Quando o Direito silencia, uma carta grita: Apelo ao Vaticano
Carta enviada ao Papa denuncia os efeitos sociais da suspensão de ações sobre pejotização no STF, clamando por justiça e memória frente à precarização do trabalho.
terça-feira, 10 de junho de 2025
Atualizado em 9 de junho de 2025 13:39
Uma carta atravessa o oceano. Selada por mais de setenta entidades brasileiras e estudiosos do Direito Social, o documento deve chegar às mãos do Papa Leão XIV. A que ponto chegou à relação entre o Direito e o desamparo para que se tornasse necessário recorrer ao Vaticano? Foi nesse contexto que, no universo jurídico trabalhista, a repercussão se fez sentir ao longo da última semana.
Não se trata de um gesto religioso, ainda que tenha alcance simbólico. Tampouco é uma ruptura institucional. Mas seria possível ignorar o fato de que, em um Estado laico, corpos jurídicos especializados tenham se sentido impelidos a buscar, fora do território nacional, a escuta que lhes faltou por aqui?
A carta não pede indulgência. Pede atenção. Não reivindica dogmas. Solicita memória. E talvez, no fundo, ela não se dirija apenas ao Pontífice, mas a todos que já não sabem mais o que fazer diante de uma decisão judicial que, embora tecnicamente fundamentada, suspende o trâmite de milhares de ações trabalhistas que discutem vínculos disfarçados sob a roupagem da pejotização.
A carta denuncia os efeitos da decisão monocrática do STF que suspendeu, em âmbito nacional, o julgamento de milhares de ações trabalhistas que discutem a chamada "pejotização", prática que transforma relações de emprego em falsas relações de prestação de serviços, sob o disfarce da pessoa jurídica. A decisão foi baseada no Tema 1.389 da repercussão geral, sob o argumento de evitar decisões conflitantes até a fixação de tese definitiva.
Mas o que acontece com os trabalhadores enquanto isso?
A paralisação atinge vidas reais. A elas, a "modernidade" imposta cobra caro: ausência de proteção social, insegurança jurídica, perda de direitos como licença-maternidade, descanso semanal, afastamento médico e acesso à previdência.
O documento dirigido ao Vaticano não é um ato religioso, mas um gesto simbólico e político. Ao recorrer ao Papa, as entidades signatárias evocam a tradição da Igreja Católica em defesa da justiça social, especialmente através de encíclicas como Rerum Novarum (1891)1 e Laborem Exercens (1981)2, que reconhecem o trabalho como direito e meio de dignidade.
O apelo busca relembrar que o trabalho, na CF/88, é fundamento da República, não é concessão, nem privilégio. E que a CLT - Consolidação das Leis do Trabalho representa um pacto civilizatório firmado após décadas de luta contra a exploração. A suspensão de milhares de processos trabalhistas, por um único voto, lança sombra sobre esse pacto.
Por quanto tempo se pode sustentar uma democracia social baseada em direitos suspensos? Esse é o questionamento que ecoa nas entrelinhas da carta.
A crítica que surge da mobilização é profunda: a pejotização irrestrita, vendida como sinônimo de autonomia e flexibilidade, desumaniza. Tira o trabalhador do campo da proteção coletiva e empurra-o para a lógica da mercadoria. E os efeitos sociais são desiguais: atinge mais intensamente mulheres, negros, migrantes, pessoas trans e moradores da periferia, justamente os que já carregam o peso histórico da desigualdade.
O documento também indaga o papel das instituições: Qual é a responsabilidade do Senado diante do uso crescente de decisões monocráticas com impactos nacionais? Qual será a posição dos demais ministros do Supremo sobre um tema de tamanha relevância social? Até quando a sociedade civil aceitará que o direito do trabalho seja tratado como obstáculo à eficiência?
A carta enviada ao Papa não traz respostas fechadas. Traz perguntas que não podem mais ser evitadas. E talvez esse seja seu maior mérito: reacender um debate ético sobre a centralidade do trabalho e a função social da Justiça.
Enquanto os tribunais silenciam, enquanto o Estado posterga, enquanto o mercado aplaude a precarização disfarçada de liberdade, resta a palavra.
E quando a Justiça do Trabalho não pode falar, resta escrever. Resta enviar uma carta ao mundo.
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1 https://www.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum.html. Acesso em 08 de junho de 2025
2 https://emfoco.org.br/capa.asp?nc=685&ref=enciclica_laborem_exercens_-_parte_1. Acesso em 08 de junho de 2025.
Isabel Cristina de Medeiros Tormes
Formada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Isabel Cristina de Medeiros Tormes é advogada com atuação exclusiva na área trabalhista há quase três décadas. Especialista em Direito da Moda (Fashion-Law), é presidente da Associação dos Advogados Trabalhistas de São Paulo (AATSP) e sócia do Rodrigues Jr. Advogados.