Teoria significativa da imputação como alternativa à dogmática penal tradicional
A teoria significativa da imputação oferece uma alternativa técnico-constitucional à dogmática tradicional: Sem ficções, sem presunções, com rigor, proporcionalidade e linguagem verificável.
quinta-feira, 12 de junho de 2025
Atualizado às 13:54
O Direito Penal brasileiro, ainda profundamente atado à dogmática tradicional, sofre de um grave déficit de clareza, proporcionalidade e legitimidade. Essa estrutura, ancorada em categorias muitas vezes herdadas de tradições autoritárias e reproduzidas sem revisão crítica, tem produzido insegurança jurídica, decisões arbitrárias e violações a direitos fundamentais (conforme sustentei em artigos anteriores aqui no Migalhas). A persistência de conceitos como dolo eventual e a confusão entre dolo e imprudência são apenas dois sintomas de um modelo que já não responde às exigências normativas e democráticas do tempo presente.
Diante desse quadro, a teoria significativa da imputação surge como proposta técnico-constitucional para reconstruir os fundamentos da imputação penal. Desenvolvida ao longo de vários anos de pesquisa e sistematizada em obras como Fundamentos de la Teoría Significativa de la Imputación (2025, Bosch), e apresentada no Brasil na obra Sobre a Estrutura do Dolo e da Imprudência (2025, Juruá), essa teoria parte da premissa de que a imputação deve ser linguística, normativa e constitucionalmente verificável. Rejeita ficções jurídicas e presunções subjetivas, e propõe uma análise objetiva da ação humana.
Seu ponto de partida é o reconhecimento de que o Direito Penal deve imputar com base no que o agente afirmou com sua ação, e não no que se presume que ele tenha desejado ou aceitado. A conduta deve ser analisada em sua exterioridade linguística, a partir dos sentidos manifestados por meio da ação. Essa premissa rompe com o modelo introspectivo da dogmática clássica, que faz da mente do agente um território interpretativo, propício a suposições e arbitrariedades.
Para isso, a teoria estabelece sete quesitos significativos, que servem como critérios técnicos para avaliar se uma conduta deve ser imputada como dolosa ou imprudente, e em que grau. Esses quesitos substituem os critérios psicológicos da dogmática tradicional por elementos objetivos, observáveis e normativos. A análise se desloca da introspecção para a verificação linguística e normativa da ação. O primeiro quesito, por exemplo, exige a demonstração da vontade de obter o resultado. Se a resposta for negativa, deve-se passar à análise dos demais quesitos, com foco na previsibilidade do resultado e no grau de risco assumido.
Nesse contexto, para definir corretamente a imputação, o julgador deve responder a sete quesitos significativos, que estruturam a análise objetiva da conduta do agente:
- O agente agiu com vontade de obter o resultado advindo?
- O agente tinha ou lhe era possível ter o conhecimento do risco de sua conduta para o bem jurídico protegido?
- O agente tinha ou lhe era possível ter a previsibilidade do resultado danoso?
- Se positiva a resposta ao 3º quesito, trata-se de uma previsibilidade necessária ou eventual?
- O agente foi indiferente ao resultado previsto?
- O agente aceitou o resultado previsto?
- O agente tomou livremente a decisão que ofendeu o bem jurídico protegido?
Essas perguntas não são subjetivas. Elas formam uma ferramenta concreta - o quadro de análise da conduta - para garantir decisões penais objetivas, seguras e alinhadas à CF/88.
A partir desses quesitos, a teoria significativa reformula completamente a distinção entre dolo e imprudência. O dolo exige a demonstração da vontade de produzir o resultado típico - não basta a previsão, nem a aceitação abstrata de um risco. Já a imprudência consciente é dividida em três níveis: gravíssima, grave e leve, conforme os caracteres da ação e a forma como o agente se posicionou frente ao risco previsto. Essa estrutura rompe com a ficção do dolo eventual e oferece respostas penais proporcionais e verificáveis.
Ao classificar a imprudência consciente, a teoria considera, por exemplo, o grau de previsibilidade (resultado necessário ou eventual), a postura do agente diante do risco (confiança, indiferença ou aceitação) e o impacto dos demais caracteres significativos. A imprudência consciente gravíssima, por exemplo, exige resposta penal severa, mas distinta daquela prevista para o dolo. É o que hoje é, erroneamente, denominado de dolo direto de 2º grau. Já a imprudência consciente grave requer uma sanção proporcional ao desprezo pelo bem jurídico. O que hoje se denomina equivocadamente de dolo eventual. Por fim, a imprudência consciente leve deve ensejar uma resposta branda, adequada à baixa reprovabilidade da conduta. É o que hoje se denomina de culpa consciente.
Além disso, a teoria tem forte compromisso com os princípios constitucionais. Exige que a imputação respeite a legalidade, a culpabilidade e a presunção de inocência, resgatando a função garantidora do tipo penal. Não há espaço para interpretações subjetivas, inversão do ônus da prova ou ampliação simbólica da punição. A imputação é construída a partir de critérios verificáveis, que respeitam a dignidade do imputado e a racionalidade do processo penal.
Outro diferencial da teoria significativa é sua fundamentação na filosofia da linguagem, de Ludwig Wittgenstein, na teoria da ação comunicativa de Habermas e na teoria da ação significativa, de Vives Antón. O agente não é analisado como sujeito isolado, mas como alguém que age em contexto, comunica sentidos e assume posições perante o mundo. A ação é linguagem, e é nessa linguagem que reside o fundamento da imputação penal. Isso permite que a análise se afaste do subjetivismo e se ancore em critérios constitucionais de imputação.
A teoria significativa da imputação é, portanto, mais do que uma proposta teórica: é uma resposta concreta à crise de legitimidade do Direito Penal, que é flagrante em todo o mundo. Ela propõe um modelo técnico, claro, proporcional e comprometido com a CF/88. Trata-se, em boa medida, de um convite à superação do punitivismo retórico e à reconstrução da imputação penal como instrumento de justiça real - não de presunções ou de poder.
Em um cenário marcado por decisões arbitrárias, ficções dogmáticas e aplicação desigual da lei penal, a teoria significativa oferece uma alternativa concreta, verificável e justa. Seu compromisso não é com a expansão do poder punitivo, mas com a restauração do devido processo penal, com a proteção do cidadão frente ao arbítrio e com a reconstrução do Direito Penal em bases normativas, linguísticas e democráticas, o que não se verifica num Estado policialesco.