"Da porteira para fora": E se a conta não fecha?
Os desafios do produtor rural além da produtividade: Quando a gestão fora do campo define o futuro do negócio.
sexta-feira, 9 de maio de 2025
Atualizado às 09:18
Enquanto tomava meu café neste domingo, uma manchete no noticiário chamou minha atenção: dois gigantes do agronegócio nacional haviam concretizado aquisições bilionárias de duas grandes fazendas.
Não foram as cifras que me inquietaram, mas o que não era dito pela matéria - o silêncio que reforçava uma perigosa ilusão: a de que o agro é sempre lucrativo.
As entrelinhas evidenciavam um fenômeno preocupante no senso comum e que se alastra há algum tempo: a romantização da situação financeira e econômica do setor primário.
Com grandes grupos realizando a expansão em escala bilionária de seus negócios, o agronegócio figurando como sustentáculo da economia nacional e os constantes anúncios de produtividade recorde, não é difícil deduzir o porquê de se ter cristalizado no imaginário coletivo, ainda que inconscientemente, a ideia de um "toque de Midas".
A realidade da grande maioria no campo, porém, é bem distinta.
O setor é formado em sua base por pequenos e médios agricultores que, ano após ano, vêm sendo esmagados pela alta nos insumos, maquinários, custos financeiros e por uma margem de lucro cada vez mais estreita. Muitas vezes, essa margem se dissipa logo no próximo ciclo, em um nicho que é amplamente volátil e de altíssimo risco.
Isso me fez refletir que, por vezes, esquece-se que o núcleo essencial do setor enfrenta uma batalha a cada safra, simplesmente para continuar na atividade e não deixar sucumbir o que, para muitos, é o legado de gerações.
Foi pensando nisso que, ao inaugurar este espaço no Migalhas, decidi compartilhar não um texto com viés acadêmico propriamente dito, mas reflexões sobre essa questão espinhosa e os desafios e ferramentas de que dispõe o produtor rural para conseguir enfrentá-la.
Uma tempestade perfeita
A safra 2024/25 escancarou uma tempestade perfeita.
Mesmo após apresentarem uma baixa de investimento em comparação à safra 2023/24, o alto custo de produção, combinado com a queda nos preços da principal oleaginosa nacional criou um cenário onde não basta cultivar com excelência para prosperar - é preciso manter rédeas curtas sobre o gerenciamento da atividade.
Em Mato Grosso, epicentro da produção nacional, os números revelam a dimensão do problema: um custo médio de R$ 7.118,38 por hectare contra uma receita de apenas R$ 6.507,98, resultando em déficit de R$ 610,40 por hectare. Multiplicado pela área média de uma propriedade, esse valor traduz-se em prejuízo substancial para milhares de famílias.1
E cada hectare deficitário representa mais que números: significa famílias endividadas, muitas noites em claro e legados ameaçados.
O aumento do custo de produção tem raízes em diversos fatores interconectados:
- insumos importados impactados pela oscilação do dólar;
- dependência de mercados instáveis como Rússia e Ucrânia;
- aumento dos custos financeiros (financiamentos e custeios) e operacionais (combustível, manutenção, serviços, tecnologia e mão de obra);
- condições climáticas adversas cada vez mais severas;
- infraestrutura logística precária, que encarece transporte e armazenamento.
Nem mesmo o aumento recente do prêmio portuário para exportação - decorrente da guerra comercial entre EUA e China - trouxe alívio efetivo ao caixa do produtor. A depreciação do dólar frente ao real e a produção recorde na América do Sul, com cerca de 170 milhões de toneladas no Brasil e exportações que devem alcançar 105 milhões de toneladas, pressionam as cotações.2
Para piorar: uma esperada escassez de recursos para o próximo Plano Safra e o aumento dos juros básicos encareceram o crédito, dificultam ainda mais o acesso ao financiamento agrícola.3 O setor se depara, assim, com um avanço em fontes de financiamento com taxas superiores aos recursos controlados e desalinhadas com a visão de longo prazo do crédito rural.
O resultado dessa equação (altos custos + preços baixos) é alarmante: a cadeia opera com rentabilidade mínima ou negativa. E, segundo levantamento do Serasa, 2024 registrou crescimento de 138% nos pedidos de recuperação judicial no agronegócio. Entre os produtores rurais pessoa física, o aumento foi próximo de 350%, totalizando 566 solicitações.4
Estamos, assim, diante de uma tempestade perfeita - e ela atinge com mais força o pequeno e médio produtor, que não possui o mesmo fôlego financeiro dos grandes grupos empresariais.
O que fazer?
Não existem soluções mágicas. Mas há caminhos e estratégias. E, para navegar nessa fase turbulenta, três pilares emergem como fundamentais para garantir a competitividade e, sobretudo, a sobrevivência do empreendimento agrícola:
1. Gestão de custos e riscos financeiros
A precisão, hoje, aplica-se tanto ao plantio quanto à estratégia financeira. Monitorar os insumos essenciais e evitar gastos com produtos de retorno incerto tornou-se imperativo para a sustentabilidade da atividade. Em épocas difíceis, adquirir apenas o necessário, com travamento antecipado das despesas - muitas vezes ciclos antes da semeadura - pode ser a diferença entre um lucro estreito e um prejuízo certo.
Igualmente crucial é a seleção criteriosa das fontes de custeio, avaliando não apenas as taxas nominais, mas especialmente os encargos de inadimplência, capitalização de juros e as garantias exigidas para sua contratação.
Aqui merece um cuidado redobrado a análise das renegociações de dívidas rurais propostas pelos bancos que, frequentemente, transformam dívidas administráveis em obrigações impagáveis no médio prazo. E, usualmente, vêm acompanhadas da instituição de garantia adicional por alienação fiduciária sobre imóveis produtivos, o que pode comprometer a geração de renda e o patrimônio familiar construído por gerações.
A análise minuciosa dos instrumentos de crédito e respectivas garantias, preferencialmente com assessoria jurídica especializada, evita que soluções emergenciais de fluxo de caixa se convertam em ameaças à continuidade do negócio da família.
2. Gestão de comercialização
A venda da produção requer planejamento tão cuidadoso quanto o plantio. Fixar preços antecipadamente, com base nas despesas previstas, é essencial para não ser surpreendido por quedas abruptas no mercado.
O produtor precavido é aquele que não apenas comercializa sua safra de forma escalonada, mas aproveita os momentos do mercado para mitigar riscos. Isso exige disciplina, conhecimento e, muitas vezes, coragem para tomar decisões quando os indicadores são favoráveis, mesmo que o instinto sugira esperar por preços ainda melhores.
A realidade é que dificilmente alguém quebra realizando lucro pequeno, mas muitos quebram especulando lucro ideal. Por isso, operações de hedge e barter deixaram de ser opcionais - tornaram-se ferramentas obrigatórias para produtores de qualquer porte. Mesmo em cenários de alta produtividade, proteger-se contra a volatilidade não é mais uma escolha reservada aos grandes players, mas uma necessidade básica de sobrevivência do produtor brasileiro.
3. Gestão jurídica estratégica
Este é o pilar frequentemente negligenciado pelo produtor rural, mas que pode representar a diferença entre o alívio e o sossego em tempos de margens estreitas.
A assessoria jurídica especializada a cada dia se torna um investimento com potencial de retorno direto. Desde a fase pré-contratual - tão importante para o alinhamento das expectativas e interesses das partes, passando pela concretização e acompanhamento de negócios, até a representação judicial na defesa de direitos ou recuperação de ativos -, faz parte do dia-a-dia do advogado especialista no setor navegar pelas diversas áreas do Direito aplicado ao agronegócio para auxiliar na resolução de complexas questões jurídicas que impactam diretamente no resultado da atividade rural.
No campo agrário, a auditoria documental prévia e a assessoria na formalização de negócios de compra e venda, parcerias agrícolas e arrendamentos rurais de imóveis produtivos, com cláusulas e condições claras e objetivas, possibilitam uma maior previsibilidade, segurança jurídica e continuidade da atividade agrícola.
No âmbito contratual, ainda, a adequada estruturação de operações de compra e venda de commodities pode não apenas reduzir a exposição a riscos, mas também propiciar desfechos mais favoráveis em disputas envolvendo descumprimento contratual.
Um bom exemplo é a definição da responsabilidade contratual por inadimplemento decorrente de caso fortuito ou força maior na venda antecipada de grãos- reflexo que, com frequência, recai exclusivamente sobre o produtor rural, seja pela falta de análise prévia das obrigações assumidas ou pela adesão a contratos unilateralmente elaborados pelas revendas e tradings.
A realização de uma análise ponderada sobre os pressupostos dessa responsabilização, antes da formalização contratual, pode ser determinante. Partindo-se de uma interpretação sistemática dos critérios de comprovação do prejuízo eventualmente sofrido pela parte, em consonância com a função social do contrato no contexto da atividade agrícola - que envolve riscos naturais e ciclos de produção longos, é possível estabelecer cláusulas mais equitativas que, em momentos críticos, podem evitar a ruína financeira de famílias diante de uma frustração de safra inevitável.
Igualmente relevante é a formalização de arranjos negociais bem elaborados, aliada ao uso estratégico de garantias reais e pessoais - como penhor, hipoteca, alienação fiduciária de bens móveis e imóveis, fiança, aval, bem como cessões fiduciárias de recebíveis e de títulos de crédito do agronegócio. Tais instrumentos contribuem para a segurança das relações comerciais, otimizam a recuperação de créditos e favorecem a recomposição do fluxo de caixa do produtor, evitando prejuízos e custos desnecessários.
Outro aspecto essencial é a assessoria jurídica durante o planejamento estratégico da atividade, especialmente no que tange à eficiência tributária. A reforma tributária tem sido realizada de forma fragmentada, por meio de emenda constitucional e propostas de leis esparsas, alterando regras de forma gradual e avançando a passos largos para modificar não apenas o cenário de consumo, mas o próprio sistema de tributação sobre a renda e o patrimônio das famílias e empresas.
O cenário final da reforma tributária ainda é incerto e dependerá de diversas regulamentações posteriores. Assim, é fundamental que o produtor rural explore os mecanismos legais ainda disponíveis para otimização da carga tributária, sobretudo aqueles ligados aos planejamentos patrimoniais, que propiciam maior governança, segregação de riscos e a sucessão em vida entre gerações. Um planejamento eficiente neste cenário pode gerar economias expressivas - muitas vezes superiores ao próprio lucro operacional da atividade.
Diante de um contexto regulatório em transformação e de operações comerciais cada vez mais sofisticadas e complexas, a integração entre gestão jurídica e estratégia na condução do negócio torna-se indispensável para a sustentabilidade da própria atividade. Assim produtores, advogados e consultores devem atuar de forma coordenada para mitigar riscos e aproveitar as oportunidades legais e contratuais disponíveis.
O caminho à frente
Se você é produtor, saiba: as dificuldades vão continuar batendo à porta. A pergunta não é se virão, mas como você vai enfrentá-las.
Os riscos mais perigosos nem sempre estarão apenas "dentro da porteira", mas na negligência com aspectos fora dela - como a gestão comercial, financeira e jurídica do seu negócio.
Assim a verdadeira resiliência não está apenas em produzir mais. Está em produzir com rentabilidade sustentável. Isso exige visão integrada: agronômica, financeira, comercial e jurídica.
Enquanto grandes grupos conseguem amortecer perdas, os pequenos e médios produtores precisam compensar sua menor escala com inteligência e estratégia. Só assim poderão continuar não apenas produzindo alimentos, mas sustentando suas famílias e perpetuando a vocação de gerações.
E isso demanda mais do que técnica. Demanda estratégia, visão multidisciplinar e suporte qualificado. Da porteira para dentro - e, principalmente, da porteira para fora.
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1 Fonte: https://agro.estadao.com.br/economia/custo-de-producao-de-soja-em-mt-cai-217-na-safra-2024-25-mostra-imea Acesso em 06.05.2025.
2 Fonte: https://feedfood.com.br/soja-encerra-2024-em-queda-e-inicia-2025-com-perspectivas-positivas-de-producao/ Acesso em 06.05.2025
3 Fonte: https://exame.com/agro/plano-safra-2025-26-juros-altos-e-orcamento-menor-preocupam-proximo-ano-agricola-segundo-analistas/ Acesso em 06.05.2025.
4 Fonte: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/recuperacoes-judiciais-no-agronegocio-crescem-138-em-2024-diz-serasa/ Acesso em 06.05.2025.