Superendividamento e o juiz legislador: quando a lei vira opcional
Quando o juiz assume função de legislador, o que está em jogo é a própria previsibilidade do sistema de Justiça.
sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025
Atualizado às 16:58
No dia 18 de fevereiro de 2025, o TJ/RJ precisou lembrar o juízo da 49ª vara Cível da Capital de uma regra básica do Estado Democrático de Direito: juiz aplica a lei, não decide se gosta dela ou não.
No processo 0866790-85.2024.8.19.0001, a magistrada de 1º grau simplesmente resolveu que a audiência conciliatória prevista na lei do superendividamento (lei 14.181/21) não era uma boa ideia e, portanto, não seria realizada.
A justificativa para essa decisão é daquelas que fariam qualquer estudante de primeiro período de Direito arquear as sobrancelhas. Afirmou a juíza que a experiência prática demonstraria que essas audiências são "inócuas" porque, segundo sua percepção, não resultam em acordos.
Um argumento brilhante! Com base nessa lógica, poderíamos fechar todos os juizados de conciliação, extinguir as varas de Família e quem sabe até abolir a mediação de conflitos, afinal, algumas tentativas de acordo podem não ter sucesso.
Não satisfeita, a magistrada seguiu na trilha da criatividade jurídica e decretou que o rito da lei do superendividamento tem "impropriedades jurídicas" e causa "injustificado tumulto processual", motivo pelo qual "não deve ser observado".
Opa! Agora temos um novo critério para aplicar leis no Brasil: se o juiz considera que a norma gera trabalho demais para o cartório ou atrapalha o fluxo da vara, ele pode simplesmente ignorá-la.
Com essa inovação, quem sabe um dia magistrados também decidam que ações de alimentos são cansativas demais e parem de processá-las, ou que execuções fiscais tumultuam demais o Judiciário e resolvam extingui-las por conta própria.
Diante desse verdadeiro desrespeito ao ordenamento jurídico, a parte autora consumidora não teve alternativa senão recorrer. E aí entra em cena o TJ/RJ, que precisou intervir para restaurar o óbvio.
O desembargador Cherubin Helcias Schwartz Junior concedeu efeito suspensivo e determinou o cumprimento da lei, destacando que a recusa em realizar a audiência viola o devido processo legal. O tribunal teve que lembrar que a legislação foi criada para ser aplicada e não para ser submetida ao gosto pessoal de cada juiz.
Esse episódio lamentável escancara um problema mais profundo: a falta de capacitação de alguns magistrados sobre a lei do superendividamento.
Enquanto desembargadores precisam corrigir erros primários cometidos por juízes de 1º grau, consumidores superendividados seguem sem acesso ao procedimento legal que lhes foi garantido. Se a aplicação dessa lei ainda encontra tanta resistência, talvez seja o caso de os tribunais investirem em cursos para explicar a seus juízes que a legislação não é uma sugestão.
Decisões como essa não são apenas absurdas, elas mancham a credibilidade do Judiciário. Se o próprio magistrado decide que não vai seguir um rito obrigatório porque não concorda com ele, que segurança têm as partes de que qualquer outra regra será respeitada?
O TJ/RJ agiu como deveria, mas fica a dúvida: quantas outras decisões igualmente ilegais ainda não foram revistas? Quando o juiz assume para si a função de legislador e decide que determinada norma é um incômodo e não precisa ser aplicada, o que está em jogo não é só o direito do consumidor, mas a própria previsibilidade do sistema de Justiça.
Afinal, se cada juiz puder escolher quais leis valem e quais são inconvenientes, talvez seja melhor avisar os advogados para levarem bolas de cristal às audiências - nunca se sabe qual norma será ignorada na próxima decisão.