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A falibilidade do reconhecimento de pessoas na jurisprudência do STJ: Dados de 2023 a 2025 e a expectativa pelo julgamento do Tema 1.258

Estudo revela falhas no reconhecimento de pessoas no processo penal e destaca virada do STJ rumo à nulidade de provas obtidas sem seguir o art. 226 do CPP.

quarta-feira, 11 de junho de 2025

Atualizado às 13:45

O reconhecimento de pessoas tem sido um dos meios de prova mais utilizados no processo penal, principalmente em crimes patrimoniais como roubo (mais de 90%). No entanto, trata-se de um método notoriamente falho, especialmente quando realizado sem as formalidades previstas no art. 226 do CPP, como é recorrente nas fases iniciais da persecução penal.

Esse dispositivo legal estabelece requisitos claros - como a descrição prévia do suspeito e o alinhamento com pessoas semelhantes - mas foi historicamente tratado como uma mera recomendação pelos tribunais. Até 2020, o STJ validava reconhecimentos com base no argumento da livre convicção do juiz, da suposta ausência de vício formal e por ser mera recomendação.

A partir de então, inicia-se uma virada interpretativa: o STJ passou a afirmar a obrigatoriedade do art. 226 e a reconhecer a nulidade do ato quando descumprido. Esse cenário começou a se alterar com decisões paradigmáticas, como o HC 598.886/SC, no qual a 6ª turma invalidou condenação baseada exclusivamente em reconhecimento fotográfico. Na sequência, o HC 712.781/RJ fixou um ponto fundamental: mesmo que o reconhecimento cumpra a forma legal, ele não pode servir como prova única para condenar. A Corte passou a afirmar a exigência de provas corroborativas, reconhecendo a falibilidade da memória humana e a sugestividade dos procedimentos mal conduzidos.

Essa mudança progressiva será colocada à prova no julgamento do Tema 1.258, que será apreciado pela 3ª seção do STJ no dia 11/6/25. Os quatro recursos especiais afetados, todos de relatoria do ministro Reynaldo Soares da Fonseca, buscam fixar a tese sobre o alcance do art. 226 do CPP e as consequências de sua inobservância:

  • (REsp 1.953.602/SP)
  • (REsp 1.986.619/SP)
  • (REsp 1.987.628/SP)
  • (REsp 1.987.651/RS)

O julgamento representa mais do que uma questão processual: é a oportunidade de consolidar um entendimento que tenha impacto direto sobre centenas de processos com imputações frágeis baseadas exclusivamente em reconhecimento pessoal ou fotográfico ilegal.

A análise jurisprudencial e estatística permite dimensionar a gravidade da questão e a necessidade de fixação de um entendimento firme que proteja as garantias processuais.

O que dizem os dados: 641 reconhecimentos anulados entre 2023 e 2025

Antes, importante mencionar que os dados apresentados neste artigo integram uma pesquisa mais ampla que realizo desde 2023, voltada ao monitoramento contínuo das decisões favoráveis à defesa no STJ, abrangendo habeas corpus, recursos ordinários e, a partir de 2025, também recursos especiais e agravos em recurso especial interpostos pela defesa. Até o momento, já foram analisadas mais de 48 mil decisões. A partir desse universo, o presente recorte temático concentra-se exclusivamente nos casos que discutem a legalidade do procedimento de reconhecimento de pessoas, nos termos do art. 226 do CPP.

A filtragem é feita por palavras-chave, seguida de análise individual e qualitativa das decisões. O objetivo é evidenciar, com base empírica, a frequência das nulidades reconhecidas e os padrões jurisprudenciais formados nos últimos anos em torno da prova de reconhecimento. A íntegra da pesquisa será apresentada na dissertação de mestrado atualmente em desenvolvimento.

Esses dados revelam que a evolução jurisprudencial não se dá no vácuo: ela é provocada por decisões reiteradas e pelo enfrentamento prático dos vícios processuais. Entre 2023 e abril de 2025, o STJ anulou 641 reconhecimentos fotográficos e/ou pessoais por ilegalidade no procedimento, em decisões favoráveis à defesa.

Em 2023, foram 219 concessões em habeas corpus e recursos ordinários em habeas corpus. A maioria absoluta dos casos envolvia o crime de roubo, e houve, inclusive, um caso de reconhecimento por voz - tratado com o mesmo critério de ilegalidade. Nesse ano, a pesquisa não incluía pareceres do MPF.

Já em 2024, o número de concessões cresceu para 293 decisões, todas também em HC e RHC. Nesse ano, passou a ser analisada na pesquisa os pareceres do MPF e, em 255 casos contaram com parecer, sendo 205 pela denegação da ordem - ou seja, a maioria dos pareceres é para manter condenação baseadas em provas irrefutavelmente frágeis.

Um ponto relevante ocorreu em 2025, quando a pesquisa foi ampliada para incluir REsp e AREsp interpostos pela defesa e que tiverem provimentos. Até abril, foram 129 decisões favoráveis à anulação de reconhecimentos, das quais 85 se deram em sede de recurso especial ou agravo - número que representa 65% dos casos analisados no ano. Esse dado não significa que houve mais concessões nesse tipo de recurso, mas sim que a base foi expandida para captar decisões que antes não eram mapeadas. Mesmo assim, o número é revelador: mostra que o reconhecimento ilegal não está sendo questionado apenas pela via do habeas corpus, mas também pela via recursal tradicional.

Outro ponto fundamental é o posicionamento do Ministério Público Federal em 2025: nos 112 pareceres emitidos, 63 foram pelo desprovimento do recurso (mantendo a condenação) e 15 pela denegação da ordem. Ou seja, a maioria dos pareceres foi contrária à anulação do reconhecimento, mesmo diante de vícios formais graves e da ausência de provas corroborativas.

Os dados também revelam a face social do problema: a maioria dos processos é patrocinada pela Defensoria Pública, o que evidencia que os réus atingidos são pessoas hipossuficientes, em regra sem condições de custear defesa técnica. São sujeitos processados por crimes graves, como roubo, e condenados exclusivamente com base em reconhecimentos realizados fora dos parâmetros legais.

A análise territorial também reforça o caráter estrutural da violação. Dez estados concentram mais de 80% dos casos, com destaque absoluto para São Paulo (229) e Rio de Janeiro (163), seguidos por Santa Catarina (42), Rio Grande do Sul (36) e Minas Gerais (34). Essa concentração evidencia que não se trata de falhas isoladas, mas de práticas institucionalizadas, nas quais o reconhecimento fotográfico é utilizado como principal elemento de acusação - quase sempre desacompanhado de prova material, perícia ou testemunha imparcial.

Por fim, esse cenário se agrava ainda mais quando se observa o volume total de concessões em casos de roubo. Apenas em 2024, foram concedidas aproximadamente 1.743 ordens em habeas corpus e recursos ordinários em habeas corpus envolvendo esse tipo penal. Desse total, 273 decisões tiveram como fundamento específico a ilegalidade no procedimento de reconhecimento de pessoas, o que representa mais de 15% dos casos. Trata-se de um recorte quantitativo relevante, que evidencia a dimensão estrutural da violação e reforça a necessidade de uniformização do entendimento sobre o art. 226 do CPP.

Os números demonstram, com absoluta clareza, que o problema do reconhecimento ilegal não é pontual. Ele é rotineiro, sistemático e atinge, com mais intensidade, os acusados mais vulneráveis. A prova de reconhecimento, quando realizada sem observância do art. 226, perde completamente sua confiabilidade - especialmente quando é a única base para a condenação.

Ao julgar o Tema 1.258, o STJ tem a oportunidade de fixar um entendimento claro e vinculante, afastando de vez a equivocada compreensão de que o reconhecimento pode ser convalidado por atos posteriores ou pela convicção subjetiva do juiz, ou que ainda é mera recomendação. O desrespeito às regras legais deve produzir consequência jurídica concreta: a nulidade da prova.

A uniformização da tese protegerá a legalidade do processo penal, o standard probatório mínimo e o direito à ampla defesa. Mais do que isso, dará coerência à evolução jurisprudencial que o próprio STJ vem construindo desde 2020, agora documentada por mais de seiscentas decisões que não podem ser ignoradas.

David Metzker

David Metzker

Advogado criminalista. Mestrando em direito penal pelo IDP. MBA em gestão pela PUC/RS. Especialista em Penal Econômico e Processo Penal pelo IDPEE/Coimbra.

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