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Valor da causa na tutela em caráter antecedente e coerência processual

Uma discussão crítica sobre a possibilidade de readequar o valor da causa na tutela antecedente, à luz da lógica do art. 303 do CPC e da coerência entre urgência e mérito processual.

sexta-feira, 9 de maio de 2025

Atualizado às 09:43

A técnica da tutela de urgência antecipada em caráter antecedente, prevista no art. 303 do CPC, representa um avanço pragmático do legislador no enfrentamento de litígios que demandam providência imediata antes mesmo da estruturação completa da demanda. Sua lógica é clara: admite-se a formulação sumária do pedido, com exposição abreviada dos fatos e fundamentos jurídicos, para que o magistrado possa analisar o perigo da demora e o risco ao resultado útil do processo.

Contudo, a instrumentalidade dessa técnica tem sido erodida por decisões judiciais que lhe impõem uma rigidez incompatível com a sua teleologia. Uma das manifestações mais evidentes desse equívoco está na exigência de que, já no ajuizamento da tutela antecedente, conste valor da causa exato, definitivo e correspondente ao proveito econômico da lide futura mesmo que o pedido principal sequer tenha sido formulado.

A norma do art. 303 não exige e nem poderia exigir que o valor da causa, nesse momento inaugural, reflita com precisão a extensão do conflito. Trata-se de uma petição preparatória, destinada exclusivamente à obtenção da medida urgente. A completude virá com a emenda obrigatória, após o pronunciamento judicial que acolha ou rejeite a tutela liminar.

O prazo de quinze dias ou cinco dias (de acordo com a concessão ou não da tutela em caráter antecedente) previsto no §1º do art. 303 existe justamente para isso: permitir a conversão do requerimento sumário em ação plenamente delineada, inclusive com a readequação do valor da causa, se necessário.

Não se trata de uma faculdade. Trata-se de uma exigência lógica. Se o sistema admite e exige a emenda posterior da inicial, não há qualquer fundamento para impedir que o valor da causa seja ajustado nesse momento, sobretudo quando decorre de uma redefinição objetiva do pedido.

Aliás, é o próprio juízo quem, com frequência, altera a natureza da demanda. Em caso recente enfrentado por esse articulista, o magistrado entendeu inicialmente que se tratava de ação de nulidade contratual, com valor de R$ 11 milhões, e exigiu complementação de custas com base nesse montante. Posteriormente, ao indeferir a liminar, afastou integralmente a tese de nulidade, restringindo a demanda ao plano indenizatório.

Ora, se o mérito foi redefinido pelo julgador, é não apenas admissível como juridicamente necessário que o valor da causa acompanhe essa alteração, do contrário, tem-se um processo regido por uma ficção que ignora os seus próprios marcos objetivos.

A própria estrutura do art. 303 reforça essa conclusão. O §4º deixa claro que o aditamento ocorrerá nos mesmos autos, sem incidência de novas custas processuais, o que revela a intenção do legislador de preservar a continuidade e a fluidez do procedimento, mesmo após ajustes na configuração da demanda.

Mais ainda, o §5º é cristalino ao admitir que, no momento da petição inicial da tutela antecedente, o valor da causa poderá ser apenas estimado, para efeitos de alçada. Ora, se a própria norma processual autoriza uma estimativa provisória, é porque presume que o valor real será definido com maior exatidão posteriormente, no momento da emenda prevista no §1º. Trata-se, pois, de uma autorização legislativa expressa para a readequação futura, não de uma falha formal a ser punida com indeferimentos automáticos ou exigências desproporcionais.

A questão, portanto, não está em saber se é possível alterar o valor da causa na emenda da petição inicial, mas sim em reconhecer que essa alteração é, em determinadas hipóteses, a única forma de preservar a coerência interna do processo. A oposição a isso revela apego desarrazoado à forma em detrimento da substância.

Em um sistema orientado pela boa-fé, cooperação e efetividade, não se pode admitir que a parte seja penalizada por ajustar o valor da causa à realidade imposta pelo próprio juízo. É dever do advogado agir com lealdade e técnica. E é dever do julgador interpretar o processo como instrumento, e não como fim em si mesmo.

Quando o art. 303 permite a emenda para formulação do pedido principal está, implicitamente, autorizando a revisão do valor da causa. Qualquer leitura contrária exige um esforço interpretativo digno de prestidigitação hermenêutica e, talvez, de algum desapego à lógica processual.

Mas há quem prefira essa via, ou seja, transformar o valor da causa em totem cerimonial, atribuindo-lhe a rigidez de cláusula pétrea mesmo quando o mérito da lide já foi, pelo próprio juízo, redefinido. Talvez se espere que o valor da causa preveja o futuro, antecipe a sentença e conheça, de antemão, o rumo que o julgador dará aos autos.

Se for assim, que se diga com todas as letras: o valor da causa não será mais fixado pelo autor com base no pedido, mas revelado por oráculo ou, mais realisticamente, por despacho de correção de ofício seguido de indeferimento liminar.

E quanto à emenda? Que fique para o teatro da forma, porque substância, afinal, é coisa menor.

E, convenhamos, se o juiz, já na decisão inaugural, não concedeu a tutela pleiteada após análise exauriente dos fundamentos e da prova, não há qualquer sentido lógico-processual em insistir com a mesma estrutura argumentativa, tampouco em manter um valor da causa que reflete uma tese rejeitada abertamente.

"Brigar" com convencimento já formado não é técnica; é teimosia revestida de formalismo.

Aos que ainda creem na função instrumental do processo, resta seguir sustentando o óbvio: que a tutela em caráter antecedente é, por definição, incompleta e que sua conversão em demanda plena implica natural readequação de todos os seus elementos. Inclusive, e principalmente, do valor da causa.

Moacir Jose Outeiro Pinto

VIP Moacir Jose Outeiro Pinto

Advogado Graduado pela Universidade Federal de Mato Grosso. Professor Universitário, Parecerista, Articulista, Palestrante - Sócio do Escritório de Advocacia Outeiro Pinto & Rosseti Advogados

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