A lei Maria da Penha como marco na autonomia processual das vítimas
A lei 11.340/06 abre o processo histórico de emancipação processual das vítimas.
quarta-feira, 25 de junho de 2025
Atualizado às 10:14
A lei Maria da Penha (LMP, lei 11.340/06) inicia um processo de emancipação das vítimas quanto a outros interesses institucionais. Isso porque os arts. 27 e 28 dessa lei garante à mulher uma atuação autônoma via representação por advogado(a) ou defensor(a) público(a). Pode parecer algo trivial, mas não é.
Anteriormente, a legislação acabava por enclausurar a vítima ou aos interesses do órgão de acusação ("dominus litis") ou à função de "assistir à acusação". Porém, com advento da LMP, as vítimas podem sair do ciclo de revitimização social e de submissão aos desígnios do Estado (em sentido amplo).
Ao garantir representação direta e integralmente dedicada aos interesses da vítima, a vítima sai da guia estatal e passa a ter orientação jurídica própria totalmente voltada (técnica e eticamente) para si. Ou seja, atuações institucionais públicas do "Custos Iuris" que é o Ministério Público ou do "Custos Vulnerabilis" da Defensoria Pública somente guiarão a vítima se ela, devidamente orientada tecnicamente, assim o quiser. A vítima vai deixando de ser objetificada como "fonte de prova" para ser, efetivamente, "sujeito de direitos". Ou seja, as instituições públicas não poderão sequer correr o risco de minimizar a vontade ou "infantilizar" as vítimas.
Nesse cenário, recentemente, o STJ garantiu à vítima sua legitimidade (óbvia) para buscar sua autoproteção, conforme trecho em destaque:
"(...) III. Razões de decidir 4. A lei 11.340/06 assegura à vítima de violência doméstica a possibilidade de solicitar medidas protetivas de urgência, sendo parte legítima para impugnar decisões que revoguem tais medidas. 5. A legitimidade recursal da vítima não pode ser limitada pela previsão do art. 271 do CPP. 6. A interpretação restritiva da legitimidade recursal da vítima contraria a máxima efetividade das disposições da Lei Maria da Penha, que visa a garantir proteção e assistência jurídica à mulher em situação de violência doméstica. IV. Dispositivo e tese 7. Recurso parcialmente provido para afastar a ilegitimidade recursal e determinar o retorno dos autos ao Tribunal local para que este julgue a apelação. Tese de julgamento: "1. A vítima de violência doméstica possui legitimidade para recorrer de decisão que indefere ou revoga medidas protetivas de urgência solicitadas". (...)". (STJ, REsp n. 2.204.582/GO, relator Ministro Ribeiro Dantas, 5ª turma, julgado em 13/5/2025, DJEN de 20/5/2025).
Contudo, um pouco antes da ementa transcrita acima, viu-se, também no STJ, que o instituto pré-Constituição da "Assistência à Acusação" enclausura a atuação da vítima à vontade institucional do órgão dedicado à acusação pública. Nessa ocasião, a Sexta Turma, no HC 936.179/SC1, negou legitimidade recursal à vítima para requerer medidas no processo penal em caso de inércia ministerial.
A situação exposta demonstra a urgência da atuação processual sair do passado pré-Constituição e se guiar a um instituto contemporâneo em defesa integral dos interesses da vítima e qualificada pela assistência ampla, na figura do defensor integral da vítima ou da assistência qualificada. Nesse contexto, Flávia Nascimento e Anne Auras2 concluíram que:
"[A] figura da assistência qualificada à mulher em situação de violência só pode ser bem compreendida, portanto, no contexto dos esforços desenvolvidos nas últimas décadas para tornar o Sistema de Justiça um espaço menos hostil e mais acolhedor para mulheres, que não reproduza estereótipos de gênero, que não desqualifique a palavra da mulher, que não promova discriminações indiretas e que respeite sua autonomia enquanto sujeito de direitos".
Por outro lado, o Poder Judiciário vem compreendo a posição processual autônoma da mulher-vítima enquanto necessidade constitucional - tanto que o FONAVID, além de proteger a mulher contra revitimização (enunciado 503), redigiu o enunciado n. 71:
"A assistência jurídica qualificada é direito das mulheres em situação de violência e de vítimas diretas e indiretas de feminicídio, abrangendo a formulação de perguntas e participação ativa no processo, inclusive com direito a sustentação em plenário do júri, conforme previsto nos arts. 27 e 28 da lei 11.340/06 e recomendação 33 da CEDAW, em obediência ao critério da diligência devida" (Alterado por unanimidade no XVI FONAVID, Salvador/BA, g.n.).
Com efeito, o STJ4 também já admitiu a existência de um "Microssistema de Proteção dos Vulneráveis"5 que garante também à vítima-criança a aplicação, por analogia, dos artigos 27 e 28 para fins de viabilizar a atuação da Defensoria Pública como "defensora da vítima":
"(...) 7. Aplica-se ao caso, por analogia, o disposto nos arts. 27 e 28 da lei 11.343/03, que assegura à mulher em situação de violência doméstica e familiar o acesso aos serviços de Defensoria Pública, em sede policial e judicial, mediante atendimento específico e humanizado. Uma vez que as crianças e adolescentes vítimas de violência integram um grupo socialmente vulnerável e se submetem ao microssistema de proteção de vulneráveis, nos termos do art. 6.º, parágrafo único, da lei 11.431/17, deve ser assegurado também a elas o acesso aos serviços de Defensoria Pública, em sede policial e judicial. (...)". (STJ, RMS n. 70.679/MG, relatora ministra Laurita Vaz, 6ª turma, julgado 26/9/2023, DJe 7/11/2023).
Nesse cenário, o caráter "dialético" da Defensoria Pública é acentuado, pois, na atividade de representação - tais quais a dos advogados vinculados à OAB -, podem representar (por membros distintos) litigantes em vários polos da relação processual (LC 80/1994, art. 4º-A, V), tal qual vítima (LC 80/1994, art. 4º, XI e XVIII) e acusado - como também decidiu o STJ:
"(...) 4. Não existe empecilho a que a Defensoria Pública represente, concomitantemente, através de Defensores distintos, vítimas de um delito, habilitadas no feito como assistentes de acusação, e réus no mesmo processo, pois tal atuação não configura conflito de interesse, assim como não configura conflito de interesses a atuação do Ministério Público no mesmo feito como parte e custos legis, podendo oferecer opiniões divergentes sobre a mesma causa. Se assim não fosse, a alternativa restante implicaria reconhecer que caberia à Defensoria Pública escolher entre vítimas e réus num mesmo processo (...). Em tal situação, o resultado seria sempre o de vedação do acesso à Justiça a alguns (...)". (STJ, RMS n. 45.793/SC, relator ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª turma, julgado 7/6/2018, DJe 15/6/2018).
Portanto, com fundamento normativo vigente, é o momento histórico de emancipar a vítima de "falas" institucionais, garantindo-lhe posição processual autônoma através de representante judicial {advogado(a) ou defensor(a) público(a)} ética e tecnicamente voltado somente aos interesses da vítima. Reconheça-se o óbvio: não é preciso um "falar institucional" substitutivo da vítima, pois a vítima tem voz própria.
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1 STJ, HC n. 936.179/SC, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, 6ª Turma, julgado 11/3/2025, DJEN 19/3/2025.
2 AURAS, Anne Teive. NASCIMENTO, Flávia. O papel da Defensoria Pública na Assistência às mulheres em situação de violência doméstica e familiar: entre avanços e incompreensões. In: ETIENNE, Adolfo. CASAS MAIA, Maurilio. (Org.) Defensoria Pública e a defesa constitucional de Grupos Sociais Vulneráveis. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2024, p. 137, g.n..
3 Enunciado n. 50: "Deve ser respeitada a vontade da mulher em situação de violência de não se expressar durante seu depoimento em juízo, após devidamente informada dos seus direitos" (XVI FONAVID, São Paulo/SP).
4 Para acessar comentários ao julgado: CASAS MAIA, Maurilio. A Defensoria Pública enquanto Custos Vulnerabilis (DPCV) e Defensor Público Integral da Criança (DPIC): cooperação interinstitucional em tempos de pandemia (ou não) - primeiras reflexões. In: SENA, Thandra. (Coord.). Temas atuais de Direito da Criança e do Adolescente. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2021, p. 160-178.
5 Sobre o tema: Zaneti Jr., Hermes. Casas Maia, Maurilio. Microssistema Processual de Proteção dos Vulneráveis e as lentes do Ministério Público e da Defensoria Pública. São Paulo: Tirant, 2025.