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O pensamento sincopado na hermenêutica constitucional

As notas sincopadas do samba são fruto do sincretismo cultural do país, razão pela qual a hermeneutica constitucional necessita de novas ressignificações e rupturas.

sexta-feira, 9 de maio de 2025

Atualizado às 13:34

O que num primeiro momento entendia-se as síncopes e os compassos como essencial ao samba, posteriormente é percebida a contrametricidade das estruturas musicais originada pelo encontro entre os ritmos das matrizes africanas e europeias, cuja aplicação se faz por toda a música popular brasileira (SANDRONI, p.20-21). Nela, esse efeito de ruptura, a partir de frases rítmicas aplicadas pelo senso comum musical africano, produz alteração na base rítmica europeia utilizada no Brasil, com complementação do vocabulário de termos musicais africanos (SANDRONI, p.25).

A garantia da originalidade e ressignificação da música pelo efeito de ruptura e de acordo com a temporalidade social também deve ser transportada para a hermenêutica constitucional. A interpretação da CF pelo tempo vigente decorre de demandas que impossibilitam qualquer restrição ou retrocesso social em direitos fundamentais, especialmente para grupos de alta vulnerabilidade histórico-social.

É notório que a música popular brasileira "criolizou" os batuques africanos como uma tática de preservação de suas manifestações culturais (SODRÉ, p.13). O sincretismo cultural traz uma adaptação da música à realidade étnica, econômica e social da realidade brasileira, a exemplo da marginalização do negro - translocado para a periferia das cidades em razão de sua subalternidade. Nesse sentido, o samba, de origem africana, é absorvido pela música brasileira como segunda categoria, diante da inferiorização se comparada com os demais ritmos de origem europeia. Para as relações de trabalho, a não mercantilização do negro após a abolição da escravatura simboliza a sua entrada como prestador de serviços remunerado em ocupações estereotipadas que envolvessem a força braçal.

A partir das reflexões de Roberto Lyra Filho, pode-se inferir que a música popular brasileira é um "direito achado na rua", dado que emerge da população negra para expressão de sua liberdade. Nessa linha, esse processo histórico, político e social necessita ser incorporado pela CF vigente em prol da pluralidade e diversidade de ideias, fato que influenciará diretamente na hermenêutica constitucional.

A título de exemplo, tem-se a decisão do STF de equiparação do crime de injúria qualificada pelo preconceito (art. 140, §3º do CP) ao de racismo (art. 5º, XLII da CF/88), considerando, assim, a imprescritibilidade da conduta para ambos (HC 154.248). In caso, houve uma interpretação ampliativa do art. 5º, XLLII da CF - ainda que no direito penal não seja permitido pelos princípios da reserva legal e da legalidade estrita - em razão do necessário esforço de combate ao racismo estrutural e qualquer tentativa de discriminação racial para a efetividade plena da dignidade humana e da igualdade material.

O samba é um ritmo de resistência em face da marginalização da pessoa negra a fim de ser uma expressão de luta (SODRÉ, p.15-16). Na letra do samba está o cotidiano da vida urbana na significação do provérbio (SODRÉ, p.44), ou seja: a tomada de consciência de grupo enquanto minoria e da perspectiva pedagógica de empatia e combate ao racismo. Logo, a partir de um discurso transitivo (SODRÉ, p. 44), a linguagem é vista como um meio de transformação da vulnerabilidade negra existente.

O pensamento sincopado com sua forma malandra transcende os questionamentos pela filosofia acerca da política e de ideologias opressoras. Há uma transformação do desejo de superar a dor no fazer artístico, nas palavras de Marilena Chauí, perpetuada para as próximas gerações (ROMANELLI, p.41-49). Nessa perspectiva, quatro técnicas de pensar são utilizadas na música popular brasileira, quais sejam: letras irônicas, dúbias e ambíguas; manifestações objetivas e diretas; entrelaçamento entre poesia e reflexão; resgate dos ditados populares (ROMANELLI, p.50).

Portanto, o samba - como estilo raiz da música popular brasileira - é reconhecido pelo contexto cultural pós-abolição da escravidão, sendo um instrumento ao empoderamento negro. Não se trata apenas do reconhecimento do ritmo sincopado, pois seria lugar comum não reconhecer a autenticidade que remontam às tradições africanas (GRAEF, p.134). Por último, o movimento dos corpos produzido pela canção melódica do ritmo sambista representa a hermenêutica constitucional diante da realidade histórico-social da população brasileira.

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1 SANDRONI, Carlos. A síncope brasileira. In: Idem. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p.17-26.

2 SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 1998, p.11-18; 25-27; 43- 47.

3 ROMANELLI, Francisco Antônio. Roda de samba, roda da vida: filosofia de botequim em Noel, Paulinho e Chico. Três Corações, 2014, p.40-63 (Dissertação. Mestrado em Letras)

4 GRAEFF, Nina. O samba de roda na roda de samba. In: Idem. Os ritmos da roda: tradição e transformação no samba de roda. Salvador: EDUFBA, 2015, p. 125-136

5 VITORDSG. Documentário "O Direito Achado na Rua - UnB" - Youtube, 29 de maio de 2018. Disponível em: Acesso em 07 maio 2025.

Leandro Henrique Costa Bezerra

VIP Leandro Henrique Costa Bezerra

Mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Analista Judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 11ª Região.

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