A cultura da judicialização: Entre a fome de justiça de honorários
O texto analisa a cultura da judicialização no Brasil, destacando que o excesso de processos não decorre apenas de falhas nos serviços, mas de uma estrutura jurídica voltada para o litígio.
quarta-feira, 11 de junho de 2025
Atualizado às 09:24
Lendo um recente artigo publicado na ConJur sobre a litigiosidade no setor aéreo me levou a refletir sobre uma realidade muito mais ampla e complexa: a cultura da judicialização que se espalha por praticamente todos os setores da sociedade brasileira - da aviação à saúde, da telefonia ao consumo básico. Não estamos diante apenas de falhas pontuais de empresas ou de violações recorrentes ao CDC. Estamos diante de um modelo jurídico estruturado para litigar, e não para solucionar.
Um país de recordes jurídicos - nem sempre positivos
O Brasil ostenta com orgulho, talvez vergonha, ou até mesmo indiferença, recordes mundiais que caminham de mãos dadas:
- o maior número de processos judiciais, com mais de 80 milhões de ações em tramitação;
- o maior número de faculdades de Direito;
- e o maior número de advogados, com quase 1,4 milhão de profissionais registrados na OAB.
Esses números não são apenas estatísticas impressionantes. Eles refletem uma realidade sistêmica em que a judicialização não é uma consequência natural de conflitos, mas, muitas vezes, um fim em si mesma - uma estratégia de sobrevivência profissional.
A fome de justiça. e a fome por honorários
A litigiosidade no Brasil não se deve apenas a um cidadão hipervigilante quanto aos seus direitos ou a empresas negligentes. Existe uma dicotomia real e sensível:
De um lado, advogados sobrecarregados por dívidas e pressionados a manter um padrão de vida minimamente digno, são empurrados para o volume: é preciso propor ações, muitas ações, para obtenção de seu "ganha pão". A advocacia de massa virou não apenas uma realidade - mas uma necessidade.
De outro lado, empresas e órgãos públicos atolados em processos, muitos deles com origem em meras tentativas de reparações mínimas que poderiam (e deveriam) ser resolvidas de maneira consensual.
As empresas, ao menos em sua grande maioria, prestam um serviço ruim e descumprem diversas regras do CDC, o INSS análise de maneira equivocada os requerimentos administrativos que culminam em demandas judiciais para que o jurisdicionado possa fazer valer o seu direito que poderia ter sido resolvido administrativamente pelo próprio segurado.
Essa engrenagem cria um ciclo vicioso: mais processos geram mais custos para empresas, mais congestionamento no Judiciário e mais descrença social na efetividade das instituições - o que, paradoxalmente, estimula ainda mais ações judiciais.
A raiz do problema está na formação
A origem dessa cultura começa cedo - dentro das faculdades de Direito. Desde os primeiros períodos, os estudantes são ensinados a enxergar o processo judicial como a principal (ou única) via de resolução de conflitos. Raramente se discute como negociar bem, como mediar com sensibilidade ou como construir soluções dialogadas. O foco está em "enquadrar" o direito material através de uma tese minimamente viável ao direito material para viabilizar uma demanda judicial.
Pouco se fala em prevenir o litígio. O ensino jurídico tradicional valoriza o embate, o embasamento jurisprudencial, a tese criativa. E isso se reflete na prática: boa parte dos advogados ainda acredita que só haverá honorários relevantes se houver uma ação judicial ajuizada. Métodos alternativos são vistos como perda de tempo - e pior: como "abrir mão" de dinheiro.
E diante do cenário do número de advogados que cresce assustadoramente, se faz necessário gerar renda para todos. E essa renda vem, ao menos na cabeça da maior parte dos advogados, da propositura do maior número de demandas judiciais possíveis para obter uma renda digna e que seja suficiente para bancar ao menos alguns poucos luxos que a rede social impulsiona estes profissionais, pois o advogado bem sucedido é aquele que ostenta.
O alerta necessário
Este cenário não pode ser ignorado, nem pelos atores jurídicos (advogados, juízes, professores), nem pelas empresas e instituições que arcam com o custo da judicialização massiva. Resolver esse problema exige:
- Uma reeducação jurídica, que comece na graduação e valorize a consensualidade;
- Incentivos concretos para que advogados também sejam remunerados por soluções extrajudiciais, como mediações e acordos;
- Reformas legislativas que equilibrem os direitos dos consumidores e a razoabilidade dos deveres empresariais;
- E, sobretudo, uma estratégia que gere mudança cultural: sair do paradigma do litígio como primeiro recurso, e adotar o diálogo como primeira etapa.
Como sociedade, precisamos reconhecer que não há sistema que aguente o crescimento desenfreado de processos por questões que poderiam ser resolvidas com diálogo, clareza de informação e os reais direitos que pouse sobre cada caso e boa-fé negocial.
A verdade é que a atual estrutura do Judiciário não comporta tantos gladiadores em busca de batalha. O conflito virou mercado. A sentença, moeda. E o processo, para muitos, se transformou em plano de carreira.
As perguntas que ficam são inevitáveis: como alimentar tantas bocas sedentas, formadas desde cedo na lógica do litígio? Até quando esse modelo se sustentará?
Talvez estejamos caminhando para uma nova realidade, em que veremos cada vez mais o advogado-motorista de aplicativo, o advogado-empreiteiro, o advogado-vendedor de loja, o advogado-dono de bar, ou qualquer outro estabelecimento um que não seja um escritório de advocacia - profissionais que carregam o diploma, mas não encontram clientela suficiente para viver exclusivamente da advocacia.
A profissão, nesse cenário, deixa de ser meio de vida e passa a ser apenas mais uma formação, um adorno acadêmico, sem espaço para exercer sua função social.