Difal, o princípio da cooperação e os impactos na arrecadação da União
O livro propõe uma postura cooperativa do fisco, como sócio do contribuinte, com base na confiança e na busca por equilíbrio no sistema tributário.
quarta-feira, 25 de junho de 2025
Atualizado em 24 de junho de 2025 14:32
No livro "Por um Princípio da Cooperação no Direito Tributário" (editora Casa do Direito), que eu e o meu sócio Fabio Goldschmidt escrevemos em 2023, sustentamos que, para o melhor funcionamento do sistema tributário brasileiro, o fisco deveria adotar uma postura cooperativa - tal como um prestador de serviços - em face do contribuinte, na medida em que, na prática, de maneira geral, fisco e contribuinte podem ser tidos como sócios na percepção das riquezas geradas na atividade do contribuinte.
Para melhor compreender o argumento ali defendido, basta observar que, grosso modo, a União fica com 34% (alíquota nominal de IRPJ/CSL) sobre os resultados das empresas no regime do lucro real. Quanto mais lucrativa são essas empresas, maior é a arrecadação de IRPJ/CSL para União. Há, portanto, uma confluência de interesses, nesse particular, entre contribuinte e União. Por exemplo, a redução das despesas com tributos estaduais aumenta a arrecadação do governo Federal, em face das empresas submetidas ao regime do lucro real, as quais são responsáveis pela maior parte da arrecadação de imposto de renda1.
É nesse ponto que se torna pertinente o julgamento do Tema 1.266, a respeito da definição do momento em que o Difal - Diferencial de Alíquota de ICMS poderia ser cobrado, considerando a promulgação da LC 190, em 5/1/22.
A questão já foi examinada no julgamento das ADIns - Ações Diretas de Inconstitucionalidade 7.066, 7.070 e 7.078, quando se formou uma maioria de 6x5 para determinar que a cobrança do Difal poderia se iniciar em 5/4/22, em cumprimento à regra da anterioridade nonagesimal, afastando assim a anterioridade anual, como pretendiam os contribuintes.
No entanto, agora, no exame do Tema 1.266 da repercussão geral, a Suprema Corte (inclusive com nova composição com a chegada dos ministros Cristiano Zanin e Flávio Dino, que não participaram do julgamento das referidas ADIns) poderá avaliar, além do mérito, a questão da modulação de efeitos da decisão proferida naquelas ADIns, o que aguarda apreciação em sede dos embargos de declaração opostos naquele caso.
A questão se torna bastante sensível (i) para as grandes varejistas que, de maneira geral, não colocaram no preço o DIFAL, em 2022 (em um cenário pós-pandemia) e, assim, não têm como reaver tais valores, dada a impossibilidade de reconfigurar o preço das operações já realizadas, nem restituir os valores pagos de DIFAL sem a autorização dos respectivos clientes, conforme o art. 166 do CTN, (ii) para os Estados, que alegam que o valor total da arrecadação de DIFAL de abril a dezembro de 2022 seria da ordem de R$ 10 bilhões2, e, o que se pretende destacar aqui, (iii) para a União, cuja arrecadação poderia ser aumentada em aproximadamente R$ 3,4 bilhões (se o referido cálculo dos Estados estiver correto), com a modulação dos efeitos da decisão proferida pelo STF nas ADIns, de modo a proteger os contribuintes que confiaram na própria União e ajuizaram ações sobre o tema, buscando se proteger de cobranças indevidas de DIFAL no ano de 2022.
A União poderia ser beneficiar do ponto de vista arrecadatório, porque, de maneira geral, os contribuintes provisionaram os débitos de DIFAL (após o julgamento das referidas ADIns) e, com a modulação, haveria uma reversão dessa provisão, aumentando a base de IRPJ/CSL. Em um cenário notoriamente desafiador para o governo Federal equilibrar o seu orçamento, é oportuno verificar o impacto desse julgamento para União: eis aqui uma oportunidade de aumento de arrecadação Federal.
Digo que os contribuintes confiaram na União, porque, no dia 8/3/22 (portanto, antes do período controverso de abril a dezembro a 2022, relativamente à aplicação do princípio da anterioridade anual), o presidente da República prestou informações nos autos das ADIns 7.066, 7.070 e 7.078, sinalizando que a anterioridade anual deveria ser aplicada. Vale destacar o que disse a Consultoria Geral da União, enquanto órgão técnico que instruiu a resposta do presidente da República, nos autos daquele processo:
"43. O fato de o art. 3º da Lei Complementar referir-se, tão somente, à anterioridade nonagesimal, não inibe a que a anterioridade geral, igualmente, faça-se presente. É um consectário lógico e obrigatório que advém do comando constitucional. A propósito, ainda que a Lei Complementar nº 190/2022 não houvesse previsto qualquer submissão à anterioridade, o fato de, por si, ensejar instituição de tributo tornaria obrigatória o respeito a tal regramento constitucional.
44. No sentido de lei complementar que promova alteração legislativa que afete elementos da relação jurídica tributária submeter-se à anterioridade, cumpre registrar que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da medida cautelar na ADI 2.325, pendente de julgamento, sob a atual Relatoria do Ministro André Mendonça, apreciou a questão em relação à Lei Complementar nº 102/2000, que alterou a Lei Complementar nº 87/1996.
(...)
45. Tratando-se de ICMS e não sendo o caso da específica exceção do art. 155, §4º, IV, 'c' da CF/88, não é possível seccionar a anterioridade geral da nonagesimal. Aplicam-se ambas ou nenhuma delas. Assim, adotando-se a compreensão de que a Lei Complementar nº 190/2022 implicou, por si, uma alteração legislativa com a consequência de ocasionar instituição ou majoração do imposto, submete-se à aferição quanto à observância do princípio da anterioridade, nos termos do art. 150, III, 'b' e 'c' da CF/88."
Naquele momento, no início de 2022 (antes do período da cobrança controversa de DIFAL - abril a dezembro de 2022), muitos contribuintes confiaram nessa sinalização da União Federal e ajuizaram medidas judiciais para afastar a cobrança do tributo indevido, na medida em que restava clara a força argumentativa da tese segundo a qual o DIFAL seria cobrado apenas em 2023.
Essa sinalização da União - que já gerava uma expectativa legítima nos contribuintes quanto à improcedência da cobrança do DIFAL no período de abril a dezembro - foi posteriormente confirmada pela Advocacia Geral da União, que apresentou parecer, ainda em março de 2022, nos autos das ADIns 7.066, 7.077 e 7.078, com a seguinte conclusão:
"Nesses termos, conclui-se que a disciplina instituída pela Lei Complementar nº 190/2022, que regulamentou o ICMS nas operações e prestações interestaduais destinadas a consumidor final não contribuinte do imposto, por envolver a criação de nova relação jurídico-tributária, submete-se aos princípios da anterioridade geral e nonagesimal. Bem assim, a instituição de prazo para a adaptação tecnológica do contribuinte encontra-se na margem de conformação do legislador, não ofendendo os preceitos constitucionais suscitados como parâmetros de controle."
Agora, parece-me central debater no julgamento do Tema 1.266 (para fins da modulação de efeitos da decisão proferida pelo STF nas referidas ADIns) qual é a relevância da manifestação do presidente da República, enquanto agente responsável pela promulgação da LC 190/22, acompanhada da posterior manifestação da Advocacia Geral da União, ambas no sentido de que a cobrança do Difal passaria a vigorar em janeiro de 2023, para fins da proteção jurídica dos contribuintes atingidos pela norma em questão.
Nesse ponto, vale lembrar que o art. 24 da lei de introdução ao Direito brasileiro prevê a impossibilidade de prejuízo ao particular que confiou em uma "orientação geral" do Estado posteriormente reformada. É digna de proteção jurídica, via modulação de efeitos, a expectativa dos contribuintes que ajuizaram ações, confiando na "orientação geral" dada pelo presidente da República nas ADIns 7.066, 7.070 e 7.078.
Quando esse cenário foi alterado? No dia 16/12/22, o Supremo Tribunal finalizou o julgamento dessas ADIns, concluindo, por maioridade de votos (6x5) pela aplicação apenas da anterioridade nonagesimal.
Antes disso, vale lembrar, haviam sido formado três linha de votos (apresentados em plenário virtual): (i) 5 votos (Edson Fachin, Carmen Lucia, Ricardo Lewandowski, André Mendonça e Rosa Weber) no sentido da aplicação da anterioridade anual; (ii) 2 votos (Dias Toffoli e Gilmar Mendes) aplicando a anterioridade nonagesimal; e (iii) 1 voto (Alexandre de Moraes) definindo o dia 1/3/22, como dia do início da cobrança do DIFAL, com base no art. 24-A da lei kandir.
Essa composição de votos é importante para destacar que, até novembro de 2022, todo o cenário jurídico brasileiro (inclusive com o posicionamento claro do senhor presidente da República e da AGU, como dito acima, e a maioria de votos do plenário do STF) sinalizava para a aplicação da anterioridade anual.
Apenas em 16/12/22, após o ministro Alexandre de Moraes alterar o seu voto, para seguir a linha de pensamento do ministro Dias Toffoli, foi formada uma maioria contrária à sinalização construída anteriormente. Essa alteração de voto reforça a insegurança jurídica verificada na matéria, pois, sem ela, não seria formada a maioria contrária os interesses dos contribuintes.
Portanto, o dia 16/12/22 é a data a mais razoável para ser utilizada para definição do marco temporal para a modulação dos efeitos da decisão do STF proferida nas ADIns 7.066, 7.070 e 7.078.
Eis aqui uma oportunidade para o STF inaugurar a aplicação do princípio da cooperação tributária, positivado no sistema tributário nacional pela EC 132/23 (como defendi no livro acima mencionado), respeitando os parâmetros constitucionais que tutelam a proteção da confiança. A eficácia do princípio da cooperação, nesse caso, exige dos ministros da Suprema Corte um olhar mais cuidadoso para os contribuintes de DIFAL que confiaram nas manifestações públicas do Estado brasileiro sobre o tema.
Deve haver uma consequência jurídica protetiva do particular que confiou na sinalização clara do Estado - realizada, na ocasião, pelo seu líder maior, o presidente da República - e essa consequência deve ser, no caso do Tema 1.266, a modulação dos efeitos da decisão proferida nas ADIns 7.066, 7.070 e 7.078, fazendo com que aqueles que ajuizaram ações sobre essa tema, antes de 16/12/22 (data que encerrou o julgamento de mérito das ADIns), sejam protegidos contra a cobrança do DIFAL relativamente ao período de abril a dezembro de 2022 (por força da aplicação do princípio da anterioridade anual).
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1 Receita Federal. Análise Arrecadação Dez 2024. Disponível em: https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/relatorios/arrecadacao-federal/2024/apresentacao-arrecadacao-dez-2024.pdf/view
2 Jota. "Discussão sobre cobrança do Difal de ICMS em 2022 chega ao STF. Segundo estados, adiar cobrança do Difal de ICMS trará um impacto de R$ 9,8 bilhões aos cofres públicos". Disponível em: https://www.jota.info/stf/do-supremo/cobranca-do-difal-de-icms-em-2022-stf. Valor Econômico. Estados podem perder R$ 9,8 bi no e-commerce. Disponível em: https://valor.globo.com/impresso/noticia/2022/01/05/estados-podem-perder-r-98-bi-no-e-commerce.ghtml
Leonardo Aguirra de Andrade
Doutor e Mestre em Direito Tributário pela USP. Professor do IBDT. Sócio do Andrade Maia Advogados.