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Obrigação dos planos de saúde: Cirurgias reparadoras pós-bariátricas

Saúde suplementar enfrenta crescente número de ações judiciais por negativas de custeio de cirurgias plásticas reparadoras pós-bariátricas. Entenda seus direitos.

quinta-feira, 8 de maio de 2025

Atualizado às 09:24

A saúde suplementar no Brasil enfrenta um crescente número de disputas judiciais, muitas delas decorrentes de negativas abusivas por parte de operadoras de planos de saúde, especialmente no custeio de cirurgias plásticas reparadoras pós-bariátricas.

Essas negativas, frequentemente justificadas com base em cláusulas contratuais restritivas ou na ausência de previsão no rol de procedimentos da ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar1, têm gerado não apenas prejuízos à saúde física e mental dos beneficiários, mas também um aumento significativo da judicialização.

O contexto das cirurgias reparadoras pós-bariátricas

A cirurgia bariátrica é um marco na vida de pacientes que enfrentam a obesidade, promovendo significativa perda de peso e melhoria na qualidade de vida. Contudo, o sucesso desse procedimento muitas vezes vem acompanhado de sequelas, como excesso de pele (dermocalasia), que pode causar complicações físicas - dermatites, infecções cutâneas, dificuldades de higienização - e psicológicas, como baixa autoestima, ansiedade e isolamento social.

Para mitigar esses efeitos, médicos assistentes frequentemente indicam cirurgias plásticas reparadoras, como dermolipectomia, mamoplastia, braquioplastia e cruroplastia, que têm caráter funcional e terapêutico, indo além de meros procedimentos estéticos.

Apesar da prescrição médica, operadoras de planos de saúde frequentemente negam a cobertura dessas cirurgias, alegando que são "estéticas" ou não estão previstas no rol da ANS. Essa prática, que compromete a continuidade do tratamento da obesidade, tem sido amplamente questionada no Judiciário, com decisões que reforçam a proteção aos direitos dos consumidores.

A posição do Judiciário: Tema 1.069/STJ e súmulas do TJ/SP

O STJ consolidou, no julgamento do Tema 1.069, a obrigatoriedade de cobertura de cirurgias plásticas reparadoras pós-bariátricas, quando indicadas pelo médico assistente, por serem parte integrante do tratamento da obesidade mórbida. A tese fixada estabelece que:

"(i) é de cobertura obrigatória pelos planos de saúde a cirurgia plástica de caráter reparador ou funcional indicada pelo médico assistente, em paciente pós-cirurgia bariátrica, visto ser parte decorrente do tratamento da obesidade mórbida, e, (ii) havendo dúvidas justificadas e razoáveis quanto a o caráter eminentemente estético da cirurgia plástica indicada ao paciente póscirurgia bariátrica, a operadora de plano de saúde pode se utilizar do procedimento da junta médica, formada para dirimir a divergência técnicoassistencial, desde que arque com os honorários dos respectivos profissionais e sem prejuízo do exercício do direito de ação pelo beneficiário, em caso de parecer desfavorável à indicação clínica do médico assistente, ao qual não se vincula o julgador"2.

Essa orientação é reforçada pelas súmulas 97 e 102 do TJ/SP, que dispõem, respectivamente:

Súmula 97: Não pode ser considerada simplesmente estética a cirurgia plástica complementar de tratamento de obesidade mórbida, havendo indicação médica.

Súmula 102: Havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob o argumento da sua natureza experimental ou por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS.

Recentemente, a lei 14.454/22 ampliou a cobertura obrigatória, exigindo apenas que o procedimento tenha eficácia comprovada, recomendação da Conitec ou de órgãos internacionais renomados.

Esses fundamentos legais e jurisprudenciais demonstram que as negativas das operadoras, baseadas em interpretações restritivas do contrato ou do rol da ANS, são abusivas e contrariam a boa-fé objetiva e a função social do contrato, princípios basilares do CDC (art. 51).

Condutas abusivas das operadoras

Casos analisados pelo TJ/SP revelam um padrão preocupante nas condutas das operadoras3. Beneficiários que realizaram cirurgia bariátrica enfrentaram negativas de cobertura para procedimentos reparadores, apesar de laudos médicos e psicológicos atestarem a necessidade terapêutica.

As operadoras justificam suas recusas com argumentos frágeis, como:

  • Caráter estético: Alegaram que as cirurgias, como mamoplastia ou dermolipectomia de braços e coxas, eram meramente estéticas, ignorando os impactos funcionais e psicológicos.
  • Ausência no rol da ANS: Sustentaram que os procedimentos não estavam listados no rol, desconsiderando a súmula 102 do TJ/SP e a lei 14.454/22.
  • Falta de comprovação de risco: Exigiram provas de risco iminente à saúde, mesmo quando laudos médicos detalhavam complicações como dermatites e abalo psicológico.

Essas condutas, frequentemente marcadas por formalismo excessivo, forçam os beneficiários a recorrer ao Judiciário, agravando sua vulnerabilidade física e emocional.

Em um dos casos, a autora, após perder 46kg4, enfrentava dermatites recorrentes e baixa autoestima, mas a operadora autorizou apenas a dermolipectomia abdominal, negando outros procedimentos essenciais. Outro caso versou sobre paciente que realizou cirurgia de redução de estômago com perda de 25Kg, cujo laudo de exame de mamografia apresentou cisto em mama esquerda e calcificações além da dermocalasia; a operadora negou cobertura à cirurgia reparadora pós-bariátrica ao argumento de que portaria caráter meramente estético5.

Violação à dignidade da pessoa humana e à proteção constitucional da saúde

A negativa de cobertura para cirurgias reparadoras pós-bariátricas, além de ferir princípios consumeristas e contratuais, representa uma afronta direta à CF/88, sobretudo aos direitos fundamentais à saúde (art. 6º e 196) e à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Esses procedimentos não são meramente acessórios ou opcionais, mas parte integrante do tratamento de uma condição clínica crônica: a obesidade.

O processo de emagrecimento severo, obtido por intervenção bariátrica, frequentemente impõe ao paciente sequelas físicas - como infecções cutâneas e limitações funcionais - e psicológicas, como ansiedade social, baixa autoestima e até depressão. Nesse contexto, negar a continuidade do tratamento mediante a recusa das cirurgias reparadoras equivale a interromper arbitrariamente o dever assistencial do plano, submetendo o beneficiário a um sofrimento evitável.

Sob essa ótica, a recusa contratual revela-se não apenas ilegal, mas inconstitucional, pois ignora a centralidade do ser humano e o mínimo existencial em saúde. Trata-se de uma forma de violência institucional que desumaniza o paciente, tratando-o como um custo a ser evitado e não como sujeito de direitos.

O dano moral decorrente da recusa indevida

A jurisprudência do STJ, como no REsp 986.947/RN, reconhece que a recusa indevida de cobertura por planos de saúde gera dano moral in re ipsa, ou seja, presumido, por agravar a aflição psicológica de beneficiários já em condição de vulnerabilidade - destaca-se nesse precedente a majoração da verba indenizatória para o valor de R$20.000,00, antes fixada em R$ 5.000,00 pelo Tribunal Estadual.

Alguns casos apontam um padrão condenatório com indenizações firmadas em torno de R$ 10.000,00, decorrentes de abalo psicológico (negativa de cobertura intensifica sentimentos de angústia, baixa autoestima e depressão, especialmente em pacientes pós-bariátricos que enfrentam constrangimentos sociais devido ao excesso de pele), prejuízo físico (complicações como infecções cutâneas e dificuldades de higienização, agravadas pela demora no tratamento) desrespeito contratual (violação da boa-fé objetiva, ao limitar o acesso a tratamentos essenciais, compromete o próprio objeto do contrato de plano de saúde).

Importante a análise sob a perspectiva da litigância predatória reversa, destacado pelo ministro Herman Benjamin6, pois as negativas das operadoras revelam uma prática sistemática de descumprimento de obrigações legais e jurisprudenciais, como as fixadas no Tema 1.069/STJ e nas súmulas 97 e 102 do TJ/SP. Essa conduta, que força consumidores a litigar repetidamente para garantir direitos já consolidados, caracteriza uma estratégia que utiliza o Judiciário como instrumento de postergação.

As operadoras, cientes da robustez da jurisprudência consumerista, recorrem a argumentos frágeis ou interpõem recursos protelatórios, sabendo que o custo financeiro de indenizações irrisórias (como os R$ 10.000,00 fixados) é inferior ao custo imediato de procedimentos.

Essa prática não apenas agrava o sofrimento dos beneficiários, mas também sobrecarrega o Judiciário, comprometendo sua eficiência, como alertado pela recomendação 127/22 do CNJ7. A litigância predatória reversa, nesse contexto, transforma o dano moral em uma consequência direta de uma estratégia empresarial que prioriza o lucro em detrimento da saúde e da boa-fé contratual.

A sobrecarga do Judiciário e o papel da advocacia

A resistência sistemática das operadoras em cumprir suas obrigações contratuais contribui para a judicialização da saúde suplementar, sobrecarregando o Poder Judiciário.

Como apontado no julgamento do Tema 1.069/STJ, as operadoras frequentemente utilizam argumentos genéricos ou cláusulas abusivas para negar cobertura, forçando consumidores a buscar amparo judicial. Essa prática, que pode ser comparada à litigância predatória reversa, prejudica não apenas os beneficiários, mas também a eficiência do sistema judicial.

Nesse contexto, a advocacia especializada desempenha um papel crucial na defesa dos direitos dos consumidores, para garantir que beneficiários obtenham a cobertura devida e indenizações condizentes com os traumas suportados.

Conclusão: Em busca de justiça e equilíbrio contratual

As negativas abusivas de cirurgias reparadoras pós-bariátricas pelas operadoras de planos de saúde configuram uma afronta aos princípios do CDC e à função social do contrato.

A jurisprudência consolidada, especialmente o Tema 1.069/STJ e as súmulas 97 e 102 do TJ/SP, assegura aos beneficiários o direito ao custeio de procedimentos indicados por médicos assistentes, além de indenizações por danos morais decorrentes de recusas indevidas.

Consumidores que enfrentam negativas de cobertura não devem hesitar em buscar orientação jurídica especializada para proteger seus direitos contra essas práticas abusivas, de modo a obter acesso a tratamentos essenciais e reparação pelos prejuízos sofridos.

______________

1 Disponível em: https://www.gov.br/ans/pt-br/assuntos/consumidor - acesso em 28/4/25

2 Disponível em: https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=1069&cod_tema_final=1069 - acesso em 28/04/25

3 P.ex: TJSP; Apelação Cível 1108136-70.2020.8.26.0100; Relator (a): Galdino Toledo Júnior; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 42ª Vara Cível; Data do Julgamento: 08/04/2024; Data de Registro: 08/04/2024; TJSP; Apelação Cível 1057421-90.2021.8.26.0002; Relator (a): Corrêa Patiño; Órgão Julgador: 2ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional II - Santo Amaro - 11ª Vara Cível; Data do Julgamento: 03/07/2024; Data de Registro: 03/07/2024, entre outros citados ao longo do artigo

4 TJSP; Apelação Cível 1108136-70.2020.8.26.0100; Relator (a): Galdino Toledo Júnior; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 42ª Vara Cível; Data do Julgamento: 08/04/2024; Data de Registro: 08/04/2024)

5 TJSP; Apelação Cível nº 1006586-98.2021.8.26.0002; Relator JAMES SIANO, 5ª Câmara de Direito Privado.

6 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/426488/ministro-herman-alerta-para-litigancia-abusiva-reversa-por-empresas - acesso em 07/4/25

7 Art. 1o Recomendar aos tribunais a adoção de cautelas visando a coibir a judicialização predatória que possa acarretar o cerceamento de defesa e a limitação da liberdade de expressão.

Daniel Santos de Freitas

VIP Daniel Santos de Freitas

Bacharel em Direito, Pós-graduado em Direito Administrativo, Membro das Comissões de Direito Administrativo, Consumidor, Constitucional, Processo Civil da OAB-SP e autor de artigos jurídico

Victor Henrique Pinto Pereira

Victor Henrique Pinto Pereira

Advogado com experiência em demandas cíveis, com ênfase em Direito Médico.

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