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Ludopatia e compliance nas apostas online: Como as BETs podem prevenir riscos

O que dizem o CDC, a jurisprudência e a regulação da SPA sobre vulnerabilidade do consumidor e limites da responsabilização das plataformas.

terça-feira, 10 de junho de 2025

Atualizado em 9 de junho de 2025 11:47

1. Introdução

Com a expansão do mercado de apostas esportivas no Brasil, impulsionada pela lei 14.790/231, emergiu um debate delicado: as casas de apostas - conhecidas como BETs - podem ser responsabilizadas por comportamentos compulsivos dos jogadores, especialmente os afetados pela ludopatia? Como equilibrar o direito à proteção do consumidor com os limites da responsabilidade civil objetiva, por enquadrar-se jogador como consumidor e a BET como fornecedora?

Este artigo analisa o tratamento jurídico da ludopatia nas relações de consumo, à luz do CDC, das normas da SPA/MF - Secretaria de Prêmios e Apostas, da jurisprudência, de dados médicos publicados e doutrinária especializada. O enfoque é técnico, preventivo e voltado à realidade regulatória das plataformas licenciadas e a necessidade de bem delimitar o que é responsabilidade do Estado e das empresas.

2. O que é Ludopatia e quais seus reflexos pessoais e jurídicos?

A ludopatia, também conhecida como jogo patológico ou transtorno do jogo, é reconhecida como um transtorno mental caracterizado pela compulsão em jogar, mesmo diante de consequências negativas significativas.

E a OMS - Organização Mundial da Saúde classifica a ludopatia sob o código F63.0 da CID-10, definindo-a como "episódios repetidos e frequentes de jogo que dominam a vida do sujeito em detrimento dos valores e dos compromissos sociais, profissionais, materiais e familiares"2.

Contudo, a condição médica não se confunde com incapacidade civil, elemento importantíssimo para a análise dos efeitos jurídicos da patologia.

Como esclarece o psiquiatra Ronaldo Laranjeira (UNIFESP), "o jogador patológico mantém discernimento, mas apresenta prejuízo na regulação de seus impulsos, o que exige políticas públicas coordenadas, e não apenas restrições comerciais"3.

No DSM-5, manual diagnóstico da Associação Americana de Psiquiatria, o transtorno do jogo é incluído na seção de "Transtornos Relacionados a Substâncias e Transtornos Aditivos", refletindo a compreensão de que o jogo compulsivo compartilha características neurobiológicas e comportamentais com dependências químicas4.

E embora faltem estudos epidemiológicos abrangentes no Brasil, estimativas indicam que cerca de 1,5% da população brasileira sofre de algum transtorno relacionado ao vício em jogos de azar. Essa estimativa é baseada em estudos realizados em diversas regiões do país5.

Já os dados do Senado Federal apontam que a ludopatia é o terceiro vício mais frequente no Brasil atualmente, estimando-se que atinja pelo menos 2,78 milhões de brasileiros, ficando atrás apenas do álcool e do tabagismo6.

Além disso, com a popularização dos jogos de azar na internet, o Brasil registrou um aumento significativo nos números de atendimentos relacionados à ludopatia nos últimos anos: 65 em 2020; 413 em 2021; 841 em 2022; 1.290 em 2023; e 1.161 até novembro de 20247.

Importante considerar, que a ludopatia frequentemente coexiste com outros transtornos psiquiátricos, incluindo abuso de substâncias, depressão e transtornos de ansiedade, exigindo abordagens terapêuticas integradas.

Até porque, os impactos da ludopatia são extensos, afetando não apenas o indivíduo, mas também sua família e a comunidade, gerando como consequências comuns:

  • Financeiras: endividamento, perda de bens e falência;
  • Sociais: isolamento, deterioração de relacionamentos e problemas legais;
  • Psicológicas: ansiedade, depressão e, em casos extremos, ideação suicida.

Tais impactos, justamente por se relacionarem a outros transtornos, exigem tratamento multidisciplinar, não se resolvendo simplesmente com a aplicação de regras estatais para regulação do mercado.

A psicóloga Paola Cecília Duarte César ressalta que, "embora reconhecida como um transtorno de graves repercussões, a ludopatia permanece frequentemente subdiagnosticada. O jogo patológico tem impactos profundos na saúde mental e nas relações sociais, sendo agravado por fatores sociais e econômicos. Segundo a especialista, "há equívoco em negligenciar a prevenção entre crianças e adolescentes, especialmente em ambientes escolares e comunitários".

Paola destaca que as normas aplicadas às plataformas de apostas ajudam a mitigar os riscos, mas não são suficientes para impedir o desenvolvimento do transtorno. O enfrentamento exige políticas públicas integradas, com campanhas educativas, capacitação de profissionais, fortalecimento da RAPS - Rede de Atenção Psicossocial e levantamento de dados confiáveis sobre a incidência do distúrbio. Sem esse aparato multidisciplinar e público, não é razoável transferir à iniciativa privada a responsabilidade integral pela prevenção e tratamento da ludopatia8.

Do ponto de vista jurídico, a ludopatia não implica, por si só, em incapacidade civil, como vimos, até porque o indivíduo mantém sua capacidade de discernimento e responsabilidade pelos atos praticados, salvo em casos extremos, onde se comprove a total incapacidade de compreender o caráter ilícito de suas ações.

E no contexto das apostas online, a responsabilização das plataformas por danos decorrentes da ludopatia dos usuários deve de fato ser tema de debate e, atualmente, já existem várias ações coletivas ajuizadas exigindo-se que as BETs sejam responsabilizadas pelos danos causados aos consumidores9.

Mas qual seria o fundamento? O fundamento, na maioria das vezes, passa pela hipossuficiência e vulnerabilidade, conceitos característicos da relação de consumo. Mas será que basta o preenchimento destas condições para a aplicação da responsabilidade objetiva prevista na norma consumerista?

Leia o artigo na íntegra.

_______

1 Disponível em L14790. Acesso em 28/05/2025.

2 Organização Mundial da Saúde, CID-10, F63.0; American Psychiatric Association, DSM-5, 2013.

3 Ronaldo Laranjeira. Professor de Psiquiatria da UNIFESP. Entrevista concedida ao Núcleo de Pesquisa em Saúde Mental e Políticas Públicas, 2023.

4 American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders - DSM-5. 5ª ed. Arlington: American Psychiatric Publishing, 2013.

DOL. Aumento de viciados em jogos preocupa cenário brasileiro. Disponível em: https://dol.com.br/colunistas/leandro-mazzini/894280

6 Justificativa do PL nº 3.626/2023. Disponível em  https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?disposition=inline&dm=9476485. É importante observar que esses dados são apresentados no contexto de uma justificativa legislativa e não correspondem a um levantamento estatístico oficial realizado por órgãos como o IBGE ou o Ministério da Saúde. No entanto, refletem uma preocupação crescente no âmbito parlamentar sobre os impactos sociais e de saúde pública relacionados ao vício em jogos de azar.

7 DOL. Joédson Alves/Agência Brasil, conforme publicado em: https://dol.com.br/colunistas/leandro-mazzini/894280/aumento-de-viciados-em-jogos-preocupa-cenario-brasileiro?d=1

8 Paola Cecília Duarte César. Psicóloga CRP 06/118.214. Opinião técnica sobre ludopatia e políticas públicas. Consulta opinativa em 27/05/2025.

9 Disponível em https://www.mpgo.mp.br/portal/noticia/mpgo-aciona-251-empresas-de-jogos-esportivos-e-cassino-on-line-em-razao-dos-riscos-de-vicio-em-apostas-e-superendividamento Acesso em 30/05/2025.

Rhuana Rodrigues César

Rhuana Rodrigues César

Sócia do Chenut.

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