Plano de saúde falso coletivo: Riscos de reajuste abusivo e rescisão
Estudo da prática dos "falsos coletivos" nos planos de saúde e seus impactos jurídicos: revisão de reajustes e garantia de estabilidade contratual.
quarta-feira, 25 de junho de 2025
Atualizado às 10:26
Por trás da promessa de mensalidades mais acessíveis e contratações facilitadas, esconde-se uma arquitetura contratual que, com frequência, resulta reajustes abusivos, risco de cancelamento unilateral e enorme instabilidade para o consumidor.
Milhares de famílias descobrem, talvez tarde demais, que aquele "plano coletivo" oferecido como solução acessível expõe o contratante a custos imprevisíveis e a uma enorme instabilidade jurídica.
Recentemente atendemos um caso no escritório que o consumidor, um idoso em tratamento médico contínuo, viu sua mensalidade sofrer reajustes sucessivos superiores a 25% ao ano, justamente por estar vinculado a um contrato coletivo empresarial sem as garantias dos planos individuais.
O valor da sua mensalidade, ao longe dos anos, alcançou o valor de estratosférico de 26 mil reais.
Casos como esse ilustram com clareza como a arquitetura contratual dos planos coletivos, quando utilizados para atender consumidores hipervulneráveis (idosos, portadores de doenças graves ou crônicas), pode resultar em prejuízos financeiros severos e risco direto à continuidade da assistência médica.
Neste artigo, compartilho uma análise crítica sobre o tema, a partir da experiência de mais de anos atuando na defesa dos usuários de planos de saúde, acompanhando de perto os impactos concretos que essas práticas trazem à vida e à segurança financeira de tantas famílias brasileiras.
Como funciona a armadilha dos planos coletivos para pessoas físicas
A oferta de planos coletivos a pessoas físicas tornou-se comum como resposta de mercado a uma realidade: a crescente restrição à oferta de planos individuais.
Por força da regulamentação da ANS, os planos individuais possuem:
- Reajustes limitados (percentual máximo fixado anualmente pela ANS);
- Proteção contra cancelamento imotivado;
- Maior estabilidade jurídica para o consumidor.
Já os planos coletivos, por sua vez, são regidos por uma lógica empresarial: foram concebidos para atender empresas que contratam em benefício de seus empregados ou associações legítimas.
Ocorre que, na prática, diversos agentes do mercado passaram a "fabricar" associações ou empresas de fachada (MEIs, pequenas empresas fictícias ou grupos associativos genéricos) para viabilizar a venda de contratos coletivos a qualquer consumidor.
Esse desvio de finalidade, longe de ser inofensivo, gera efeitos jurídicos e financeiros importantes para o consumidor.
O que é um plano de saúde falso coletivo?
Os planos de saúde no Brasil podem ser individuais/familiares ou coletivos (empresariais ou por adesão). Os planos individuais possuem regras mais rígidas de reajuste e não podem ser cancelados unilateralmente pelas operadoras, enquanto os planos coletivos têm menos proteção ao consumidor.
Um plano de saúde falso coletivo é aquele que, embora formalmente registrado como coletivo (empresarial ou por adesão), na realidade, é contratado por indivíduos sem vínculo legítimo com a pessoa jurídica estipulante.
Essa prática é utilizada por operadoras para escapar das regulamentações mais rígidas aplicáveis aos planos individuais, especialmente no que tange aos reajustes de mensalidades e regras de cancelamento.
Isso ocorre quando:
- consumidor contrata um plano "empresarial", por meio de um CNPJ, mas ele insere apenas membros da família;
- um CNPJ é criado apenas para viabilizar a contratação do plano (muitas vezes sem atividade econômica real);
- consumidor é incluído em uma "associação de fachada" sem vínculo legítimo;
Na prática, o consumidor acredita estar contratando um plano mais barato e vantajoso, mas descobre que está desprotegido e sujeito a aumentos arbitrários e cancelamentos surpresa.
Por que o consumidor sai prejudicado?
A resposta está no que acontece depois da contratação - geralmente no primeiro ou segundo ciclo de reajuste.
- Reajustes abusivos
Como os reajustes dos planos coletivos não estão limitados aos índices da ANS, as operadoras negociam com as administradoras e impõem percentuais muito superiores ao esperado - por vezes superiores a 50% em um único ano.
São comuns casos em que o consumidor, atraído por uma mensalidade inicial competitiva, vê seu plano tornar-se impagável em dois ou três anos.
- Risco de cancelamento
Outro risco significativo é o cancelamento unilateral do contrato, o que não pode ocorrer nos planos individuais, salvo hipóteses expressamente previstas em lei (inadimplência ou fraude).
Nos planos coletivos, a operadora pode rescindir o contrato por "conveniência comercial", deixando o consumidor - muitas vezes em meio a tratamentos contínuos - sem assistência.
- Impactos financeiros e jurídicos
Na prática, vemos clientes com histórico de longa fidelidade ao plano de saúde, que são surpreendidos por:
- Aumentos desproporcionais da mensalidade;
- Cancelamento inesperado do contrato;
- Falta de clareza nas condições contratuais originais;
- Dificuldade de migração para outro plano em função da idade ou de doenças preexistentes.
Jurisprudência em evolução: Um alento para os consumidores
O Judiciário tem respondido a essas demandas com crescente sensibilidade, reconhecendo que o consumidor inserido artificialmente em um plano coletivo sem real poder de negociação e sem vínculo legítimo deve ser protegido.
Em precedentes recentes, o STJ e diversos tribunais de justiça têm admitido:
- A revisão judicial de reajustes abusivos em planos coletivos;
- A correta equiparação do plano falso coletivo aos planos individuais;
- A invalidação de cláusulas de rescisão unilateral imotivada;
- A aplicação dos princípios da boa-fé objetiva, da função social do contrato e da vulnerabilidade do consumidor nos contratos de saúde suplementar.
Isso porque, comprovadas tais evidências, a resolução normativa da ANS 557, de 14 de dezembro de 2022, estabelece que serão equiparados a individuais para todos os eventos:
Art. 39. O ingresso de novos beneficiários que não atendam aos requisitos de elegibilidade previstos nos arts. 5º e 15 desta resolução constituirá vínculo direto e individual com a operadora, equiparando-se para todos os efeitos legais ao plano individual ou familiar.
Corroborando ao entendimento esposado, o enunciado 35 da 1a Jornada de Direito de Saúde do Conselho Nacional de Justiça dispõe que:
Nos planos coletivos, contratados a partir da vigência da resolução normativa 195/09 da ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar, em que não for comprovado o vínculo entre o consumidor e a pessoa jurídica contratante na forma da regulamentação da ANS, o tipo de contratação do consumidor cujo vínculo não for comprovado, deve ser considerado individual para efeitos de rescisão e reajuste, não se aplicando aos planos das empresas e entidades de autogestão.
Um dos julgados paradigmáticos do STJ nesse contexto é a da relatora ministra Nancy Andrighi, que reafirma que a natureza do contrato - ainda que formalmente coletivo - não impede a incidência das normas de proteção do consumidor, especialmente diante da hipossuficiência técnica e econômica do contratante.
Além disso, decisões recentes dos Tribunais de Justiça do DF, de SP e do RJ reforçam essa linha protetiva, considerando ilegítima a prática de aumentos desproporcionais e rescisões oportunistas:
TJ/SP - Apelação Cível: 10300983520238260554: O contrato firmado pelas partes, na modalidade coletiva empresarial, desde à época em foi contratado (10/8/2022), tem como beneficiários apenas duas pessoas. É certo que o aumento das mensalidades dos planos de saúde e seguros saúde coletivos empresariais, como no caso, independe de autorização da ANS e não se submetem aos percentuais por ela divulgados e autorizados, podendo seguir o aumento da sinistralidade verificado dentro do grupo de beneficiários. No caso em tela, contudo, como já exposto, os elementos de convicção existentes apontam no sentido de que o contrato coletivo de plano empresarial celebrado entre as partes trata-se, na realidade, de um "falso coletivo", uma vez que foi celebrado em benefício de apenas duas pessoas, todos integrantes da mesma família (esposo e esposa), devendo assim receber o tratamento análogo ao dos planos de saúde individuais. Aplicação dos índices de reajustes anuais autorizados pela ANS para os planos individuais/familiares. Como consequência, deve ser considerada nula a cláusula contratual que autoriza o reajuste anual por sinistralidade e VCMH, prevista no contrato, bem como nulo o reajuste anual de 23%, aplicado pela ré na mensalidade, em julho de 2023, devendo ser substituido pelo índice de reajuste autorizado pela ANS para os planos e seguros saúde individuais e familiares.
TJ/DF 0713597-60.2023 .8.07.0020 1834563: A resolução normativa da ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar 195/09 dispõe que cabe às administradoras e operadoras do plano de saúde verificar e comprovar a legitimidade da pessoa jurídica de caráter profissional, classista ou setorial contratante, bem como a condição de elegibilidade do beneficiário, sob pena de constituir vínculo direto com a operadora, equiparando-se para todos os efeitos legais ao plano individual ou familiar . 2.1. Na hipótese em análise, o conjunto probatório aponta a caracterização do plano de saúde como falso coletivo, afastando a incidência dos percentuais de reajuste anuais aplicados aos planos coletivos, devendo ser observado os índices de reajustes da ANS para os planos individuais.
O papel da advocacia especializada
Na atuação como advogada da área da saúde há mais de duas décadas, constato que a informação ao consumidor e a atuação jurídica preventiva são ferramentas essenciais para enfrentar essa prática.
Antes mesmo de judicializar, um passo importante é a análise detalhada do contrato - pois muitos consumidores sequer sabem que foram inseridos em um "coletivo por adesão" sem as proteções de um contrato individual.
Além disso, a construção probatória adequada (prova documental, evolução dos reajustes, demonstração da hipervulnerabilidade) é decisiva para o sucesso da demanda revisional ou da ação preventiva contra cancelamento.
Conclusão
Diante do atual cenário, é fundamental que o consumidor saiba: nem todo plano de saúde "coletivo" é, de fato, um bom negócio - e muitas vezes, o que parecia vantajoso na contratação se torna uma fonte de prejuízo e insegurança.
A prática dos "falsos coletivos" é chamada de armadilha por motivos claros: parece acessível, mas esconde custos elevados e falta de segurança.
Com decisões recentes e crescente atenção dos tribunais o consumidor que estiver nessa situação tem meios reais de reversão - desde o ajuste dos índices abusivos até a garantia de continuidade da cobertura.


