A arte de ensinar a pescar: Autonomia versus assistencialismo
O filme G20 evoca o dilema entre assistencialismo e autonomia, destacando que ensinar a pescar é mais transformador que doar o peixe.
sexta-feira, 16 de maio de 2025
Atualizado em 15 de maio de 2025 11:31
Assistindo ao filme G20, recentemente, a presidente dos Estados Unidos da América, em seu discurso, narra uma frase que escutou de seu tio: "Dê um peixe a um homem e o alimentará por um dia; ensine-o a pescar e o alimentará por toda a vida.", transcende sua atribuição tradicional a Confúcio. Esta parábola milenar, presente em diversas culturas, contrapõe a assistência imediata à capacitação duradoura, ilustrando com precisão o dilema entre soluções temporárias e transformações permanentes.
A sabedoria contida neste provérbio atravessou séculos e continentes, sendo reinterpretada em diferentes contextos culturais. Embora frequentemente atribuída a Confúcio, historiadores apontam que suas raízes podem ser encontradas em tradições orais ainda mais antigas, demonstrando como a percepção da importância do desenvolvimento de habilidades sobre a simples doação é um valor humano universal.
A profundidade filosófica desta metáfora reside na valorização da autonomia como caminho para a dignidade humana. Ao ensinar alguém a pescar, não apenas transferimos uma habilidade técnica, mas cultivamos independência e autoconfiança. O verdadeiro valor não está no peixe em si, mas na capacidade perene de obtê-lo por meios próprios.
Este princípio dialoga diretamente com conceitos filosóficos fundamentais sobre liberdade e realização humana. Filósofos como Immanuel Kant defendiam que a verdadeira autonomia é uma condição essencial para a dignidade, enquanto Paulo Freire argumentava que a educação libertadora deve capacitar as pessoas a se tornarem sujeitos ativos de sua própria história, não meros objetos de caridade.
No âmbito educacional, esta filosofia manifesta-se no contraste entre pedagogias que privilegiam a memorização e aquelas que fomentam o pensamento crítico. Nas políticas sociais, observamos a diferença entre programas assistencialistas e iniciativas de capacitação profissional. O Grameen Bank de Muhammad Yunus exemplifica esta abordagem ao oferecer microcrédito em vez de doações, permitindo que comunidades vulneráveis desenvolvam seus próprios empreendimentos.
Outros exemplos notáveis incluem:
- Programas de educação financeira que capacitam indivíduos a gerenciar recursos e construir patrimônio:
- Iniciativas de transferência de tecnologia agrícola em comunidades rurais, que substituem a doação de alimentos por conhecimentos sobre cultivo sustentável.
- Programas de mentoria profissional que, em vez de simplesmente criar vagas subsidiadas, desenvolvem habilidades para o mercado de trabalho.
Contudo, esta parábola apresenta limitações. Em situações de extrema vulnerabilidade ou catástrofes, o "peixe" torna-se imperativo antes do "ensino". Ademais, saber pescar pouco vale sem acesso ao rio ou em águas poluídas - metáfora para barreiras estruturais que impedem que o conhecimento se traduza em prosperidade.
A crítica contemporânea à simplicidade da metáfora também aponta que:
- Estruturas de poder e desigualdades sistêmicas podem impedir que o conhecimento se transforme em oportunidade real:
- Algumas situações exigem soluções imediatas antes que qualquer processo educativo possa ser efetivo.
- A metáfora pode inadvertidamente responsabilizar exclusivamente o indivíduo por sua condição, ignorando fatores sociais, políticos e econômicos mais amplos.
A sabedoria reside no equilíbrio: reconhecer quando oferecer o peixe e quando ensinar a pescá-lo. As intervenções mais eficazes combinam assistência imediata com desenvolvimento de capacidades, respeitando a dignidade humana e promovendo autonomia sustentável.
Este equilíbrio se materializa em abordagens híbridas, como:
- Programas que oferecem assistência básica condicionada à participação em capacitações:
- Iniciativas que atendem necessidades imediatas enquanto constroem infraestrutura para soluções de longo prazo.
- Políticas públicas que reconhecem tanto direitos sociais básicos quanto a importância da educação e do desenvolvimento de capacidades.
A verdadeira generosidade não está apenas em saciar a fome momentânea, mas em cultivar a capacidade perene de autossustento. Nesta delicada alquimia entre assistência e capacitação encontramos o caminho para transformações sociais autênticas e duradouras.
O desafio do século XXI não é escolher entre dar o peixe ou ensinar a pescar, mas sim compreender como estas ações se complementam, reconhecendo que a verdadeira transformação social requer tanto o alívio imediato do sofrimento quanto o desenvolvimento progressivo da autonomia. É neste equilíbrio que se constrói não apenas a sobrevivência, mas a prosperidade e a dignidade humana.
Stanley Martins Frasão
Advogado, sócio de Homero Costa Advogados Diretor Executivo do CESA Centro de Estudos das Sociedades de Advogados