Advocacia sob ataque de estelionatários e as possibilidades de reação
Golpes digitais avançam e desafiam a justiça. O "falso advogado" usa dados vazados e engana vítimas. Precisamos repensar o acesso a informações processuais.
sexta-feira, 7 de março de 2025
Atualizado às 13:28
Nos últimos anos, os golpes digitais deixaram de ser casos isolados e se tornaram uma preocupação constante para milhões de brasileiros. Um sinal evidente da expansão desses crimes está na quantidade absurda de ligações telefônicas que todos recebemos diariamente, feitas por números aleatórios se passando por bancos, órgãos públicos e empresas de telefonia.
Entre as inúmeras fraudes que circulam no ambiente virtual, uma tem se destacado pelo impacto direto na advocacia e na confiança no sistema judicial: o "golpe do falso advogado". Não se trata de uma fraude nova, mas de um esquema que se reinventou e se fortaleceu no ambiente digital.
O "golpe do falso advogado", assim como outros crimes semelhantes, baseia-se na persuasão e manipulação da vítima, com técnicas de engenharia social, explorando informações vazadas ou obtidas de fontes públicas para tornar o engano mais convincente. Os golpes se tornaram mais sofisticados, difíceis de rastrear e, consequentemente, mais eficazes. A vítima, muitas vezes, só percebe que foi enganada quando já é tarde demais para recuperar seu dinheiro.
Utilizando-se da Lei de Acesso à Informação, os autores deste artigo realizaram, no mês de fevereiro de 2025, uma consulta à Polícia Civil de Santa Catarina para obter dados sobre ocorrências de estelionato praticado no ambiente virtual. A resposta revelou que, em 2024, foram registrados 84.044 Boletins de Ocorrência em que o crime de estelionato foi associado ao meio virtual1. Trata-se de um número expressivo, que certamente está subestimado, pois, além da possibilidade de alteração da tipificação inicial registrada no boletim de ocorrência ao longo das investigações, o fenômeno criminológico da cifra oculta nos ensina que muitas vítimas não formalizam a denúncia.
Apesar do alto volume de registros, a conversão dessas ocorrências em investigações formais é praticamente irrelevante. Até o momento, apenas 1.084 inquéritos policiais foram instaurados - ou seja, apenas 1,28% dos boletins se transformam em investigações formais. E a taxa de elucidação é ainda mais desanimadora: dos 84.044 boletins registrados, até agora apenas 131 (0,16%) resultaram na identificação e indiciamento de ao menos um suspeito.
A leitura feita com lupa identifica que, dos 212 inquéritos finalizados, 131 foram encerrados com a autoria apurada, enquanto 62 foram arquivados sem identificação de suspeitos e 19 não possuem informações detalhadas sobre o desfecho. Isso significa que, em um universo de mais de 84 mil ocorrências registradas em 2024, até o momento, apenas 0,16% dos casos tiveram a autoria identificada e poderiam levar a alguma responsabilização.
Essa realidade escancara a fragilidade do sistema de justiça criminal diante das fraudes digitais. As polícias enfrentam falta de estrutura, dificuldades técnicas para rastreamento e, principalmente, um modelo de investigação ainda baseado no crime tradicional, incapaz de lidar com a natureza descentralizada das fraudes virtuais.
O "golpe do falso advogado" se insere nesse contexto. Criminosos exploram a confiança do público na advocacia e criam esquemas fraudulentos para induzir vítimas a realizarem pagamentos indevidos para custas processuais, depósitos judiciais ou honorários fictícios. A sofisticação dos golpes cresce com o uso de deepfakes, inteligência artificial e engenharia social, tornando cada vez mais difícil diferenciar o real do falso.
A OAB/SC tem buscado de forma louvável enfrentar essa crise, promovendo campanhas de conscientização, força-tarefa de combate às fraudes e debates com o Poder Judiciário para aprimorar a proteção de dados processuais. A advocacia, muitas vezes, é também vítima colateral desses golpes, uma vez que clientes ludibriados podem associar o golpe à atuação de advogados legítimos, gerando desconfiança e prejuízo à imagem profissional.
Nesse contexto, nos parece importante repensar a forma como dados processuais são divulgados ao público. A possibilidade de robôs e sistemas automatizados catalogarem processos e dados sensíveis em larga escala facilita a atuação criminosa. Isso não significa impedir o acesso à informação, mas sim estabelecer critérios mais rigorosos para evitar que esse fluxo de dados alimente esquemas fraudulentos.
No nosso entender, a interpretação do direito de publicidade dos autos precisa ser revisitada, pois sua concretização no passado se dava sob um contexto muito mais burocrático e controlado. Antes, a consulta aos processos exigia presença física no fórum, registro de carga e identificação de quem acessava os documentos. Hoje, com robôs varrendo os sistemas processuais em tempo real, informações como nome das partes, valor da causa e até a liberação de alvarás são automaticamente coletadas e organizadas, tornando-se matéria-prima para golpistas que ludibriam vítimas com abordagens cada vez mais sofisticadas. Diante dessa nova realidade, surge uma questão inevitável: por que ainda permitimos um acesso tão irrestrito a essas informações? Não seria o caso de rever a forma como esses dados são disponibilizados, garantindo acesso responsável e implementando barreiras que impeçam seu uso indevido por criminosos?
Campanhas de conscientização são importantes, mas claramente não são suficientes. Está cada vez mais difícil diferenciar o falso do real. Hoje, criminosos simulam vozes, reproduzem rostos e criam identidades falsas com extrema precisão, explorando dados reais das vítimas para tornar os golpes ainda mais convincentes. Diante dessa nova realidade, a simples recomendação de "esteja atento" já não basta. A sociedade precisa ir além da informação e discutir medidas concretas, que envolvam proteção digital, controle no acesso a dados sensíveis e regulamentação sobre o uso de informações processuais.
O enfrentamento dos golpes digitais exige um debate honesto e aprofundado. Não sabemos exatamente qual é a melhor solução, nem se há uma única resposta correta. O que não podemos é seguir acreditando que bastará registrar ocorrências e que a polícia, por si só, conseguirá investigar e resolver esses crimes - os números mostram que isso simplesmente não está acontecendo. Talvez seja o momento de repensarmos a forma como os dados processuais são divulgados, restringindo o acesso mais detalhado da movimentação a um ambiente controlado, exigindo login e senha, autenticação de dois fatores para consultas individualizadas, processo por processo, ou até adotando camadas adicionais de verificação.
É verdade que isso traria mais burocracia e talvez não seja a solução definitiva, mas será que não ajudaria a reduzir o tormento diário das vítimas desses golpes? Será que permitiria, pelo menos, um cenário menos propício para a atuação criminosa? É algo que precisa ser discutido com seriedade e sem preconceitos. O que não podemos aceitar é continuar tratando esse problema como algo inevitável, confiando que o sistema de investigação tradicional conseguirá resolver uma crise para a qual ele não está preparado.
_______
1 Informações fornecidas pela Polícia Civil de Santa Catarina em resposta à consulta protocolada na Ouvidoria-Geral do Estado (Atendimento n° 2025002473). Pedido realizado em 27/01/2025, com resposta em 20/02/2025.