A Guarda Municipal não é polícia: Quando o STF erra por último
O presente artigo critica decisão do STF que reconhece a Guarda Municipal como polícia, alegando violação da Constituição, que limita sua atuação à proteção de bens e serviços municipais.
quinta-feira, 8 de maio de 2025
Atualizado às 11:55
O presente artigo tem como objetivo analisar criticamente a interpretação dada pelo STF ao art. 144, §8º, da Constituição Federal, especialmente à luz do julgamento do RE - recurso extraordinário 608.588, com repercussão geral (Tema 656), ocorrido em 20/2/25. Também examinamos, de forma sucinta, a proposta da Prefeitura do Rio de Janeiro de criação de uma Força de Segurança Municipal.
A Constituição e o papel da Guarda Municipal
O caput do art. 144 da Constituição Federal de 1988 estabelece que a segurança pública é dever do Estado e responsabilidade de todos, sendo exercida por meio de órgãos expressamente listados: Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal, Polícias Civis, Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, além das Polícias Penais (incluídas pela EC 104/19).
O §8º do mesmo artigo prevê que "os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei". Ou seja, a função constitucional da Guarda Municipal está restrita à proteção do patrimônio municipal, não havendo qualquer atribuição típica de polícia.
Dessa forma, o texto constitucional é claro ao não incluir as guardas municipais no rol dos órgãos de segurança pública. Tampouco há autorização constitucional para que os municípios criem novos órgãos de segurança pública - competência exclusiva da União.
Jurisprudência e doutrina
A doutrina majoritária corrobora essa interpretação restritiva. O professor Renato Brasileiro destaca que não cabe às guardas municipais patrulhar pontos de tráfico de drogas, realizar abordagens ou investigações criminais, salvo em situações absolutamente excepcionais, com relação direta e imediata à proteção de bens, serviços e instalações municipais.
O STJ, no julgamento do REsp 1.977.119, reforçou esse entendimento, firmando que as guardas municipais não podem exercer atribuições das polícias civil e militar, devendo sua atuação se restringir à proteção do patrimônio municipal.
O novo entendimento do STF
Em contrariedade a essa construção doutrinária e jurisprudencial, o STF, no julgamento da ADPF 995, reconheceu as guardas municipais como órgãos de segurança pública, integrantes do SUSP - Sistema Único de Segurança Pública, instituído pela lei 13.675/18. Esse entendimento foi reafirmado em 25/2/25, com a conclusão do julgamento do RE 608.588, em que o Supremo declarou constitucional o exercício de ações de segurança urbana pelas guardas municipais, incluindo o policiamento ostensivo e comunitário.
Contudo, apesar do reconhecimento como parte do SUSP, a 3ª Seção do STJ delimitou claramente os limites dessa atuação, vedando que guardas municipais exerçam atividades de polícia judiciária, como investigações criminais ou cumprimento de mandados.
A doutrina continua alinhada a esse entendimento. O professor Rômulo Moreira assevera que, ainda que as guardas municipais integrem o sistema de segurança pública, não possuem função de polícia judiciária e não podem realizar diligências típicas das polícias civil ou federal.
A tentativa de criação da Força de Segurança Municipal
A proposta da Prefeitura do Rio de Janeiro de criar uma Força de Segurança Municipal, composta por agentes armados e uniformizados, esbarra na inexistência de autorização constitucional para a criação de novos órgãos de segurança pública por municípios. Qualquer inovação nessa seara demandaria alteração formal da Constituição, não sendo suficiente a edição de lei ordinária municipal.
O Direito de errar por último
O STF, ao decidir o RE 608.588, conferiu interpretação extensiva ao §8º do art. 144 da Constituição, permitindo que guardas municipais atuem em ações de policiamento ostensivo e comunitário. Essa decisão, embora vinculante, representa uma mudança de entendimento que, na prática, altera a arquitetura constitucional da segurança pública - prerrogativa que deveria ser exercida pelo Poder Constituinte derivado, por meio de emenda constitucional.
Como dizia Rui Barbosa:
"Em todas as organizações, políticas ou judiciais, há sempre uma autoridade extrema para errar em último lugar."
Conclusão
É evidente a necessidade de fortalecer a segurança pública no Brasil, inclusive com a colaboração dos municípios. No entanto, não se pode admitir que decisões judiciais ampliem, por via interpretativa, competências não previstas no texto constitucional.
A Guarda Municipal tem papel relevante e complementar, mas sua atuação deve respeitar os limites fixados pela Constituição. Até que o Congresso Nacional, por meio de emenda constitucional, decida incluir os municípios no rol de entes responsáveis pela segurança pública, não cabe ao STF reescrever a Constituição. Afinal, como bem pontua a tradição jurídica, o Supremo pode errar - mas erra por último.