Exercício ilegal da medicina na odontologia
Estética, poder e distorção jurídica. Este artigo revela como a odontologia tem sido alvo de perseguição legal e institucional por desafiar antigos monopólios.
quarta-feira, 11 de junho de 2025
Atualizado às 15:07
1. Exercício ilegal da medicina ou criminalização da odontologia?
Imagine estudar 5 anos, se especializar com uma pós-graduação em estética facial, investir em dezenas de cursos e mentorias, transformar a autoestima e a vida de centenas de pacientes... e, mesmo assim, terminar réu em um processo criminal.
Essa é a realidade de centenas de cirurgiões-dentistas no Brasil, acusados injustamente de exercer ilegalmente a medicina. Mas... será mesmo?
O crime de exercício ilegal da medicina está previsto no art. 282 do CP brasileiro. A norma visa proteger a saúde pública, garantindo que apenas profissionais legalmente habilitados possam realizar atos médicos. A ideia é simples e necessária: impedir que pessoas sem formação adequada exponham a vida e a integridade física de pacientes a riscos indevidos.
O tipo penal se configura quando:
- Alguém exerce a medicina sem ter diploma reconhecido e registro profissional;
- Ou realiza atos privativos de médicos sem estar legalmente autorizado.
Exemplo: Se um esteticista realiza uma lipoaspiração (procedimento invasivo) sem formação, isso é, de fato, exercício ilegal da medicina.
A grande importância dessa norma está na preservação da saúde pública e da vida. No entanto, quando mal interpretada ou maliciosamente aplicada, pode gerar consequências desastrosas. Um processo criminal injusto não apenas abala a carreira e a reputação de um profissional, mas também gera sofrimento emocional, estigmatização social e prejuízos financeiros severos.
A distorção dessa norma tem gerado aberrações jurídicas. Cirurgiões-dentistas, legalmente habilitados e atuando dentro da sua área de competência - como na HOF - Harmonização Orofacial, ou em procedimentos cirúrgicos estéticos faciais - estão sendo processados criminalmente, como se estivessem usurpando funções médicas.
E isso precisa ser discutido.
2. A lei do ato médico e sua não aplicabilidade à odontologia
A lei 12.842/13, conhecida como lei do ato médico, foi criada por iniciativa da classe médica com o objetivo de regulamentar os atos considerados privativos da medicina. Seu foco é proteger a população de práticas indevidas por não-médicos, delimitando com clareza quais atividades exigem obrigatoriamente formação e inscrição em conselho regional de medicina.
Entre os principais atos privativos estão o diagnóstico de doenças, a prescrição de tratamentos e a realização de intervenções invasivas com finalidade terapêutica.
Contudo, a própria lei traz um limite essencial. O § 6º do art. 4º afirma:
"Art. 4º São atividades privativas do médico: § 6º O disposto neste artigo não se aplica ao exercício da Odontologia, no âmbito de sua área de atuação."
Esse inciso não é decorativo. Ela é essencial para garantir que a odontologia continue exercendo suas funções constitucionais sem interferência indevida. A lei do ato médico é aplicável apenas à medicina. Utilizá-la como fundamento para criminalizar cirurgiões-dentistas que atuam dentro de sua habilitação é juridicamente equivocado e perigoso.
3. O que a lei diz sobre a atuação do cirurgião-dentista
A lei 5.081/66 é o diploma legal que regulamenta o exercício da odontologia no Brasil. É essa lei que define o que compete ou não ao cirurgião-dentista, e não a qualquer outro conselho profissional.
Ao contrário do senso comum, a atuação odontológica não está restrita ao meio intraoral. A odontologia é uma ciência da saúde voltada para a região da cabeça e pescoço, com ênfase nas estruturas crânio-maxilo-faciais. Especialidades como a cirurgia e traumatologia bucomaxilofacial, a harmonização orofacial e a prótese facial são exemplos concretos dessa abrangência.
O art. 6º da lei 5.081/66 é taxativo ao dispor:
"Compete ao cirurgião-dentista:
I - praticar todos os atos pertinentes à Odontologia, decorrentes de conhecimentos adquiridos em curso regular ou em cursos de pós-graduação."
Ou seja, qualquer procedimento que tenha respaldo na formação do profissional, seja em graduação ou em pós-graduação reconhecida, é legalmente permitido ao cirurgião-dentista.
Procedimentos como toxina botulínica, preenchedores, bioestimuladores, rinomodelação, lifting facial, lipo de papada e até cirurgias mais invasivas estão contemplados, desde que o profissional esteja devidamente capacitado e respaldado tecnicamente.
A odontologia é uma ciência da saúde autônoma, com legislação própria, fiscalização específica e formação reconhecida. Reduzi-la a um subcampo da medicina é ignorar o ordenamento jurídico brasileiro e ferir a autonomia profissional.
4. Quando criminalizar o legal vira ilegalidade
O art. 282 do CP é frequentemente utilizado para sustentar acusações contra cirurgiões-dentistas. Mas para que o crime de exercício ilegal da medicina se configure, é necessário provar que:
- O ato é privativo da medicina;
- O agente não possui habilitação legal para realizá-lo.
Se o procedimento está previsto na lei 5.081/66, se foi aprendido em curso regular ou pós-graduação, e se o profissional é cirurgião-dentista legalmente inscrito em seu conselho, não há crime. O que existe é uma distorção perigosa da norma penal, movida por interesses corporativistas e ignorância jurídica.
A ignorância jurídica, ainda que involuntária, não pode ser normalizada no sistema de justiça. É importante reconhecer que, apesar da formação técnica, da boa-fé e da capacidade de muitos membros do Judiciário brasileiro, nenhum magistrado ou promotor é onisciente. A complexidade do Direito exige estudo constante, análise aprofundada e interpretação sistemática - especialmente quando se trata de tipificar condutas criminais.
Uma simples intimação para oitiva, quando o fato sequer configura crime, já é suficiente para desestabilizar emocional, financeira e profissionalmente o investigado. O impacto é profundo e imediato. É por isso que o estudo jurídico minucioso antes de qualquer instauração de processo criminal é não apenas desejável, mas indispensável.
Transformar acusações infundadas em rotina é permitir que a exceção vire regra. E quando o arbítrio se torna prática comum, o Estado deixa de garantir justiça e passa a ameaçá-la. Não podemos aceitar que a ignorância jurídica se transforme em cultura no Judiciário brasileiro. É dever de todos os operadores do Direito zelar pela legalidade, pelo devido processo legal e, acima de tudo, pela verdade dos fatos.
Não importa se o profissional não possui título de especialista. A lei exige formação e capacitação, não especialidade. A ausência de especialidade pode, no máximo, ensejar a apuração ético-disciplinar no âmbito do conselho - nunca ação penal.
E mesmo em casos de intercorrência - como complicações pós-procedimento - o caminho legítimo é a análise cível para eventual reparação de danos, jamais o uso da esfera criminal como ferramenta de perseguição ou intimidação profissional.
Processos penais sem respaldo legal deveriam ser arquivados sumariamente por delegados e promotores, sob pena de se tornar o próprio Estado agente de criminalização indevida. Isso não é justiça. Isso é abuso.
Não há justiça criminal sem prova. E não há prova válida sem perícia, contraditório e legalidade. O que se vê aqui não é exercício ilegal da medicina. É tentativa ilegal de criminalização da odontologia.
"Ignorância jurídica não pode virar cultura judicial".
5. A guerra invisível: Desinformar para dominar
Estamos diante de um verdadeiro lawfare corporativo: uma guerra jurídica silenciosa movida por interesses de classe, em especial por entidades médicas, que têm se utilizado de campanhas midiáticas e redes sociais para distorcer a percepção pública sobre a odontologia.
Canais de grande alcance nacional como Globo, Record, SBT e diversos jornais regionais têm veiculado matérias tendenciosas, muitas vezes baseadas em fontes parciais e desprovidas de fundamento técnico. Paralelamente, perfis oficiais de conselhos e associações médicas em redes sociais reforçam a narrativa de que somente médicos seriam aptos a realizar procedimentos estéticos faciais, omitindo deliberadamente a existência da legislação odontológica.
Com o respaldo de uma estrutura financeira robusta, ampla visibilidade institucional e credibilidade histórica, essas entidades médicas influenciam a opinião pública - e, o que é ainda mais grave, confundem autoridades judiciais, policiais e administrativas. O resultado disso é devastador: inquéritos abertos sem justa causa, denúncias infundadas, perícias unilaterais e decisões judiciais equivocadas.
Essa é uma estratégia de manutenção de monopólio por meio do medo, onde a medicina tenta sufocar a autonomia da odontologia, por puro desespero institucional. E o pior: tem funcionado. A cada nova exposição pública ou processo injusto, milhares de cirurgiões-dentistas no Brasil são impactados - emocional, profissional e financeiramente.
Esse conflito institucional precisa ser trazido à luz do debate jurídico, enfrentado com técnica e vencido com legalidade.
6. Conclusão:
A verdade dos fatos como único caminho para a justiça
A criminalização indevida da odontologia não é um erro isolado. É um reflexo de um sistema que, muitas vezes, falha em compreender as fronteiras legais entre profissões da saúde. O problema não é a existência do art. 282 do CP. O problema é a sua interpretação arbitrária e enviesada contra profissionais legalmente habilitados.
A ignorância jurídica - ainda que involuntária - não pode ser naturalizada dentro das instituições que deveriam proteger a legalidade. O Judiciário, o Ministério Público e as autoridades policiais precisam compreender que a odontologia é uma ciência autônoma, com legislação própria, prerrogativas definidas e responsabilidades estabelecidas em lei.
Antes de qualquer medida inquisitória, é necessário estudo, análise técnica e compreensão do ordenamento jurídico. Uma simples intimação por um crime inexistente já causa danos irreversíveis à vida de um profissional da saúde. Normalizar isso é aceitar o colapso do Estado de Direito.
Que fique registrado: criminalizar o que é legal é, por si só, ilegal. E quando isso parte do próprio Estado, a violação é ainda mais grave.
A odontologia não precisa de permissão. Ela precisa de respeito. E a Justiça, de coerência.