Adoecer não é fraqueza: A urgência de transformar ambientes de trabalho tóxicos
Análise da inclusão de riscos psicossociais na NR-1 e as mudanças estruturais necessárias nas relações de trabalho para enfrentar os mais de 472 mil afastamentos por transtornos mentais.
quinta-feira, 8 de maio de 2025
Atualizado às 09:25
O celular vibra incessantemente fora do horário comercial. As metas parecem propositalmente inatingíveis. O banco de horas acumula dezenas de horas extras que jamais serão compensadas. As reuniões são arenas de tensão e humilhação velada. O espaço para vida pessoal, lazer e autocuidado desaparece gradualmente. Este não é o roteiro de um filme distópico sobre o mundo corporativo, mas a realidade cotidiana de milhões de trabalhadoras e trabalhadores brasileiros submetidos a um modelo de gestão tóxico que os empurra para o adoecimento físico e mental.
Os números são alarmantes e revelam uma epidemia silenciosa: mais de 472 mil afastamentos por transtornos mentais foram registrados somente em 2024. O esgotamento (burnout), a ansiedade e a depressão relacionados ao trabalho estão oficialmente incluídos na LDRT - Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho desde o final de 2023. Trabalhadoras e trabalhadores estão adoecendo em massa, e a estrutura produtiva capitalista continua tratando o problema como questão individual, responsabilizando as próprias vítimas pelo seu sofrimento.
Neste contexto, uma mudança significativa surge no horizonte regulatório brasileiro. A atualização da NR-1 - Norma Regulamentadora 1 do Ministério do Trabalho e Emprego, publicada por meio da portaria MTE 1.419 em 27/8/24, entrará oficialmente em vigor em 26/5/25. Esta atualização inclui pela primeira vez a gestão de "riscos psicossociais" no PGR - Programa de Gerenciamento de Riscos das empresas. Na prática, as organizações serão obrigadas a identificar, avaliar e adotar medidas para prevenir os impactos desses riscos, assim como já fazem com riscos físicos, químicos e biológicos. Um avanço normativo importante, mas que, por si só, não garante a transformação das relações de trabalho.
A inclusão dos riscos psicossociais na NR-1 representa um reconhecimento oficial de que ambientes tóxicos e práticas gerenciais abusivas não são meros "desafios corporativos" ou "exigências do mercado competitivo", mas fatores concretos de adoecimento que precisam ser tratados com a mesma seriedade que riscos físicos evidentes. Esta mudança normativa desloca, ao menos parcialmente, a responsabilidade do indivíduo para a organização do trabalho - uma vitória importante, ainda que incompleta, para quem defende uma visão estrutural e coletiva da saúde do trabalhador.
No entanto, a questão central persiste: será que o problema se resolverá com a implementação de protocolos burocráticos e medidas paliativas, sem enfrentar as contradições fundamentais de um sistema de trabalho cada vez mais precarizado, intensificado e desregulamentado? A diretora da ABRH - Associação Brasileira de Recursos Humanos, Sandra Gioffi, afirma que "não bastam ações pontuais. É necessário construir uma cultura organizacional baseada em confiança, respeito e segurança psicológica". Mas como construir essa cultura em um contexto econômico que continua premiando o curto prazo, a redução de custos e a maximização de lucros acima da dignidade humana?
O paradoxo é evidente: enquanto se discute saúde mental, as jornadas se tornam mais extensas e intensas, a vigilância tecnológica sobre os trabalhadores se amplia, os vínculos empregatícios se precarizam e a pressão por resultados se intensifica. É como tentar curar uma doença enquanto se alimenta continuamente o vírus que a causa. Mesmo as empresas que implementam programas de bem-estar frequentemente o fazem mais como estratégia de marketing ou para cumprir exigências legais do que por genuína preocupação com a saúde de seus colaboradores.
Dados do TST revelam que, somente em 2022, foram ajuizadas mais de 77 mil ações trabalhistas relacionadas a assédio moral e mais de 4,5 mil a assédio sexual. Esses números, já alarmantes, provavelmente representam apenas a ponta do iceberg, considerando que muitas vítimas não denunciam por medo de retaliações ou perda do emprego. A cultura do assédio está profundamente enraizada em muitas organizações e se manifesta sob diversas formas: desde cobranças abusivas e controle excessivo até humilhações públicas e isolamento deliberado.
O médico psiquiatra Valdir de Aquino Ximenes, do TST, defende que "organizações públicas e privadas devem implementar políticas de combate à cultura do assédio moral e sexual", reconhecendo que "situações de humilhação, estresse e cobranças excessivas e obsessivas por resultados e produtividade são situações capazes de gerar ou agravar problemas mentais". Esta constatação, vinda de um profissional da saúde vinculado à mais alta instância trabalhista do país, demonstra o reconhecimento institucional da relação direta entre práticas gerenciais tóxicas e adoecimento mental.
Um elemento particularmente relevante da discussão é o papel das novas gerações na contestação de modelos de gestão ultrapassados. Como observa Sandra Gioffi, "esses jovens não toleram ambientes autoritários, pouco saudáveis ou incoerentes com valores humanos. Eles buscam propósito, liberdade, autenticidade e espaços onde possam ser respeitados como indivíduos, e não apenas como 'recursos'". Esta mudança geracional pode ser um catalisador importante para transformações mais profundas nas relações de trabalho, pressionando organizações a repensar suas práticas sob pena de perderem talentos.
Contudo, é ingênuo depositar esperanças apenas na resistência individual ou geracional. A transformação das condições de trabalho que produzem adoecimento mental passa necessariamente por uma atuação institucional forte, com fiscalização efetiva do cumprimento da NR-1 atualizada, atuação proativa do Ministério Público do Trabalho, fortalecimento dos sindicatos e, principalmente, conscientização coletiva de trabalhadoras e trabalhadores sobre seus direitos e sobre o fato de que adoecer não é fraqueza, mas resposta natural a ambientes laborais patológicos.
É fundamental compreender que a saúde mental no trabalho não é apenas um tema de "qualidade de vida", mas uma questão de direitos humanos fundamentais. O direito ao trabalho digno, previsto na CF/88 e em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, inclui necessariamente o direito a não adoecer física ou mentalmente em decorrência do exercício profissional. Qualquer ambiente de trabalho que produza sistematicamente ansiedade, estresse crônico, depressão ou esgotamento está, portanto, violando direitos constitucionais.
A atualização da NR-1 representa um avanço significativo ao reconhecer formalmente os riscos psicossociais como passíveis de gerenciamento e prevenção. Uma novidade importante é que, conforme anunciado pelo ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, em 24/4/25, embora a norma entre em vigor em 26/5/25, sua implementação começará em caráter educativo e orientativo. As autuações por parte da inspeção do trabalho só serão iniciadas a partir de 26/5/26, um ano após a entrada em vigor da norma. Este período de transição demonstra a complexidade do tema e a necessidade de preparação adequada das empresas, mas não deve servir como pretexto para postergar ações necessárias.
No entanto, precisamos ir além da normatização e enfrentar as causas estruturais do adoecimento mental no trabalho: a precarização crescente das relações trabalhistas, a cultura de disponibilidade permanente intensificada pela tecnologia, a pressão desmedida por resultados e o estímulo à competição predatória entre colegas. Sem este enfrentamento, corremos o risco de tratar apenas sintomas, enquanto a doença continua se alastrando.
Por fim, é importante reconhecer que ambientes de trabalho saudáveis não são apenas um imperativo ético ou legal, mas também estratégico. A insistência em modelos de gestão tóxicos que produzem adoecimento e rotatividade gera custos enormes com afastamentos, processos judiciais, perda de talentos e queda de produtividade. Paradoxalmente, as organizações que insistem em práticas laborais adoecedoras pensando em maximizar resultados acabam minando sua própria eficiência a médio e longo prazo. A saúde mental no trabalho não é, portanto, um custo, mas um investimento que beneficia tanto trabalhadores quanto organizações.
A inclusão dos riscos psicossociais na NR-1 abre uma janela de oportunidade para repensarmos profundamente as relações de trabalho no Brasil. Cabe a nós - trabalhadores, sindicalistas, advogados, gestores, auditores fiscais e formuladores de políticas públicas - transformar esta oportunidade em mudanças concretas que reduzam o sofrimento mental e promovam ambientes laborais verdadeiramente dignos. O trabalho pode e deve ser fonte de realização e desenvolvimento humano, não de adoecimento e alienação. Esta é a transformação pela qual precisamos lutar coletivamente.