Dez Mandamentos: A faculdade de conhecer, não de obrigatório uso
Expor os Dez Mandamentos em escolas públicas brasileiras é inconstitucional. A laicidade do Estado e a liberdade religiosa. Conhecer, sim; obrigar, nunca.
terça-feira, 24 de junho de 2025
Atualizado às 11:24
A eventual pretensão de tornar obrigatória a exposição dos Dez Mandamentos em escolas públicas no Brasil encontra barreiras jurídicas intransponíveis, revelando-se incompatível com a ordem constitucional vigente. Tal incompatibilidade deriva, sobretudo, da inafastável laicidade do Estado e da liberdade religiosa, garantias insculpidas em nossa Constituição Federal e reiteradamente afirmadas por esta Suprema Corte, em consonância com recentes decisões internacionais. Concede-se, pois, a faculdade de conhecer, mas jamais a imposição do uso.
I- O pilar da laicidade: a blindagem de nossa educação pública.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) é categórica ao vedar ao Estado a instituição ou o subvenção de cultos religiosos. Disso decorre que as instituições de ensino públicas, por sua natureza universal, não podem promover ou privilegiar qualquer crença. O objetivo precípuo é propiciar aos alunos o conhecimento e a livre escolha de seus percursos, respeitando-se a liberdade de crer ou não crer, direito fundamental que exige um ensino religioso facultativo e inclusivo, apto a acolher a rica diversidade de nossa nação.
Esta Suprema Corte, no desempenho de sua função de guardiã da Constituição, tem reiteradamente afirmado essa compreensão. No julgamento da ADIn 5.537/AL, por exemplo, esta Corte declarou a inconstitucionalidade de lei estadual que, a pretexto de evitar doutrinação, impunha normas violadoras da competência privativa da União e do princípio da laicidade. As vedações genéricas de conduta, portanto, podem resvalar em perseguição a docentes e ofender a proporcionalidade e direitos fundamentais, como a liberdade de consciência, crença e pluralismo (BRASIL, 2020)
II - Perspectiva Internacional: o alerta da Suprema Corte dos EUA.
A compreensão brasileira encontra ressonância em importantes precedentes internacionais. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte tem se debruçado sobre a questão da religião em escolas públicas com base na Cláusula de Estabelecimento da Primeira Emenda, que proíbe o governo de estabelecer ou endossar uma religião. Embora o caso Roake v. Louisiana State Board of Elementary and Secondary Education, 2025 tenha sido julgado por um Tribunal de Apelações, a decisão está alinhada à jurisprudência da Suprema Corte americana que, em casos como McCollum v. Board of Education (1948) e Engel v. Vitale (1962), já havia proibido a instrução religiosa e a oração obrigatória em escolas públicas, respectivamente. interpretação é clara: a exibição de um texto religioso sem o devido contexto educativo pluralista configura uma promoção religiosa estatal, ferindo a neutralidade do Estado. Tal entendimento reforça a premissa de que documentos com conteúdo religioso só podem ser abordados em um contexto histórico e cultural mais amplo, e nunca como uma imposição de fé
III - O veredito no Brasil: a inconstitucionalidade como consequência.
A imposição dos Dez Mandamentos no ambiente escolar público implicaria grave violação ao princípio da laicidade, baluarte que esta Suprema Corte defende com veemência, em simetria com a jurisprudência da Suprema Corte dos EUA. A necessária imparcialidade do Estado impede o favorecimento ou a imposição de qualquer fé.
Ademais, tal medida representaria um ataque direto à liberdade religiosa e ao pluralismo de nossa sociedade. A exigência de exposição de um credo afrontaria direito fundamental assegurado a todos. O ensino religioso, conforme a lei fundamental, é facultativo, não se admitindo a imposição de símbolos ou textos religiosos em espaços públicos de ensino. A jurisprudência pátria, a exemplo de recente julgado do TJ/MG, reforça essa compreensão ao assegurar a uma aluna o direito de usar vestimenta adaptada por razões religiosas, afastando a obrigatoriedade de conduta contrária à liberdade de crença (MINAS GERAIS, 2025).
IV. Desvendando a abordagem legítima: o ensino desprovido de Imposição.
Para que os Dez Mandamentos, ou quaisquer outros textos de cunho religioso, sejam abordados nas escolas públicas sem ferir a Constituição, o caminho legítimo reside na contextualização histórica e cultural. Tais conteúdos podem ser estudados em disciplinas como História, Filosofia ou Sociologia, analisando suas influências na civilização, mas jamais como dogmas isolados.
Impõe-se o respeito à diversidade. Alunos e seus responsáveis devem ter garantido o direito de se manifestarem, preservando-se sua liberdade de crença. A ausência de imposição é fundamental: a abordagem não pode ser compulsória ou permanente, mas sim parte integrante de um projeto pedagógico que celebre a pluralidade. Qualquer iniciativa nesse sentido deve, ademais, possuir base legal e controle judicial, sujeitando-se à revisão desta Corte para a preservação da laicidade e dos direitos fundamentais.
V. A faculdade do conhecimento, Não a obrigatoriedade da adesão.
A obrigatoriedade da exposição dos Dez Mandamentos nas escolas públicas brasileiras, desacompanhada da necessária contextualização e do respeito à diversidade religiosa, mostra-se incompatível com a Constituição Federal e a jurisprudência consolidada desta Suprema Corte. A laicidade do Estado e a liberdade religiosa impõem limites claros à inserção de símbolos e textos religiosos em ambientes públicos de ensino.
Consequentemente, qualquer tentativa de implementar tal medida exigiria profunda revisão legislativa e amplo debate social. Em sentido contrário, seria declarada inconstitucional por esta Corte, refletindo o entendimento majoritário dos seus membros em casos análogos. Permite-se, assim, a faculdade do conhecimento dos Dez Mandamentos como objeto de estudo, mas jamais a obrigatoriedade de sua adesão ou exposição permanente.
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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.537/AL. Relator: Ministro Roberto Barroso, julgado em 21 ago. 2020, DJe 16 set. 2020.
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Remessa Necessária-Cv 1.0000.23.119280-8/002. Relatora: Desembargadora Maria Inês Souza, julgado em 01 abr. 2025, DJ 07 abr. 2025.
SUPREME COURT OF THE UNITED STATES. McCollum v. Board of Education, 333 U.S. 203 (1948).
SUPREME COURT OF THE UNITED STATES. Engel v. Vitale, 370 U.S. 421 (1962).