MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Migalhas de peso >
  4. "Compramos a sua íris": A biometria é um dado seguro de vender?

"Compramos a sua íris": A biometria é um dado seguro de vender?

João Pedro Mamede

A coleta da íris por criptomoedas levanta preocupações sobre privacidade e consentimento, exigindo cautela diante dos riscos e da legislação vigente.

sábado, 8 de fevereiro de 2025

Atualizado em 7 de fevereiro de 2025 13:38

Nos últimos dias, um fenômeno inusitado tem ganhado destaque nas redes sociais: brasileiros relatando como é "vender sua íris" para um projeto promovido pela empresa Tools for Humanity. O objetivo declarado da iniciativa é auxiliar na diferenciação entre humanos e IAs - Inteligências Artificiais. Para tanto, milhares de brasileiros têm se locomovido e enfrentado filas para permitir o escaneamento de sua íris, em troca de uma quantia em criptomoedas fornecida pela própria empresa, muitas vezes sem a devida consciência sobre os potenciais riscos envolvidos nessa transação.

Com a vigência da LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (lei 13.709/18), os dados biométricos, como a íris, passaram a ser classificados como "dados pessoais sensíveis". Essa categoria especial reflete os elevados riscos associados ao tratamento desses dados e impõe requisitos mais rigorosos para sua coleta, armazenamento e uso, bem como limita as hipóteses autorizativas previstas na legislação.

No caso específico da íris, a necessidade de cautela no compartilhamento é ainda mais acentuada. Em comparação com outros dados biométricos, como impressões digitais, a íris apresenta uma complexidade de padrões única, que raramente se altera ao longo da vida. Essa característica faz da íris um elemento praticamente infalsificável e altamente confiável para aplicações que demandam elevados níveis de segurança, o que evidencia uma cautela ainda maior no compartilhamento desse dado com terceiros.

Como dado pessoal sensível, a utilização da íris está sujeita a uma série de exigências legais. O tratamento desses dados deve, além de observar os princípios fundamentais da LGPD, como o da transparência e do livre acesso, estar estritamente alinhado a uma das hipóteses autorizativas previstas no art. 11 da legislação. De acordo com relatos publicados por internautas, a Tools for Humanity parece fundamentar o tratamento da biometria no consentimento dos titulares, haja vista coletar uma autorização previamente ao escaneamento da íris. Para ser válido sob a ótica da LGPD, esse consentimento deve ser uma manifestação livreinformada e inequívoca.

No entanto, o uso do consentimento como base legal nessa situação suscita questionamentos. É possível debater se o consentimento é, de fato, livre quando condicionado a uma recompensa financeira, especialmente em contextos de vulnerabilidade econômica. Esse cenário pode comprometer a autonomia dos titulares, tornando o consentimento uma decisão influenciada mais pela necessidade do que pela vontade genuína.

Adicionalmente, surgem dúvidas quanto à clareza e amplitude das informações fornecidas no momento da coleta. Relatos indicam que muitos participantes não compreendem completamente as finalidades do tratamento de sua íris, limitando-se a aceitar o escaneamento apenas para obter a contraprestação.

Em razão da sensibilidade das informações biométricas e das dúvidas acerca da legalidade do tratamento promovido pela Tools for Humanity, a ANPD - Autoridade Nacional de Proteção de Dados instaurou, desde novembro de 2024, um processo de fiscalização para investigar o uso de dados biométricos no contexto do projeto World ID. Segundo comunicado da Autoridade, a empresa forneceu uma série de documentos que estão sendo analisados.

No entanto, mesmo antes dessa apuração, a ANPD já alertava em estudos preliminares sobre os riscos inerentes ao uso de dados biométricos. Entre as principais preocupações destacadas, incluem-se:

  1. A utilização de dados para finalidades distintas das originalmente informadas;
  2. Consentimentos que não atendem aos requisitos da LGPD para dados sensíveis - como especificidade, clareza e finalidade destacadas;
  3. Potenciais efeitos discriminatórios derivados de vieses sociais e culturais, que podem prejudicar grupos vulneráveis;
  4. Falhas em tecnologias como reconhecimento facial, que podem gerar consequências significativas, inclusive constrangedoras, para os titulares; e
  5. O aumento do risco de incidentes de segurança em sistemas inadequadamente protegidos.

Enquanto a análise dos documentos submetidos pela Tools for Humanity não é concluída, a ANPD publicou em seus canais oficiais recomendações para que os titulares adotem uma postura mais cautelosa antes de compartilhar dados biométricos. Dentre essas orientações, destacam-se:

  • Ler integralmente os termos de uso e políticas de privacidade, certificando-se de que as finalidades estão claramente definidas e que há garantias adequadas para a proteção das informações e o exercício de direitos;
  • Verificar a reputação da entidade responsável pela coleta, buscando informações públicas sobre práticas e eventuais incidentes envolvendo o tratamento de dados;
  • Avaliar a real necessidade da coleta biométrica e considerar alternativas menos invasivas. Dados biométricos, por serem identificações permanentes, não podem ser substituídos em caso de vazamentos ou fraudes;
  • Ter cuidado especial no caso de crianças e adolescentes, verificando se o sistema é adequado a esse público. A LGPD exige que o tratamento de dados dessa faixa etária observe o melhor interesse do menor, podendo ser incompatível com a coleta de biometria.

Entretanto, para além das recomendações da ANPD, a LGPD também garante aos titulares uma série de direitos, especialmente no que tange ao consentimento. Entre eles, destaca-se o direito de revogação: o titular pode, a qualquer momento, retirar sua autorização para o tratamento de dados pessoais consentidos, por meio de um procedimento gratuito e acessível.

Adicionalmente, o titular tem o direito de solicitar a exclusão dos dados fornecidos com base no consentimento, salvo se sua conservação for imprescindível para: cumprimento de obrigações legais ou regulatórias pelo controlador; estudos realizados por órgão de pesquisa, com anonimização dos dados sempre que possível; transferência a terceiros, desde que respeitados os requisitos legais; ou uso exclusivo pelo controlador, com os dados anonimizados e sem acesso por terceiros.

Ainda, o titular pode requerer, a qualquer momento e em face de qualquer empresa, acesso aos dados tratados, obtendo informações detalhadas sobre quais dados são mantidos e para quais finalidades são utilizados.

Enquanto o processo de fiscalização da ANPD não é concluído, é essencial que os titulares redobrem os cuidados no compartilhamento - seja gratuito ou remunerado - de informações pessoais, especialmente as sensíveis, como dados biométricos e de saúde. Recomenda-se verificar se o terceiro que solicita os seus dados pessoais explica de forma clara os motivos da coleta, os destinatários das informações e o período de armazenamento, assegurando maior proteção à privacidade e aos direitos previstos na LGPD.

João Pedro Mamede

João Pedro Mamede

Advogado de Direito Digital no Chenut.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca