Estado x plano: A disparidade de honorários em ações de saúde
Análise crítica da incoerência na fixação de honorários em ações de saúde, destacando a disparidade entre demandas contra o Estado e planos, e os riscos à isonomia e à segurança jurídica.
quarta-feira, 11 de junho de 2025
Atualizado às 09:26
A judicialização da saúde no Brasil é, antes de tudo, um fenômeno que revela a insuficiência do Estado e das operadoras de planos de saúde em atender plenamente às necessidades dos cidadãos. Mas é também um campo fértil para a observação das incoerências que ainda permeiam nossa jurisprudência, sobretudo quando o tema é o arbitramento de honorários sucumbenciais.
A cisão entre Estado e planos de saúde: Dois pesos, mesma medida?
No que diz respeito à fixação dos honorários sucumbenciais em demandas de saúde, o Poder Judiciário tem adotado - de forma ainda persistente e contraditória - dois regimes interpretativos distintos para situações fáticas essencialmente idênticas, a depender apenas da natureza jurídica do réu: Estado ou plano de saúde.
Nas ações movidas contra entes públicos, é comum a invocação do argumento de que o proveito econômico é "inestimável", o que autoriza o arbitramento dos honorários por apreciação equitativa, nos termos do art. 85, § 8º, do CPC. Essa linha de raciocínio sustenta-se na premissa de que, por envolver a tutela de bens fundamentais - como a vida, a dignidade e a saúde -, o valor da obrigação não se deixaria mensurar em termos patrimoniais.
Entretanto, em demandas praticamente idênticas movidas contra operadoras de planos de saúde, o mesmo Judiciário reconhece com frequência que o proveito econômico é estimável, já que o custo do tratamento ou do medicamento pode ser apurado por meio de tabelas, notas fiscais ou contratos. Com isso, aplica-se o art. 85, § 2º, do CPC, fixando-se os honorários como percentual sobre o valor da condenação ou da obrigação reconhecida.
Essa cisão revela uma dissonância que não resiste a uma análise crítica mais atenta. Afinal, se o bem jurídico tutelado é o mesmo - o acesso a um tratamento médico, um medicamento de alto custo ou um procedimento cirúrgico essencial -, como justificar que ele tenha natureza patrimonial em um caso e inestimável em outro, apenas porque o réu é diferente? O valor da vida e da saúde do paciente não se altera conforme a identidade de quem está obrigado a custear o tratamento.
Mais grave: essa diferenciação se dá não com base no direito material discutido - que é o mesmo -, mas unicamente em função da origem da obrigação (constitucional, no caso do Estado; contratual, no caso das operadoras). É uma distinção artificial e formalista, que compromete o próprio princípio da isonomia processual. O paciente que precisa de um medicamento de R$ 200 mil obtém o mesmo resultado prático, seja a obrigação imposta ao SUS ou ao plano de saúde. No entanto, a remuneração do advogado e a resposta processual à sucumbência seguem caminhos radicalmente distintos.
A cisão entre Estado e planos de saúde, portanto, não encontra respaldo lógico, normativo ou constitucional, pois afronta o critério da igualdade material e ignora a função reparadora e alimentar dos honorários sucumbenciais. Em tempos de judicialização intensa da saúde e sobrecarga do sistema, esse tipo de incoerência não pode mais ser tolerado como se fosse uma questão meramente técnica: trata-se de uma falha estrutural que compromete a integridade do sistema de justiça e exige correção urgente.
A inconsistência que viola a segurança jurídica e a isonomia
O tratamento desigual conferido a ações de saúde - conforme o réu seja o Estado ou uma operadora privada - não é apenas um detalhe técnico processual, mas uma distorção que afeta diretamente dois pilares do Estado de Direito: a segurança jurídica e a isonomia. Quando casos substancialmente idênticos recebem soluções processuais diferentes, a previsibilidade das decisões judiciais se dissolve, e com ela o próprio ideal de justiça.
A segurança jurídica, enquanto valor constitucional implícito e princípio estruturante do processo civil, pressupõe estabilidade, coerência e previsibilidade nas decisões judiciais. O jurisdicionado e seus procuradores devem poder antecipar, com razoável segurança, as consequências jurídicas de seus atos e a lógica dos critérios aplicáveis. No entanto, diante da jurisprudência atual, um mesmo pedido de fornecimento de medicamento de alto custo pode resultar em honorários de R$ 2 mil quando a ação é proposta contra o Estado e em R$ 20 mil quando ajuizada contra um plano de saúde - ainda que, muitas vezes, o trabalho processual contra o ente público seja mais intenso, diante da tendência reiterada de descumprimento das ordens judiciais, da necessidade de promover bloqueios sucessivos e da quase inexistência de sanções efetivas aos agentes públicos responsáveis pelo inadimplemento.
Esse cenário gera um ambiente de insegurança institucional, em que a remuneração do advogado e o ônus da sucumbência não derivam da complexidade do processo nem da relevância da causa, mas sim da identidade formal do réu. Isso viola a própria racionalidade do art. 85 do CPC, que visa remunerar de forma proporcional o trabalho do patrono da parte vencedora, valorizando o êxito obtido e o benefício gerado pela tutela jurisdicional.
Além disso, a isonomia processual é frontalmente comprometida. A Constituição Federal, em seu art. 5º, caput, assegura o princípio da igualdade, exigindo tratamento igual aos iguais na medida de sua igualdade. Ora, não há fundamento material que justifique que dois cidadãos com o mesmo diagnóstico, o mesmo risco de vida e o mesmo tratamento prescrito recebam respostas judiciais divergentes quanto ao valor dos honorários de seus advogados - apenas porque um deles possui plano de saúde e o outro depende do SUS.
A tentativa de justificar tal distinção com base na origem da obrigação - contratual no caso dos planos, constitucional no caso do Estado - é insuficiente e inadequada. Isso porque a obrigação imposta judicialmente, em ambos os casos, concretiza o mesmo direito fundamental: o acesso ao tratamento de saúde necessário para preservar a vida e a dignidade do indivíduo. O que está em discussão, no fundo, não é a natureza da obrigação em si, mas o resultado prático da demanda - e esse resultado é idêntico: o paciente obtém o tratamento. Logo, o proveito econômico para fins de honorários também deveria ser considerado idêntico.
Ao tratar de maneira desigual quem se encontra em condição equivalente, o sistema jurídico compromete a coerência interna do ordenamento e mina a confiança do jurisdicionado. Essa falha ainda gera consequências econômicas relevantes, como a instrumentalização da estratégia processual em favor da parte que gera maior honorário - o que pode desvirtuar o foco da tutela jurisdicional e deslocar indevidamente a responsabilidade sanitária para o setor privado.
É necessário, portanto, superar essa inconsistência com base nos princípios constitucionais da isonomia e da segurança jurídica, reconhecendo que, para fins de arbitramento de honorários, o critério relevante deve ser a mensurabilidade objetiva do benefício obtido - e não a natureza subjetiva do réu. Qualquer solução distinta disso perpetua a arbitrariedade e afronta o próprio ideal republicano de justiça acessível, coerente e imparcial.
O impacto prático para a advocacia e os jurisdicionados
A discrepância de critérios no arbitramento dos honorários sucumbenciais não é apenas um problema teórico ou de coerência dogmática. Seus efeitos práticos são concretos, mensuráveis e impactam diretamente tanto a advocacia quanto os próprios jurisdicionados.
Em termos objetivos, a diferença nos valores fixados pode chegar a até 700%, conforme demonstram simulações extraídas da jurisprudência recente:
- Simulação 1 - Medicamento de R$ 50 mil/ano
- Ação contra o Estado (honorários por equidade): R$ 1.000 a R$ 3.000
- Ação contra plano de saúde (percentual de 10% a 20%): R$ 5.000 a R$ 10.000
- Diferença: entre 67% e 233% superior
- Simulação 2 - Tratamento de R$ 200 mil
- Ação contra o Estado: R$ 2.000 a R$ 5.000
- Ação contra plano de saúde: R$ 20.000 a R$ 40.000
- Diferença: entre 300% e 700% superior
- Simulação 3 - Procedimento cirúrgico de R$ 100 mil
- Ação contra o Estado: R$ 1.500 a R$ 4.000
- Ação contra plano de saúde: R$ 10.000 a R$ 20.000
- Diferença: entre 150% e 400% superior
Esses dados ilustram de forma cristalina como a natureza do réu tem se tornado fator determinante na fixação dos honorários, e não o trabalho efetivamente desenvolvido ou o valor do benefício obtido pela parte autora. Para o advogado que atua na área da saúde, essa instabilidade afeta diretamente a previsibilidade de sua remuneração - o que, por sua vez, pode influenciar indevidamente a estratégia processual adotada.
Na prática, há uma inclinação crescente de direcionamento preferencial das demandas contra planos de saúde, mesmo em hipóteses em que o Estado seria também responsável ou até mais indicado como réu. Isso desequilibra a correta distribuição de responsabilidades no sistema de saúde, desloca o ônus financeiro para o setor privado e, mais grave, cria um viés econômico que contamina o exercício técnico da advocacia.
A advocacia, enquanto função essencial à administração da justiça, depende de critérios objetivos e previsíveis para exercer seu papel de forma plena. A manutenção de uma jurisprudência incoerente e contraditória mina essa base e gera efeitos colaterais que atingem todo o sistema - inclusive o próprio jurisdicionado, que pode deixar de ter sua demanda estruturada da forma mais adequada, em razão de variáveis alheias ao mérito do direito discutido.
Caminhos para uma jurisprudência coerente
Diante da disparidade identificada entre os critérios utilizados para o arbitramento de honorários sucumbenciais em ações de saúde, conforme a natureza do réu, impõe-se a necessidade de reconstrução interpretativa que promova unidade, coerência e efetividade ao sistema processual. Não se trata de mera adequação técnica, mas de um verdadeiro compromisso institucional com os princípios constitucionais da segurança jurídica, da isonomia e da efetividade da jurisdição.
A jurisprudência brasileira, especialmente no STJ, já sinaliza um movimento de transição. O julgamento do EREsp 1.866.671, pela Corte Especial, introduziu o critério do benefício patrimonial imediato como elemento objetivo para mensurar o proveito econômico - mesmo em ações contra o Estado. Esse novo entendimento rompe, ao menos em parte, com a lógica tradicional da "inestimabilidade automática" do direito à saúde em demandas públicas, e se alinha a uma visão mais concreta e funcional do processo.
Entretanto, esse avanço, embora promissor, não foi ainda completamente assimilado pelas instâncias ordinárias, tampouco resultou em uniformização clara. Persistem decisões que, ignorando a evolução jurisprudencial, continuam a arbitrar honorários por equidade em ações cujo valor da causa ou do benefício obtido é plenamente mensurável. Essa fragmentação jurisprudencial alimenta a imprevisibilidade e perpetua o paradoxo: tratamentos idênticos continuam a gerar honorários diferentes, a depender apenas do polo passivo da lide.
Para superar essa instabilidade, o caminho mais seguro e desejável seria a adoção de um critério unificado e objetivo, com base na mensurabilidade econômica do objeto da demanda - independentemente de o réu ser ente público ou plano de saúde privado. Esse critério, ancorado no art. 85, § 2º do CPC, atende aos requisitos de previsibilidade, proporcionalidade e racionalidade processual, além de conferir tratamento isonômico a todos os jurisdicionados.
Tal unificação permitiria que os honorários fossem fixados com base em parâmetros econômicos reais, como o valor do medicamento, a duração prevista do tratamento ou o custo médio do procedimento médico, quando identificáveis. A apreciação equitativa, por sua vez, seria preservada como exceção legítima e restrita, reservada às hipóteses em que a quantificação do benefício é efetivamente inviável - como nos casos de terapias experimentais, tratamentos de urgência genéricos ou quando o valor da causa for irrisório.
A construção de uma jurisprudência coerente demanda, ainda, compromisso institucional por parte das turmas do STJ, tanto de Direito Público quanto de Direito Privado, para a superação expressa dos entendimentos contraditórios que ainda coexistem. É fundamental que precedentes representativos, recursos repetitivos ou até mesmo súmulas vinculantes sejam utilizados como mecanismos de padronização, evitando que a solução de uma controvérsia dependa da "sorte" do relator ou da turma sorteada.
Por fim, é imprescindível que essa mudança venha acompanhada de clareza comunicacional nos julgados, permitindo que magistrados de todas as instâncias compreendam o novo paradigma e o apliquem de forma uniforme. A coerência jurisprudencial não é apenas uma exigência técnica; é uma garantia de justiça material e de respeito ao devido processo legal substancial.
Uma jurisprudência coerente é aquela que, além de respeitar o texto legal, honra os princípios que sustentam o sistema processual: paridade de armas, previsibilidade, racionalidade decisória e remuneração condigna da advocacia. A equalização dos critérios para fixação de honorários em ações de saúde é um passo necessário nesse sentido - e, mais do que necessário, é urgente.
Conclusão
A discrepância jurisprudencial na fixação de honorários sucumbenciais em demandas de saúde - a depender da identidade do réu - não é apenas uma falha interpretativa, mas um sintoma de um sistema que ainda oscila entre a aplicação formal da norma e a realização de uma justiça substancial. Quando o mesmo tratamento médico gera, em ações distintas, honorários drasticamente diferentes apenas porque o réu é o Estado ou uma operadora de saúde, resta evidente a violação à isonomia, à coerência normativa e à segurança jurídica que devem reger o processo civil.
A manutenção dessa cisão interpretativa compromete não apenas a advocacia, que é função essencial à Justiça, mas também a credibilidade do próprio Judiciário, cujas decisões deveriam ser previsíveis, racionais e uniformes. A ausência de critério único gera distorções econômicas relevantes, impacta na estratégia processual e desestimula o ajuizamento de ações mais complexas ou contra entes públicos, não por razões jurídicas, mas por desestímulo remuneratório. Isso reduz o acesso pleno à Justiça e desequilibra a já delicada engrenagem da judicialização da saúde.
Diante disso, é imperativo que o Poder Judiciário - e especialmente o STJ - assuma o protagonismo na consolidação de um critério objetivo, racional e isonômico: se o benefício econômico é mensurável, que os honorários sejam fixados conforme o art. 85, § 2º do CPC, independentemente de quem figure no polo passivo. Já a apreciação equitativa deve ser preservada como exceção legítima e bem fundamentada, utilizada com parcimônia e apenas em hipóteses verdadeiramente excepcionais. Somente com essa uniformização será possível restituir integridade ao sistema processual, garantir paridade entre as partes e resgatar o sentido constitucional da advocacia como instrumento de efetivação da justiça.