Decisão polêmica do TJ/SP ameaça dignidade do superendividado
TJ/SP ignora saúde, moradia e alimentação como parte do mínimo existencial. Artigo denuncia erro grave e cobra capacitação urgente na aplicação da lei do superendividamento.
terça-feira, 24 de junho de 2025
Atualizado às 11:14
O TJ/SP, na apelação cível 1006781-05.2024.8.26.0576, relatada pelo desembargador Paulo Guilherme Amaral Toledo, negou provimento ao pedido de repactuação formulado por consumidora superendividada, sob o argumento de que a quantia de R$ 2.780,71, remanescente de sua renda mensal após os descontos com dívidas bancárias, seria suficiente para garantir seu mínimo existencial. Para alcançar tal conclusão, o acórdão exclui da análise despesas ordinárias como plano de saúde, condomínio e alimentação, por entender que não constituem dívidas com a instituição financeira envolvida. Com a devida vênia, esse raciocínio revela uma preocupante incompreensão do que efetivamente constitui o conceito de mínimo existencial à luz da lei 14.181/21.
O mínimo existencial, como o próprio nome deixa evidente, não diz respeito à dívida, mas sim à vida. Trata-se da parte da renda necessária para garantir a sobrevivência digna do consumidor: moradia, saúde, alimentação, transporte, vestuário, educação, entre outros itens indispensáveis. Ignorar essas despesas básicas na apuração da condição de superendividamento equivale a esvaziar completamente o sentido da lei. O que restaria do mínimo existencial se não incluem, precisamente, os gastos existenciais?
A justificativa usada pelo acórdão - de que tais valores "não dizem respeito à parte credora" - inverte o foco da legislação. O centro de gravidade da lei do superendividamento está na proteção da pessoa consumidora, e não no privilégio ao crédito. A repactuação judicial é um mecanismo de reequilíbrio entre os interesses da coletividade de credores e a dignidade do devedor. Excluir gastos básicos da equação com o argumento de que não são obrigações contraídas com o banco demonstra uma confusão grave entre dívida e despesa, entre inadimplemento e vulnerabilidade.
Outro ponto que merece reparo é o uso do decreto 11.150/22 como justificativa para considerar que R$ 600,00 seriam suficientes para preservar o mínimo existencial. Essa cifra, fixada sem critério técnico atualizado e sem qualquer vinculação com índices oficiais de inflação, já foi objeto de inúmeras críticas, inclusive dentro do próprio TJ/SP. O desembargador Roberto Mac Craken, por exemplo, em voto recente, reconheceu que o decreto deve ser tratado como mera referência e propôs, com acerto, a adoção do salário mínimo líquido corrigido como parâmetro razoável, alinhado à realidade socioeconômica brasileira.
O ponto fulcral é que o mínimo existencial não pode ser tratado como um conceito contábil ou uma margem residual da renda após os pagamentos bancários. Ele não se confunde com margem consignável e não se subordina à conveniência dos credores. A lógica é justamente a inversa: primeiro se assegura o essencial à vida, depois se discute o que pode ser destinado ao pagamento das dívidas.
A decisão criticada escancara a necessidade urgente de formação continuada dos magistrados e assessores do TJSP sobre os fundamentos e a aplicação prática da lei 14.181/21. Já se passaram mais de quatro anos desde sua entrada em vigor. O que se espera da maior corte estadual do país é, ao menos, um debate técnico consistente e decisões que demonstrem conhecimento do novo marco legal de proteção à dignidade financeira do consumidor.
A crítica aqui apresentada não é desrespeitosa. Pelo contrário. Parte da confiança de que o TJ/SP pode e deve ser referência nacional não só em volume de julgamentos, mas também na qualidade e profundidade das decisões proferidas. O Judiciário brasileiro tem um papel decisivo na concretização dos direitos sociais e na pacificação das novas relações de consumo. E para isso, é essencial compreender com clareza o que está em jogo quando se fala em mínimo existencial: a possibilidade de viver com o mínimo necessário para uma existência digna.
Que este acórdão sirva como um alerta respeitoso. Ainda há muito a avançar. O sistema jurídico ganhou novos instrumentos de equilíbrio com a lei do superendividamento. Mas esses instrumentos só terão eficácia se forem interpretados com empatia, técnica e compromisso com a Constituição. Justiça social começa pelo básico. E o básico é garantir que ninguém precise escolher entre comer ou pagar o banco.