São Paulo agora tem! Correção de rota na cidade de São Paulo abre caminho para o transporte por motoapp
Diante da deliberada obstrução do Poder Executivo Municipal, cabe ao Poder Judiciário assumir a função que lhe é atribuída para restaurar a legalidade no acesso ao transporte privado de passageiros por motocicleta.
sexta-feira, 16 de maio de 2025
Atualizado em 19 de maio de 2025 09:17
Recentemente, o juiz Josué Vilela Pimentel, da 8ª vara da Fazenda Pública de São Paulo, julgou improcedente pedido da Prefeitura Municipal de São Paulo para que fosse determinada a proibição da prestação do serviço de transporte de passageiros por motoapp na cidade. A decisão libera a prestação do serviço em São Paulo1.
A decisão declarou de modo incidental a inconstitucionalidade do decreto municipal 62.144/23, que determinava a suspensão temporária da utilização de motocicletas para transporte individual de passageiros por aplicativos. Na prática, a suposta suspensão temporária havia se transformado em proibição definitiva.
O decreto municipal 62.144/23 foi editado há mais de dois anos sob o pretexto de que seriam realizados estudos para a regulamentação do transporte por motoapp na cidade de São Paulo. No entanto, isso não saiu do papel e não ocorreu até o momento. O que foi anunciado como uma suspensão temporária, com o objetivo de promover estudos técnicos para a futura regulamentação do serviço, transformou-se, por via oblíqua, em verdadeiro banimento definitivo da atividade. Essa intenção de proibir o serviço está clara em todas as manifestações públicas e jurídicas do Município de São Paulo, que revelam a completa ausência de iniciativas ou movimentações para preparar ou mesmo estudar uma regulamentação, como competiria ao executivo municipal. Para a Municipalidade, é suficiente obstruir a atividade por força do decreto municipal 62.144/23.
Embora a questão verse sobre um meio de transporte específico, a motocicleta, não se pode atribuir a virtude da novidade ao enredo desenhado pelo município de São Paulo para o caso. O enfrentamento entre aqueles que buscam soluções inovadoras para suprir deficiências nos serviços prestados aos cidadãos e aqueles que preferem o simplório - mas nefasto - caminho de manutenção do status quo tornou-se uma constante realidade dos nossos tempos. Mudam-se os argumentos, mas o roteiro permanece o mesmo: reguladores, ao se depararem com um novo serviço oferecido por plataforma digital, tendem a adotar posturas reativas2, proibindo peremptoriamente as atividades e, consequentemente, evitando regulamentá-las dentro dos limites permitidos pela lei e pela Constituição. Afinal, se está proibido, não é mais necessário regulamentar.
Está claro que esse não é o melhor caminho, tampouco um caminho tolerado pelo ordenamento jurídico. Como afirmou certa vez o ministro Luis Roberto Barroso, "[a] proibição da atividade na tentativa de contenção do processo de mudança, evidentemente, não é o caminho, até porque acho que seria como tentar aparar vento com as mãos"3.
Não por outra razão, a lei 13.874/19, aplicável a todos os entes federativos, cuidou de densificar os parâmetros normativos diretamente derivados do texto constitucional (especialmente os do art. 170 caput da Constituição Federal) para controlar obstruções regulatórias a novas atividades. A premissa é a de que a regulação por banimento é manifestamente excepcional e depende de previsão legal expressa4, devendo prevalecer, como regra, os caminhos da liberdade de iniciativa.
Se essa deve ser a premissa na generalidade dos conflitos envolvendo a proibição de novos serviços, no caso específico do transporte individual de passageiros a questão é ainda mais simples, pois já está consolidada pela legislação federal e pelo Supremo Tribunal Federal. Em resumo, o Município não pode proibir a atividade econômica de transporte individual de passageiros que já conta com suficiente autorização legislativa.
O transporte individual de passageiros, independentemente do tipo de veículo, é atividade econômica em sentido estrito prevista no art. 4º, inc. X, da lei Federal 12.587/12 (Política Nacional de Mobilidade Urbana), conforme alterada pela lei Federal 13.640/18.
Trata-se de atividade sujeita (unicamente) à regulamentação complementar dos municípios, conforme interesses e peculiaridades locais Nesse sentido, o art. 11-B da Política Nacional de Mobilidade Urbana impõe condições para a prestação do serviço a serem observadas pelos "Municípios que optarem pela sua regulamentação". Observa-se, então, que a regulamentação local do serviço não é essencial para a sua prestação5, pois sua autorização decorre de lei nacional e não está condicionada à existência de previsão legal municipal.
Se, por um lado, a regulamentação é uma faculdade dos Municípios, a proibição do serviço, por outro, lhes é absolutamente vedada. Isso se deve tanto à competência privativa da União para legislar sobre "diretrizes da política nacional de transportes" e "trânsito e transporte" (art. 21, incisos IX e XI, da Constituição Federal), quanto à necessidade de observância dos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, conforme tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 967, assim ementada:
"1. A proibição ou restrição da atividade de transporte privado individual por motorista cadastrado em aplicativo é inconstitucional, por violação aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência; e 2. No exercício de sua competência para regulamentação e fiscalização do transporte privado individual de passageiros, os Municípios e o Distrito Federal não podem contrariar os parâmetros fixados pelo legislador federal (CF/1988, art. 22, XI)."
Nesse cenário, é inegável a insustentabilidade do decreto municipal 62.144/23, que caminhou na contramão e colidiu com a postura de diversas outras capitais, assim como decisões judiciais Brasil afora. A recente decisão do juiz Josué Vilela Pimentel, da 8ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo veio como um sopro de esperança para o restabelecimento da legalidade e dos limites da atuação regulatória do Município, de forma a demonstrar que o Poder Judiciário também pode e deve desempenhar o seu papel para desobstruir as rotas de inovação.
Espera-se que, com essa decisão, a obstrução peremptória do transporte individual de passageiros por motocicleta seja finalmente sepultada, relegando-se ao Município a sua efetiva função, que é a de estudar e implementar medidas regulatórias proporcionais e estritamente necessárias ao bom funcionamento do serviço autorizado pela lei federal e pela Constituição.
Será uma excelente oportunidade para abandonar crenças, presunções e conjecturas aterrorizantes6 e, enfim, concentrar os esforços no atingimento do bem comum, proporcionando aos munícipes um transporte urbano mais justo e acessível. É o que exigem a lei 13.874/19 e a LINDB; é o que a sociedade demanda e merece da regulação estatal de nossos tempos.
Afinal, como muito bem apontado pela sentença que restaurou a legalidade no âmbito do serviço de motoapp em São Paulo, "[e]ditar leis e decretos inconstitucionais equivale a não editar nada. A regulamentação da atividade pelo Município de São Paulo, dentro dos parâmetros legais, é o que se espera do Poder Público, sob pena de cada um realizar a atividade da maneira que achar conveniente, ainda que ignorando a realidade local".
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1 Autos nº 1002734-68.2025.8.26.0053.
2 Gustavo Binembojm. Inovações Disruptivas e a Dinâmica das Mudanças Regulatórias no Brasil. In: Direito da regulação econômica: teoria e prática. Gustavo Binenbojm; André Cyrino; Alice Voronoff; Rafael L. F. Koatz. Belo Horizonte, Fórum, 2020, p. 350.
3 Antecipação ao voto na ADPF nº 449/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. LUIZ FUX, j. 8.5.2019.
4 Gustavo Binembojm. Poder de Polícia, Ordenação, Regulação: transformações político-jurídicas, econômicas e institucionais do direito administrativo ordenador [versão e-kindle]. Belo Horizonte, Fórum, 2020, p. 266.
5 "[a] ausência de regulamentação de determinada atividade econômica em sentido estrito não importa em vedação ao seu exercício, mas em possibilidade de atuação do particular. É o que decorre do princípio da livre empresa, consagrado no art. 170, Parágrafo único, da Constituição, segundo o qual 'é assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgão públicos, salvo nos casos previstos em lei'. O princípio em questão projeta, no âmbito da atividade econômica, a norma geral sobre a conduta dos particulares que vigora nas sociedades democráticas, e que se baseia no respeito à liberdade: é lícito fazer tudo aquilo que não seja proibido pelas normas vigentes. Existe uma sensível diferença entre a forma de vinculação do Estado e dos particulares perante as normas jurídicas, que também vale no âmbito da atividade econômica: o primeiro se acha positivamente vinculado à ordem jurídica, e só pode fazer o que essa lhe impõe ou autoriza, enquanto os segundos são negativamente vinculados às leis, podendo atuar com plena liberdade, sempre que inexista vedação ou imposição legal de determinada conduta." (Daniel Sarmento. A Ordem Constitucional Econômica, Liberdade e Transporte Individual de Passageiros: O "Caso Uber". In: Regulação e Novas Tecnologias. Rafael Véras de Freitas et. al. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 314).
6 Ao contrário das repetidas afirmações alegações que a Municipalidade insiste em repetir à exaustão, estudo recente do Instituto Millenium comprova a inexistência de relação causal entre o serviço de transporte individual de motos por aplicativos e a presunção de aumento expressivo de mortes no trânsito na cidade de São Paulo. "Contribuições da Análise Econômica do Direito para a Regulamentação do Exercício da Atividade de Transporte de Passageiros por Motos de Aplicativos na Cidade de São Paulo". Acesso em 16.4.2025. Disponível em: https://institutomillenium.org.br/wp-content/uploads/2025/02/02AF_PAPER_EDICAO-41.pdf
Helena Najjar Abdo
Sócia de Solução de Conflitos - Lobo de Rizzo Advogados.
Ilan Simantob Sarue
Advogado de Solução de Conflitos - Lobo de Rizzo Advogados.
Victor Luis Portela Rocha
Advogado de Solução de Conflitos - Lobo de Rizzo Advogados.