A inconstitucionalidade da anistia aos responsáveis pelos atos antidemocráticos de 8 de janeiro 2023
Anistiar os atos de 8/1 viola a Constituição de 1988 e compromete o regime democrático, sendo juridicamente inadmissível sob qualquer ótica.
sábado, 10 de maio de 2025
Atualizado em 9 de maio de 2025 13:04
1. Introdução
A Constituição Federal de 1988 se estrutura sobre um modelo de Estado Democrático de Direito, comprometido com a soberania popular, o pluralismo político e o respeito à ordem constitucional. Os atos de vandalismo, violência e tentativa de subversão da ordem democrática, ocorridos em 08 de janeiro de 2023, em Brasília, constituíram uma afronta direta ao núcleo duro da Constituição Federal. A tentativa de ocupação dos prédios dos Três Poderes, com a finalidade de provocar uma ruptura institucional configura, à luz da Carta Magna, crime contra o Estado Democrático.
Neste contexto, cogitar a concessão de anistia aos responsáveis por tais atos impõe uma análise detida das normas constitucionais pertinentes, especialmente dos incisos XLII, XLIII e XLIV do artigo 5.º da Constituição Federal, que tratam dos crimes inafiançáveis e imprescritíveis. A partir de uma interpretação sistemática e escalonada, o presente artigo demonstrará que a anistia aos autores dos atos antidemocráticos, além de politicamente incongruente, é juridicamente inconstitucional.
2. Da escalada golpista à eclosão de 8 de janeiro: Uma cadeia lógica de atos sistemáticos contra a democracia
A tentativa de subversão da ordem democrática ocorrida em 8 de janeiro de 2023 não se apresenta como um evento isolado ou fruto de mobilizações espontâneas da sociedade civil. Ao revés, constitui o ápice de uma escalada meticulosamente construída, marcada por atos sucessivos de erosão institucional, manipulação das estruturas estatais e incitação contínua à desconfiança sobre os mecanismos legítimos de funcionamento do Estado Democrático de Direito.
O percurso da ruptura começou ainda no curso do processo eleitoral, quando se verificaram ações deliberadas de sabotagem ao livre exercício do voto, como os bloqueios viários orquestrados por membros da Polícia Rodoviária Federal, que visavam dificultar o acesso de eleitores de determinadas regiões aos seus locais de votação. Estes bloqueios, registrados especialmente no segundo turno das eleições de 2022, tiveram clara motivação político-ideológica, dirigindo-se contra o segmento do eleitorado que majoritariamente não apoiava o então presidente da República, o que revela o uso indevido da máquina pública para fins eleitoreiros e antidemocráticos.
Antes disso, o aparato estatal já havia sido instrumentalizado para a propagação de desinformações contra o sistema eleitoral, como se deu na reunião com embaixadores estrangeiros no Palácio da Alvorada, em 18 de julho de 2022, ocasião em que o chefe do Executivo promoveu um ataque frontal ao sistema eletrônico de votação, valendo-se da estrutura presidencial em benefício de sua candidatura. Tal episódio, que deveria se configurar como ato de Estado, foi transmutado em palanque eleitoral sob o manto de um suposto "esclarecimento institucional".
O 7 de Setembro do mesmo ano, por sua vez, deixou de ser uma celebração da pátria e da unidade nacional para se tornar comício de campanha, financiado com recursos públicos e transmitido pela televisão estatal, em evidente desvio de finalidade. Não por acaso, tais eventos simbolizam etapas fundamentais na construção de uma narrativa golpista que culminaria na recusa sistemática dos resultados eleitorais.
A esse enredo se somam os atos preparatórios de natureza terrorista, ocorridos após a eleição, como a tentativa de explosão de bomba nas imediações do aeroporto de Brasília na véspera do Natal de 2022, cuja origem remonta ao acampamento bolsonarista em frente ao quartel-general do Exército. Tais ações, por sua vez, demonstram a transição do discurso de intolerância para a prática da violência política concreta.
Os atos de 8 de janeiro foram consequência lógica - e não mero desdobramento acidental - de um processo contínuo e organizado de corrosão das instituições republicanas, configurando, sob o ponto de vista jurídico, não apenas um levante criminoso, mas a consumação de um plano de abolição violenta do Estado Democrático de Direito.
Sob essa perspectiva, a anistia não se afigura como instrumento legítimo, mas como tentativa de validar a ruptura constitucional pela via da impunidade. Anistiar tais atos seria negar o caráter preventivo e simbólico do Direito Penal em defesa da ordem democrática, além de desconstituir o próprio pacto civilizatório que sustenta a Constituição de 1988. É, portanto, inadmissível sob qualquer ângulo hermenêutico - moral, jurídico ou político - permitir que o Estado feche os olhos para aqueles que, em múltiplas frentes, conspiraram contra a democracia.
3. O artigo 5.º da Constituição Federal e os limites materiais à anistia
O artigo 5.º da Constituição Federal reúne o núcleo dos direitos e garantais fundamentais à pessoa humana, e, como tal, goza de proteção do artigo 60 § 4.º incisos III e IV, que impede a deliberação de proposta de emenda constitucional tendente a abolir a separação dos poderes e os direitos e garantias individuais. No que tange aos crimes de especial gravidade, os incisos XLII, XLIII e XLIV estabelecem restrições severas à atuação estatal:
XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;
XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;
XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.
É a partir da comparação entre esses três dispositivos que se constrói o argumento pela vedação da anistia aos crimes descritos no inciso XLIV do artigo 5.º da Constituição Federal.
4. A lógica da proporcionalidade e a hierarquia implícita entre os incisos XLII, XLIII e XLIV
Os incisos citados classificam determinados crimes como inafiançáveis. Todavia, nem todos como imprescritíveis. O inciso XLIII, por exemplo, abrange crimes hediondos, de tortura, terrorismo e tráfico de drogas, os quais são expressamente insuscetíveis de graça ou anistia, porém prescritíveis. Já os incisos XLII e XLIV são inafiançáveis e imprescritíveis, o que revela um maior grau de gravidade jurídico-constitucional.
Assim, observa-se que:
O inciso XLIII (hediondos) considera certos crimes como inafiançáveis, mas prescritíveis, ainda assim vedando sua anistia; o inciso XLII (racismo) e o XLIV (contra a ordem constitucional e o Estado Democrático) qualificam os crimes como inafiançáveis e imprescritíveis, sem fazer referência explícita à anistia.
Dessa comparação emerge a seguinte proposição lógica: se o constituinte proibiu expressamente a anistia a crimes menos severos (prescritíveis), é evidente que a mesma vedação se aplica, ainda por mais razão, aos crimes mais severos (imprescritíveis). Trata-se de uma aplicação direta da interpretação sistemática da Constituição com base no princípio da proporcionalidade e da lógica jurídica.
5. Vedação implícita à anistia no inciso XLIV do artigo 5.º da Constituição Federal
A ação de grupos armados contra a ordem constitucional é tratada no inciso XLIV é um crime que atinge o próprio fundamento de validade da Constituição Federal. Sua classificação como crime imprescritível e inafiançável não deixa dúvidas quanto a sua gravidade. A ausência de referência expressão a proibição de anistia não deve ser interpretada como permissão tácita, sob pena de se incorrer em contradição normativa.
De fato, admitir anistia a tais crimes implicaria atribuir tratamento mais benéfico a condutas de maior gravidade constitucional. Isso violaria o princípio da igualdade, da razoabilidade e da proporcionalidade, pilares que orientam a hermenêutica constitucional. Além disso, uma interpretação contrária atentaria contra a eficácia plena do próprio artigo 5.º, comprometendo a integridade do sistema jurídico.
6. Cláusulas pétreas e a impossibilidade de anistia legislativa
A vedação à anistia, ainda que implícita, assume um caráter de limite material ao poder legislativo e constituinte derivado, porquanto se insere no âmbito dos direitos e garantais fundamentais do artigo 60 § 4.º incisos III e IV da Constituição Federal que dispõe que "não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a separação dos poderes e os direitos e garantias individuais".
A imprescritibilidade e a inafiançabilidade dos crimes descrito nos incisos XLII e XLIV são garantais institucionais da sociedade democrática e, como tais, inalteráveis até mesmo por emenda constitucional. Não se admite, portanto, que leis ordinárias ou medidas legislativas - como lei de anistia - venham reduzir tais garantias, sob pena de manifesta inconstitucionalidade material.
7. O regime democrático como bem jurídico indisponível
A constituição não reconhece legitimidade a qualquer forma de ruptura institucional. A ação de grupos armados contra os Poderes constituídos representa, em essência, tentativa de golpe de Estado. Tais condutas não se confundem com o exercício legítimo da liberdade de manifestação, sendo, ao contrário, atentados contra a soberania popular expressa no voto direto e periódico (art. 60, § 4.º, inciso II) e contra a separação dos Poderes (art. 60, § 4.º, inciso III).
Um perdão estatal, como a anistia, nesses casos, não seria uma manifestação de clemência, mas de fraqueza institucional e afronta à ordem jurídica. Anistiar atos dessa natureza equivaleria a validar a insurgência contra o próprio pacto constitucional de 1988.
8. Conclusão
A concessão de anistia aos manifestantes e aos responsáveis pelos atos antidemocráticos de 08 de janeiro de 2023 é vedada pela Constituição Federal. Ainda que o inciso XLIV do artigo 5.º não mencione expressamente a proibição de anistia, a interpretação sistemática e hierarquizada, que lança a luz a norma contida neste inciso, desnudando a correta interpretação dos incisos XLII e XLIV, aliada ao princípio da proporcionalidade e da lógica jurídica, conduz à conclusão inequívoca de que tal anistia é juridicamente inadmissível.
A Constituição Federal de 1988, ao classificar como imprescritíveis os crimes de maior gravidade contra a dignidade humana e a ordem democrática, não deixa margem para qualquer forma de esquecimento penal.
A tentativa de anistiar tais atos constitui violação material ao texto constitucional, sendo, portanto, nula. A democracia é incompatível com a impunidade institucionalizada. E o Direito, enquanto instrumento de preservação da ordem republicana, não pode tolerar a transgressão de seus próprios fundamentos.
- Este artigo foi elaborado a partir de discussões do Grupo de Estudos Avançados do IAZL - Instituto dos Advogados da Zona Leste de São Paulo.
Jesus Henrique Peres
Sócio da Jesus Peres Advogados; Pós-graduado em Direito Constitucional e Administrativo; Especialista em Direito da Saúde; Membro do Grupo de Estudos Avançados do IAZL e Diretor do IAZL - Instituto dos Advogados da Zona Leste de São Paulo e integrante da Comissão de Direitos Humanos do SASP.