ser possível, diante da precariedade da posse. A dívida hipotecária, assim, ficava travada na matrícula do imóvel, impedindo o procedimento judicial de usucapião. Até que veio a súmula 308 do STJ: "A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel". Com esse enunciado, como se sabe, a hipoteca não vincula o compromissário comprador. E isso, entre outras coisas, viabiliza a retomada da discussão sobre usucapião. É que, com a ineficácia da hipoteca em relação ao terceiro adquirente da unidade autônoma em condomínio edilício, o caminho fica livre para a usucapião. E, com a possibilidade de usucapião extrajudicial, na forma como adotada no art. 216-A (com as supracitadas modificações introduzidas pela lei 13.465/2017), parece que se está diante de um excelente caminho para a regularização de muitos imóveis. O foco está, portanto, nessas áreas edilícias não regularizadas. De uma situação de completo travamento matricial, passando pela Súmula 308 até chegar à usucapião extrajudicial. Trata-se de um verdadeiro evoluir no processo de regularização urbana, de todo alinhado aos objetivos e à sistemática da própria usucapião administrativa, bem como da lei 13.465/2017. Sejam felizes! Até o próximo Registralhas. __________ 1 APELAÇÃO CÍVEL Nº 1.241-6/9, São Caetano do Sul, j. 13.04.2010, D.J.E. 15.06.2010.
Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli Neste texto dá-se continuidade à série de colunas sobre a usucapião extrajudicial. Como já se disse, o intuito é contribuir para a efetivação do instituto, sempre com a cautela necessária para que sua operacionalização não cause choques com o ordenamento e com preceitos fundamentais (v.g. o direito de propriedade). Uma das questões que causa preocupação é a do acúmulo de Tabelionato de Notas e Registro de Imóveis por um mesmo titular, situação comum em algumas unidades da Federação. Pois bem. O procedimento da usucapião administrativa não precisa ser aqui descrito em minúcias. Basta recordar que o mesmo CPC/2015, que incluiu na Lei de Registros Públicos o art. 216-A, também criou um instrumental para efetivar essa modalidade de usucapião. Destaca-se aí o relevo dado à ata notarial: no art. 384, caput do NCPC afirma-se que "a existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião". A ata notarial, recorde-se, pode ser vista como uma espécie do gênero das escrituras públicas em sentido amplo, cujo principal escopo é servir como prova em processos judiciais, podendo também ser utilizada "na seara privada, no âmbito administrativo ou mesmo registral"1. No procedimento de usucapião administrativa, está no rol dos documentos que instruirão o pedido de reconhecimento perante o ofício do Registro de Imóveis (art. 216-A, I da LRP), sendo lavrada "pelo tabelião de notas do município em que estiver localizado o imóvel usucapiendo ou a maior parte dele" (art. 5º do Provimento 65/2017 do CNJ). A ata atestará "o tempo de posse do requerente e de seus antecessores, conforme o caso e suas circunstâncias (...)". No Provimento 65/2017 do CNJ encontra-se um detalhamento dos elementos da ata notarial. Assim é a redação de seu art. 4º: Art. 4º O requerimento será assinado por advogado ou por defensor público constituído pelo requerente e instruído com os seguintes documentos: I - ata notarial com a qualificação, endereço eletrônico, domicílio e residência do requerente e respectivo cônjuge ou companheiro, se houver, e do titular do imóvel lançado na matrícula objeto da usucapião que ateste: a) a descrição do imóvel conforme consta na matrícula do registro em caso de bem individualizado ou a descrição da área em caso de não individualização, devendo ainda constar as características do imóvel, tais como a existência de edificação, de benfeitoria ou de qualquer acessão no imóvel usucapiendo; b) o tempo e as características da posse do requerente e de seus antecessores; c) a forma de aquisição da posse do imóvel usucapiendo pela parte requerente; d) a modalidade de usucapião pretendida e sua base legal ou constitucional; e) o número de imóveis atingidos pela pretensão aquisitiva e a localização: se estão situados em uma ou em mais circunscrições; f) o valor do imóvel; g) outras informações que o tabelião de notas considere necessárias à instrução do procedimento, tais como depoimentos de testemunhas ou partes confrontantes; O provimento tem, nesse particular, o mérito de especificar o conteúdo da ata notarial, inclusive anotando que o Tabelião poderá acrescentar ao documento outras informações que julgar necessárias para a instrução do procedimento. Tudo isso mostra como a figura do Tabelião de Notas é importante para a usucapião administrativa. O documento por ele lavrado é exigência legal, e seu conteúdo pode afetar positiva e negativamente o procedimento. O Tabelião inclusive "poderá comparecer pessoalmente ao imóvel usucapiendo para realizar diligências necessárias à lavratura da ata notarial" (art. 5º, §1º do Provimento 65/2017 do CNJ). Além da ata, são necessários os demais documentos indicados no art. 216-A da LRP: planta e memorial descritivo do imóvel; certidões negativas dos distribuidores da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente; justo título ou quaisquer outros documentos que demonstrem a origem, a continuidade, a natureza e o tempo da posse. O Oficial do Registro de Imóveis tomará esses documentos todos em consideração e procederá à sua típica análise extrínseca, avaliando a viabilidade da usucapião, e ainda a modalidade do caso, ou seja, de que tipo de usucapião se trata, dentre as diversas aceitas no ordenamento brasileiro (usucapião ordinária, extraordinária, coletiva urbana etc.). Diante disso, pergunta-se: é razoável que um mesmo oficial, acumulando as funções de Tabelião de Notas e de Registrador de Imóveis em uma dada localidade, atue como receptor do pedido de usucapião administrativa? Em muitos locais essa é uma realidade. Recorde-se que o art. 26 da lei 8.935/1994 (Lei dos Notários e Registradores) veda a acumulação de serventias (descritas no art. 5º da mesma lei), excetuando, contudo, no parágrafo único, os "Municípios que não comportarem, em razão do volume dos serviços ou da receita, a instalação de mais de um dos serviços". Essa possibilidade excepcional de acumulação veio apenas com a lei 8.935/1994. Antes dela, em diversos Estados a junção era expressamente admitida. Daí a determinação da Lei dos Notários e Registradores (art. 49) no sentido de se preservarem os direitos dos titulares que já acumulavam as funções desde antes da lei até que se dê a primeira vacância ("Quando da primeira vacância da titularidade de serviço notarial ou de registro, será procedida a desacumulação, nos termos do art. 26"). Seja como for, a acumulação, pelo que se entende, é um grande bloqueio à boa operação da usucapião administrativa. Isso porque um mesmo oficial elaborará a ata notarial e procederá à sua análise na qualificação. A situação pode ser até mais grave. Pense-se, por exemplo, naqueles municípios que têm mais de um Tabelionato, mas apenas um Ofício do Registro de Imóveis. Se houver acumulação deste último Ofício por algum dos tabeliães, é bastante provável que os postulantes escolham o Tabelionato acumulado com o RI. Isso fustiga toda a deontologia do sistema, e o controle da atividade. Fere-se com isso, por decorrência, a proteção do direito de propriedade, porque o procedimento feito sem o preenchimento de etapas diversas por agentes diversos pode destruir os elementos protetivos que o legislador conferiu ao titular do domínio na usucapião. Elementos estes que já são bastante escassos, principalmente em relação à já conhecida "presunção de concordância" dos titulares de dos direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo que, uma vez notificados pelo Oficial registrador, não se manifestem em 15 dias sobre o procedimento. Novidade trazida pela lei 13.465/2017, a presunção de concordância, apesar de ajudar na efetivação da usucapião administrativa, provoca necessariamente um questionamento sobre a constitucionalidade da normativa, neste específico ponto. O que importa é extrair desses problemas o fato de que, na operacionalização da usucapião extrajudicial, deve haver limites bem precisos, especialmente quanto à tutela da propriedade. Quanto ao específico - e delicado - problema focalizado neste texto (o acúmulo de serventias) espera-se das instituições uma resposta consciente e ágil. Sejam felizes. Até a próxima coluna! __________ 1 KÜMPE, Vitor Frederico; FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral. São Paulo: YK, 2017. Vol. 3. p. 550.
Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli Nesta coluna dá-se continuidade à série de textos sobre a usucapião extrajudicial. Nos artigos anteriores falou-se sobre o novo impulso dado a essa modalidade de usucapião por meio da lei 13.465/2017 - que alterou a "presunção de discordância" dos titulares confrontantes e demais interessados para uma "presunção de concordância", quando de seu silêncio após notificação - bem como sobre a tentativa de mediação e conciliação a ser feita pelo Oficial do Registro de Imóveis, importante novidade trazida pelo art. 18 do Provimento 65 do CNJ1. Este texto dedica-se a um problema bastante sensível deste último provimento. Trata-se da determinação contida em seu art. 21: Art. 21. O reconhecimento extrajudicial da usucapião de imóvel matriculado não extinguirá eventuais restrições administrativas nem gravames judiciais regularmente inscritos. §1º A parte requerente deverá formular pedido de cancelamento dos gravames e restrições diretamente à autoridade que emitiu a ordem. §2º Os entes públicos ou credores podem anuir expressamente à extinção dos gravames no procedimento da usucapião. Em outras palavras, sendo exitoso o procedimento de usucapião administrativa, as restrições e gravames presentes na matrícula do imóvel não serão extintos. O requerente é que deverá solicitar a cada autoridade emissora o cancelamento dessas restrições. Restrições que, recorde-se, não frustram o procedimento. Afinal, como reza o art. 14 do provimento, "a existência de ônus real ou de gravame na matrícula do imóvel usucapiendo não impedirá o reconhecimento extrajudicial da usucapião". Ora, como se sabe, a usucapião é modo originário de aquisição do domínio. Isso é inclusive reconhecido expressamente pelo Provimento 65, o qual, em seu art. 24, determina que o Oficial do RI não exigirá pagamento do ITBI para o registro da usucapião (afinal, sendo aquisição originária, inexiste verdadeira transmissão imobiliária). A originariedade faz com que, na usucapião, os gravames existentes na matrícula do imóvel percam sua eficácia. Qual a razão da diferença no procedimento extrajudicial? Recorde-se que, segundo o art. 20 do mesmo ato (prov. 65), o registro do reconhecimento da usucapião extrajudicial "implica abertura de nova matrícula", exceto se o imóvel usucapiendo encontrar-se já matriculado e o pedido referir-se à totalidade do bem. Neste caso, "o registro do reconhecimento extrajudicial de usucapião será averbado na própria matrícula existente". A averbação - na verdade o correto seria ato de registro - é feita e os gravames e restrições são, pela determinação do Provimento, mantidos. Essa ordem normativa soa realmente estranha. Até seria possível compreender a manutenção de restrições ambientais, por exemplo, mas a ideia de preservar tudo retira muito da eficácia do procedimento. Se o imóvel realmente contiver muitos gravames, o requerente precisará fazer uma via sacra para notificar todas as autoridades emissoras. Mas, e a notificação feita anteriormente aos titulares dos ônus reais e gravames para eventual impugnação, conforme o art. 10 do provimento2? O mesmo citado art. 10, em seu §1º, determina que a notificação dos titulares de direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel "poderá ser feita pessoalmente pelo oficial do registro de imóveis ou por escrevente habilitado se a parte notificanda comparecer em cartório". Como se vê, o Provimento aponta diversos meios pelos quais se pode indicar aos titulares dos direitos registrados ou averbados na matricula do imóvel a situação do bem - i.e., que se trata de procedimento de usucapião sobre ele incidente. E ainda assim preservam-se as restrições e gravames? Parece haver realmente uma incongruência no sistema estabelecido. Os titulares podem impugnar o procedimento, como também se sabe (art 14, parágrafo único) e, caso não seja frutífera a tentativa de conciliação a ser feita pelo Oficial do RI, frustrar o reconhecimento administrativo da usucapião. Os particulares e os entes públicos podem, assim, agir para evitar o processamento extrajudicial. Diante de tudo isso, entende-se que, na realidade, e para o procedimento da usucapião administrativa ter sua efetividade preservada, deve-se averbar na matricula, após o ato de registro da usucapião, a ineficácia das disposições e gravames ali existentes. Mais uma vez, é preciso repetir o que se disse nas colunas anteriores. Não se está a criticar o modo como o CPC/15, a lei 13.465/2017 e o provimento 65 do CNJ regulamentam a usucapião administrativa. É perfeitamente compreensível que o regramento avance a passos cautelosos, afinal está-se diante de uma figura jurídica complexa e de grande impacto. O que se pretende é oferecer subsídios para que, com essa mesma cautela, o procedimento se vá aperfeiçoando cada vez mais. Sejam felizes! Até o próximo Registralhas. __________ 1 Prov. 65, Art. 18, caput. "Em caso de impugnação do pedido de reconhecimento extrajudicial da usucapião apresentada por qualquer dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes, por ente público ou por terceiro interessado, o oficial de registro de imóveis tentará promover a conciliação ou a mediação entre as partes interessadas". 2 Prov. 65 CNJ, art. 10, caput. "Se a planta mencionada no inciso II do caput do art. 4º deste provimento não estiver assinada pelos titulares dos direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes ou ocupantes a qualquer título e não for apresentado documento autônomo de anuência expressa, eles serão notificados pelo oficial de registro de imóveis ou por intermédio do oficial de registro de títulos e documentos para que manifestem consentimento no prazo de quinze dias, considerando-se sua inércia como concordância".
Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli É já evidente para a maior parte das pessoas que o EPD trouxe mais problemas do que soluções ao Direito brasileiro. Incompatível até mesmo com a normativa que supostamente o inspira - a Convenção da ONU para as pessoas com deficiência - o chamado EPD é um descuido legislativo. Nem é preciso descer às suas entranhas: o só fato de não ter considerado a promulgação do Código de Processo Civil (lei 13.105/2015), ocorrida alguns meses antes, denota o problema. As duas mais relevantes leis de 2015 contradizem-se, como se a tramitação de uma desconsiderasse completamente o andamento da outra. Um país civilizado não pode admitir algo assim. O choque entre as normas constitui um dos maiores erros legislativos dos últimos anos. E a emenda custa caro. Em tempos de falta de credibilidade institucional - tempos nos quais autoridades defendem um STF vanguardista, pois o Legislativo supostamente perdeu legitimidade - fica muito difícil defender essa figura, o legislador, cujo poder afinal sempre tensionou os debates no campo jurídico. A apresentação do PLS 757/2015 pelos senadores Paulo Paim e Antonio Carlos Valadares pretendia corrigir os defeitos da normativa tal como publicada. O trâmite não se deu a tempo da entrada em vigor da lei. Acabou adaptado depois de parecer do senador Telmário Mota. Após a análise pela CDHC, e com o parecer da relatora - senadora Lidíce da Mata -, redundou o projeto em novo substitutivo, e foi enfim encaminhado à CCJ - que o acolheu em 20 de junho de 2018 - e depois ao estágio final da tramitação no Senado. Enfim, foi aprovado recentemente, em 4 de julho de 2018. Das muitas questões modificadas pelo PLS 757/15 - bem como por seu substitutivo - destaca-se o instituto da Tomada de Decisão Apoiada. A redação aprovada do art. 3º do substitutivo dá a seguinte redação ao art. 1.783-A do Código Civil de 2002: "Art. 1.783-A. As pessoas com deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave que conseguem exprimir a sua vontade, por qualquer meio, podem formular pedido judicial de tomada de decisão apoiada para a prática de ato ou atos sucessivos da vida civil, elegendo como apoiadores pelo menos 02 (duas) pessoas idôneas". Além disso, o Substitutivo, com seu art. 7º, acrescenta ao CPC o procedimento da TDA: "A seção IX do Capítulo XV do Título III do Livro I da Parte Especial da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, passa a ser denominada "Da Tomada de Decisão Apoiada e da Curatela (NR)". O mérito do substitutivo é sanear os erros quanto ao aspecto processual da TDA. Sua inserção no Código de Processo Civil é necessária. A dificuldade está no aspecto material, com a modificação do art. 1.783-A do CCB/02: podem pessoas com deficiência mental grave realizar o negócio jurídico de instituição de TDA, desde que consigam exprimir - por qualquer meio - sua vontade. A redação é falha e pode levar a grandes absurdos. Mas, como se pode ler no site do Senado Federal, "Ao rejeitar a atribuição de qualquer viés de incapacidade às pessoas com deficiência ou sem condições de manifestar sua vontade (quem está em coma, por exemplo), Lídice partiu, em seu substitutivo, para o reconhecimento da plena condição das mesmas para exercer atos da vida civil. Assim, para quem tem deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave, mas é capaz de exprimir sua vontade, por qualquer meio, ficou garantida a formulação de pedido judicial de tomada de decisão apoiada para a prática desses atos de autonomia". Diante dessa novidade, é preciso fazer algumas considerações sobre o instituto. A Tomada de Decisão Apoiada, diz a redação atual do art. 1783-A do CC/02, tal como incluído pelo EPD, é "o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas ido^neas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informaço~es necessários para que possa exercer sua capacidade". A figura se aproxima da congênere italiana amministrazione di sostegno. A diferença é que, na Itália, a inserção desse instrumento novo foi feita com cuidado, de modo que as legislações civil e processual se acomodaram num regime harmônico, a permitir a boa operacionalização da "administração de apoio". Obviamente não é o que ocorreu no Brasil. Por aqui, a despeito da importância que se pretendeu dar à TDA, a falta de previsão no CPC/15 dificulta sua aplicação. Esse ponto, felizmente, é corrigido no PLS 757/2015, como se disse acima. Seja como for, a operatividade configura apenas uma parte do problema do instituto. Mesmo que haja uma adequação processual, restará uma grande dúvida sobre a TDA: quando pode ser aplicada? Diante da conhecida mudança do sistema das incapacidades promovida pelo EPD - a mais radical modificação do Direito Civil brasileiro em muito tempo - fica difícil entender quem são as pessoas com deficiência aptas a realizar o negócio jurídico de estabelecimento da TDA. É preciso retomar aqui uma questão muito importante. O EPD não suprimiu a figura da curatela. Tentou, sem sucesso, extinguir a expressão "interdição", por ser um mecanismo supostamente arcaico e ligado a um paradigma "médico", e não "social", no trato jurídico das deficiências mentais. Mera falácia. Quem quer tutelar as pessoas com deficiência deve reconhecer esse estado, articular um sistema protetivo e promover políticas de inclusão. Fingir, com o golpe da caneta legislativa, que a deficiência não existe ou que o incapaz natural é capaz, isso sim é reprovável. De todo modo, como se disse, não houve sucesso na supressão do termo "interdição", porque o legislador deixou passar, aqui e ali, menções a essa palavra. Mas nos pontos de maior destaque houve substituição pelo politicamente correto "processo que define os termos da curatela". Uma curatela que fica mais restrita, impondo-se uma modulação judicial mais rigorosa dos poderes do curador, afim de se preservar o espaço de autonomia da pessoa protegida. Uma segunda colocação a fazer diz respeito à dificuldade em saber a quem, afinal, aplica-se a curatela. Diante do art. 6º do EPD, que deu plena capacidade às pessoas com deficiência, enumerando certos atos por elas praticáveis (incluindo casar e até mesmo exercer a curatela de outras pessoas), é difícil entender a partir de que ponto será preciso dar curador a alguém. Colocadas essas questões, volte-se à decisão apoiada. A lei, que confunde no mais, confunde também no menos. Nessa dificuldade em saber quem precisa de curador, por igual não se sabe quem dele prescinde, podendo - se quiser, e somente se quiser - optar pelo instituto da TDA. Diante disso, o que se pode fazer é fixar alguns limites para a TDA. Assim, deveria caber o instituto somente nos casos de evidente capacidade de percepção e autonomia para discernir. Fora disso, ou seja, apresentando a pessoa o menor sinal de não ser capaz - naturalmente - de dirigir sua vontade aos fins juridicamente tutelados, só resta o regime da curatela. A TDA vale para situações de deficiência que não prejudica um discernimento considerável para a prática escorreita, consciente e autônoma dos atos da vida civil. Recorde-se que a própria instituição da decisão apoiada corresponde a uma espécie de negócio jurídico. Sua criação exige já uma vontade livremente estabelecida, posto que direcionada a uma situação de apoio na administração dos próprios interesses, pois a deficiência pode obnubilar o discernimento da pessoa em casos mais delicados, dos que envolvem aspectos patrimoniais. Casos, enfim, mais sensíveis, nos quais um apoio é útil ao equilíbrio na vivência em comunidade. Aliás, na VIII Jornada de Direito Civil aprovou-se o seguinte enunciado 640 - "Art. 1.783-A: A tomada de decisão apoiada não é cabível se a condição da pessoa exigir aplicação da curatela". Mas não é isso o que se vê no Substitutivo ao PLS 757/2015. O que ali se afirma é que mesmo a pessoa com deficiência mental grave poderá recorrer à TDA, desde que consiga manifestar "por qualquer meio" sua vontade. Ora, que tipo de manifestação é essa? Se for somente for possível captar a vontade do deficiente com algum esforço de compreensão, isso vale para fins de aplicação da decisão apoiada? É evidente que não pode ser assim. Não se está a defender uma conexão necessária entre deficiência e falta de manifestação sadia da vontade. Sabe-se perfeitamente que essa implicação não é necessária. O problema está na repetição de um erro cometido pelo EPD em outros tantos de seus dispositivos: o de dar autonomia excessiva a pessoas que, embora consigam manifestar alguma vontade, não o fazem de forma regular, mas necessitam de um apoio. E um apoio que vai muito além do grau de autonomia que deveria ser exigido para algo como a TDA. Enfim, além de todos os malefícios trazidos pelo EPD, acredita-se que o Substitutivo veio causar ainda mais confusão em um ponto muito sensível. A verdade é dolorosa: leis brasileiras de enorme impacto social são feitas para o agrado do politicamente correto e de circunstâncias ideológicas. Disso o EPD é um grande exemplo. Sejam felizes. Até a próxima coluna!
Vitor Frederico Kümpel e Giselle de Menezes Viana O art. 226, § 7º, da Carta Constitucional garante ao indivíduo plena liberdade em matéria de planejamento familiar, além de imputar uma prestação positiva ao Estado: propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício deste direito. A lei 9.263 de 12 de janeiro de 1996, fulcrada na disposição constitucional, estabelece o planejamento familiar como parte integrante do conjunto de ações de regulação da fecundidade, em atenção à mulher, ao homem e ao casal, numa perspectiva garantidora de saúde integral1. A referida tutela integral da saúde abrange desde a assistência à concepção e à contracepção, passando pelo atendimento pré-natal, ao parto (puerpério e neonato), até o controle e prevenção das mais diversas modalidades de câncer. Engloba, portanto, tanto um planejamento familiar passivo (notadamente educacional), quanto ativo (disponibilização de técnicas e recursos relacionados à fecundidade). Dentre as múltiplas questões potencialmente abrigadas pela temática do planejamento familiar, uma das mais sensíveis diz respeito à esterilização. De acordo com a acepção médica, esterilização é a "cirurgia ou outro processo por meio do qual uma pessoa ou um animal é privado de reproduzir". Admite-se, atualmente, a esterilização por laqueadura tubária, vasectomia ou outro método cientificamente aceito. Considerando o direito fundamental à integridade física, bem como a mencionada liberdade de planejamento familiar, a opção pela esterilização cabe ao indivíduo, cujo consentimento é indispensável. O sistema jurídico - seguindo a linha de todos os sistemas civilizados contemporâneos - proíbe a esterilização compulsória, ou seja, a adoção de esterilização cirúrgica independentemente da vontade da parte envolvida. A proibição é perfeitamente compreensível, já que o procedimento de esterilização importa incapacidade permanente para a reprodução, com repercussões em nada banais para a vida do indivíduo e do casal. A lei 9.263/1996, nesse sentido, tipifica expressamente como crime - e pune com penas severas - a realização de esterilização cirúrgica em desacordo com seus preceitos2. Não obstante, a esterilização voluntária cirúrgica é admitida, podendo ser determinada, no sistema pátrio, tanto pela via administrativa quanto pela judicial. Trata-se de procedimento diretamente relacionado ao planejamento familiar e à paternidade/maternidade responsável. Afinal, a liberdade de ter filhos é tão juridicamente protegida quanto a liberdade de não os ter, e tais decisões integram a esfera de livre arbítrio de cada pessoa e de cada casal, insuscetível de interferência estatal. Não obstante, entende-se que gravidade (e eventual irreversibilidade) do procedimento de esterilização - que tolhe a própria potencialidade de futura procriação - justifica a imposição de determinadas cautelas. Busca-se, desse modo, garantir que a decisão, por ter caráter definitivo, seja tomada de modo consciente e responsável, correspondendo à real e livre vontade do indivíduo ou do casal. Assim, para a esterilização voluntária administrativa, exige-se a observância dos seguintes requisitos: a) capacidade civil plena; b) ser maior de 25 anos de idade ou ter pelo menos dois filhos vivos; c) observar o prazo mínimo de 60 dias entre a manifestação de vontade e o ato cirúrgico; d) propiciar à pessoa acesso a serviço de regulação da fecundação; e) aconselhamento por equipe multidisciplinar, com o objetivo de desencorajar a esterilização precoce; A esterilização voluntária administrativa pode, ainda, ser autorizada em razão de comprovado risco para a vida ou para a saúde da mulher ou do futuro concepto, exigindo-se minucioso relatório escrito e assinado por dois médicos (art. 10, II, da lei 9.263/1996). A preocupação do ordenamento em garantir a higidez da vontade, na hipótese de esterilização, é notável. É em vista dessa preocupação que a lei nega validade à vontade declarada se houver alteração na capacidade de discernimento, por uso de drogas ou estados emocionais alterados. A lei 9.263/1996 proíbe, ainda, esterilização de mulher em período de parto ou aborto - momentos nos quais o estado emocional pode não estar completamente normalizado - a não ser que haja risco de vida para a mulher. Aliás, a preocupação alcança não apenas o indivíduo, mas também o casal: havendo companheiro ou cônjuge, exige-se sua concordância, na medida em que o planejamento familiar cabe a ambos, e os efeitos da esterilização serão também sentidos por ambos. Ao lado da esterilização voluntária administrativa existe, pelo menos na previsão do art. 10, § 6º, da referida lei, a esterilização judicial, isto é, a realizada em absolutamente incapaz. Ocorre que o próprio preceito legal sujeita a viabilidade do procedimento à forma da lei, a depender de regulamentação superveniente, que até hoje não ocorreu. Tudo que foi até agora mencionado diz respeito a situações jurídicas anteriores à edição do Estatuto da Pessoa Portadora de Deficiência (lei 13.146 de 6 de julho de 2015). O art. 114 da lei 13.146/2015 revogou os incisos I, II e II do artigo 3º do Código Civil, determinando que são absolutamente incapazes apenas os menores de 16 anos de idade3. Em outras palavras, a partir de sua entrada em vigor, a pessoa com deficiência, definida pelo diploma legal4 como aquela que tem impedimento de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, não é mais tecnicamente considerada incapaz. Nesse sentido, além de suprimir as menções aos deficientes nos artigos 3º e 4º do Código Civil, a lei 13.146/2015 dispôs expressamente, nos artigos 6º e 84, que a deficiência não afeta mais a plena capacidade civil da pessoa5. Com o advento desta lei, a esterilização cirúrgica em absolutamente incapaz foi praticamente derrogada, na medida em que só o menor de 16 anos, hoje, é absolutamente incapaz. Assim, com a extinção das demais causas de incapacidade absoluta, restou apenas uma potencial (e remota) situação em que se poderia cogitar a esterilização em absolutamente incapaz: no caso do indivíduo menor de 16 anos. Para isso, contudo, persiste a exigência de regulamentação específica, além de autorização judicial no caso concreto. Porém, o paradoxo não está na esterilização judicial, e sim na esterilização voluntária administrativa. Isto porque o art. 6º do Estatuto da Pessoa Portadora de Deficiência garante expressamente a capacidade civil plena a qualquer deficiente mental, inclusive sem qualquer capacidade de compreender a realidade, para "exercer direitos sexuais e reprodutivos"; "exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar"; e "conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória". Os dispositivos acimas transcritos garantiram à pessoa com pouca ou nenhuma capacidade de discernimento o direito de pleitear a própria esterilização em face do Poder Público. Afinal, a capacidade civil plena do art. 10, I, da Lei do Planejamento Familiar, está fictamente presente, por força do art. 6º do Estatuto da Pessoa Portadora de Deficiência. Entre os princípios mais caros ao Biodireito está o do consenso afirmativo, determinando que, para a tomada de decisão, é imprescindível não só a autodeterminação do titular de direitos, mas a possibilidade de ter acesso a informações que apresentem consequências de todos os procedimentos clínicos ou cirúrgicos a que se submeterem6. Na medida em que este princípio não possa ser aplicado, não pode o sujeito, ainda que autorize, ser submetido a nenhuma espécie de limitação permanente em sua capacidade física. Muito embora obste a esterilização compulsória, o Estatuto assegura que a deficiência em nada obsta o exercício do planejamento familiar e dos direitos reprodutivos, não havendo, portanto, empecilhos decorrentes da deficiência para a esterilização voluntária. Mas seguir à risca a orientação dada pelo Estatuto pode resultar no absurdo de se autorizar a esterilização em pessoa que sequer entenda os consectários práticos do procedimento. Por óbvio que os órgãos públicos não devem dar efetividade ao texto do Estatuto, o que pode provocar demanda judicial com imprevisíveis consequências jurídicas. O princípio do consenso afirmativo deve, em qualquer caso, servir de termômetro para a análise da vontade declarada. O Estatuto da Pessoa com Deficiência quis evitar a esterilização compulsória - o que já não era admitido - mas acabou por autorizar, tecnicamente, uma situação teratológica: a esterilização "voluntária" de quem não tem perfeito controle da vontade declarada, muito embora tenha capacidade, em tese, para autorizar a realização do procedimento. A linha entre o livre exercício do planejamento familiar e a esterilização compulsória, na prática, se mostra mais tênue do que indica a retórica legislativa. Sejam felizes e continuem conosco! __________ 1 De acordo com o art. 2º, caput, da referida lei: "Para fins desta Lei, entende-se planejamento familiar como o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal". 2 "Art. 15. Realizar esterilização cirúrgica em desacordo com o estabelecido no art. 10 desta Lei. Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, se a prática não constitui crime mais grave. Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço se a esterilização for praticada: I - durante os períodos de parto ou aborto, salvo o disposto no inciso II do art. 10 desta Lei. II - com manifestação da vontade do esterilizado expressa durante a ocorrência de alterações na capacidade de discernimento por influência de álcool, drogas, estados emocionais alterados ou incapacidade mental temporária ou permanente; III - através de histerectomia e ooforectomia; IV - em pessoa absolutamente incapaz, sem autorização judicial; V - através de cesária indicada para fim exclusivo de esterilização". 3 Tratam-se dos menores impúberes em que a lei considera, em razão da imaturidade, inaptos a praticar os atos da vida civil. Ou seja, considerando seu desenvolvimento mental incompleto, não possuem auto orientação, podendo ser facilmente influenciados por outras pessoas. 4 Art. 2º da lei 13.146/2015: "Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas". 5 Art. 6º da lei 13.146/2015: "A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para: I - casar-se e constituir união estável; II - exercer direitos sexuais e reprodutivos; III - exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar; IV - conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória; V - exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e VI - exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas". Art. 84 da lei 13.146/2015: "A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas". 6 Art. 9º, § 4º, da lei 9.434/1997.
Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli Este texto é o segundo da série de colunas sobre usucapião extrajudicial (art. 216-A da Lei de Registros Públicos), iniciada há pouco1. Nele dedicaremos breves linhas a um aspecto muito interessante da regulamentação dessa modalidade administrativa de usucapião, que é a possibilidade de conciliação e de mediação feita pelo oficial do Registro de Imóveis na operacionalização do instituto. Recorde-se, antes de mais, que se deve à lei 13.465/2017 a correção de diversos pontos problemáticos da redação original do art. 216-A da LRP. Como já se afirmou, a mais relevante dessas alterações está na nova redação dada ao §2º: "Se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares de direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes, esse será notificado pelo registrador competente, pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar seu consentimento expresso em 15 (quinze) dias, interpretado o seu silêncio como concordância". O artigo afasta a anterior "presunção de discordância", havida quando os titulares dos imóveis confrontantes não se manifestassem a respeito do pedido. Agora, uma vez notificados e não dando resposta em 15 dias, tem-se por concordância a sua inércia. Mas se, ao revés, houver uma impugnação do pedido de usucapião, o Oficial do Registro de Imóveis deve tentar uma conciliação entre as partes. Depois da lei 13.465/2017, o provimento 65/2017, da Corregedoria Nacional de Justiça, estabeleceu importantes "diretrizes para o procedimento da usucapião extrajudicial no âmbito dos serviços notariais e de registro de imóveis" (art. 1º). E também no art. 10 do Provimento se afirma que: Art. 10. Se a planta mencionada no inciso II do caput do art. 4º deste provimento não estiver assinada pelos titulares dos direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes ou ocupantes a qualquer título e não for apresentado documento autônomo de anuência expressa, eles serão notificados pelo oficial de registro de imóveis ou por intermédio do oficial de registro de títulos e documentos para que manifestem consentimento no prazo de quinze dias, considerando-se sua inércia como concordância. Como igualmente se assentou na última coluna, ninguém pode criticar a redação original dada ao art. 216-A da LRP pelo CPC/2015. Isso porque uma novidade como a usucapião administrativa (em toda a sua abrangência, nada comparável à restrição da lei 11.977/2009) exigia cautela do legislador e da comunidade jurídica. Após discussões saudáveis é que se identificaram problemas, cuja superação poderia ser facilmente corrigida. Assim é que se passou da presunção de discordância para a presunção de concordância em caso de inércia dos titulares de direitos reais sobre o imóvel ou dos titulares dos imóveis confrontantes. Além disso, como também se afirmou no último texto, será sempre questionável, de certo modo, a mudança legislativa. Na medida em que o registro é a base do sistema, o princípio da inviolabilidade socorre o seu titular. O titular tabular, via de regra, está protegido desde a dimensão constitucional do direito de propriedade. Passou-se, com a mudança, a proteger o possuidor, o que é bastante razoável sob o ponto de vista prático e funcional, porém questionável do ponto de vista das garantias fundamentais. Essa discussão, contudo, deve ficar para outras linhas. O que parece bastante claro é que uma tentativa de favorecer a desjudicialização não se poderia contentar apenas com essa diretriz (presunção de concordância). Importa também, numa normativa que se pretende eficiente, direcionar o que ocorre quando da impugnação - ou seja, que rumos toma o procedimento quando há impugnação do procedimento pelos referidos titulares ou pelos terceiros interessados. Recorde-se que a estes últimos também se dá a conhecer o procedimento: é o teor do §4º do art. 216-A da LRP (já na redação originalmente dada pelo CPC/15): § 4o O oficial de registro de imóveis promoverá a publicação de edital em jornal de grande circulação, onde houver, para a ciência de terceiros eventualmente interessados, que poderão se manifestar em 15 (quinze) dias. Pois bem. Sobre a impugnação, diz o art. 216-A, em seu disposto: § 10. Em caso de impugnação do pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, apresentada por qualquer um dos titulares de direito reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, por algum dos entes públicos ou por algum terceiro interessado, o oficial de registro de imóveis remeterá os autos ao juízo competente da comarca da situação do imóvel, cabendo ao requerente emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum. Então o que a lei parece ordenar é que o Oficial, diante de uma impugnação, remeta de pronto os autos ao juízo competente. Mas, será que uma interpretação apenas literal do preceito seria suficiente, tanto mais diante da complexidade do que afinal se regulamenta? Parece que sim. E é bom que se recorde que o mesmo CPC/15, que estabeleceu a usucapião extrajudicial, também prestigiou fortemente a figura da conciliação, apresentada em diversos de seus dispositivos. Uma visão sistemática, embora reconhecendo a presença da usucapião administrativa em artigo isolado (e um artigo que não menciona expressamente a conciliação/mediação operada pelo Oficial do Registro de Imóveis) entende desde a promulgação da lei ser possível que o agente atue como conciliador entre as partes (assim Lamana Paiva2, por exemplo). O que fez o provimento 65/2017 - já mencionado - foi explicitar, dentre suas diretrizes, essa possibilidade, para que se operacionalize já no próprio Registro de Imóveis uma tentativa de superar o impasse da impugnação. Assim está o dispositivo: Art. 18. Em caso de impugnação do pedido de reconhecimento extrajudicial da usucapião apresentada por qualquer dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes, por ente público ou por terceiro interessado, o oficial de registro de imóveis tentará promover a conciliação ou a mediação entre as partes interessadas. § 1º Sendo infrutífera a conciliação ou a mediação mencionada no caput deste artigo, persistindo a impugnação, o oficial de registro de imóveis lavrará relatório circunstanciado de todo o processamento da usucapião.§ 2º O oficial de registro de imóveis entregará os autos do pedido da usucapião ao requerente, acompanhados do relatório circunstanciado, mediante recibo.§ 3º A parte requerente poderá emendar a petição inicial, adequando-a ao procedimento judicial e apresentá-la ao juízo competente da comarca de localização do imóvel usucapiendo. Assim, em caso de impugnação (pois é dela que trata o dispositivo explicitador), levanta-se a possibilidade de conciliação ou mediação, devendo, diante de sua eventual ineficácia, ser o processo remetido ao juízo competente. Nesse sentido, teve-se recentemente o pedido de providências 1000162-42.2018.8.26.010, perante a 1ª vara de Registros Públicos de São Paulo: USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL - IMPUGNAÇÃO FUNDAMENTADA. Ocorrendo a hipótese de impugnação fundamentada, o Oficial deverá buscar a conciliação entre as partes. No insucesso, remeterá o processo ao juízo competente que julgará a impugnação. Caso mantida, este devolverá o processo ao Oficial, que extinguirá o procedimento e a prenotação, cabendo ao interessado buscar a via judicial se entender pertinente o prosseguimento do feito deste modo (ementa não oficial). Mas, veja-se: o dispositivo do Provimento 65/2017 explicita a possibilidade de conciliação/mediação em face da impugnação. Não será possível, contudo, adotar-se essa tentativa de solução diante de outros problemas, que não uma efetiva e formal impugnação? Ressalte-se que a questão não fica resolvida com o provimento 67/2018, da mesma Corregedoria Nacional da Justiça, o qual "dispõe sobre os procedimentos de conciliação e de mediação nos serviços notariais e de registro do Brasil". Neste caso, trata-se de uma atividade de conciliação e mediação em sentido estrito, de modo que, segundo o art. 6º, "Somente poderão atuar como conciliadores ou mediadores aqueles que forem formados em curso para o desempenho das funções (...)", observadas certas diretrizes curriculares. Segundo o Provimento, é necessária uma autorização da Corregedoria Estadual para que o cartório ofereça o serviço de conciliação e mediação. Ainda que se possa criticar o provimento 67/2018, o fato é que uma visão geral de seus dispositivos, embora indique um regramento bem diferente daquilo que se discute em relação à usucapião extrajudicial, pode ao menos revelar que os ofícios do notariado e registro podem sim oferecer os serviços de conciliação. Têm essa capacidade e podem, preenchidos alguns requisitos - ainda obscuros, é verdade - mediar conflitos. Mas, como se disse, no específico tema aqui abordado não há como confundir as disposições. O Provimento de 2018 tem como objeto a conciliação/mediação feita nas serventias extrajudiciais, ou seja, mediação/conciliação oferecida por agentes privados (delegatários do poder público), assim de forma institucionalizada. Não se pode utilizar este último Provimento para defender a restrição ou a ampliação da atividade de conciliação no caso da usucapião administrativa. São situações diferentes, pois na usucapião extrajudicial a conciliação deve ser sempre promovida diante da impugnação, não se tratando de uma atividade institucionalizada de mediação de conflitos. Com isso, retorne-se à questão previamente fixada. A tentativa de conciliação, na usucapião extrajudicial, vai além dos casos de efetiva impugnação, envolvendo também outros "entraves" ao procedimento? A resposta deve ser afirmativa. Não há sentido em atribuir-se ao Oficial o mais, e não o menos. Se lhe cabe agir como conciliador diante de impugnação, também será de seu mister orientar e direcionar as partes, fazendo o máximo possível para efetivar o procedimento no âmbito administrativo. Deverá, assim, agir para evitar a própria impugnação, dirimindo as dúvidas das partes. Em outros termos, trata-se de um esclarecimento quanto ao procedimento, suas etapas e seu resultado. Qualquer que seja a visão a respeito da conciliação pelo Oficial - ora mais ampla, ora mais restrita - o fato é que esse será, certamente, um dos passos mais importantes para a efetiva concretização da usucapião administrativa no Brasil, que ainda caminha a passos lentos: várias atas notariais já lavradas, porém com poucos registros efetivados. A conciliação e a mediação - espera-se - darão aos Oficiais do Registro uma margem mais ampla de atuação para efetivar o procedimento. Até a próxima coluna, sejam felizes! __________ 1 KÜMPEL, Vitor Frederico; ÁVILA BORGARELLI, Bruno. Usucapião administrativa: um novo impulso. Migalhas, 8/5/2018. Acesso em 4/6/2018. 2 O procedimento da usucapião extrajudicial. Acesso em 4/6/2018.
Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli Símbolo de um suposto "novo Direito de Família" brasileiro, as chamadas escrituras de uniões poliafetivas ganharam o noticiário até mesmo internacional. É claro que a divulgação escapou para o trágico: o Brasil aceita a poligamia, disseram veículos como Le Monde, El País e La Stampa1. Na verdade, o Direito brasileiro não tutela uniões poligâmicas, e as escrituras que reconhecem efeitos jurídicos de união estável - pessoais e patrimoniais - a relações entre mais de duas pessoas são ilegais. Pela ordem constitucional (art. 226, §3º) e infra (CCB/02, art. 1.723) a monogamia é essencial ao reconhecimento de união estável2. Argumentar com a ideia de que tais escrituras apenas constatam a existência fática de tais arranjos, declarando-os, é no mínimo temerário. O cidadão enxerga na escritura pública a chancela estatal que tal documento de fato carrega. A constatação de algo que é "quase jurídico" ou "em vias de tornar-se jurídico" fere qualquer compromisso entre o agente (tabelião) e o cidadão. As uniões poliafetivas não são jurídicas, e não podem atrair efeitos de Direito de Família. Uma eventual reforma legislativa com o propósito de admitir a juridicidade dessas relações teria de modificar diversos aspectos do ordenamento, para evitar contradições. Por exemplo: a união estável, como se sabe, pode ser convertida em casamento. Se se reconhece como "união estável" uma relação entre três pessoas, é necessário admitir que essa mesma relação seja convertida em casamento. Estar-se-ia, então, diante de uma espécie de bigamia excepcionalmente autorizada? Essa e outras contradições revelam, também em uma visão sistemática, a não admissão da figura da união jurídica poliafetiva. Em vista da gravidade do problema, há um pedido de providências feito ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pela Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) para que o órgão explicite aos titulares e substitutos dos Tabelionatos de Notas que tais escrituras não devem ser lavradas. O ministro João Otávio de Noronha, Corregedor Nacional de Justiça, já votou pela procedência desse importante pedido. A questão assume grande relevância social diante da possibilidade de se efetuarem muitas escrituras desse tipo. O argumento com que se pretende legitimar esses atos é o mesmo que tem permeado parte substancial dos discursos em Direito de Família no Brasil: o da afetividade. Seria o afeto o elemento garantidor da juridicidade das relações familiares, bem como a chave interpretativa dessas mesmas relações. Com isso, se há uma relação afetiva, ainda que poliafetiva, é viável emprestar efeitos jurídicos, garantindo assim alguma forma de tutela por parte do Estado. O problema está na inviabilidade de se operacionalizar algo como o afeto. Não se quer com isso desprestigiar os sentimentos. Antes pelo contrário: quer-se indicar que um sistema jurídico é incompatível com elementos tão nobres quanto amor e afeto, cuja compreensão deve ser reservada para estudos próprios, em diversas áreas, e por pessoas com formação específica. Em outros termos: os juristas não sabem e não saberão lidar adequadamente com o afeto. Interpretá-lo em situações reais exigiria uma racionalidade que um tomador de decisões jurídicas não tem. Essa inviabilidade revela o tom fortemente retórico dos discursos que anunciam uma "virada" compreensiva do Direito de Família a partir da afetividade. Sem dúvida, as relações familiares experimentaram uma grande mudança desde meados do século XX, principalmente com a contracultura. Uma nova realidade comportamental que atingiu, sem dúvida, o Direito. Mas, as influências específicas que essa revolução criará em Direito de Família (e não na experiência das relações particulares) exigem ainda, como sempre exigirão, uma decisão política. É dizer, variações comportamentais, emergidas a partir da revolução cultural (especialmente), e do "é proibido proibir" - que agora completa meio século - podem impactar decisões políticas legislativas, mas não criam um dever de tutela por parte de qualquer agente estatal sobre todas as "expressões" de comportamento afetivo e sexual. Relativamente às uniões "poliafetivas" - na verdade uma prática muito antiga, que a civilização abandonou em prol da monogamia - a questão é singela: as pessoas, se quiserem, podem viver uma relação com outras duas, três ou mais. O que não se admite é a juridicidade desse arranjo, porque o Brasil adota a monogamia como pilar constitucional. E somente desloca o aparato estatal para proteger relações entre duas pessoas, caso, é claro, não estejam impedidas de casar (abre-se aqui a discussão sobre os efeitos jurídicos das relações paralelas, o chamado "direito dos amantes", que certas correntes pretendem ver tuteladas como se fossem família, sempre sob o argumento do afeto). Daí o primeiro grande motivo para rejeitarem-se as escrituras públicas de poliafetividade. Um outro aspecto, que deveria soar mais óbvio, e que já se adiantou ao início, diz respeito à própria figura do Tabelião de Notas. Agente da máxima importância, a quem o Estado confere o poder de dar fé pública a atos e fatos jurídicos, sua tarefa não pode ser banalizada. Ao reconhecer uma relação que não subsiste juridicamente como família, o notário se afasta do imperativo da legalidade, que lhe preside o ofício. Realmente, "(...) quando o Tabelião de Notas, portador da fé pública, lavra uma escritura, declarando a existência de relação de três, quatro, cinco ou mais pessoas com direitos típicos da união estável, afirma inveridicamente à sociedade que tais relações entraram no mundo do Direito, que se tornaram relações jurídicas familiares e produzirão todos os efeitos ali mencionados"3. E chega-se assim a mais um alerta (tempos difíceis nos quais é preciso pedir desculpas para dizer o correto): não se pretende afirmar que o Direito não acompanha as mudanças, ou a realidade das relações humanas. Como dito acima, acompanha deveras, e o direito de família brasileiro está cheio de exemplos disso. A questão relevante reside em saber como se opera esse acompanhamento da realidade. Quando um determinado autor diz algo como "o Direito não pode fechar os olhos para a realidade das relações familiares", essa colocação precisa ser compreendida com muito cuidado. Que Direito é esse? Aquela parte da técnica jurídica realizada perante um Tabelião entra nessa noção? É preciso responder com firmeza: não. O Direito que não fecha os olhos à "fértil realidade da vida" é uma referência ao legislador, único que pode manejar a ordem jurídica, pois tem autoridade para isso. No Brasil, a insistência na ideia de que decisões judiciais, por exemplo, devem levar em conta todos os "valores", sem apegar-se demasiadamente à "letra da lei", foi criando um quadro muito problemático. Um substancialismo jurídico-decisório, como dirá Thiago Reis4. Para este autor, "se por trás de toda regra, de todo princípio, de todo instituto ou de toda relação jurídica há sempre uma substância que os legitima e informa, qualquer estrutura pode ser relativizada em nome de uma interpretação que afirme apreender e realizar essa substância"5. E se todo caso, por mais simples que pareça, deve ser decidido com base na "tábua de valores da Constituição", retira-se das regras jurídicas sua necessária vinculatividade. Aliás, é o que se tem visto: a própria CF/88 perde sua vinculatividade em nome dos valores a ela supostamente relacionados6. É aí que entra a tirania do afeto, a alimentar o problema específico analisado no presente texto ("escrituras" de uniões poligâmicas). Se todo o direito de família é baseado no afeto - essa substância - então qualquer regra pode ser afastada para fazer valer tal sentimento. Em outros termos, também essa ideia de que é possível fazer tais escrituras porque "é o que acontece na realidade da vida" surge como uma expressão - uma entre tantas - do cenário no qual está mergulhado, hoje, o Direito brasileiro. Um verdadeiro vale-tudo para driblar a legislação. Se se pretende ver a ordem jurídica democrática preservada é preciso afirmar: não há uniões jurídicas poliafetivas. Escrituras que as reconhecem são nulas. E continuarão a ser até que o legislador venha a admitir a figura. É claro que isso dificilmente ocorrerá, afinal uma decisão como essa tem impactos negativos tanto dentro da família quanto fora dela (algo que se pretende discutir melhor numa futura coluna). Talvez o conhecimento dessa vedação explique a tentativa de forçar a admissão das uniões poliafetivas pela via do ativismo judicial e (mais esta!) extrajudicial. Afinal, se o legislador constituinte não admitiu, basta invocar algum valor e fazer surgir na Constituição algo que lá não se inseriu. É o momento de se entender que esse pensamento, que derrui o aparato normativo para a obtenção de determinados fins, desestabiliza mais ainda um país institucionalmente frágil e, ao final das contas, piora a vida do cidadão. Até o próximo Registralhas! __________ 1 Uma exposição das principais manchetes - a maior parte delas em tom pejorativo - pode ser lida em TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz. Brasil: o país do 'ménage à trois'. Estadão - Fausto Macedo. 30/4/2018. Acesso em 19/5/2018. 2 CF/88. Art. 226. §3º. "Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento". 3 TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz. CNJ julga pedido de providências para que não sejam lavradas escrituras de poligamia. Estadão - Fausto Macedo. 26/4/2018. Acesso em 19/5/2018. [grifo nosso]. 4 Dogmática e incerteza normativa: crítica ao substancialismo jurídico do direito civil-constitucional. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 11, ano 4, p. 213-238, abr./jun. 2017. 5 REIS, Thiago. Op. cit., p. 227. 6 Uma denúncia desses problemas foi feita em BORGARELLI, Bruno de Ávila. Crise do Direito Civil encontra focos de resistência - Parte 1. Migalhas. Acesso em 19/5/2018.
terça-feira, 8 de maio de 2018

Usucapião administrativa: um novo impulso

Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli A lei 13.465/2017, uma das normativas mais relevantes para o Direito Imobiliário-Registral nos últimos anos, corrigiu questões problemáticas do regramento até então vigente sobre a usucapião extrajudicial. A principal modificação talvez seja a que diz respeito à presunção de discordância, uma opção feita pelo CPC/2015 e incluída no art. 216-A LRP, preceito regente do procedimento administrativo em questão. Basicamente, significava que, para a usucapião extrajudicial, a ausência de manifestação expressa do titular do imóvel usucapiendo, do titular de imóvel confrontante ou do titular de direito real sobre o bem importava sua discordância. Na medida em que o Direito de Propriedade, já em sua dimensão constitucional, protege o titular tabular, parecia correta essa opção do legislador, tendo em vista que o possuidor usucapiente goza de uma proteção demarcada, com a via extrajudicial de sua realização a exigir anuência expressa do proprietário. Mas é evidente que essa determinação prejudicava a aplicação do procedimento. As críticas são conhecidas e dispensam maior desenvolvimento. Se a ideia era facilitar a realização de usucapião e prosseguir a linha da desjudicialização, viu-se diante de um grande entrave. Veja-se: não se está aqui a dizer que a desjudicialização seja sempre boa e que a usucapião administrativa seja a oitava maravilha do mundo. Mas, se o legislador optou por incluir esse procedimento no sistema brasileiro, era preciso torná-lo operativo. De todo modo, é também importante fazer o devido tributo ao CPC/15: a novidade da usucapião administrativa exigia cautela. É verdade que aquela presunção de discordância criou um bloqueio na aplicação do procedimento, mas um bloqueio facilmente solucionável por reforma legislativa, o que de fato ocorreu em 2017. Melhor ter um legislador que avança a passos cuidadosos em tão relevante procedimento do que a conhecida imprudência legislativa que castiga, em tantos casos, o Direito brasileiro (como ocorreu com o Estatuto da Pessoa com Deficiência, a lei 13.146/2015, por exemplo). Além disso, o CPC/2015 não se limitou a incluir um preceito (o art. 216-A) na Lei dos Registros Públicos, para inserir no ordenamento brasileiro a usucapião extrajudicial. Estabeleceu, na realidade, ferramentas para viabilizar essa modalidade, destacando-se aí a posição honrosa dada à figura da ata notarial. Este instrumento, do gênero das escrituras públicas em sentido amplo, reúne elementos dos mais prestigiosos da atividade tabelioa. Pois o NCPC incluiu no capítulo das provas uma seção dedicada à ata notarial, com um preceito, o art. 384: "Art. 384. A existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião. Parágrafo único. Dados representados por imagem ou som gravados em arquivos eletrônicos poderão constar da ata notarial". Então, o que se conclui é que o NCPC trouxe sim o instrumental básico para a efetivação da usucapião extrajudicial. Se não houve sucesso imediato da figura, tal se deu pelo (justificado) receio dos agentes envolvidos e por certas exigências legislativas que travavam o procedimento, especialmente aquela presunção de discordância. A solução veio, como se disse. Com o advento da lei 13.465/2017, alteraram-se parágrafos e incisos do art. 216-A da LRP, destacando-se a nova redação dada ao § 2º: "Se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares de direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes, esse será notificado pelo registrador competente, pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar seu consentimento expresso em 15 (quinze) dias, interpretado o seu silêncio como concordância". Como se vê, passa o silêncio dos titulares de direitos reais sobre o imóvel ou dos imóveis confrontantes a ser tido como concordância, caso não manifestado expressamente o consentimento em 15 dias. Destaca-se ainda a redação dada ao §13: "Para efeito do § 2º deste artigo, caso não seja encontrado o notificando ou caso ele esteja em lugar incerto ou não sabido, tal fato será certificado pelo registrador, que deverá promover a sua notificação por edital mediante publicação, por duas vezes, em jornal local de grande circulação, pelo prazo de quinze dias cada um, interpretado o silêncio do notificando como concordância". Essa reforma, prenúncio de um impulso novo para a usucapião administrativa, exigiu ajustes para os serviços extrajudiciais, finalmente realizados pelo Provimento n. 65, de 14 de dezembro de 2017, da Corregedoria Nacional de Justiça, emitido com o objetivo expresso de "estabelecer diretrizes para o procedimento da usucapião extrajudicial no âmbito dos serviços notariais e de registro de imóveis, nos termos do art. 216-A da LRP" (art. 1º). O art. 10 do Provimento 65/2017 reforça a novidade na presunção de anuência: "Art. 10. Se a planta mencionada no inciso II do caput do art. 4º deste provimento não estiver assinada pelos titulares dos direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes ou ocupantes a qualquer título e não for apresentado documento autônomo de anuência expressa, eles serão notificados pelo oficial de registro de imóveis ou por intermédio do oficial de registro de títulos e documentos para que manifestem consentimento no prazo de quinze dias, considerando-se sua inércia como concordância". Ainda, e dentre outras relevantes colocações, o §10 desse mesmo art. 10 do Provimento dispensa a intimação dos confrontantes do imóvel usucapiendo caso a descrição tabular deste último seja precisa, e coincidente com a descrição da área requerida: "§ 10. Se o imóvel usucapiendo for matriculado com descrição precisa e houver perfeita identidade entre a descrição tabular e a área objeto do requerimento da usucapião extrajudicial, fica dispensada a intimação dos confrontantes do imóvel, devendo o registro da aquisição originária ser realizado na matrícula existente". É dizer, além de se considerar como concordância a inércia - em 15 dias - dos titulares de direitos reais sobre o imóvel usucapiendo ou sobre os confinantes que forem devidamente notificados, o ato do CNJ ainda dispensa a própria intimação destes últimos (titulares dos confrontantes) no caso de coincidirem a descrição tabular do imóvel e aquela feita no requerimento de usucapião. Algo a se comentar em uma coluna específica, é claro - pois não parece questão trivial - mas que já denota o esforço de simplificação do procedimento, especialmente no que diz respeito à notificação de interessados. Seja como for, e apesar de alguns riscos nessa normativa, a conclusão é de que houve - e tem havido - prudência na regulamentação da usucapião administrativa, tanto da parte do legislador, quanto do CNJ, quanto das normas das Corregedorias Estaduais. Mas, é claro que uma novidade como essa ainda deixa inúmeros espaços duvidosos, cuja solução é tanto mais importante agora, diante de um provável aumento nos procedimentos de usucapião administrativa. Para se ter uma ideia, apenas na cidade de São Paulo correm quase 35 mil ações de usucapião! Algumas dessas demandas estão atualmente suspensas para que as partes se manifestem sobre a vontade de realizar o procedimento administrativo. A usucapião administrativa está, sem dúvida, mais atual que nunca. Este texto inaugura uma pequena série de colunas sobre algumas das questões espinhosas nesse tão relevante tema. Sejam felizes. Até a próxima!
Vitor Frederico Kümpel e Giselle de Menezes Viana A troca, ou permuta, é o contrato mais antigo de todo o sistema contratual. Em linhas gerais, cada parte se obriga a dar uma coisa por outra, sem envolver, fundamentalmente, dinheiro1. Nas fases mais primitivas da sociedade, a simples permuta de objetos bastava para a circulação de mercadorias e a satisfação das necessidades humanas. Foi apenas a partir e em derivação deste arquétipo originário que se desenvolveu o contrato de compra e venda. De fato, com a posterior difusão do metal como fator representativo de valor, culminando na invenção da moeda, a troca cedeu crescente espaço à sua sucessora, a compra e venda, que gradativamente alçou a posição de "contrato padrão" no sistema jurídico. Não se pode negar, portanto, a familiaridade genética entre a troca e a compra e venda. E essa identidade é corroborada, atualmente, pelo próprio Código Civil, ao determinar a incidência, na troca, de todas as disposições referentes à compra e venda, salvo duas exceções: "Art. 533. Aplicam-se à troca as disposições referentes à compra e venda, com as seguintes modificações: I - salvo disposição em contrário, cada um dos contratantes pagará por metade as despesas com o instrumento da troca; II - é anulável a troca de valores desiguais entre ascendentes e descendentes, sem consentimento dos outros descendentes e do cônjuge do alienante." A analogia com a compra e venda - até por força do art. 533 - é a chave de compreensão da permuta no atual sistema jurídico. E por isso deve orientar o intérprete na solução de problemas relativos a essa modalidade contratual, inclusive na problemática ensejadora do presente artigo: a incidência do princípio da cindibilidade nos instrumentos de permuta. O princípio registral da parcelaridade ou cindibilidade do título significa a possibilidade de cisão do título apresentado a registro, de modo a aproveitar ou extrair determinados elementos aptos a ingressar de imediato no fólio real, e desconsiderar outros cujo registro esteja obstado ou dependa de providências adicionais2. A gênese da ideia de cindibilidade está intimamente atrelada ao sistema matricular inaugurado pela lei 6.015/1973. A referida lei substituiu o antigo sistema de transcrições pelo modelo inscritivo, moldado em torno da figura da matrícula. Ora, pelo sistema de transcrições, o título (em sentido formal) era literal e integralmente transcrito no fólio registral. Não havia que se cogitar, desse modo, o registro parcial ou a cindibilidade do título. Com a instituição da unitariedade matricial, contudo, o foco do sistema passa dos sujeitos e dos respectivos títulos (em sentido formal) para o próprio imóvel e as mutações jurídicas por este sofridas. Com essa mudança de perspectiva, o "título" passou a ser compreendido não mais apenas em seu aspecto formal (como objeto do registro) mas principalmente em seu aspecto substantivo (como causa do registro)3. E por este viés se justifica logicamente a opção pelo sistema de matrículas e pela técnica inscritiva em detrimento das antigas transcrições4. Se o título passa a ser compreendido fundamentalmente como a causa do registro, então passa a ser possível que um mesmo título, referente a múltiplos imóveis, dê causa a múltiplos assentamentos, repercutindo em matrículas diversas. Se é inquestionável que um único título pode dar causa a lançamentos em mais de uma matrícula, remanesce, porém, a pergunta: é possível que um título não dê causa a todos os lançamentos que está vocacionado a ensejar? Em outras palavras: é possível o aproveitamento parcial do título, de modo a permitir seu ingresso diferido no fólio real? A doutrina e a jurisprudência entendem que sim, em determinados casos5. Defende-se, em geral, que a cindibilidade apenas seria possível nas hipóteses em que os negócios jurídicos reunidos no mesmo instrumento não são inter-relacionados, mas apenas justapostos por economia formal6. É o exemplo da escritura de venda e compra de dois ou mais imóveis, ou, ainda, de diversas frações ideais de um mesmo imóvel7. Admitir-se-ia a cisão, também, em títulos judicias como o formal de partilha e as cartas de adjudicação e arrematação englobando múltiplos bens. Em casos como a compra e venda cumulada com usufruto, ou com pacto de hipoteca, por outro lado, entende-se que a inter-relação entre os negócios jurídicos obstaria o assentamento parcial. Ou seja, embora o título contenha negócios jurídicos distintos, estes seriam indissociáveis, e por isso devem ser registrados simultaneamente. A discussão sobre a cindibilidade torna-se ainda mais interessante no específico caso da permuta, já que, embora haja dispositivo legal a respeito, sua interpretação está longe de ser uniforme. De acordo com o art. 187 da LRP, "Em caso de permuta, e pertencendo os imóveis à mesma circunscrição, serão feitos os registros nas matrículas correspondentes, sob um único número de ordem no Protocolo". Para uma primeira corrente, o dispositivo significaria uma vedação à cindibilidade nas permutas de imóveis situados na mesma circunscrição. Argumenta-se que, nesta hipótese, haveria uma inquebrável correspectividade entre as prestações, impedindo seu ingresso independente no fólio real8. Uma segunda corrente, contudo, enxerga pretensões mais modestas no art. 187, compreendendo-o como uma regra de técnica de inscrição, orientada por um imperativo de economia, e não uma proibição apta a justificar a negativa do registro. Tendo em mente a ideia de título como causa do registro, pende-se à adoção do segundo entendimento. Afinal, o que é prenotado é o título, não o negócio jurídico. Sucede que o título é prenotado sob um único número de protocolo independentemente da quantidade de negócios jurídicos que veicula. Mas então, por que uma menção especial para a hipótese de permuta? Ao que parece, a regra do art. 187 exprime, antes de tudo, um vetor de racionalidade à inscrição. Para entender essa afirmação, cabe dar um passo para trás, retrocedendo ao momento de lavratura da escritura. O tabelião, lavrada a escritura, entregará, naturalmente, os respectivos traslados a ambos os contratantes. E ambos poderão valer-se do respectivo traslado para instar o registro. Isso por que, diferentemente da compra e venda, que implica uma trasladação unilateral (do vendedor para o comprador), a troca implica a transladação recíproca, já que prestação de ambos os contratantes envolve a entrega de uma coisa. Ora, sendo o mesmo título, no qual se encerram mais de uma transferência, não haveria sentido numa tramitação paralela no Protocolo. Em outros dizeres, o título já contém a permuta de Caio pra Tício e de Tício pra Caio, por isso não precisa ser prenotado duas vezes. Daí uni-los sob a égide de um mesmo número de protocolo. Parece ser exatamente nessa linha que o art. 187 determina que, havendo requerimento por ambos os interessados ao registro, assumirão o mesmo número de ordem no Protocolo, não por haver uma interconexão desvinculável entre os títulos, mas por se tratar do exato mesmo título, muito embora vocacionado a impactar a situação jurídica de imóveis diversos9. Levando em consideração a já mencionada analogia entre a compra e venda e a permuta, ainda, é possível contrapor a afirmação de que a impossibilidade de cisão da permuta decorreria da sua própria natureza jurídica. Afinal, a natureza jurídica da permuta é idêntica à da compra e venda, ambos são contratos igualmente sinalagmáticos e onerosos. Ocorre que, nos contratos sinalagmáticos, muito embora uma prestação seja dependente da outra para a manifestação volitiva, depois que tal manifestação é instrumentalizada, não subsiste uma causação entre o ato praticado do pagamento e a transferência. Tanto que o pagamento pode ser pro soluto ou pro solvendo. Sendo assim, por qual razão deve o registrador adentrar no mérito do pagamento na troca e não na compra e venda? É verdade que, caso um dos contratantes não cumpra sua prestação - que pode consistir não apenas na entrega de coisa imóvel, efetivada pelo registro, mas também na entrega de coisa móvel, efetivada pela tradição, ou até mesmo envolver a eventual complementação em pecúnia - estar-se-ia diante de um enriquecimento ilícito. Mas a figura do enriquecimento ilícito é obrigacional, não seria sequer viável impor sua aferição ao registrador imobiliário. Este deve verificar os elementos essenciais do contrato. O pagamento é questão afeita à execução do contrato, não à sua formação. O argumento segundo o qual a inter-relação entre as prestações tornaria obrigatório o registro simultâneo no caso da troca perde força ao se considerar que não necessariamente a troca será de um imóvel por outro. Aliás, não só é possível que a prestação de uma das partes envolva bens móveis, como pode até mesmo envolver um bem ainda inexistente, já que a regra do art. 483 também se aplica à permuta10. Se não há qualquer controle sobre as contraprestações não imobiliárias, nem sobre prestações que envolvam coisa futura e, aliás, nem sobre prestações que envolvam imóveis em outras circunscrições, por qual razão impor-se-ia ao interessado uma dificuldade adicional no caso da troca de um imóvel por outro na mesma circunscrição? Qual seria a distinção ontológica entre a permuta de imóveis situados em circunscrições diversas e a permuta de imóveis situados na mesma circunscrição, a justificar a imposição de registro simultâneo para um caso e não para outro? Não parece, ainda, suficiente o argumento segundo o qual a intenção do legislador era obrigar o registro simultâneo da permuta em todos os casos mas, ciente da impossibilidade fática, contentou-se em reduzir a obrigatoriedade apenas para a troca entre imóveis da mesma circunscrição. É bom frisar, ainda, que a discussão a respeito da cindibilidade repercute numa questão emolumentar, que não deve ser ignorada. Imagine-se, por exemplo, um instrumento de permuta envolvendo quinze imóveis, sendo que apenas um dos interessados deseja regularizar a situação registrária da parte que lhe diz respeito. Não tendo o requerente condições para arcar com o registro de todas as transferências, ficaria impedido de registrar a sua própria? Não parece razoável denegar, neste caso, o requerimento do interessando visando registrar apenas um ou alguns dos imóveis. Mas, em todo caso, recomenda-se sempre a cautela do registrador em exigir requerimento expresso e escrito pelo interessado. Sejam felizes e fiquem conosco! __________ 1 O contrato de troca pode envolver dinheiro, desde que não seja a principal prestação de nenhuma das partes, sob o ponto de vista econômico. Neste sentido, cf. Orlando Gomes, Contratos, 26ª ed., Forense, 2008, p. 245: "Deve consistir em 'dinheiro'. Se é outra coisa, o contrato define-se como 'permuta' ou 'troca'. Não se exige, contudo, que seja exclusivamente dinheiro, bastando que constitua a parcela principal. Para se saber se é 'venda' ou 'troca', aplica-se o princípio 'major pars ad se minorem trahit'; venda, se a parte em dinheiro é superior; troca, se é o valor do imóvel".   2 L. G. Loureiro, Registros Públicos: teoria e prática, 8ª ed., Salvador, Juspodivm, 2017, p. 577.   3 G. Fanti, O Princípio da Cindibilidade dos Títulos e seus Efeitos no Registro de Imóveis, 2006.   4 "(...) abdicando-se a Lei dos Registros Públicos de 1.973, no entanto, do sistema transcritivo, a convergência para a matriz já não se perfaz pelo título (em sentido formal), senão que pela causa (título em acepção substantiva). Disso resulta a afirmação da cindibilidade instrumental, que tem sido acolhida pelo E. Conselho Superior da Magistratura, como conseqüência da conjugação do fólio real com a técnica inscritiva." Parecer do Grupo Gilberto Valente.   5 "Atualmente o princípio pretoriano da incindibilidade dos títulos, construído sob a égide do anterior sistema registral, já não vigora. Nesse sentido já se posicionou o C. Conselho Superior da Magistratura, conforme, v.g., ap. cível da Comarca de São Paulo, recurso 2.642-0, in DOJ de 24.11.93. Isso porque só aquele sistema da transcrição dos títulos justificaria não se admitisse a cisão do título, para considera-lo apenas no que interessa. Na verdade, com o advento da Lei de Registros Públicos de 1973, e, consequentemente, a introdução do sistema cadastral, que até então não havia no direito registral brasileiro, a cindibilidade do título passou a ser perfeitamente possível e admitida. Com isso, o ato de registro imobiliário deixou de exigir a reprodução textual dos instrumentos recepcionados no fólio real, cumprindo que ele reflita, apenas, aquilo que for possível ter ingresso no cadastro" (CSMSP, Apel. Cível n. 21.841-0/1, j. 20-2-1995).   6 CSMSP, Apel. Cível n. 30.109-012, rel. Márcio Martins Bonilha, j. 2-6-1996.   7 Neste sentido: CSMSP, Apel. Cível n. 74.960-0/7 "REGISTRO DE IMÓVEIS - Dúvida. Cindibilidade do título. Escritura pública que instrumentaliza diversas compras e vendas de partes ideais. Possibilidade do ingresso de tal título em relação às partes ideais titularizadas pelos condôminos que não as compromissaram a venda." CSM/SP - Apelação Cível  74.960-0/7. Rel. Des. Luís de Macedo. 15/2/01.   8 Nesse sentido, destaca-se a decisão proferida pelo CSMSP na Apel. Cível n. 30.109-012, rel. Márcio Martins Bonilha, j. 2-6-1996: "REGISTRO DE IMÓVEIS - DÚVIDA - PERMUTA DE IMÓVEIS - NECESSIDADE DE REGISTROS SIMULTÂNEOS - ÓBICE RELATIVO À ESPECIALIDADE DE UM DOS IMÓVEIS PERMUTADOS QUE IMPEDEM A EFETIVAÇÃO DOS DEMAIS REGISTROS - REGISTRO INVIÁVEL. No mais, sabido ser a permuta um contrato pelo qual cada uma das partes se obriga a dar uma coisa para haver outra. Embora apresente estreita analogia com a venda e compra, tanto que a Lei Civil determina a aplicação subsidiária de suas regras, é preciso notar que na troca cada uma das duas coisas é contemporaneamente objeto e preço e cada um dos contraentes é contemporaneamente comprador e vendedor. Decorre da própria essência do negócio jurídico da permuta, onde há duas transferências recíprocas e inseparáveis, o preceito do art. 187 da lei 6.015/73. Ingressa o título sob um único número de ordem no Protocolo, com subsequentes registros nas matrículas correspondentes. Tal regra, diga-se, não constitui novidade em nosso direito. Corresponde, grosso modo, ao art. 203 da lei anterior, que, por seu turno, teve inspiração no art. 256 do Regulamento 370 de 1890 e no art. 28 do Regulamento de 1865. Isso porque, na justa observação de VALMIR PONTES, "a transcrição da permuta é de natureza dúplice ou múltipla, conforme o caso, não admitindo a lei apenas o registro de uma das transmissões, ainda que um só dos permutantes requeira o registro. A permuta, como já se observou, nada mais significa que duas vendas recíprocas e simultâneas entre as mesmas partes permutantes, representando o valor de uma das coisas permutadas, o preço ou parte do preço da alienação da outra. Uma vez, portanto, apresentado a registro título de permuta, o ato não se completaria, com prejuízo para uma das partes, se o Oficial tivesse que fazer, a pedido do apresentante, apenas a transcrição de uma das alienações" (Registro de Imóveis, Saraiva, 1982, p. 91). Em termos diversos, dada a indivisibilidade decorrente da interdependência das estipulações existentes na permuta (como sucede, aliás, na venda com hipoteca adjeta), a inscrição há de abranger um e outro direito, não podendo assinalar apenas um deles, postergando o outro com o qual se acha acoplado no título (cfr. Afrânio de Carvalho, Registro de Imóveis, 2a ed., Forense, 1977, p. 376). (...)"   9 Esse foi o entendimento consagrado Apel. Cível n. 1004930-06.2015.8.26.0362, j. 22-11-2016, pelo CSMSP: "PERMUTA. REGISTRO. DÚVIDA. IMÓVEIS SITUADOS EM CIRCUNSCRICOES DIVERSAS. POSSIBILIDADE DA INSCRICAO AUTONOMA DE UMA DAS AQUISIÇÕES. Provimento do recurso", e reforçado no voto do relator Manoel de Queiroz Pereira Calças na Apel. Cível 1000311-58.2016.8.26.0019.   10 Determina o referido dispositivo: "A compra e venda pode ter por objeto coisa atual ou futura. Neste caso, ficará sem efeito o contrato se esta não vier a existir, salvo se a intenção das partes era de concluir contrato aleatório".  
Vitor Frederico Kümpel e Giselle de Menezes Viana Não é incomum que ao jurista - embora acostumado a lidar com conceitos jurídicos complexos - faltem palavras para exprimir ideias aparentemente banais. As incertezas subjacentes a determinadas expressões passam batidas no irrefletido uso cotidiano. O hábito tem o peculiar efeito de camuflar perplexidades. O nome é um exemplo por excelência desse paradoxo: embora encerre uma ideia bastante complexa, pouco tempo é dispendido para se refletir sobre o seu significado. Mas se o uso cotidiano dispensa maiores reflexões, não se pode dizer o mesmo quando há direitos em jogo. Especialmente se tais direitos estão sendo discutidos pelo Supremo Tribunal Federal. Adotando-se um conceito singelo, nome é a palavra que serve para designar o ser. Nomear é designar objetos por meio de linguagem. O nome surge na medida em que a palavra passa a traduzir uma ideia. O homem, então, passa a se referir àquilo que imaginava, usando um nome para cada ser ou coisa que passa a indicar1. Embora pareça óbvia a indissociável ligação entre nome e linguagem, não é tarefa simples definir as nuances dessa conexão. Há correntes filosóficas sustentando que a linguagem advém da natureza das coisas. Outras entendem a linguagem como fruto de mera convenção. Para o naturalismo, cada objeto ou coisa tem um nome estabelecido por natureza, de modo que o logos está na physis. O convencionalismo, ao revés, defende que a ligação entre o nome e o objeto é arbitrária, ou seja, convencional2. Quando visa designar uma pessoa natural, evocando uma personalidade única e irrepetível, o nome assume dimensões ainda mais profundas. Não por outro motivo surgiram inúmeras teorias ao longo do tempo com o fim de definir a sua natureza jurídica3. A dificuldade em defini-lo redunda na dificuldade em discipliná-lo. Daí tantas polêmicas em matéria de mudança nomástica4. Dentre as hipóteses de alteração do nome, a mudança motivada pela transsexualidade é umas das mais debatidas. A jurisprudência, durante muito tempo, negou a alteração do nome e do sexo no registro civil ao transexual5. Nos últimos anos, porém, o tema alçou posição de destaque nas discussões jurídicas, e o entendimento enveredou para outra direção. Progressivamente, os tribunais passaram a admitir a modificação do prenome do transexual, e a correspondente retificação nos registros civis, até mesmo independentemente de cirurgia6-7. A discussão jurisprudencial desaguou no STF, que tratou da questão na recentíssima ADI 4.275-DF. No julgamento, encerrado na sessão plenária realizada em 1º de março do corrente ano, discutiu-se a possibilidade de modificação do prenome e gênero no registro civil, mediante averbação por pessoa transexual independentemente de qualquer procedimento médico. Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Procurador Geral da República, buscando dar interpretação conforme ao art. 58 da Lei dos Registros Públicos. Pela interpretação proposta, reconhecer-se-ia aos transexuais, independentemente de cirurgia de transgenitalização, a possibilidade de modificar o gênero e prenome junto ao assento de nascimento. Duas correntes se firmaram no STF. A primeira, conduzida pelo relator Min. Marco Aurélio, quedou vencida com cinco votos. A segunda, encampada pelo min. Ricardo Lewandowski, prevaleceu com seis votos. Ambas as correntes reconheceram a possibilidade de alteração tanto do prenome quanto do gênero. Tal possibilidade estaria assentada no próprio art. 58 da Lei Registrária, que dá por definitivo o prenome mas admite a sua substituição por "apelidos públicos notórios". Ambas as correntes também reconheceram que, para a pessoa que não se submeteu à transgenitalização, são necessários alguns requisitos. Duas foram as divergências entre as correntes. A primeira diz respeito aos requisitos que devem existir para o pedido de modificação de nome e gênero no registro civil. A segunda diz respeito à necessidade de judicialização do pedido. Para a corrente vencida, o pleiteante da modificação deve apresentar os preencher requisitos: a) Idade mínima de 21 anos (maturidade adequada para a tomada de decisão); b) Diagnóstico médico de transsexualismo (art. 3º da Resolução 1.955/2010 do Conselho Federal de Medicina), por equipe multidisciplinar constituída por médico, psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social c) Acompanhamento conjunto por equipe multidisciplinar por dois anos. A corrente vencida, conforme já mencionado, entendeu que os pressupostos devem ser aferidos em procedimento de jurisdição voluntária, com a participação do Ministério Público, observados os arts. 98 e 99 da Lei dos Registros Públicos. A corrente vencedora desjudicializou a questão, entendendo que o requerimento deve ser feito diretamente ao registrador civil. Quanto aos requisitos, seriam os seguintes: a) Idade superior a 18 anos; b) Convicção, pelo menos 3 anos, de pertencer ao gênero oposto ao biológico; c) Baixa probabilidade, de acordo com o pronunciamento do grupo de especialistas, de modificação da identidade de gênero. Muitos questionam a insegurança que pode advir da referida modificação, que pode gerar inclusive consectários econômicos. Como já dito em outra ocasião, a necessidade de proteger terceiros não implica necessariamente impor obstáculos à mutabilidade do nome8. Mais efetivo que simplesmente dificultar alterações é garantir sua satisfatória publicidade9. E têm havido diversos aprimoramentos neste sentido. Cite-se, por exemplo, o Provimento nº 63 do CNJ, determinando a obrigatoriedade do CPF nos assentos e certidões do registro civil. O controle da pessoa natural passa a ser feito por meio do CPF. Instaura-se uma espécie de "unitariedade matricial" da pessoa natural. Por fim, cabe consignar que não pode o registrador civil proceder à averbação da modificação de gênero e nome sem que as normas estaduais contemplem os referidos requisitos e estabeleçam os documentos necessários a viabilizar a referida modificação. É esse controle qualificatório, somado à publicidade registral, que fornecerão a necessária segurança jurídica à mudança.   Sejam felizes e continuem conosco! __________ 1 N. Martins Ferreira, O Nome Civil e Seus Problemas, Rio de Janeiro, Baptista de Souza, 1952, pp. 12-13. 2 L. L. Streck, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise - Uma exploração hermenêutica da construção do direito, 11ª ed., Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2014, pp. 152-153: "O Crátilo representa o enfrentamento de Platão á sofística. Com a tese convencionalista dos sofistas, a verdade deixa de ser prioritária. A palavra, para os sofistas, era pura convenção e não obedecia nem à lei da natureza e tampouco às leis divinas (sobrenatural). Como era uma invenção humana, podia ser reinventada e, consequentemente, as verdades estabelecidas podiam ser questionadas. Os sofistas provocam, assim, no contexto da Grécia antiga, um rompimento paradigmático(...)". A formulação medieval dessa discussão corresponde à distinção que a filosofia moderna faz entre o realismo e o nominalismo, cf. J. Marias, Historia de la Filosofía, trad. port. de C. Berliner, História da Filosofia, São Paulo, Martins Fontes, 2004, pp. 143-147. 3 Cf. V. F. Kümpel - C. M. Ferrari, Tratado Notarial e registral, vol. II, São Paulo, YK, 2017, pp. 217 e ss. 4 Muitas destas foram abordadas em V.F. Kümpel, dinâmico, sistema registral permite a mitabilidade do nome, in Conjur. Para uma abordagem mais ampla, cf. V. F. Kümpel - C. M. Ferrari, Tratado Notarial e registral, vol. II, São Paulo, YK, 2017, pp. 258 e ss. 5 L. Brandelli, Nome Civil da Pessoa Natural, São Paulo, Saraiva, 2012, p. 170. 6 "RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. TRANSEXUAL QUE PRESERVA O FENÓTIPO MASCULINO. REQUERENTE QUE NÃO SE SUBMETEU À CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO, MAS QUE REQUER A MUDANÇA DE SEU NOME EM RAZÃO DE ADOTAR CARACTERÍSTICAS FEMININAS. POSSIBILIDADE. ADEQUAÇÃO AO SEXO PSICOLÓGICO. LAUDO PERICIAL QUE APONTOU TRANSEXUALISMO. Na hipótese dos autos, o autor pediu a retificação de seu registro civil para que possa adotar nome do gênero feminino, em razão de ser portador de transexualismo e ser reconhecido no meio social como mulher. Para conferir segurança e estabilidade às relações sociais, o nome é regido pelos princípios da imutabilidade e indisponibilidade, ainda que o seu detentor não o aprecie. Todavia, a imutabilidade do nome e dos apelidos de família não é mais tratada como regra absoluta. Tanto a lei, expressamente, como a doutrina buscando atender a outros interesses sociais mais relevantes, admitem sua alteração em algumas hipóteses. Os documentos juntados aos autos comprovam a manifestação do transexualismo e de todas as suas características, demonstrando que o requerente sofre inconciliável contrariedade pela identificação sexual masculina que tem hoje. O autor sempre agiu e se apresentou socialmente como mulher. Desde 1998 assumiu o nome de "Paula do Nascimento". Faz uso de hormônios femininos há mais de vinte e cinco anos e há vinte anos mantém união estável homoafetiva, reconhecida publicamente. Conforme laudo da perícia médico-legal realizada, a desconformidade psíquica entre o sexo biológico e o sexo psicológico decorre de transexualismo. O indivíduo tem seu sexo definido em seu registro civil com base na observação dos órgãos genitais externos, no momento do nascimento. No entanto, com o seu crescimento, podem ocorrer disparidades entre o sexo revelado e o sexo psicológico, ou seja, aquele que gostaria de ter e que entende como o que realmente deveria possuir. A cirurgia de transgenitalização não é requisito para a retificação de assento ante o seu caráter secundário. A cirurgia tem caráter complementar, visando a conformação das características e anatomia ao sexo psicológico. Portanto, tendo em vista que o sexo psicológico é aquele que dirige o comportamento social externo do indivíduo e considerando que o requerente se sente mulher sob o ponto de vista psíquico, procedendo como se do sexo feminino fosse perante a sociedade, não há qualquer motivo para se negar a pretendida alteração registral pleiteada. A sentença, portanto, merece ser reformada para determinar a retificação no assento de nascimento do apelante para que passe a constar como "Paula do Nascimento". Sentença reformada. Recurso provido". (TJSP, 10ª Câm., Apel. Cível n. 0013934-31.2011.8.26.0037, rel. Carlos Alberto Garbi, j. 23-9-2014). 7 "Ação de retificação de assento civil. Alteração do nome por contra dos constrangimentos sofridos em razão do transexualismo. Insurgência contra sentença de improcedência do pedido porque o autor não se submeteu à cirurgia de ablação dos órgãos sexuais masculinos. Desnecessidade. Desconformidade entre sexo biológico e sexo psicológico que pode ser demonstrada por perícia multidisciplinar. Constrangimentos e humilhações que justificam o pedido de alteração do prenome masculino para feminino. Exigência de prévia cirurgia para interromper situações vexatórias constitui violência. Dilação probatória determinada. Sentença anulada para esse fim. Recurso provido". (TJSP, 3ª Câm., Apel. Cível n. 0040698-94.2012.8.26.0562, rel. Carlos Alberto de Salles, j. 24-6-2014). 8 Cf. V. F. Kümpel, Dinâmico, sistema registral permite mutabilidade do nome, in Revista Consultor Jurídico, 2017. 9 F. C. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, v. 7, São Paulo, RT, 2012, p. 114.