Dos paradigmas da capacidade civil e o projeto de reforma do Código Civil
Aborda o tratamento jurídico da capacidade civil no nosso ordenamento a partir da Convenção de Nova Iorque, e os dispositivos do projeto de reforma do Código Civil acerca da temática
sexta-feira, 9 de maio de 2025
Atualizado às 10:08
Toda pessoa, portadora ou não de deficiência, é legalmente capaz, ainda que para participar da vida em sociedade e estabelecer relações jurídicas com terceiros possa se valer de um apoiador ou curador.
O conceito de incapacidade mudou a partir da Convenção de Nova Iorque, que ingressou no ordenamento brasileiro com status de norma constitucional em razão do quórum qualificado na sua aprovação1 (decreto legislativo 186/08).
A mudança de paradigma trazida pela Convenção desloca a avaliação da capacidade civil, estabelecendo que a curatela é instituto protetivo e excepcional.
É preciso incutir na cabeça do julgador que o critério estritamente médico para o enquadramento da pessoa como portadora de deficiência não mais persiste no nosso ordenamento. A Convenção estabelece o PARÂMETRO SOCIAL da deficiência. Ou seja, os impedimentos não são mais analisados através dos critérios estritamente médicos, mas sim pelas BARREIRAS SOCIAIS impostas ao indivíduo portador de necessidades especiais. Cumpre a sociedade e ao Estado a ELIMINAÇÃO dessas barreiras (políticas assistivas), com a PROMOÇÃO da inserção social de toda e qualquer pessoa.
Em outras palavras, altera-se o modelo médico para o modelo social, o qual esclarece que o fator limitador é o meio em que a pessoa está inserida, e não a deficiência em si.
É por isso que o estudo social se tornou impositivo das ações de nomeação de curador. A função do assistente social é aferir as barreiras existentes que promovem a limitação ou o impedimento do indivíduo para a realização dos atos patrimoniais ou negociais, por si, ou através de um apoiador ou curador. Não há mais que se falar, portanto, em "incapacidade para todos os atos da vida civil".
A partir da Convenção de Nova Iorque, o vocábulo "interdição" deveria ter sido suprimido da legislação infraconstitucional, já que se refere ao instituto da curatela como um processo de supressão de direitos, quando na verdade sua função é a promoção da autonomia. A alteração da capacidade absoluta e relativa é centrada então na capacidade de autodeterminação, e não na deficiência.
A natureza jurídica atual da curatela é de MEDIDA PROTETIVA EXTRAORDINÁRIA, já que sua essência foi alterada com a Convenção de Nova Iorque e, posteriormente, com a Lei Brasileira de Inclusão - LBI (lei 13.146/2015).
A Lei Brasileira de Inclusão já havia promovido modificações ao Código Civil/2002, adequando-o ao novo paradigma, eliminando qualquer correspondência da condição de deficiência com a capacidade civil.
Entretanto, o CPC/2015 resolveu repristinar o instituto da interdição nos arts. 747 e seguintes, inclusive determinando que na sentença o juiz "decrete a interdição". É um ranço difícil de ser sublimado dos nossos tribunais, e certamente a opção do legislador ao tratar a questão dessa forma no Código de Processo Civil dificulta ainda mais a mudança paradigmática que deveria ter permeado todo ordenamento nacional.
Não obstante, o projeto de reforma do Código Civil tenta enterrar o assunto de maneira explícita no artigo 4º-A, ao dispor que "a deficiência física ou psíquica da pessoa, por si só, não afeta sua capacidade civil", reservando a incapacidade absoluta para aqueles que não consigam expressar sua vontade por nenhum meio, de forma temporária ou permanente (artigo 3º, inciso II), e a relativa àqueles que estiverem com a autonomia prejudicada por redução de discernimento que não constitua deficiência, enquanto perdurar esse estado (art. 4º, inciso II).
A deficiência, física ou psíquica, é uma condição em constante mutação. Varia conforme os avanços de ordem médica ou tecnológica. Em 1900 eram encaminhadas aos manicômios pessoas que apresentavam quadros de epilepsia, por exemplo. A lei ainda considerava a mulher relativamente incapaz, por ser mulher. Aliás, mulheres eram enviadas aos manicômios para livrar os maridos de um casamento indissolúvel, quando não existia o divórcio. Muitas atrocidades foram feitas pela humanidade ao longo dos anos2. Se pensarmos então numa perspectiva histórica, talvez seja mais óbvia a compreensão de que não é mais possível interligar os conceitos de capacidade civil e deficiência, quanto menos interditar direitos.
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1 Artigo 5º, § 3º da CRFB/88: Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
2 Ver sobre, ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro. Disponível em e-book. Trata-se de livro-reportagem da jornalista denunciando as atrocidades ocorridas no Hospital Colônia de Barbacena a partir de entrevistas com funcionários e relatos de sobreviventes. Entre as histórias, esposas que foram sigilosamente enviadas ao maior hospício do Brasil, como forma de driblar a indissolubilidade do casamento, além de outras condições clínicas com as quais atualmente se convive em sociedade sem qualquer barreira, o que por si só demonstra que capacidade ou incapacidade não devem se lastrear em critérios puramente médicos.