MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Filiação socioafetiva: Avanços e desafios no Direito Sucessório

Filiação socioafetiva: Avanços e desafios no Direito Sucessório

A filiação socioafetiva garante igualdade sucessória, mas ainda carece de normas claras. O planejamento sucessório é essencial para evitar conflitos entre herdeiros e insegurança jurídica.

quinta-feira, 8 de maio de 2025

Atualizado às 09:26

1. Introdução

Define-se filiação socioafetiva como o instituto jurídico que reconhece a maternidade e/ou paternidade com base no afeto, sem a exigência de vínculo biológico. Tal norma possibilita que tanto os pais, quanto os filhos, adquiram os mesmos direitos pessoais e patrimoniais existentes em uma relação pautada na consanguinidade.

A partir do reconhecimento, os pais passam a ter o poder familiar sobre seus filhos socioafetivos (caso estes sejam menores), o que gera reflexos jurídicos, pautados em direitos e deveres, podendo ser exemplificados como: guarda, alimentos, benefícios previdenciários, direito à herança, dentre outros.

Com a promulgação da CF/88, o princípio da afetividade passa a integrar o ordenamento jurídico, atribuindo valor ao afeto, o que frutuosamente gera mudanças significativas no conceito de família e nas modalidades advindas de tal instituição social.

Partindo deste pressuposto, e por se tratar de um tema relevante e atual, principalmente, no que tange ao Direito das Famílias e Sucessões, faz-se pertinente o estudo da matéria, considerando que o artigo tem como objetivo analisar, por meio da metodologia de pesquisa bibliográfica, os impactos jurídicos que esta forma de reconhecimento de parentalidade gera no direito sucessório, abordando concomitantemente o conceito de socioafetividade, as formas de reconhecimento da filiação socioafetiva, os direitos sucessórios envolvidos e as implicações jurídicas.

2. Reconhecimento da filiação socioafetiva

Por certo, a sociedade molda-se através de constantes evoluções conforme as exigências de tempo e espaço. Esta construção gera por si, mudanças significativas no Direito. Em uma época extremamente globalizada, as transformações acontecem de forma rápida, afetando as relações interpessoais e jurídicas, fazendo com que o Direito, especialmente o Direito das Famílias e Sucessões, preconize a adaptação às mudanças sociais na busca de auxílio ao Judiciário, visando uma prestação jurisdicional de forma justa e eficaz. Assim se estabeleceu com o conceito de família, ao abolir uma definição patriarcal e heteronormativa e aderir a novos conceitos, como filiação socioafetiva e multiparentalidade.

O CC/02 não prevê a filiação socioafetiva de forma expressa, entretanto, a CF/88 em seu art. 227, §6° prevê a igualdade entre os filhos no que diz respeito a direitos e deveres, independentemente do vínculo biológico ou adotivo. Pelo princípio da igualdade entre os filhos, a socioafetividade tem sido reconhecida pela jurisprudência, a fim de incluir os filhos socioafetivos como sujeitos ativos e partícipes de tais direitos e deveres.

Em conformidade com Maria Berenice Dias (2015) "...a jurisprudência percebeu a necessidade de atentar ao princípio do melhor interesse e começou a estabelecer vínculo de filiação a quem desempenha as funções parentais. Tal fez surgir uma nova figura jurídica, a filiação socioafetiva, que se sobrepôs tanto à realidade biológica como a registral."

Partindo de tal limiar, é possível afirmar que a filiação socioafetiva vai além do vínculo biológico, validando o afeto e a convivência entre duas pessoas como requisitos a serem considerados neste instituto.

Dessa forma, o STJ e o STF, têm concedido aos filhos socioafetivos os mesmos direitos de um filho biológico no que tange a sucessão, como: direito a herança legítima; ser beneficiado em testamento; e, direito a herança em casos de multiparentalidade.

O STF conclui no Tema 622, que, "a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios".

De tal maneira, é inegável que a filiação socioafetiva passou a incorporar o ordenamento jurídico brasileiro, e a ser reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência, abrindo a possibilidade para o reconhecimento de vínculo, tanto biológico, quanto afetivo de forma concomitante.

3. A filiação socioafetiva e os direitos sucessórios

Anteriormente a CF/88, havia distinção entre filhos "legítimos", "ilegítimos" e "adotivos", o que gerava desigualdade sucessória e registral. Conforme supramencionado, a partir da Constituição cidadã, o princípio da igualdade vedou a distinção entre filhos, dentro e fora do casamento, ou adotivos, garantindo isonomia entre os descendentes perante a lei e desconstituindo qualquer hierarquia entre eles.

Com base no entendimento consolidado do STF e STJ, o princípio da igualdade passou a alcançar os filhos socioafetivos, garantindo o direito à herança legítima, constituindo esta 50% do patrimônio; e a concorrência com os demais herdeiros sem distinção, conforme reza o art. 1846 do CC, desde que o vínculo esteja devidamente reconhecido.

A filiação socioafetiva, pode ser reconhecida tanto judicial quanto extrajudicialmente. Na esfera extrajudicial, o reconhecimento é viável por meio de escritura pública lavrada em cartório, desde que atendidos os requisitos legais. Por outro lado, a via judicial torna-se necessária nos casos em que há controvérsias ou inviabilidades na formalização extrajudicial.

Sobre o tema, esclarece Pereira:

Mas é o reconhecimento que torna conhecido o vínculo da paternidade, que transforma aquela situação de fato em relação de direito, que torna objetiva no mundo jurídico uma tessitura até então meramente potencial. (Pereira, 2006, p. 208)

Assim, a partir do reconhecimento do vínculo, o filho socioafetivo passa a compor o rol de herdeiros necessários, com direito de herança, de acordo com a ordem de vocação hereditária estabelecida no art. 1829 do CC.

4. As consequências jurídicas da filiação socioafetiva no Direito Sucessório

Embora a filiação socioafetiva seja reconhecida no ordenamento jurídico, conforme vimos nos tópicos anteriores, o tema ainda gera discussões e enfrenta desafios, tendo em vista suas consequências na prática do Direito Sucessório.

Entre os entraves advindos está a falta de previsão legal, de forma clara e específica, dispondo sobre a forma de produção de provas do vínculo. Tal omissão legal gera insegurança jurídica, ao passo que o tema fica a mercê da interpretação dos tribunais, que têm utilizado critérios distintos para prolatarem as decisões. A ausência de critérios específicos pode dificultar a comprovação do vínculo, restando apenas provas subjetivas, o que pode gerar conflitos de interpretação, além de arrastar o processo por longos anos sobrecarregando o Judiciário.

Esta instabilidade pode, no entanto, gerar impactos preocupantes no âmbito do Direito Sucessório, visto a possibilidade de conflitos de interesse entre os herdeiros biológicos e socioafetivos, além da possível deturpação da finalidade deste instituto jurídico, ao passo que, indivíduos podem utilizá-lo para pleitearem o reconhecimento, com o objetivo meramente patrimonial.

Igualmente, a filiação socioafetiva pode ser reconhecida pós mortem, o que acaba por gerar contestações, advindas de herdeiros biológicos, afetando diretamente a validade da herança. Nesse caso, existe uma preocupação ainda maior, pois a filiação socioafetiva exige consentimento das partes. Na ausência de testamento que valide tal filiação, seria juridicamente seguro admitir o vínculo, baseado em elementos subjetivos e no relato unilateral de uma das partes envolvidas na demanda?

Baseados nestes vieses, os juristas têm recomendado cada vez mais a elaboração de um planejamento sucessório, na busca de evitar disputas entre herdeiros biológicos e socioafetivos, definindo a divisão dos bens de forma clara e objetiva e mitigando a possibilidade de questionamentos judiciais futuros.

De acordo com Dias (2014, p. 389), "passou a se chamar de planejamento sucessório a adoção de uma série de providências visando preservar a autonomia da vontade e prevenir conflitos futuros".

Neste sentido, Tartuce argumenta que:

O testamento representa, na seara do Direito das Sucessões, a principal forma de expressão e exercício da autonomia privada, da liberdade individual, como típico instituto mortis causa. (Tartuce ,2014, p.350)

Portanto, o planejamento sucessório surge como uma alternativa imprescindível na efetivação da vontade do autor da herança, garantindo maior possibilidade de cumprimento do testamento e mitigando a possibilidade de litígios prolongados.

5. Conclusão

Sem dúvida, a filiação socioafetiva trouxe um avanço significativo no Direito das Famílias e Sucessões, no que se refere à valoração do afeto como instrumento de reconhecimento desse tipo de parentalidade. Com fundamento em nossa Carta Magna, o princípio da afetividade tem desempenhado o importante papel de assegurar a isonomia entre filhos socioafetivos, adotivos e biológicos, nos graus de direitos e obrigações, fazendo valero princípio da dignidade da pessoa humana.

Entretanto, a falta de regulamentação jurídica de forma clara e objetiva gera insegurança jurídica, abrindo o leque para interpretações diversas, resultando em conflitos severos entre os herdeiros. A utilização de provas estritamente subjetivas acaba por gerar litígios prolongados e questionamentos à validade da sucessão. Dessa forma, o planejamento sucessório surge como ferramenta essencial e eficaz, que garante a execução plena da vontade do autor da herança e evita os entraves entre os herdeiros.

A filiação socioafetiva trouxe uma nova perspectiva para o Direito das Sucessões, conferindo primazia ao afeto como fundamento de vínculos familiares. Diante desta realidade, é imperativo que haja uma regulamentação precisa e objetiva, capaz de trazer segurança jurídica, prevenir conflitos, equilibrar os direitos entre os herdeiros e, acima de tudo, garantir que o direito continue a acompanhar as transformações sociais com objetivo de oferecer um serviço jurisdicional cada vez mais eficaz e justo.

___________

1 ALMEIDA, Liusa Fioravante. Socioafetividade e o direito sucessório. 10 nov. 2020. Disponível em: https://ibdfam.org.br/index.php/artigos/1597/Socioafetividade+e+o+direito+sucess%C3%B3rio. Acesso em: 20 mar. 2025.

2 BRASIL. Código Civil de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 24 mar. 2025.

3 BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 24 mar. 2025

4 CALDERÓN, Henrique, Reflexos da Decisão do STF de acolher Socioafetividade e Multiparentalidade, 2016. Acesso em: 23 de marc de 2025.

5 DIAS, Maria Berenice. A Família e seus Afetos. 08 mar 2015. Disponível em: https://berenicedias.com.br/a-familia-e-seus-afetos/. Acesso em: 23 marc. 2025.

6 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Direito de família. In: __ Instituições de Direito Civil. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

7 TARTUCE, Flavio. Direito Civil: Direito das Sucessões. 7 ed. São Paulo: Método, 2014.

Wender Aguiar

VIP Wender Aguiar

Acadêmico de Direito e militante em Direito de Família e Sucessões. Premiado pelo IBDFAM. Produz conteúdo jurídico e atua na promoção do conhecimento e da cidadania nas relações familiares.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca