A interpretação da norma isentiva no contexto da evolução tecnológica
O texto analisa o desafio de interpretar isenções frente às inovações tecnológicas, equilibrando segurança jurídica e finalidade social.
quinta-feira, 12 de junho de 2025
Atualizado às 13:49
Introdução
Como garantir que nossa legislação tributária permaneça justa e relevante em um mundo de rápidas mudanças tecnológicas? Este artigo analisa os desafios hermenêuticos das normas isentivas frente à inovação, explorando as tensões entre interpretação literal e finalística, e suas implicações para o desenvolvimento tecnológico e o bem-estar social. Em um cenário de transformações científicas aceleradas, a hermenêutica fiscal não pode se apegar a dogmas ultrapassados, sob pena de asfixiar o progresso e a justiça tributária em áreas essenciais como saúde, meio ambiente, mobilidade urbana e eficiência energética.
O desafio hermenêutico na era da inovação
O direito tributário contemporâneo enfrenta um desafio significativo: como interpretar normas isentivas quando a inovação ultrapassa os limites textuais previstos na legislação? Esta questão ganha relevância especial em setores estratégicos como a saúde e meio ambiente, onde o avanço tecnológico impacta diretamente a qualidade de vida e a sustentabilidade dos sistemas públicos.
O dilema reside no equilíbrio entre segurança jurídica e previsibilidade fiscal, essenciais para estimular investimentos em pesquisa e desenvolvimento, e a promoção da inovação e acesso a novas tecnologias, fundamentais para o desenvolvimento social, ambiental e econômico.
Caso hipotético: "A prótese OsteoPoly"
A prótese ortopédica OsteoPoly representa um salto tecnológico na medicina regenerativa. Desenvolvida após duas décadas de pesquisas multidisciplinares envolvendo bioengenharia, nanotecnologia e medicina ortopédica, esta inovação utiliza um polímero bioativo avançado que transcende a função meramente substitutiva das próteses tradicionais.
O material OsteoPoly possui uma estrutura molecular tridimensional porosa que incorpora nanopartículas de hidroxiapatita e fatores de crescimento ósseo encapsulados, liberados gradualmente no organismo. Esta composição permite que a prótese não apenas substitua a estrutura óssea danificada, mas também promova ativamente a regeneração do tecido natural do paciente.
Estudos clínicos demonstram resultados impressionantes: significativa redução no tempo médio de recuperação pós-cirúrgica, diminuição nos casos de rejeição e uma taxa de integração tecidual superior às próteses metálicas convencionais. Para pacientes idosos ou com osteoporose, a diferença é ainda mais significativa, com redução substancial nas complicações pós-operatórias.
(Aqui peço perdão se confundi técnicas e/ou materiais, mas estou muito longe da minha área de expertise - o importante é que nosso exemplo hipotético ilustra o descompasso entre a velocidade da inovação tecnológica e a rigidez das normas tributárias).
O dilema tributário
A legislação tributária (hipoteticamente, repita-se) vigente, o Convênio XYZ/20XX concede isenção de ICMS apenas para "próteses ortopédicas fabricadas em titânio ou ligas metálicas convencionais, classificadas no código NCM 9021.31.XX". Esta redação foi estabelecida em 2010, quando os materiais metálicos representavam o estado da arte em implantes ortopédicos.
A prótese OsteoPoly, apesar de sua superioridade terapêutica comprovada, é classificada no código NCM 9021.39.XX, referente a "outros implantes e próteses", não contemplado expressamente pela norma isentiva. Consequentemente, sua comercialização sofre incidência de ICMS à alíquota padrão, resultando em um sobrepreço considerável por unidade.
Impactos multidimensionais
Dimensão Econômica
A tributação integral da prótese OsteoPoly gera distorções significativas no mercado. Enquanto uma prótese de titânio isenta tem um custo acessível ao paciente, a prótese OsteoPoly, tecnologicamente superior, alcança valores consideravelmente mais elevados após a tributação. Esta disparidade cria uma barreira artificial à adoção da tecnologia mais eficiente, configurando um paradoxo econômico onde a solução inferior é artificialmente privilegiada.
Para o sistema de saúde, a equação econômica é ainda mais complexa. Embora o custo inicial da prótese OsteoPoly seja maior, análises de custo-efetividade demonstram que, considerando o ciclo completo de tratamento (cirurgia, internação, reabilitação, complicações e reintervenções), a tecnologia avançada representa uma economia potencial significativa por paciente ao longo dos anos.
Dimensão Social e Ambiental
O impacto social da interpretação restritiva da norma isentiva manifesta-se na criação de uma medicina de duas velocidades: pacientes com maior poder aquisitivo acessam a tecnologia avançada, enquanto a maioria da população permanece limitada às soluções convencionais, mesmo quando clinicamente inferiores.
No sistema público de saúde, a impossibilidade de incorporação da tecnologia OsteoPoly devido ao seu custo tributado resulta em períodos mais longos de afastamento laboral, maior ocupação de leitos hospitalares e taxas superiores de reintervenções cirúrgicas, comprometendo a eficiência sistêmica.
Além disso, a dimensão ambiental não pode ser ignorada. As próteses tradicionais frequentemente utilizam materiais cuja produção e descarte geram maior impacto ambiental, enquanto tecnologias avançadas como a OsteoPoly podem incorporar princípios de biocompatibilidade e sustentabilidade em seu desenvolvimento.
Dimensão Científica e Industrial
A interpretação restritiva da norma isentiva desestimula investimentos em pesquisa e desenvolvimento no setor. A empresa desenvolvedora da tecnologia OsteoPoly, após anos de tentativas frustradas de enquadramento na isenção, reduziu seus investimentos em P&D no Brasil, realocando recursos para unidades em países com políticas tributárias mais favoráveis à inovação em saúde.
Este cenário compromete não apenas o desenvolvimento científico nacional, mas também a competitividade da indústria brasileira no setor de tecnologias médicas avançadas, que movimenta globalmente valores significativos anualmente.
A controvérsia interpretativa na prática
O caso hipotético da prótese OsteoPoly ganhou contornos concretos quando a empresa fabricante solicitou formalmente à Secretaria da Fazenda o reconhecimento da isenção, argumentando (em síntese) que:
1) A finalidade da norma isentiva é reduzir o custo de acesso a tecnologias essenciais à saúde;
2) A classificação fiscal não acompanhou a evolução tecnológica do setor;
3) A prótese OsteoPoly cumpre a mesma função terapêutica das próteses metálicas expressamente isentas, com eficácia superior;
4) A interpretação literal não significa interpretação restritiva, conforme jurisprudência consolidada.
A resposta fazendária, fundamentada exclusivamente no art. 111, II do CTN, negou o pleito, afirmando que "a isenção tributária não comporta interpretação extensiva ou analógica, devendo restringir-se aos produtos expressamente mencionados na legislação".
O caso avançou para o contencioso administrativo, onde um laudo técnico da Faculdade de Medicina da Universidade Federal confirmou que "a prótese OsteoPoly representa uma evolução tecnológica das próteses metálicas convencionais, cumprindo a mesma finalidade terapêutica com eficácia significativamente superior".
Este cenário hipotético, mas perfeitamente plausível, ilustra o descompasso entre a velocidade da inovação tecnológica e a rigidez interpretativa das normas tributárias, especialmente quando aplicadas sem consideração ao contexto constitucional e à finalidade da desoneração.
O aparente dilema interpretativo
A questão central emerge: deve a prótese OsteoPoly ser contemplada pela isenção tributária, mesmo não se enquadrando na descrição literal do Convênio? Esta indagação revela a tensão entre duas abordagens hermenêuticas.
A interpretação literal, fundada na fidelidade ao texto normativo, oferece segurança jurídica e previsibilidade, mas pode produzir resultados anacrônicos quando a legislação não acompanha a evolução tecnológica. Já a interpretação finalística busca o propósito subjacente à norma, permitindo adaptação da lei à realidade dinâmica, embora possa gerar insegurança jurídica se aplicada sem parâmetros objetivos.
A interpretação sistemática como solução integradora
A dicotomia entre literalidade e finalidade pode ser superada pela interpretação sistemática, que harmoniza o texto legal com o ordenamento jurídico em sua integralidade, especialmente com os princípios constitucionais da isonomia (art. 150, II, CF), direito à saúde (art. 196, CF), proteção ao meio ambiente (art. 225, CF) e capacidade contributiva (art. 145, §1º, CF). Estes parâmetros constitucionais fornecem diretrizes para evitar distorções provocadas por avanços tecnológicos não contemplados expressamente pela legislação.
O caso da visão monocular
O STJ enfrentou dilema análogo ao decidir se pessoas com cegueira monocular fariam jus à isenção de Imposto de Renda prevista para "cegueira". No julgamento do REsp 1.196.500/MT, o STJ privilegiou a interpretação teleológica, reconhecendo que a cegueira monocular causa significativa limitação funcional e que a finalidade da norma isentiva é compensar os gastos adicionais decorrentes da deficiência.
Esta decisão evidencia como a interpretação contextualizada pode evitar resultados absurdos derivados da literalidade estrita, sem comprometer a segurança jurídica.
O caso dos Stents fabricados com nitinol
Um caso emblemático julgado pelo TIT/SP - Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo ilustra a evolução jurisprudencial na interpretação das normas isentivas. No AIIM 4.090.891-4, discutiu-se a aplicabilidade da isenção prevista no Convênio ICMS 01/99 para stents fabricados com nitinol (liga de alumínio e titânio), quando a norma expressamente mencionava apenas stents de aço inoxidável e cromo cobalto.
Após intenso debate jurídico, a Câmara Superior do TIT-SP negou provimento ao recurso fazendário, reconhecendo que a interpretação literal do art. 111, II do CTN não significa uma interpretação restritiva ou meramente gramatical, mas sim uma interpretação especificadora que busca o sentido exato da norma, considerando sua finalidade e contexto.
Como destacou o juiz relator César Eduardo Temer Zalaf, "a isenção recai sobre o equipamento stent, e não sobre a liga de que é feito, pois o objetivo da norma é prestigiar o acesso à saúde a pacientes que possuem patologias cardíacas". O juiz Argos Campos Ribeiro Simões complementou que "a lentidão normativa não se sobrepõe à possibilidade interpretativa contextualizada" e que "temas relacionados à saúde são de interesse público".
Este precedente demonstra que a interpretação literal exigida pelo CTN não impede a consideração do avanço tecnológico e da finalidade da norma isentiva, especialmente quando relacionada a direitos fundamentais como a saúde.
Conciliando literalidade e finalidade: Uma abordagem equilibrada
A aparente contradição entre a literalidade exigida pelo art. 111 do CTN e a necessidade de adaptação às novas realidades tecnológicas pode ser superada por uma compreensão mais sofisticada do que significa "interpretação literal".
Como ensina Aliomar Baleeiro, a interpretação literal não se restringe ao sentido gramatical das palavras, mas abrange "o núcleo incontroverso dos enunciados normativos estabelecidos pelo legislador", tendo como "limite intransponível o conjunto de todos os sentidos compreendidos na zona de penumbra ou incerteza desses enunciados".
Hugo de Brito Machado complementa essa visão, afirmando que "quem interpreta literalmente por certo não amplia o alcance do texto, mas com certeza também não o restringe. Fica no exato alcance que a expressão literal da norma permite. Nem mais, nem menos".
Essa compreensão mais sofisticada da interpretação literal encontra eco na jurisprudência do STJ. O STJ tem reiterado que a exigência de literalidade para normas isentivas não implica uma restrição indevida ou uma interpretação que ignore a mens legis. Pelo contrário, a literalidade deve garantir o exato alcance da norma, sem ampliações ou diminuições arbitrárias.
Nesse sentido, o STJ já decidiu que:
"A imposição da interpretação literal da legislação tributária que disponha sobre outorga de isenção (art. 111, inciso II, do CTN) proscreve tanto a adoção de exegese ampliativa ou analógica, como também a restrição além da mens legis ou a exigência de requisito ou condição não prevista na norma isentiva." (STJ, REsp 1.098.981/PR, relator ministro Luiz Fux, primeira turma, j. 2/12/2010, DJe 14/12/2010).
E, em outro julgado, reforçou:
"Não cabe ao intérprete restringir o alcance do dispositivo legal que, a teor do art. 111 do CTN, deve ter sua aplicação orientada pela interpretação literal, a qual não implica, necessariamente, diminuição do seu alcance, mas sim sua exata compreensão pela literalidade da norma." (STJ, REsp 1.468.436/RS, relator ministro Mauro Campbell Marques, segunda turma, j. 1/12/2015, DJe 9/12/2015).
Essas decisões demonstram que a literalidade, no contexto do art. 111 do CTN, não é um convite à interpretação restritiva que e frustre a finalidade da norma ou crie obstáculos indevidos ao contribuinte. Pelo contrário, ela serve como um balizador para que a isenção seja aplicada em sua plenitude, conforme a intenção do legislador e sem exigências adicionais.
Por um modelo interpretativo integrado
Diante deste cenário, torna-se não apenas possível, mas necessário, adotar uma interpretação evolutiva parametrizada das normas isentivas, que transcenda a mera literalidade gramatical sem abandonar a segurança jurídica. Esta abordagem reconhece a impossibilidade estrutural de o legislador antecipar todas as inovações tecnológicas e científicas, especialmente em áreas de rápida transformação como saúde e meio ambiente.
A interpretação sistemática e teleológica do art. 111 do CTN não representa uma violação ao comando legal, mas sim sua aplicação em consonância com os princípios constitucionais que informam todo o sistema tributário. Como demonstrado nos precedentes analisados, o próprio STJ já reconheceu que a literalidade não implica restrição além da mens legis, tampouco autoriza exigências não previstas na norma isentiva.
A interpretação sistemática, ao considerar a norma isentiva como parte de um ordenamento jurídico coerente e unitário, permite compreender seu sentido à luz dos princípios constitucionais tributários e dos direitos fundamentais. Quando o Convênio XYZ/20XX isenta próteses ortopédicas metálicas, não o faz por uma predileção arbitrária pelo metal, mas por reconhecer a essencialidade desses produtos para a saúde humana. A evolução tecnológica que produz a prótese OsteoPoly não altera essa finalidade essencial, apenas aprimora os meios para alcançá-la.
Por sua vez, a interpretação teleológica investiga a finalidade da norma, seu objetivo socioeconômico e os valores que busca concretizar. No caso das isenções para produtos de saúde, a finalidade é claramente garantir maior acessibilidade a tratamentos essenciais, reduzindo custos e promovendo a dignidade humana. Interpretar a isenção de forma a excluir tecnologias mais avançadas que cumprem a mesma função, apenas por não constarem expressamente do texto legal, frustra o próprio objetivo da desoneração.
Estas duas dimensões interpretativas - sistemática e teleológica - não substituem a interpretação literal, mas a complementam e enriquecem. A literalidade continua sendo o ponto de partida, mas não pode transformar-se em obstáculo intransponível quando conduz a resultados manifestamente contrários à finalidade da norma e aos princípios constitucionais.
Esta abordagem equilibra a necessidade de segurança jurídica com a justiça fiscal, evitando que a interpretação se torne arbitrária ou comprometa a arrecadação, ao mesmo tempo em que permite a adaptação do sistema tributário às novas realidades tecnológicas que promovam o desenvolvimento social, ambiental e econômico sustentável. Mais do que uma opção hermenêutica, trata-se de um imperativo constitucional de harmonização entre a legalidade tributária e os objetivos fundamentais da República.
Conclusão
A solução para o dilema interpretativo em tempos de acelerada inovação tecnológica exige uma abordagem que integre literalidade como ponto de partida, finalidade como horizonte e sistematicidade como método para alinhamento da tributação com os compromissos constitucionais do Estado. A interpretação sistemática e teleológica não é uma alternativa à interpretação literal do art. 111 do CTN, mas sua necessária complementação para evitar resultados contrários à própria razão de ser das normas isentivas.
O caso hipotético da prótese OsteoPoly, assim como o precedente real dos stents de nitinol, demonstram que, frente ao avanço científico, o direito tributário não pode constituir obstáculo à melhoria da qualidade de vida e à promoção do desenvolvimento sustentável. A interpretação meramente gramatical, desvinculada da finalidade da norma e do contexto constitucional, transforma o art. 111 do CTN em instrumento de obsolescência programada do sistema tributário, incompatível com o dinamismo da sociedade contemporânea.
A interpretação literal das normas isentivas, conforme exigida pelo art. 111 do CTN, não significa uma interpretação cega à realidade ou aos valores constitucionais, mas sim uma interpretação que busca o sentido exato da norma, sem ampliações ou restrições indevidas. Como demonstrado pela jurisprudência administrativa e judicial, é possível e necessário conciliar a literalidade com a consideração da finalidade da norma e do contexto constitucional em que se insere.
O desafio contemporâneo reside na construção de um modelo hermenêutico dinâmico, capaz de se adaptar às novas realidades tecnológicas sem comprometer os pilares da segurança jurídica e da justiça fiscal. Um sistema tributário que não acompanha a evolução tecnológica está fadado à obsolescência e à iniquidade, prejudicando tanto a inovação quanto o desenvolvimento social, ambiental e econômico sustentável em áreas estratégicas como saúde, meio ambiente, mobilidade urbana e eficiência energética. A interpretação sistemática e teleológica, longe de representar uma violação ao art. 111 do CTN, constitui sua aplicação mais fiel aos valores que informam o sistema tributário nacional.
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Legislação
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República.
BRASIL. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Código Tributário Nacional. Brasília, DF: Presidência da República.
Doutrina
BALEEIRO, Aliomar; DERZI, Misabel Abreu Machado. Direito Tributário Brasileiro. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
Jurisprudência
Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.098.981/PR. Relator: Min. Luiz Fux. Primeira Turma. Julgado em: 02/12/2010. DJe: 14/12/2010.
Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.468.436/RS. Relator: Min. Mauro Campbell Marques. Segunda Turma. Julgado em: 01/12/2015. DJe: 09/12/2015.
Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo. Auto de Infração e Imposição de Multa nº 4.090.891-4. Câmara Superior. Julgado em: 07/07/2020.