Era uma vez na maternidade normativa brasiliana - Uma história de horror para CPFs e CNPJS
A saga da função social do contrato vira peça de teatro jurídico, revelando o caos normativo e os impactos assustadores para CPFs e CNPJs.
terça-feira, 6 de maio de 2025
Atualizado em 5 de maio de 2025 13:54
Vou contar uma história de assombração que teve o seu primeiro grande evento no dia 10 de janeiro do ano da graça de 2002, na Maternidade Normativa Brasiliana, a qual não tem grande referência, quando nasceu uma menina que se chamou de Função Social do Contrato, FSC1 para os íntimos. Ela tem a forma de uma peça do grande teatro de comédia que é o Brasil. Por favor, tirem as crianças e os velhinhos com o coração enfraquecido da sala. Os demais podem ficar, especialmente os empresários, todos munidos de bons calmantes.
Primeiro ato
O verdadeiro começo dessa história horrorosa foi mais para trás no tempo, no dia em que os duendes que estavam mexendo um caldo grosso e escuro, em um imenso caldeirão normativo, formavam embriões que nove meses depois eram dados à luz. No caso da menina FSC1 seus pais eram a senhora Confusão e o senhor Inconsequente. Dona Confusão morava até então com duas irmãs, dona Certeza e dona Segurança, que equilibravam o funcionamento da casa, mas elas foram despejadas por dona Confusão, que lhes disse que não teriam mais espaço naquele lugar.
FSC1 foi uma criança que nasceu a fórceps e nem estava ainda bem desmamada, quando foi colocada no colo de um CC que também acabara de nascer, tendo sido registrada sob o número 421. Havia um sério problema congênito com FSC1, pois já no berçário as enfermeiras se atrapalhavam em identificá-la pois o seu semblante era fugidio, nada definido. Ou melhor, ele se mostrava diferente conforme quem a olhava.
Ela buscava proteger um alegado bem que se situava externamente e acima da vontade das partes, pretensamente em seu favor. Essa alteração foi uma mudança muito, muito profunda, que transformava toda população do país em coitadinhos, dependentes dos seus pais para tudo, um povo que se entendia não poder fazer livremente as suas escolhas. E como "coitadinho" era tomado desde pipoqueiro que vendia a sua pipoca na porta do parque, até um grande empresário. Um verdadeiro horror!
FSC1 cresceu em meio a dificuldades extremas, relativas à sua identificação precisa, na convivência com os demais seres normativos, mas assim mesmo um dia chegou à maturidade, tendo obtido um emprego relacionado com o nascimento de contratos, quaisquer que fossem. No seu trabalho, quando em um contrato o José pretendia comprar uma casa de João e um empresário vender a sua safra FSC lhes dizia que somente estavam liberados para fazê-lo se ela fosse atendida nos seus interesses. Atendida em que, eles perguntavam? Ela não respondia, porque nem mesmo ela sabia.
Muitas confusões e muitos prejuízos foram gerados durante os anos seguintes e os necessitados de saber como atender as exigências de FSC encontraram mil receitas sobre como fazer, criadas por mil fotógrafos do seu rosto, quase nenhuma igual à outra. Mas as tentativas de solução costumavam dar muito errado.
Foi então que em 2019 o guardião da nação, depois de ver o grande estrago que havia sido feito por FSC1, decidiu nela fazer uma cirurgia plástica, que lhe deu uma segunda cabeça, tendo as duas passado a trabalhar juntas. Ou ao menos tentar isso. Mas a cabeça FSC2 mandava mais do que FSC1, ou assim aquela pensava. Em certas situações FSC1 dizia que as partes em um contrato não a haviam obedecido e, portanto, seu contrato era inválido ou deveria ser alterado pelo juiz. Mas então FSC2 cortava as asas daquela dizendo: "Querida, aqui você não tem vez. As coisas estão indo bem, as partes estão satisfeitas e tudo acontece de acordo com os seus desejos. Sabe quando você poderá mexer nesse contrato, eu digo que somente no dia em que galinha criar dentes".
Se tivesse ficado assim, FSC1 iria passar por um processo de esvaziamento, como um pneu que perde o ar, até não poder mais ajudar a conduzir o carro, perdendo toda a sua função. E pior ainda, os remendos que FSC1 e FSC2 faziam nas situações contratadas eram emendas muito piores do que os sonetos.
Mas os duendes que mexiam a colher no grande caldeirão normativo sacaram outra irmã para aquelas duas, FSC3, a qual diz que papai Estado somente poderá mexer nos contratos privados em caráter excepcional, a não ser que elementos concretos possam justificar a presunção de simetria e de paridade.
Mas eis que, senão quando, um portentoso mago resolveu enxertar outra cabeça no mesmo corpo em que estavam FSC1, FSC2 e FSC3, tendo contratado para isso um corpo médico grandioso, estando agora o processo em andamento. FSC4 (que primeiro se imaginou ser uma brilhante ideia) terá o poder de derrubar um contrato inteiro, quando não atendida, até chegar ao rés do chão. Mas a ideia era curar o doente e não matá-lo.
Segundo ato
Os CPFs nem imaginavam que espada poderá cair sobre as suas cabeças1. Eles não acompanham o que acontece naquela universidade brasiliana e, se pudessem assistir algum debate entre as suas excelências congressistas não iriam entender nada. Isto porque se a lei posta é para todos, compreendida ou não, fazer leis é para poucos iniciados.
Vamos nós aqui fazer um teste no campo dos CPFS, sobre como dona FSC1 e suas "irmãs" atuariam na vida real. Trabalhemos com um caso-limite, que é ótimo para a demonstração pretendida.
O José durante muitos anos fez uma poupança que foi aplicada na construção de casas para aluguel no bairro em que mora, assim podendo fiscalizar de perto o que acontecia em relação a elas. Tendo se aposentado, o valor dos aluguéis complementavam a sua aposentadoria, lhe dando e à sua família uma vida confortável, sem luxos.
Entre os inquilinos de José estão o Pedro e o Antônio, bons pagadores, até que lhes surgiram problemas. Pedro foi demitido do seu emprego e tem procurado recolocação sem sucesso. Disso decorreu que começou por atrasar os pagamentos dos aluguéis, tendo há três meses deixado completamente de fazê-lo. Já o Antônio ficou doente e está de licença médica enquanto aguarda uma perícia do INSS. Ele fazia uns "bicos" para ajudar nas despesas e o que ganhava está fazendo falta, de maneira a que está deixando de pagar os aluguéis, principalmente porque está gastando muito dinheiro com medicamentos.
Como consequência de tudo isso, José ficou sem parte de sua renda, o que o impediu de pagar um empréstimo que havia tomado em um banco, que lhe está cobrando.
Diante desse quadro, como podemos imaginar a maneira pela qual FSC1 e suas irmãs irão agir, já contando com a quarta, em gestação.
Como sabemos, FSC1, registrada sob o número 421 dizia que "a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato". Punto e basta! Então nós lhe perguntamos se os contratos de locação de Pedro e Antônio não exerciam a função social de lhes dar moradia. "Claro que sim, respondeu ela. Vejam os termos do art. 1º, inciso III, da Constituição Federal, que estabelece o fundamento da dignidade da pessoa humana. Dessa forma, esse fundamento não será atendido se as ações movidas por José contra eles levarem ao seu despejo".
Então nós argumentamos que, por sua vez inadimplente, José não pagaria o banco nem os seus demais credores, podendo até mesmo perder a sua casa, deixando de lado aqui a questão consistente em que a perda em causa poderia alcançar também todas as casas de José, inclusive as ocupadas por Pedro e Antônio, em consequências do tipo cascata, como resultado da atuação de FSC1. Nossa entrevistada não nos deu resposta a essa pergunta.
Agora apliquemos aos mesmos casos a irmã FSC2, para quem a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato e que nas relações contratuais privadas, prevalecerá o princípio da intervenção mínima do Estado, por qualquer dos seus poderes, e a revisão contratual determinada de forma externa às partes será excepcional.
Ora, parece que aqui a coisa mudou de rumo, de maneira a que os inquilinos deverão ser despejados em ações movidas por José, a não ser que os casos de Pedro e Antônio possam ser objeto de uma revisão considerada excepcional, para o fim de se estabelecer o valor dos aluguéis que possam suportar. Isto significa dizer que FSC2 não é tão boa como podia se pensar, pois continua não sendo possível ver direito a fisionomia das FSCs, 1 e 2, as quais continuam como sombras em noite escura. E José teria de se virar com os minguados aluguéis que poderiam ser arbitrados para continuar honrando as suas obrigações.
Passemos para FSC3, que veio com uma cara ainda mais estranha, pois tem outras dentro dela, tal como aquele monstro da série "Alien", ou, melhor ainda, como as bonecas russas conhecidas como "matrioskas", que são várias, uma dentro da outra nas suas caixas. A caixa em questão tem no total seis bonecas com as quais não vamos nos preocupar agora, verificando que a primeira nos diz que os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais.
Então nós perguntamos a senhora FSC3 como ela definiria esses "elementos concretos" que afastariam a presunção da paridade, resultando em que os contratos de locação de José e de seus inquilinos teriam os segundos como partes mais fracas, merecendo a intervenção do julgador para protegê-los.
Foi então que ela "embatucou", tendo ficado rígida e gelada, sem nos responder.
Segue-se que precisamos agora examinar FSC4, que se encontra em gestação. E a grande novidade está em que a cláusula contratual que violar a função social do contrato é nula de pleno direito."
Agora não é o contrato todo, mas somente aquela que violar a função social, ou seja, FSC1. Voltamos ao ponto de partida em uma viagem que não apresentou as maravilhas daquela dos oitenta dias em um balão. Afinal de contas, o planeta é redondo.
Segundo informações de cocheira, em meio a muitos boatos, a questão teria sido discutida em petit comitê, mudando-se o projeto da criança, passando FSC4 a ter o poder de deitar abaixo somente a parte do contrato que não atendesse a sua irmã FSC1, tendo se esquecido os cozinheiros desse caldo espesso de que se a parte derrubada fosse o coração do acordo, então, ele iria morrer por inteiro, do mesmo jeito.
Tudo está muito assustador, com muita gente tremendo de medo.
Vamos ver a situação dos Do lado dos CNPJs que, no fundo, é a mesma.
Eles tinham notícia de que alguma operação estava sendo feita lá para os lados do planalto, mas no começo não prestaram muita atenção. Contudo, o noticiário começou a falar mais do assunto e eles ficaram curiosos. Então chamaram os seus departamentos jurídicos para se informar a respeito do assunto, quando começaram a ficar preocupados.
- Chefe, disse um advogado de um deles em uma reunião, a coisa está ficando muito preocupante. Do jeito que vai, se isso passar, nós poderemos perder muito dinheiro. E, tendo o chefe pedido mais explicações, essas lhe foram dadas como abaixo.
- Chefe, disse aquele advogado, nós somos uma empresa que negocia com grãos. Há contratos em que nós mesmos fazemos a entrega no lugar de destino e outros em que os compradores vem fazer a retirada por caminhões nos nossos silos, por sua própria conta. Imagine que em uma hora qualquer o preço do combustível fique muito caro ou que o acesso ao silo fique prejudicado por causa de chuvas. Os compradores poderão ir ao Judiciário alegar que os contratos ficaram inviáveis para eles e o juiz poderá dizer que as senhoras FSCs não foram atendidas e que, portanto, a obrigação de retirada dos grãos por eles no contrato é uma cláusula nula, surgindo no seu lugar a nossa obrigação de fazer a entrega. E aí nós quebramos. E se isso pode acontecer conosco, o mesmo poderá alcançar toda a cadeia produtiva.
- Mas, disse o Chefe, isso subverte todo o nosso modelo econômico. Dessa maneira, onde estão a dona Segurança e dona Certeza?
- A última vez que soubemos delas estavam recolhidas em uma casa de idosos, respondeu o advogado.
- Precisamos nos mexer, agitar as coisas para que isso não aconteça, disse o Chefe. Vamos fazer barulho, chegando diretamente no centro cirúrgico daquela maternidade brasiliana, falando com todos os cirurgiões sobre esse imenso perigo. Que o céu não caia sobre a nossa cabeça!
Terceiro ato
Aos poucos vozes começaram a se levantar contra a gestação de FSC4, tendo se percebido que ela era apenas uma das experiências que cientistas loucos estavam conduzindo na referida maternidade. Eram centenas de embriões em gestação dentro de um grande projeto, cada um capaz de criar uma tremenda tempestade econômica e jurídica em toda a terra, em maior ou em menor grau. Os aprendizes de feiticeiros estavam em toda a atividade. Era preciso que alguém tirasse a varinha mágica de suas mãos e entornasse o grande caldeirão.
Aqui e ali começaram a se manifestar muitas vozes que eram contrárias a essa nova criação. Ela levaria a um caos pessoal quanto às partes diretas em um contrato e geral, no tocante a sociedade como um todo, aumentando de forma significativa o seu custo e em detrimento da eficiência.
Foi então que me lembrei do que disse um profeta destes últimos tempos: "É a economia, estúpido''.
Valha-nos Walt Disney!
Quarto ato
(A escrever, mas tem grande tendência para ser uma macro tragédia).
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1 Nossos eficientes repórteres nos informaram que em 2024 estavam registrados 220 milhões de CPFS e 64 milhões de CNPJs.
Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.