Reforma do Código Civil: Uma luz para 1 milhão de crianças sem pai?
1 milhão de crianças ficaram sem o nome do pai entre 2016 e 2024. Com a reforma do CC, mãe poderá indicar o pai, e caberá a ele provar que não é o genitor.
quinta-feira, 12 de junho de 2025
Atualizado em 13 de junho de 2025 09:17
Introdução
A paternidade, especialmente seu reconhecimento formal, sempre foi um tema sensível e controverso. Desde os tempos antigos - como no caso do imperador romano Augusto, que reconheceu o sobrinho Otaviano como filho em testamento - até o Brasil do início do século XX, em que o CC de 1916 dava ao marido o direito exclusivo de contestar a paternidade dos filhos de sua esposa, o assunto tem despertado debates jurídicos e sociais.
Com o tempo, avanços científicos e mudanças nas estruturas familiares transformaram essa realidade. Hoje, testes de DNA oferecem precisão na identificação de vínculos biológicos, até mesmo durante a gestação. Ao mesmo tempo, novas formas de família se consolidam, como a união estável e até mesmo relações afetivas sem compromisso formal - o chamado "contrato de namoro", conceito desenvolvido por autores como Marília Pedroso Xavier, que enfatizou a nova realidade de relacionamentos líquidos.
Essas mudanças mostram que a concepção de filhos pode surgir fora dos modelos tradicionais, o que antes poderia dificultar o reconhecimento da paternidade, todavia com o avanço da ciência e o direito oferecem ferramentas mais eficazes para garantir os direitos das crianças e adolescentes, mesmo nos contextos familiares mais complexos.
A CF/88 trouxe um novo paradigma ao tratar da filiação, sob a égide do princípio do melhor interesse da criança. Estabeleceu-se que todos os filhos, independentemente da origem - sejam nascidos dentro ou fora do casamento, ou adotados - possuem os mesmos direitos, vedando qualquer forma de discriminação, conforme dispõe o § 6º do art. 227 da Carta Magna (Brasil, 1988). Essa norma foi decisiva para afastar designações pejorativas como "filho bastardo" e fortaleceu a noção de filiação como um direito fundamental.
Apesar de todo esse avanço normativo, a ausência do nome paterno na certidão de nascimento ainda representa uma realidade preocupante. Entre 2016 e 2024, dados da Arpen - Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais indicam que, de cerca de 16 milhões de nascimentos registrados, mais de 800 mil ocorreram sem a identificação do pai. Esse dado revela um descompasso entre os avanços legislativos e a prática registral cotidiana.
Nesse cenário, alguns dispositivos legais buscaram romper com o paradigma tradicional da filiação paterna. A lei 8.560/1992, por exemplo, alterou significativamente o tratamento jurídico do registro civil ao permitir que a mãe, ao registrar o filho fora do casamento, possa indicar o nome e o endereço do suposto pai, que será notificado para confirmar ou não a paternidade. Além disso, essa legislação eliminou as barreiras temporais para o reconhecimento da filiação, ao assegurar que ações de investigação ou contestação de paternidade não estejam sujeitas à decadência ou prescrição.
O CC vigente também aborda o reconhecimento da paternidade fora do casamento, especialmente em seu art. 1.609, ao prever a irrevogabilidade do reconhecimento feito por meio de registro, escritura pública, testamento ou manifestação judicial. Complementando esse avanço, a lei 13.112/15 facilitou o procedimento ao permitir que o reconhecimento voluntário da paternidade possa ser realizado diretamente em cartório, inclusive após o registro do nascimento, sem necessidade de decisão judicial. Todavia, mesmo diante desse arsenal jurídico, ainda prevalece um número elevado de crianças sem o nome do pai no registro civil. Essa persistente realidade coloca em xeque a efetividade das normas legais e suscita reflexões sobre os fatores que conduzem à omissão paterna, bem como as consequências jurídicas e sociais advindas dessa ausência.
A falha paterna no registro de nascimento
A ausência paterna pode ser explicada por diversos fatores, sendo a falta de responsabilidade uma das causas mais recorrentes. Muitos homens, imaturos ou despreparados psicologicamente, evitam assumir a paternidade decorrente de suas próprias ações sexuais. A gestação, ocorrendo exclusivamente no corpo da mulher, contribui para esse afastamento inicial, dificultando a formação de vínculos afetivos.
Embora a ciência aponte que o nascimento pode estreitar os laços entre pai e filho, muitos pais ausentes mesmo após o parto, negligenciando o vínculo afetivo e a responsabilidade legal decorrentes da paternidade. Esse afastamento voluntário configura uma forma de auto alienação parental, na qual o genitor se omite, desconsidera os sentimentos da criança e abdica de qualquer compromisso emocional ou material.
Segundo a professora Ana Ricarte, essa conduta pode ser compreendida como alienação autoinfligida, uma prática em que o pai não apenas se omite, mas também, por vezes, desqualifica o outro genitor ou interfere negativamente no vínculo da criança com ele, ainda que por ausência. Tal postura resulta em graves consequências: a criança cresce sem referência paterna, sem suporte financeiro, sem o reconhecimento sucessório e com danos psicossociais significativos. Simultaneamente, a mãe assume sozinha as responsabilidades da criação, perpetuando um ciclo de sobrecarga emocional e econômica.
As pesquisadoras Priscilla Barbieiro e Maria Ticianelli destacam que, nesse cenário de alienação - ativa ou passiva -, os genitores permanecem presos a um ciclo de acusações e mágoas, enquanto as crianças são lançadas à invisibilidade, desprovidas de proteção e do reconhecimento de sua condição de sujeitos de direito, com sentimentos, emoções e necessidades legítimas.
A paternidade ausente, portanto, representa uma lesão concreta aos direitos das crianças, não apenas do ponto de vista afetivo, mas sobretudo jurídico e social. Ela compromete o acesso a direitos essenciais, como o de personalidade, o reconhecimento da origem e o pertencimento familiar.
No plano legal, embora o chamado "direito à afetividade" não seja diretamente exigível judicialmente, o direito à identidade, à origem biológica e ao registro civil completo é garantido constitucionalmente e deve ser respeitado. A criança, como sujeito em desenvolvimento, depende da atuação dos genitores, da sociedade e do Estado para que esses direitos sejam efetivados.
Estudiosos do tema como Costa e Bonelli (2024) apontam que ambientes familiares disfuncionais, especialmente quando marcados por traços narcisistas de um dos genitores, podem gerar contextos de alienação parental. Neles, a criança é muitas vezes instrumentalizada e compelida a agir conforme os desejos do adulto alienador, sob pena de sofrer punições emocionais, resultando em abandono afetivo indireto.
Além dos danos emocionais, a ausência do nome paterno no registro civil compromete o exercício de diversos outros direitos: o recebimento de pensão alimentícia (nos termos da lei 5.478/1968), o acesso a benefícios previdenciários e o direito à herança. Essa omissão configura uma violação de direitos fundamentais da criança, invisibilizada tanto no plano familiar quanto institucional.
Portanto, a ausência paterna não pode ser compreendida apenas como um fenômeno individual ou circunstancial, mas sim como um problema estrutural que exige respostas jurídicas, políticas e sociais integradas, voltadas à garantia plena da dignidade da criança e do adolescente.
Propostas para alteração da realidade de abandono parental
Diante do alto número de certidões de nascimento sem o nome do pai, é urgente adotar medidas eficazes para enfrentar essa realidade. A proposta de revisão do CC/02 prevê avanços, como permitir que a mãe indique o nome do suposto pai no registro, possibilitando confirmação posterior por exame de DNA. Apesar de representar um progresso, sua efetividade depende das informações fornecidas pela mãe e tende a ser mais lenta do que o reconhecimento espontâneo. A persistência dessa omissão revela falhas estruturais e a necessidade de reformas legais e políticas públicas que promovam conscientização e apoio às famílias.
Para agilizar a investigação de paternidade, propõe-se a criação de um protocolo integrado entre cartórios e o Judiciário, com prazos obrigatórios e acesso gratuito a exames de DNA. O registro sem o nome paterno deveria ser permitido apenas em situações justificadas, como violência doméstica. Além disso, campanhas educativas, assistência jurídica gratuita, mediação familiar e apoio psicológico são fundamentais para garantir decisões conscientes.
A ausência do nome do pai decorre, em grande parte, da ineficiência do sistema registral brasileiro, que não está preparado para lidar com a complexidade do tema. Nesse cenário, ganha força a proposta de inversão do ônus da prova nas ações de investigação de paternidade, em consonância com os princípios da dignidade humana e da proteção integral à criança. Com essa mudança, caberia ao homem indicado provar que não é o pai, equilibrando a relação processual e reconhecendo a criança como parte vulnerável que merece especial proteção.
Como argumento o presidente do IBDFAM ao jornal o GLOBO "Por outro lado, o presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam), Rodrigo Pereira, acredita que a atualização no Código Civil seria um avanço importante, pois pode acelerar o processo de reconhecimento de paternidade e reduzir o número de registros sem filiação completa."
Contudo, essa medida deve ser acompanhada por protocolos cartoriais claros e obrigatórios. No momento do registro sem a presença do pai, a mãe deve ser informada sobre os direitos da criança e os meios legais para buscar o reconhecimento da paternidade. É essencial, ainda, capacitar os oficiais de registro civil com formação humanizada e jurídica para atuarem de forma sensível e responsável, em consonância às diretrizes da ARPEN - Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais.
Embora nenhuma política pública possa resolver plenamente os dramas afetivos da ausência paterna, o Estado não pode ser omisso diante dessa realidade. Negar o direito à origem, ao nome e à dignidade é compactuar com uma forma silenciosa de violência institucional. A reforma do CC, aliada à implementação de protocolos cartoriais efetivos, constitui uma resposta necessária e urgente. Mais que um avanço jurídico, trata-se da afirmação de que crianças e adolescentes são sujeitos plenos de direitos, dignos de reconhecimento e proteção.
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4 BRASIL. Lei n. 8.560, de 29 de dezembro de 1992. Regula a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 30 dez. 1992. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8560.htm. Acesso em: 1 out. 2024.
5 BRASIL. Lei n. 13.112, de 30 de março de 2015. Altera a Lei nº 8.560, de 29 de dezembro de 1992. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 31 mar. 2015. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/L13112.htm. Acesso em: 1 out. 2024.
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