A inaplicabilidade do pedido de suspensão de liminar em arbitragem envolvendo a Fazenda Pública
O TJ/RJ decidirá sobre a separação entre jurisdição estatal e arbitral, em caso que envolve o Governo do RJ e a concessionária Iguá, impactando a arbitragem.
sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025
Atualizado em 27 de fevereiro de 2025 08:17
Nos próximos dias, o TJ/RJ terá a oportunidade de reafirmar um dos pilares mais consolidados da arbitragem no Brasil: a separação entre jurisdição estatal e arbitral. O caso concreto envolve um contrato de concessão de saneamento entre o Governo do Estado do Rio de Janeiro e a concessionária Iguá Rio de Janeiro.
Diante do desequilíbrio econômico-financeiro decorrente de fatores supervenientes, a concessionária recorreu à Camarb - Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial - Brasil, conforme prevê o contrato, obtendo decisão favorável que permitiu o depósito da última parcela da outorga em conta vinculada.
O Governo do Estado, no entanto, insatisfeito com a decisão arbitral, buscou o TJ-RJ para suspender seus efeitos, por meio do pedido de suspensão de liminar e sentença, prerrogativa prevista para casos de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou à economia pública. O movimento revela um flagrante desrespeito ao efeito negativo da convenção de arbitragem e à própria jurisdição arbitral1.
O pedido de suspensão de liminar, previsto na legislação processual brasileira, é um mecanismo destinado a evitar que decisões judiciais provisórias causem danos irreparáveis ao interesse público antes da definição do mérito. No entanto, sua aplicação às decisões arbitrais é incompatível com o regime jurídico da arbitragem, que, por natureza, constitui jurisdição independente e vinculante para as partes.
Segundo Leonardo Carneiro da Cunha, a suspensão do pedido é cabível em todas as situações em que se concede tutela provisória contra a Fazenda Pública ou quando a sentença, ao produzir efeitos imediatos, é impugnada por meio de recurso desprovido de efeito suspensivo automático2.
Em outras palavras, a medida suspensiva mostra-se adequada sempre que a tutela provisória é deferida em desfavor do Erário ou quando a decisão judicial, por gerar consequências imediatas, é contestada por um recurso que não possui, por si só, o condão de suspender seus efeitos.
A tentativa do Governo do Rio de Janeiro de judicializar uma decisão arbitral ignora regras fundamentais do direito arbitral brasileiro, notadamente a competência-competência e o efeito negativo da convenção arbitral.
Também ignora o fato de que as prerrogativas processuais da Fazenda Pública só se aplicam à arbitragem quando decorrem da Constituição (garantias processuais do processo, imparcialidade, regime precatórios etc.). Não há espaço normativo e tampouco fundamento para que se dê prazo em dobro para manifestações, reexame necessário dentre outras.
A decisão proferida pelo árbitro- seja em face da Fazenda Pública ou de particulares - no que tange à concessão de tutela de urgência, não ostenta caráter irrecorrível. Ademais, em virtude do efeito negativo decorrente da convenção de arbitragem, tal decisão não pode ser submetida à análise pelo Poder Judiciário. Nesse contexto, cumpre ressaltar que o pedido de suspensão não se presta à reforma ou à anulação da decisão impugnada - tampouco constitui meio adequado para a reapreciação jurisdicional.
Na realidade, o provimento urgente pode ser objeto de reconsideração, modificação ou revogação, mas tão somente pelo próprio árbitro que o concedeu, e não pelo Judiciário, consoante o disposto no art. 22-B da LArb - lei de arbitragem.
A adesão à arbitragem implica na renúncia das partes ao sistema judicial estatal para resolver a controvérsia. Logo, não cabe ao Poder Judiciário interferir nas decisões interlocutórias tomadas por tribunais arbitrais, salvo nos casos expressamente previstos em lei.
O art. 22-B da lei de arbitragem é taxativo ao determinar que, uma vez instituída a arbitragem, é ao tribunal arbitral que compete revisar, modificar ou revogar qualquer medida de urgência concedida. Essa disposição reafirma a autonomia da arbitragem e impede que partes insatisfeitas recorram ao Judiciário como instância revisora. Caso o pedido do Governo seja acolhido, abrir-se-ia um precedente temerário, permitindo que entes públicos utilizem o Poder Judiciário como atalho para burlar compromissos arbitrais livremente assumidos.
Ademais, a tentativa de suspender a liminar arbitral afronta a igualdade entre as partes no procedimento arbitral. A prerrogativa processual da Fazenda Pública em processos judiciais, justificada pelo interesse público primário, não encontra respaldo quando o Estado age como parte em contratos regidos pelo direito privado. Permitir que a Fazenda se utilize desse expediente na arbitragem configuraria um desequilíbrio inaceitável e uma autêntica medida antiarbitragem, vedada pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Esse incidente processual só existe e é manejado porque depende de uma demanda em curso, na qual o árbitro detém competência exclusiva sobre todas as questões envolvidas. Nesses casos, o único provimento jurisdicional admissível é o do tribunal arbitral, não cabendo a nenhum outro órgão jurisdicional.
Ademais, se coubesse às Cortes Judiciais locais analisar tal pedido - eventualmente com a participação do Ministério Público -, isso geraria um tumulto processual e uma interferência indevida no processo arbitral, o que é inaceitável.
Outrossim, não se admite o pedido de suspensão pela Fazenda Pública contra a medida de urgência concedida por árbitro. Permitir tal recurso implicaria o reexame ou até a revisão dos pressupostos de concessão da medida, como eventual lesão ao interesse público (error in judicando), o que é expressamente vedado pelo efeito negativo da convenção de arbitragem.
Enfim, o caso também chama atenção por seu impacto no ambiente de negócios e na segurança jurídica. O crescimento exponencial das arbitragens envolvendo o setor de infraestrutura e concessões se deve, em grande parte, à previsibilidade e estabilidade que esse meio de solução de disputas oferece. Qualquer interferência indevida do Judiciário pode gerar insegurança e desestimular investimentos, sobretudo em setores críticos como o saneamento básico.
A competência para resolver qualquer controvérsia relacionada à decisão arbitral cabe ao próprio tribunal arbitral. Eventuais abusos ou ilegalidades podem ser questionados por meio de ação anulatória, nos estritos limites do art. 33 da Lei de Arbitragem, mas nunca por meio de pedidos de suspensão dirigidos ao Judiciário.
O TJ/RJ, ao julgar essa questão, tem a oportunidade de consolidar sua posição em defesa do sistema arbitral, reafirmando a inaplicabilidade de prerrogativas da Fazenda Pública em processos arbitrais. Qualquer solução distinta representaria um retrocesso e abriria uma perigosa brecha para o uso indevido do Judiciário como mecanismo de revisão de decisões arbitrais.
Espera-se que a Corte fluminense mantenha-se fiel à sua própria jurisprudência e ao entendimento pacificado do STJ, rejeitando essa tentativa de enfraquecimento da arbitragem. A manutenção da decisão arbitral será um marco para a segurança jurídica e para a higidez do instituto arbitral no Brasil.
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1 Essa possibilidade já tinha sido cogitada em meados de 2020 diante do aumento de arbitragens envolvendo a Fazenda Pública. Cf. MAIA, Alberto Jonathas. Fazenda Pública e Arbitragem: do contrato ao processo. Salvador: Editora Juspodivm, 2020, p. 272
2 CUNHA, Leonardo Carneiro da. Fazenda Pública em juízo. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p.605.
3 CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. 14. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
4 MAIA, Alberto Jonathas. Fazenda Pública e Arbitragem: do contrato ao processo. Salvador: Editora Juspodivm, 2020, p. 272
5 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Suspensão de segurança: sustação da eficácia da decisão judicial proferida contra o poder público. 4. Ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2017
Alberto Jonathas Maia
Professor de Arbitragem da Graduação e Pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Mestre e Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco.