Justiça barra leilão e garante isonomia entre credores na dívida
Decisão impede leilão de imóvel e garante isonomia entre credores, reforçando a aplicação da lei do superendividamento e a prioridade do pagamento coletivo das dívidas.
sexta-feira, 9 de maio de 2025
Atualizado às 09:20
No dia 5/5/25, a 16ª vara Cível da comarca de Belo Horizonte, sob a condução da juíza Adriana Garcia Rabelo, proferiu uma decisão que merece análise atenta e aprofundada, tanto pelo seu conteúdo técnico quanto pela sua importância para a consolidação da lei do superendividamento no ordenamento jurídico brasileiro.
Trata-se do processo 10063925320258130024, no qual um consumidor buscou impedir o leilão extrajudicial de seu imóvel residencial, promovido pelo Banco Inter, credor fiduciário.
A controvérsia se insere num contexto de superendividamento reconhecido judicialmente. O autor já havia ajuizado, anteriormente, ação específica de repactuação de dívidas com base no art. 104-A do CDC. Essa ação já contava com decisão liminar determinando a limitação dos descontos mensais em sua remuneração a 30%, como forma de preservar o mínimo existencial. O contrato com o Banco Inter, objeto do presente processo, era justamente um dos compromissos financeiros incluídos no pedido de renegociação global.
A tentativa do banco de consolidar a propriedade do imóvel em seu nome e promover seu leilão, portanto, não era um ato isolado. Tratava-se de uma execução individual que, se consumada, comprometeria gravemente a eficácia de todo o processo de reorganização financeira do consumidor.
E foi exatamente essa a compreensão da magistrada, que entendeu, com precisão, que não seria possível tratar o contrato em questão de forma destacada, sem afetar os demais.
A decisão, nesse ponto, cumpre com rigor a função integradora da lei do superendividamento, cujo objetivo é permitir que consumidores em situação de crise financeira duradoura possam renegociar suas dívidas de maneira global, por meio da mediação judicial, e sem privilégios indevidos a determinados credores.
A lógica é simples, mas poderosa: nenhum credor pode avançar sobre o patrimônio do consumidor, de forma isolada, se esse bem está vinculado ao plano de recuperação que abarca o conjunto das obrigações.
A análise da juíza também se destacou por sua fundamentação técnica. Do ponto de vista procedimental, foram apontadas falhas formais no procedimento de consolidação da propriedade fiduciária. A ausência de intimação pessoal válida para purgar a mora - como exige o art. 26 da lei 9.514/1997 - foi tida como plausível, com base nas alegações e documentos apresentados na inicial. Esse vício, caso confirmado, comprometeria a validade de toda a execução extrajudicial, incluindo a designação do leilão.
Outro aspecto relevante foi a falta de informação adequada ao consumidor sobre o valor atualizado do débito, o que impediu o exercício do seu direito de preferência, conforme previsão do art. 27, §2º-B da mesma lei. Essa omissão viola diretamente os princípios da transparência e do direito à informação, ambos consagrados no CDC como elementos centrais da boa-fé objetiva nas relações de consumo.
Mas o ponto mais significativo da decisão talvez esteja em sua sensibilidade para o risco iminente de dano irreversível. O leilão do imóvel estava marcado para o dia seguinte à decisão. A juíza reconheceu que a perda do bem de moradia comprometeria, de forma definitiva, não apenas o patrimônio do consumidor, mas a própria razão de ser do processo de superendividamento. Como bem destacou na decisão: "Além disso, a perda do imóvel em leilão comprometeria a possibilidade de renegociação de suas dívidas no processo de superendividamento, dificultando ainda mais a sua recuperação financeira, já reconhecida como necessária na decisão liminar proferida naquele feito. A urgência é, portanto, cristalina e demanda intervenção judicial imediata para acautelar o direito alegado."
Essa passagem revela uma compreensão profunda da natureza do direito em jogo. Não se trata apenas da proteção de um bem material, mas da preservação de condições mínimas para que o consumidor possa, com dignidade, cumprir suas obrigações de maneira equilibrada. O mínimo existencial, mais do que um conceito teórico, ganha forma concreta quando se evita que uma família perca a própria moradia antes de ter a chance de reestruturar suas finanças.
A decisão também se destaca pela cautela. A juíza ressaltou que a medida de suspensão do leilão era reversível. Caso, ao final do processo, fique demonstrada a regularidade do procedimento de consolidação, o banco poderá realizar novo leilão, sem prejuízo definitivo à sua garantia. Essa ponderação demonstra equilíbrio entre os interesses das partes, sem ignorar o direito do credor, mas também sem desprezar a vulnerabilidade do consumidor.
A importância dessa decisão não reside em um suposto ineditismo, mas na forma consciente e bem fundamentada com que os institutos do superendividamento, da boa-fé objetiva, da função social do contrato e do mínimo existencial foram mobilizados em conjunto. A magistrada não se limitou a aplicar a lei formalmente; ela interpretou seus dispositivos à luz dos princípios constitucionais que regem as relações privadas no Brasil contemporâneo.
Em tempos nos quais ainda há resistência na aplicação plena da lei do superendividamento, a decisão do processo 10063925320258130024 se mostra um exemplo relevante de como o Judiciário pode contribuir para a consolidação dessa nova etapa do Direito do Consumidor.
Ao proteger o devedor sem punir o credor, e ao privilegiar a negociação coletiva sobre execuções fragmentadas, essa decisão sinaliza um caminho mais justo e racional na gestão do endividamento de pessoas físicas. Trata-se de um importante precedente, que reforça o papel do Judiciário como garantidor da dignidade humana e da ordem jurídica voltada à equidade.