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A insegurança jurídica na regulamentação do RenovaBio

O artigo analisa as fragilidades estruturais e jurídicas do RenovaBio, agravadas pelas mudanças trazidas pela lei 15.082/24 e pelo decreto 12.437/25.

sexta-feira, 25 de abril de 2025

Atualizado às 14:34

RenovaBio - Política Nacional de Biocombustíveis atravessa um dos momentos mais turbulentos de sua trajetória. Criado pela lei 13.576/17, ainda no contexto da adesão do Brasil às metas nobres e ambiciosas do Acordo de Paris, o RenovaBio tinha como objetivo aumentar significativamente a participação dos biocombustíveis na matriz energética nacional.

A principal inovação desta lei havia sido a criação de um mercado de crédito em que, pelo lado da oferta, produtores de etanol e biodiesel emitiriam certificados de CBIOs - Crédito de Descarbonização lastreados na produção efetiva desses produtos, ao passo que as distribuidoras de combustíveis, pelo lado da demanda, deveriam adquirir determinadas quantidades de CBIOs em cumprimento de metas individuais estabelecidas pela ANP - Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis. A ideia era simples: incentivar a transferência de capital da indústria de combustíveis fósseis para um setor com menor pegada de carbono.

Contudo, ao longo de sua execução, o RenovaBio revelou graves fragilidades estruturais, fruto de uma concepção apressada e pouco refletida. Um primeiro exemplo é a distorção estrutural deste mercado de CBIOs, visto que a emissão do certificado pelos produtores de biocombustíveis, assim como sua negociação na bolsa de valores, é voluntária, ao passo que a demanda é composta por metas compulsórias a serem cumpridas anualmente pelas distribuidoras, independentemente da quantidade e o preço do crédito ofertado. Não tardou para que houvesse um desequilíbrio crônico entre oferta e demanda, seguido pela alta volatilidade e por movimentos especulativos em torno do preço desses títulos.

Outra inconsistência do RenovaBio é a concentração integral e injustificada do ônus da compensação apenas na distribuição de combustíveis fósseis, elo da cadeia produtiva da indústria de óleo e gás que menos contribui diretamente para a emissão de gases de efeito estufa. Essa distorção impôs custos financeiros desproporcionais às distribuidoras, sobretudo às de pequeno e médio porte, gerando desequilíbrios concorrenciais que resultam em prejuízos financeiros significativos e até no encerramento das atividades de algumas empresas menores.

Diante desse cenário desafiador, não tardaram as contestações judiciais. Em julho de 2024, havia, ao menos, 12 liminares vigentes suspendendo a obrigatoriedade para certas distribuidoras, mediante depósito em juízo de um valor estipulado por elas como caução. Esse número chegou a ser superior a 20 em semanas anteriores, demonstrando um movimento coordenado especialmente entre empresas de pequeno e médio porte.

A reação regulatória foi dura: a ANP passou a buscar a revogação das autorizações de operação das distribuidoras inadimplentes reiteradas, com base em inscrição no Cadin e outras brechas legais. Porém, até esses processos administrativos sancionatórios foram alvos de novas liminares impeditivas. Como resultado, instaurou-se um contencioso amplo e casuístico, espalhado pelo país, com diferentes decisões suspendendo a exigência do RenovaBio para determinadas empresas.

Em âmbito nacional, duas ADIn - Ações Diretas de Inconstitucionalidade foram ajuizadas perante o STF. A ADIn 7596, proposta em fevereiro de 2024 pelo PRD - Partido Renovação Democrática, e a ADIn 7617, proposta pouco depois (também distribuída ao ministro Nunes Marques), contestam a validade constitucional de dispositivos do RenovaBio.

Diante da crise de efetividade do programa e das disputas judiciais em curso, o legislador optou por intervir e dobrar a aposta. Em dezembro de 2024, foi aprovada e sancionada a lei 15.082/24, que alterou a lei 13.576/17 e endureceu drasticamente as penalidades impostas às distribuidoras que descumprirem suas metas individuais.

Entre as novidades, destacam-se: a tipificação do descumprimento das metas como crime ambiental, sujeitando dirigentes à responsabilização penal; o expressivo aumento do teto das multas administrativas, que passou de R$ 50 milhões para R$ 500 milhões - o maior teto para multas individuais de natureza ambiental; a proibição imediata de aquisição de combustíveis pelas distribuidoras inadimplentes; e a possibilidade de revogação da autorização de operação em caso de reincidência - algo que a ANP já buscava, ainda que sem base legal.

Em vez de priorizar uma análise crítica e abrangente que pudesse corrigir as diversas fragilidades estruturais e regulatórias do RenovaBio, o legislador optou por se concentrar predominantemente em mecanismos punitivos extremos, ignorando inconsistências centrais da política apontadas por agentes regulados, entidades setoriais e órgãos técnicos como o TCU - Tribunal de Contas da União.

As atenções e expectativas das distribuidoras e do setor sucroalcooleiro voltavam-se, agora, para a regulamentação da lei 15.082/24, mediante ato do Poder Executivo que emendaria o decreto 9.888/19 do RenovaBio. O questionamento mais imediato do setor era quando as novas sanções entrariam em vigor, bem como o regime de transitoriedade em relação ao exercício vigente e a exercícios anteriores.

Recorda-se que o art. 23 da lei de introdução às normas do Direito brasileiro determina que decisão administrativa que imponha novo dever ou condicionamento de direito deverá prever um regime de transição para que "o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais". Esse, contudo, não foi o caso do novo decreto.

Esse, contudo, não foi o caso do novo decreto 12.437/25, publicado nesta quinta-feira (17/4/25) no Diário Oficial da União, que lamentavelmente trouxe mais dúvidas do que respostas.

Exemplo: a lei 15.082/24, publicada no último dia de 2024, passou a prever que a distribuidora que não alcance sua meta individual anual de aquisição de CBIOs comete o crime contra a administração ambiental previsto no art. 68 da lei 9.605/1998, qual seja, "(D)eixar, aquele que tiver o dever legal ou contratual de fazê-lo, de cumprir obrigação de relevante interesse ambiental".

Ora, considerando que estas metas têm de ser cumpridas pelos agentes até o dia 31 de dezembro de cada ano e que a lei que alterou o RenovaBio entrou em vigor justamente neste dia, as distribuidoras de todo o país tiveram, portanto, menos 24 horas para adequar-se a esta nova previsão para o exercício de 2024, sob o risco de ser-lhes imputado um crime? Em uma interpretação literal do dispositivo, bastaria o mero estado de inadimplência do distribuidor no dia 1º de janeiro para a configuração do ilícito penal? As distribuidoras terão assegurado seu direito de contraditório e ampla defesa em processo administrativo a ser instaurado pela ANP para verificar o atendimento a suas metas?

Coube apenas à PROGE - Procuradora Federal junto à ANP, em consulta formal solicitada pela SBQ - Superintendência de Biocombustíveis e de Qualidade de Produtos no âmbito do processo SEI 48610.202306/2025-11, esclarecer que "caso o distribuidor deixe de comprovar o atendimento à meta individual até o dia 31 de dezembro de 2025, será configurado crime ambiental do art. 68 da Lei 9.605/98, desde que comprovado o descumprimento em processo administrativo regular, com observância dos princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa" (grifos nossos).

E não poderia ser diferente, visto que o crime estabelecido pela nova lei do RenovaBio é uma "norma penal em branco", que pressupõe normas e procedimento administrativo complementares para apurar sua autoria e materialidade. Portanto, eventual ação penal somente poderá ser movida pelo Ministério Público após tramitado em julgado procedimento administrativo prévio no âmbito da ANP para apurar e confirmar a possível inadimplência do distribuidor.

Ademais, por força do princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa, todas as novas punições e/ou os novos valores de multa não poderão alcançar o exercício de 2024 e anteriores, como bem ressalta a PROGE.

É o caso, por exemplo, da revogação da autorização de distribuição de combustíveis para o agente que não cumpra suas metas de aquisição de CBIOs, integral ou parcialmente, por mais dois ou mais exercícios, previsto no novo art. 9-C da lei 13.576/17. Ora, considerando que esta punição entrou em vigor no dia 31/12/24, eventual revogação somente poderá ocorrer após transcorridos ao menos dois exercícios a partir de 2025, assegurados os direitos de contraditório e ampla defesa no âmbito dos respectivos processos administrativos.

O mesmo ocorre com a vedação de comercialização de biocombustíveis com distribuidores que constam em lista de inadimplência divulgada pela ANP, objeto da nova redação do art. 9-B da lei 13.576/17. A nova lei do RenovaBio havia previsto que este dispositivo entraria em vigor no final de março de 2025, o que levou determinados produtores de etanol e biodiesel a absterem-se de comercializar seus produtos já a partir deste mês, valendo-se de listas publicadas pela ANP relativas a exercícios anteriores.

A confusão levou a ANP até mesmo a esclarecer, em seu site, após provocação da ANDC - Associação Nacional dos Distribuidores de Combustíveis, que estas listas não se referiam à nova lei e que a punição em questão ainda carecia de regulamentação para ser aplicada. O art. 6º-A do decreto regulamentador, por sua vez, apenas transfere o fardo regulamentador à própria ANP, o que conduz à conclusão de que todo o art. 9-B da lei 13.576/17 ainda não possui aplicabilidade.

O decreto regulamentador falha, por fim, ao repetir o erro já recorrente da ANP com a publicação destas listas. Isso porque art. 10 da lei 13.576/17 é claro ao estabelecer que somente serão divulgadas duas listas, quais sejam, (i) uma referente ao percentual de cumprimento de metas de cada distribuidor; e (ii) outra referente às sanções aplicadas ao distribuidor inadimplente.

A lista de sanções requer, por decorrência lógica, um procedimento administrativo prévio em que se apura a irregularidade e aplica a punição. Por força das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, pressupõe-se que as sanções tenham elemento de definitividade, até por conta de sua utilização futura para aplicar a vedação do art. 9-B da lei 13.576/17.

Este, contudo, não é o entendimento da ANP, que publica anualmente uma lista genérica relacionando todos os processos administrativos, misturando procedimentos em curso e já finalizados. Com isso, dá-se publicidade desnecessária a casos que eventualmente sequer possam gerar punições aos distribuidores.

O § 4º do art. 6-A do decreto regulamentador, por sua vez, vai além, autoriza a ANP a incluir, na lista de sanções, o distribuidor que for punido apenas em primeira instância, ainda que esteja em curso a fase recursal. Trata-se, no fim, de total desconsideração dos princípios da presunção de inocência e do duplo grau de jurisdição, dois dos direitos fundamentais mais básicos de nosso ordenamento.

As observações acima colocadas certamente não esgotam toda a problemática do RenovaBio e têm por objetivo apenas contribuir para o debate com vistas ao fortalecimento de um programa mais justo e equânime, em linha com o conceito de "transição energética justa" propagado pelo governo Federal. Uma transição energética que se quer "justa" deve ter como premissa a segurança jurídica dos agentes econômicos que cumprem função de interesse público na distribuição de combustíveis e podem impulsionar a descarbonização da economia.

Marcelo Romanelli de Oliveira

Marcelo Romanelli de Oliveira

Leonardo Vieira de Oliveira

Leonardo Vieira de Oliveira

Advogado, graduado em Direito pela UFRJ, mestre em Direito Internacional pela UERJ e em História Social pela UFF.

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