Norma geral de proteção e incentivo a reportantes no Brasil - Parte III
O artigo analisa a evolução da proteção legal aos reportantes no Brasil, destacando os avanços e as lacunas, bem como a necessidade de uma norma geral clara, segura e eficaz para incentivar denúncias.
sexta-feira, 9 de maio de 2025
Atualizado às 09:17
A terceira e última parte deste artigo irá abordar um dos elementos mais controversos das normas de proteção e incentivo a reportantes: a premiação ao reportante.
Algumas legislações estrangeiras, como a estadunidense, canadense e sul-coreana, estabelecem premiações a reportantes como forma de compensar os riscos econômicos, profissionais e reputacionais aos quais eles se submetem ao reportarem alguma irregularidade. Assim, o prêmio atribui incentivo financeiro ao reportante, encorajando-o a se manifestar.
Por outro lado, algumas instituições apontam que premiar denúncias espontâneas de irregularidades poderia deturpar sua moralidade, ensejando um aumento de denúncias falsas e maliciosas (TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL, 2018)1. Ainda, críticos à premiação a reportantes afirmam que a prática constitui uma "monetização da virtude" (BARNARD, 2009, p. 413), na qual reportantes são vistos como "caçadores de recompensa" (VEGA, 2012, p. 500).
Os resultados da política de premiação a reportantes da U.S. SEC - Securities and Exchange Commission, no entanto, chamam atenção. Somente em 2023, a SEC divulgou ter concedido cerca de US$ 600 milhões de dólares em prêmios a reportantes, tendo obtido cerca de US$ 5 bilhões em "financial remedies"2.
Em que pese os debates acerca da moralidade e a eficiência da premiação a reportantes, no Brasil a lei 13.608/18 estabeleceu parâmetros para a concessão de prêmio em seus arts. 4º e art. 4º-C, § 3º, os quais ainda não foram regulamentados. Já o PL 2.581/23, ao também estipular prêmios a reportantes, propôs em seus arts. 8º, §1º, e 9º regime diverso, com novos parâmetros e condições.
Frente a esses dispositivos, percebe-se que ainda não há clareza sobre as premissas essenciais para a efetivação da política de premiação de reportantes no Brasil, que deveria abranger temas como: (a) quais reportantes são elegíveis ao prêmio; (b) o valor da premiação e os fatores que afetam esse valor; e (c) quando e como repassar os prêmios ao reportante.
Reportantes elegíveis ao prêmio
No Brasil, a lei 13.608/18 não apresenta parâmetros claros para determinar quais reportantes estariam elegíveis aos prêmios nela autorizados. Enquanto o art. 4º, caput, da lei 13.608/18 limitou a concessão de prêmios aos reportantes que apresentem "informações que sejam úteis para a prevenção, repressão ou a apuração de crimes ou ilícitos administrativos", o art. 4º-C, § 3º da mesma lei (incluído posteriormente em 2019 pelo Pacote Anticrime) afirma que serão concedidos prêmios quando "as informações disponibilizadas resultarem em recuperação de produto de crime contra a administração pública".
Por sua vez, o PL 2.581/23 apresentou alternativa em seu art. 8º, caput, indicando que a premiação seria limitada àquele que "fornecer informações ou provas inéditas que resultem na apuração bem-sucedida de crimes ou ilícitos no mercado de valores mobiliários ou em sociedades anônimas de capital aberto". A redação, apesar de mais esclarecedora que a da lei 13.608/18, apresenta termos indeterminados, como provas que resultem na apuração bem-sucedida de ilícitos, sem apontar, exatamente, qual o resultado necessário para a concessão do prêmio.
Ainda, em seu art. 8º, § 2º, o projeto de lei delimita um rol de indivíduos que não estariam elegíveis a receber recompensas. Essas exceções abordadas pelo PL 2.581/23 parecem ter tido inspiração nas leis norte-americanas, em especial as normas da SEC e do United States Department of Justice, que contemplam um rol similar de indivíduos excetuados do recebimento de premiações, incluindo a alta direção de organizações, pessoal de compliance, contadores e advogados que obtiveram informações no exercício da profissão.
Ademais, o PL 2.581/23 também propõe, em seu art. 8º, §3º, que os reportantes excetuados nos incisos III e IV do § 2º do artigo poderiam ter direito ao prêmio se a irregularidade for reportada à pessoa jurídica e, após o relato, não forem tomadas as providências necessárias de apuração interna e de comunicação às autoridades. A SEC, por sua vez, foi mais precisa ao dispor hipóteses claras em que os sujeitos inelegíveis ao prêmio poderão ter acesso a ele, incluindo um prazo de 120 dias para que a companhia tome as medidas necessárias de apuração interna e de comunicação às autoridades.
Valor da premiação
A determinação do quanto pagar em prêmios a reportantes é tarefa complexa, que envolve desde questões de moralidade até cálculos econômicos para determinar a quantia ideal para incentivar denúncias e afastar ações oportunistas.
Observa-se na experiência internacional a existência de dois principais modelos de quantificação de prêmios a reportantes: (i) vinculado aos percentuais ou frações de sanções impostas, sem limitação de valor; e (ii) quantias máximas fixas, atribuídas de acordo com variáveis específicas. Entre os critérios comumente considerados para determinar o valor do prêmio estão a gravidade da irregularidade, a qualidade das evidências apresentadas e a colaboração do reportante.
O cálculo para determinar o valor do prêmio deveria considerar que, para servir como um incentivo para a denúncia, ele precisa ser alto o suficiente para compensar os custos antecipados da retaliação, mas, ao mesmo tempo, não pode ser tão alto a ponto de impulsionar relatos falsos e maliciosos.
A análise antecipada do custo da retaliação considera fatores regionais de cada país como, por exemplo, o mercado de trabalho, a eficiência de suas normas, os custos do Judiciário e as proteções concedidas aos reportantes. Caso o prêmio cubra esses riscos, o reportante poderá se sentir mais motivado a relatar uma irregularidade. Por outro lado, se o prêmio ultrapassar esse valor de cobertura de gastos, poderá haver um incentivo para reportantes de má-fé reportarem irregularidades fabricadas ou exageradas, onde a perspectiva do retorno compensaria os riscos caso identificada a falsidade do relato.
Além disso, em jurisdições que estabelecem que o valor da premiação pode variar conforme a gravidade da infração, existe um risco de reportantes optarem por adiar a denúncia para maximizar o seu ganho monetário. Em países como os EUA em que a legislação aponta um valor mínimo que a ação precisa atingir para a concessão de prêmios, há o receio de empregados esperarem para relatar alguma irregularidade até que se torne mais grave e ultrapasse o valor mínimo, para então denunciarem a violação e serem elegíveis ao prêmio. Quanto a essa objeção mais específica, isso pode ser mitigado por requisitos de originalidade e novidade da denúncia, assim como por um fator redutor do prêmio caso o reportante esteja envolvido em atrasos intencionais e injustificados da denúncia (NYRERÖD e SPAGNOLO, 2021).
No Brasil, a lei 13.608/18 prevê a possibilidade de recompensa aos reportantes pelo oferecimento de informações úteis, e, também, quando a denúncia resultar em recuperação do produto de crime contra a Administração Pública, que poderá haver recompensa de até 5% do valor recuperado. A lei 13.608/18 não determinou, no entanto, parâmetros ou requisitos para a concessão da recompensa de modo que deixou incerto o funcionamento desse instrumento.
Já o PL 2.581/23 propôs um mecanismo de concessão de recompensa mais robusto contendo: (i) o requisito de ineditismo da denúncia e a necessidade de um resultado bem sucedido de crimes ou ilícitos; (ii) uma faixa de valor da recompensa entre 10% e 30% (a) do valor das multas administrativas, (b) do valor do produto do crime ou do ilícito que tiver sido recuperado ou (c) do valor correspondente à fraude contábil ou ao prejuízo provocado; e (iii) os critérios para fixação do valor da recompensa considerando fatores como a novidade e qualidade das informações e provas relatadas, grau de assistência do reportante, natureza da gravidade, danos resultantes e envolvimento do reportante no crime ou ilícito.
Nesse sentido, seria recomendável que uma lei geral previsse (i) os requisitos mínimos para a concessão de recompensas; (ii) uma faixa de valor de recompensa predeterminada e condizente com a realidade do país; (iii) os fatores que irão afetar a fixação do valor da recompensa; e (iv) as sanções previstas para reportantes que relatarem informações sabidamente falsas. Tais disposições ainda poderiam ser complementadas por meio de regulamentações no âmbito de diferentes autoridades.
Momento da premiação
Um aspecto adicional que precisaria estar definido na lei geral é o momento em que o prêmio seria concedido ao reportante. Se, por um lado, houver o pagamento muito cedo, não haverá como verificar a veracidade e efetividade da denúncia, o que poderá incentivar relatos falsos. Por outro lado, se vinculado ao "sucesso" da acusação (seja na esfera judicial ou administrativa), o reportante poderá não conseguir suportar os custos (financeiros, reputacionais ou sociais) de aguardar o trânsito em julgado, desincentivando relatos como um todo.
A análise do momento da premiação deveria considerar a realidade processual de cada país, para entender o que seria factível em cada jurisdição. O simples transplante de critérios utilizados em países como os EUA, onde 98% dos processos criminais, por exemplo, encerram-se em acordos entre as partes (JOHNSON, 2023), não parece adequado à realidade brasileira, na qual o aguardo pelo trânsito em julgado pode representar uma demora demasiada, com resultados incertos.
Nesse sentido, considerando-se que a vinculação do prêmio ao resultado do processo tem por objetivo desincentivar denúncias fraudulentas, o momento ideal para o pagamento do prêmio deverá ser determinado a partir da comprovação da utilidade e veracidade das informações prestadas pelo reportante.
Alternativa desenvolvida pela autoridade antitruste inglesa, a Competition & Markets Authority, determina o pagamento de prêmios a reportantes ao final da fase de investigação, sem que haja qualquer vínculo entre o prêmio e o resultado da ação. Ou seja, uma vez que a própria "acusação" entenda que as informações são de utilidade para a investigação e levaram ao oferecimento de uma ação, o reportante se torna elegível ao prêmio.
No Brasil, deve-se reconhecer que o acertamento de casos nas esferas criminal, administrativa e cível envolve realidades processuais diversas, com garantias e períodos de tramitação, por exemplo, pouco relacionados entre si, o que deverá ser considerado na definição do momento da premiação. Em outras palavras, aguardar o trânsito em julgado de um processo nas esferas administrativa ou criminal para o recebimento de um prêmio implica em consequências muito diferentes, o que poderá modificar todo o modelo de premiações adotado em cada órgão.
Não parece haver um modelo único e infalível de premiação, adequado para qualquer realidade sancionadora. Caberia a uma norma geral reconhecer essas peculiaridades e estabelecer diretrizes básicas que atribuam maior segurança ao reportante, impedindo que ele seja apenas atraído por promessas de prêmios que se tornem meras exposições a riscos indesejados.
Considerações finais
Neste artigo, explorou-se o cenário das normas de proteção e premiação a reportantes no Brasil, com a análise dos direitos e garantias que devem ser contemplados para fins de uma norma geral sobre o tema.
Na primeira parte, tratou-se do escopo da lei 13.608/18 e do conceito de reportante para fins da legislação. Na segunda parte, foram examinadas as garantias de proteção a reportantes, com o apontamento de proteções essenciais para a atribuição de segurança aos reportantes. Por fim, nesta terceira parte, examinou-se alguns dos desafios para a efetivação da premiação a reportantes no país.
Neste contexto, resta claro que o Brasil ainda carece de um diploma legislativo amplo, moderno e eficiente para a efetivação de uma política de proteção e premiação a reportantes. Apesar da previsão legislativa conferida pela lei 13.608/18, os poucos dispositivos do diploma não se mostraram suficientes para desempenhar o seu papel de norma geral.
Enquanto o Legislativo se debruça sobre iniciativas como o PL 2.581/23 (restrito aos ilícitos contra o mercado de capitais), não se pode perder a oportunidade para a reforma do sistema de proteção e premiação a reportantes como um todo, mediante uma norma geral que atribua segurança àqueles que denunciam ilicitudes em diferentes contextos.
____________
1 Esses receios de que a premiação estimule denúncias falsas são também compartilhados, dentre outros autores, por Saad-Diniz e Marin (2021, p. 87), que afirmam que "incentivos podem levar ao detrimental effect (efeito pernicioso das denúncias), no qual o reportante se vale dos contextos de assimetria da informação para manipular denúncias fraudulentas".
2 Informação divulgada pela SEC, disponível em: https://www.sec.gov/newsroom/press-releases/2023-234. Acesso em 07/11/2024.
3 BARNARD, Jayne W.. Evolutionary Enforcement at the Securities and Exchange Commission. In: University of Pittsburgh Law Review, William & Mary Law School Research Paper No. 09-19, dezembro, 2009. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=1520697. Acesso em 06/11/2024.
4 NYRERÖD, Theo; e SPAGNOLO, Giancarlo. A Fresh Look at Whistleblower Rewards. Stockholm Institute of Transition Economics. Working Paper. No. 56. 22/06/2021. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=3871748. Acesso em 08/11/2024.
5 SAAD-DINIZ, Eduardo; MARIN, Gustavo de Carvalho. Criminalidade empresarial e programas de whistleblowing: Defesa dos regimes democráticos ou mercancia de informações? In: Revista eletrônica do CPJM, v. 1, n. 1, p. 72 - 99, 2021. Disponível em: https://rcpjm.emnuvens.com.br/revista/article/view/10/20.
6 TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL. Whistleblower Reward Programmes. 2018. Disponível em: https://knowledgehub.transparency.org/helpdesk/financial-incentives-for-whistleblowers. Acesso em 10/09/2024.
7 VEGA, Matt A.. Beyond Incentives: Making Corporate Whistleblowing Moral in the New Era of Dodd-Frank Act Bounty Hunting. In: Connecticut Law Review, vol. 181, p. 483-547, 2012.