O desemprego tecnológico e a reinvenção do trabalho jurídico na era da IA
Vivemos um momento histórico em que a IA - inteligência artificial não é mais uma promessa futurista, mas uma realidade que avança de forma avassaladora sobre o mercado de trabalho global.
sexta-feira, 9 de maio de 2025
Atualizado às 09:14
Relatórios recentes do Fórum Econômico Mundial (2023) preveem que até 2027 cerca de 83 milhões de empregos podem ser eliminados globalmente em razão da automação e da IA, ao passo que 69 milhões de novas funções irão emergir. No setor jurídico, tradicionalmente resistente à inovação disruptiva, este impacto já começa a ser sentido.
A advocacia, profissão secular pautada pelo conhecimento técnico e pela habilidade interpretativa, enfrenta agora um divisor de águas. Isso porque a automação de tarefas repetitivas e o uso de ferramentas inteligentes estão remodelando a essência do trabalho jurídico. Softwares e soluções especializadas já realizam triagens processuais, petições iniciais padronizadas, cálculos e análises contratuais com precisão por meio da inteligência artificial.
A princípio, essa transformação parece positiva. Afinal, quem nunca sonhou em se livrar das atividades mecânicas e focar no que realmente importa: a estratégia jurídica, a argumentação criativa, o contato humano com o cliente?
No entanto, o outro lado da moeda é preocupante. A IA não apenas "ajuda", mas efetivamente substitui. Programadores juniores já estão sentindo essa realidade - substituídos por assistentes automáticos mais rápidos e mais baratos. No Direito, advogados iniciantes e auxiliares administrativos estão preocupados: será que vão seguir o mesmo caminho?
De acordo com um estudo da McKinsey & Company (2023), cerca de 23% das tarefas hoje desempenhadas por profissionais do setor jurídico podem ser automatizadas com tecnologias já existentes. Esse número tende a crescer com o avanço da IA generativa e da RPA - automação robótica de processos.
O fim do trabalho como conhecemos?
A opinião que compartilho aqui é direta: estamos assistindo não apenas a uma transformação do trabalho, mas possivelmente ao fim do trabalho como o conhecemos desde o surgimento do capitalismo industrial.
O modelo atual, em que o trabalhador vende sua força laboral em troca de salário, parece insustentável quando 80% das tarefas são automatizadas e 90% da população fica economicamente obsoleta.
Alguns especialistas, como o historiador Yuval Noah Harari e o economista Daniel Susskind, apontam para soluções como a Renda Básica Universal - uma distribuição direta de riqueza para garantir consumo e estabilidade social.
No Brasil, isso exigiria uma revisão completa do nosso sistema assistencial e tributário, que hoje se baseia majoritariamente na taxação da renda (IR e INSS). Como financiar a assistência a uma população majoritariamente desocupada se a base contributiva desaparece?
No setor jurídico, o impacto será particularmente profundo. Áreas mais técnicas e processuais - como Direito Tributário, Previdenciário e Trabalhista - em que o volume de casos e a repetição de teses são elevados, sofrerão mais. Ferramentas de IA serão capazes de atender milhares de clientes simultaneamente, reduzindo a necessidade de grandes equipes jurídicas.
As ferramentas de IA já permitem que escritórios automatizem o fluxo processual, eliminando tarefas que antes ocupavam dezenas de colaboradores. É inegável que isso aumenta a eficiência e reduz custos, mas também reduz postos de trabalho. A pergunta que paira é: para onde irão esses profissionais?
A resposta está na requalificação e na adaptação. Profissionais do Direito precisarão dominar ferramentas tecnológicas, compreender os limites éticos da IA, atuar na proteção de dados, na regulação da inteligência artificial e na defesa dos direitos fundamentais em um mundo digitalizado. Em outras palavras, as funções não desaparecem, mas se transformam.
Reconfiguração ou colapso?
O otimismo tecnológico nos leva a crer que novas demandas surgirão. O advogado do futuro será menos executor de tarefas e mais estrategista, consultor e especialista em temas complexos que exigem interpretação humana. Mas é preciso reconhecer que essa transição não será suave nem universal. A demanda por profissionais altamente qualificados aumentará, enquanto aqueles que não conseguirem se adaptar ficarão à margem.
A curto prazo, veremos um aumento na desigualdade no setor jurídico: grandes bancas e escritórios digitais que investem em tecnologia e IA crescerão, enquanto escritórios tradicionais, dependentes de mão de obra intensiva, perderão competitividade.
Num cenário mais radical, precisamos considerar a possibilidade real de uma jornada de trabalho reduzida para toda a sociedade. Se a IA pode fazer mais com menos, por que insistir nas 40 horas semanais? A proposta de jornadas de 20 horas semanais, ou menos, já ganha força entre economistas progressistas e futuristas. Isso exigirá uma mudança cultural profunda: desapegar-se da centralidade do trabalho na vida humana e repensar a finalidade da economia.
Nenhuma transformação dessa magnitude pode ser deixada ao livre jogo do mercado. Será necessária uma reestruturação do Estado para enfrentar o desemprego tecnológico em massa. Precisaremos de novas políticas públicas que garantam proteção social, educação tecnológica e distribuição da riqueza gerada pela automação.
O Fórum Econômico Mundial defende um pacto global pela requalificação, estimando que 1 bilhão de pessoas precisará de novas competências até 2030. No Brasil, isso se traduz na necessidade urgente de incluir disciplinas de tecnologia, ética da IA e pensamento crítico nos cursos de Direito, além de programas governamentais de qualificação digital.
Oportunidade na crise
Apesar do cenário desafiador, enxergo aqui uma oportunidade histórica para a advocacia. Ao automatizar 80% das tarefas chatas e repetitivas, os profissionais poderão dedicar mais tempo ao que realmente importa: a busca pela justiça, a defesa dos vulneráveis e a construção de soluções jurídicas criativas. Podemos finalmente abandonar a lógica da produção em massa de peças jurídicas para adotar uma advocacia mais humana, estratégica e ética.
Empresas de softwares têm um papel importante nesta transição, oferecendo as ferramentas que permitem aos escritórios se tornarem mais ágeis e eficientes sem perder o controle ético e jurídico sobre seus processos.
O desemprego tecnológico, impulsionado pela IA, não é uma ameaça distante - é uma realidade que já bate à porta dos profissionais do Direito. A escolha que temos diante de nós é clara: resistir às mudanças e assistir ao colapso do modelo atual, ou liderar a construção de um novo contrato social, onde o trabalho, a renda e a cidadania sejam redefinidos.
A advocacia, mais do que nunca, está sendo conclamada a desempenhar um papel protagonista nessa transformação. Se conseguirmos direcionar o poder da tecnologia para o fortalecimento dos direitos e da democracia, poderemos transformar esta crise em uma oportunidade de renascimento profissional e social.
Mas para isso precisaremos mais do que boas intenções: será necessário coragem política, inovação institucional e, acima de tudo, a capacidade de imaginar um mundo onde o valor humano não dependa mais da sua capacidade de gerar lucro para outrem, mas da sua contribuição para o bem-estar coletivo.
Está na hora de começarmos essa conversa com seriedade. Afinal, como advogados e juristas, nossa missão sempre foi - e sempre será - lutar por justiça em tempos de transformação.