A exclusão compulsória sem proventos por falta grave como pena na magistratura
O artigo aborda a inconsistência da manutenção de proventos proporcionais aos magistrados apenados por falta grave.
terça-feira, 24 de junho de 2025
Atualizado às 11:33
O Poder Judiciário exerce papel central no Estado Democrático de Direito.
Trata-se de um dos Poderes da República, responsável pelo monopólio da jurisdição efetivado pela função exclusiva de compor litígios, declarar o direito aplicável e assegurar a pacificação social.
Por sua natureza, a função jurisdicional exige não apenas qualificação técnica, mas, sobretudo, comprometimento ético, moral e funcional com os valores da República e da Constituição.
A confiança social na magistratura não decorre apenas da sua previsão constitucional.
Ela se sustenta, dia após dia, na percepção de que o Judiciário é composto por pessoas éticas, competentes e comprometidas com o interesse público.
E é justamente essa confiança que se rompe quando se constata que, no Brasil, a sanção administrativa máxima aplicável aos magistrados - mesmo diante de faltas gravíssimas - é a aposentadoria compulsória com proventos proporcionais.
O instituto da vitaliciedade, corretamente assegurado pela Constituição, é indispensável à independência judicial.
Sua função é proteger o exercício da jurisdição contra perseguições políticas, econômicas, midiáticas ou de qualquer natureza.
No entanto, essa garantia não pode servir de base para justificar uma necessária manutenção de proventos quando evidenciada uma falta grave do servidor público.
A magistratura como função de Estado
O magistrado não exerce uma profissão privada. Ao contrário, integra uma função pública de Estado, situada na estrutura de um dos Poderes da República.
Seu dever institucional decorre diretamente do monopólio da jurisdição - uma prerrogativa estatal que impede que os cidadãos resolvam seus conflitos pela força ou por meios privados.
Por isso, o exercício da magistratura exige, além de conhecimento jurídico, irrepreensível conduta ética e moral, de modo a preservar não apenas a integridade do julgador, mas a própria legitimidade do Estado na administração da Justiça.
Quando essa legitimidade é abalada, seja por desvios individuais ou pela incapacidade institucional de punir adequadamente esses desvios, o preço pago não é apenas simbólico - é a corrosão da confiança social, da autoridade do Judiciário e, no limite, da própria coesão social.
A ineficaz pena da "aposentadoria compulsória"
O atual modelo disciplinar, previsto na Constituição e na LOMAN - Lei Orgânica da Magistratura, permite que magistrados condenados por falta grave sejam punidos, no máximo, com a aposentadoria compulsória, mantendo, contudo, seus proventos pagos pelo erário até o fim da vida.
Essa configuração não apenas afronta os princípios constitucionais da moralidade, da proporcionalidade, da eficiência e da isonomia, como também deturpa a essência do próprio instituto da aposentadoria.
Afinal, a aposentadoria não é uma sanção, mas um direito social assegurado a quem cumpre, de forma regular e digna, sua trajetória funcional.
A própria justificativa da PEC 3/24, de autoria do então senador, e agora ministro do STF, sua exa. Flávio Dino, reconhece com precisão esse equívoco estrutural ao afirmar:
"É preciso reiterar, portanto, que aposentadoria se destina a assegurar dignidade ao trabalhador que, após regular cumprimento de suas obrigações laborais, deve ser transferido para a inatividade. Esse pressuposto torna inadequada a utilização do instituto da aposentadoria (ou pensão por morte ficta ou presumida) para justificar 'aparente quebra' de vínculo entre o Poder Público e o servidor que tenha cometido conduta grave que acarrete alto grau de desmoralização do serviço público e perda da confiança nas instituições públicas."
Não há como discordar.
Manter a aposentadoria como sanção não é apenas juridicamente inaceitável - é eticamente insustentável e politicamente incompatível com qualquer concepção minimamente séria de República.
Exclusão compulsória: O nome correto da medida
A linguagem importa. Chamar de "aposentadoria" aquilo que, na realidade, é um ato de exclusão decorrente de falta grave, não é apenas um erro semântico - é uma tentativa inconsciente (ou deliberada) de atenuar a gravidade do ato e suas consequências.
Por isso, propõe-se, desde logo, que se abandone definitivamente a expressão "aposentadoria compulsória" quando utilizada como pena disciplinar e que se adote a denominação juridicamente correta: "exclusão compulsória, sem proventos, por falta grave."
Mais do que uma mudança terminológica, é necessário que essa exclusão compulsória venha acompanhada de sua consequência lógica e inafastável: a perda dos proventos.
Manter remuneração vitalícia a quem foi excluído do cargo por decisão fundamentada de seus pares - e por conduta que desonra a magistratura - é subverter não apenas a moralidade administrativa, mas o próprio pacto republicano.
Sem ameaça à independência, mas como fortalecimento institucional
É necessário também desmistificar o falso argumento de que a possibilidade de exclusão, com perda dos proventos, representaria uma ameaça à independência judicial. Não há qualquer interferência externa nesse modelo.
O julgamento dos magistrados ocorre pelos seus pares, no âmbito dos Tribunais ou do CNJ, respeitado integralmente o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.
Trata-se, portanto, de um controle interno da magistratura, expressão de sua própria maturidade institucional, e não de ingerência política ou externa.
Proposta de texto constitucional
Nesse sentido, a proposta da PEC é objetiva, clara e tecnicamente consistente, nos seguintes termos:
"Art. 93 (...)
VI-A - É vedada a concessão de aposentadoria compulsória aos magistrados como sanção pelo cometimento de infração disciplinar, devendo ser aplicada, em face de faltas graves, a penalidade de perda do cargo ou demissão, ou equivalente, conforme lei disciplinadora da carreira."
Trata-se de um comando normativo que resgata a coerência da Constituição com os próprios princípios que ela consagra: moralidade, impessoalidade, eficiência, legalidade e publicidade.
Um modelo que fortalece a magistratura
A adoção desse modelo não é uma ameaça à magistratura.
Ao contrário, é um instrumento de fortalecimento institucional, de defesa da própria dignidade da toga e da preservação da confiança social na função jurisdicional.
Os magistrados que atuam em estrita conformidade com a Constituição, a ética e a legalidade jamais serão atingidas.
São, na verdade, os maiores interessados em que tenhamos mecanismos eficazes de responsabilização, que permitam separar, de forma clara, quem honra a toga de quem a desonra.
Além disso, esse modelo tem efeito pedagógico, preventivo e social.
Pedagógico, porque afirma, de maneira inequívoca, que o Judiciário não tolera desvios.
Preventivo, porque desestimula comportamentos incompatíveis com a função pública.
Social, porque restaura e fortalece a confiança da sociedade na magistratura, pilar indispensável da jurisdição e da própria ordem democrática.
Conclusão
A República não comporta privilégios injustificáveis.
Ao infrator que, abusando da confiança social, resolve percorrer o caminho da ilegalidade deve arcar com as consequências de seus atos.
A magistratura não está - nem pode estar - acima dos princípios que regem toda a Administração Pública e o serviço público.
Fortalecer a responsabilidade funcional da magistratura é, acima de tudo, fortalecer o próprio Judiciário, a democracia e o Estado de Direito.