As múltiplas faces da liminar
A liminar é um reflexo das tensões inerentes ao tempo do processo. Quais as suas faces e como interpretá-las de forma integrada e eficiente?
quarta-feira, 25 de junho de 2025
Atualizado às 15:30
A palavra liminar tem raízes profundas na cultura romana. Limentino e Limentina, na Roma politeísta, eram deuses encarregados de proteger o limen, a soleira da porta de entrada das casas, que marcava a transição entre o espaço sagrado do lar e o mundo profano.
Os romanos cristãos também chamavam o túmulo de limen, representando o limiar entre a vida terrena e a vida eterna. Por isso, na Igreja católica se tem a prática da visita ad limina apostolorum ou apenas ad limina: os Bispos visitam o Papa, sucessor de São Pedro, e os túmulos dos Apóstolos São Pedro e São Paulo.
Essa noção de limiar é essencial para entender o papel da liminar no Direito, já que ela representa uma decisão proferida em um momento crítico do processo, na fronteira do contraditório.
Tecnicamente a palavra liminar deve ser usada apenas para as decisões provisórias proferidas de de plano, sem a oitiva da outra parte (inaudita altera parte).
Na prática é comum, embora errado, se falar em liminar também no decorrer do processo, após a oitiva da outra parte.
Toda liminar é uma tutela provisória, ou seja, uma tutela não definitiva - para alguns, a tutela cautelar é temporária, e não provisória - fundada em cognição sumária, vale dizer, num conhecimento menos aprofundado do juiz. Por exemplo, a liminar em mandado de segurança para suspender uma licitação na qual a empresa foi indevidamente excluída é uma tutela cautelar (conservativa). Mas se o objetivo da liminar for reintegrar a empresa ao processo licitatório, essa mesma liminar assume a natureza de tutela antecipada (satisfativa). Já nas ações possessórias de força nova, a liminar é uma tutela de evidência, dispensando a análise do periculum in mora, conforme estipulado no art. 558 do CPC.
Observe que nem toda liminar é rotulada de tutela provisória ou mesmo de liminar. Por exemplo: os alimentos provisórios concedidos de plano, a expedição do mandado monitório (art. 701 do CPC) e a atribuição imediata de efeito suspensivo aos embargos à execução são tutelas provisórias liminares.
A relevância dessa afirmação nem sempre é percebida.
Pense que a parte agrave contra a decisão que indeferiu alimentos provisórios. Nesse caso, a sustentação oral deve ser admitida, em razão do disposto no inciso VIII do art. 937 do CPC, que viabiliza a sustentação oral "no agravo de instrumento interposto contra decisões interlocutórias que versem sobre tutelas provisórias de urgência ou da evidência."
Imagine agora que o juiz determine a expedição do mandado monitório, porque considera que o direito do autor da ação monitória é evidente (tutela da evidência). Se a parte contrária embargar e os embargos monitórios forem rejeitados, a apelação, ao contrário do que pensam alguns, deve ser recebida sem efeito suspensivo, porque é interposta contra sentença que confirma uma tutela provisória (inciso V do § 1º do art. 1.012 do CPC).
Por outro lado, pense que o juiz tenha indeferido o pedido de efeito suspensivo nos embargos à execução. Nesse caso, caberá agravo de instrumento com fundamento no inciso I do art. 1.015 do CPC, ainda que o inciso X do mesmo artigo se refira apenas à concessão, à modificação ou à revogação do efeito suspensivo, para o cabimento do agravo de instrumento.
Vale destacar que nada impede a aplicação supletiva da disciplina geral da tutela provisória prevista no CPC às leis extravagantes que preveem liminares. Por exemplo, é perfeitamente admissível requerer a tutela de evidência do art. 311 do CPC em mandado de segurança.
É também importante dizer que a tutela de urgência sempre pode ser concedida liminarmente. Posterga-se o contraditório para que se tenha o direito fundamental à jurisdição efetiva, protegendo a parte do risco iminente do dano ou do processo se tornar eficaz.
Já a tutela de evidência pode ser concedida liminarmente - sem a oitiva da outra parte - nas hipóteses dos incisos II e III do art. 311 do CPC (pedido lastreado em prova pré-constituída e súmula ou precedente vinculante e pedido de devolução do bem na ação de depósito fundado em prova documental do contrato), mas não pode ser concedida liminarmente - sem a oitiva da outra parte - nas hipóteses dos incisos I e IV do art. 311 do CPC (pedido fundado em abuso do direito de defesa ou manifesto propósito protelatório, ou pedido lastreado em prova pré-constituída, a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável).
Penso, no entanto, que a concessão liminar de tutela de evidência não parece adequada ao modelo constitucional de contraditório substancial abraçado pelo CPC, que pode ser resumido pelo binômio influência e não surpresa. Aqui não se exige a urgência para a concessão, diferentemente da tutela cautelar e da tutela antecipada, portanto o contraditório prévio não é impeditivo à jurisdição efetiva.
A propósito, pode o juiz conceder liminar de ofício?
Penso que não, exceto quando a lei expressamente autorizar (v.g., art. 4° da lei 10.259/01 e art. 3° da lei 12.153/09). A concessão ex officio da liminar não é compatível com o dever de imparcialidade do magistrado. Além disso, pode a parte não desejar obter uma decisão provisória.
A liminar - como tutela provisória que é - normalmente é concedida, revogada, modificada ou indeferida por decisão interlocutória agravável (inciso I do art. 1.015 do CPC), mas vale lembrar que o juiz pode também conceder, revogar, modificar ou indeferir a tutela provisória na sentença. Neste caso, o recurso cabível será unicamente o de apelação, sendo aplicável aqui o princípio da singularidade recursal (§ 5º do art. 1.013 do CPC).
Observe, porém, que o agravo de instrumento - e a apelação, quando for o caso - será cabível sempre que a decisão interlocutória "versar sobre" (caput e inciso I do art. 1.015 do CPC) a tutela provisória, expressão mais abrangente que simplesmente conceder, revogar, modificar ou indeferir a tutela provisória.
Mas e se o autor requerer uma liminar e o juiz se manifestar no sentido de que decidirá a respeito depois de ouvir o réu, caberá agravo de instrumento?
Esse é um tema polêmico, mas entendo que caberá o agravo, especialmente se a tutela provisória for de urgência.
Outro ponto importante a respeito da liminar diz respeito ao seu cumprimento, que obedecerá ao disposto no art. 297 do CPC. Este dispositivo admite que o juiz utilize medidas executivas típicas (art. 297 em conjunto como o inciso IV do art. 139 e com o art. 536 do CPC) e estabelece que o cumprimento se dará, em princípio, sob o regime do cumprimento provisório de sentença (arts. 520 e 521 do CPC).
Os dispositivos que autorizam a concessão de medidas executivas atípicas são cláusulas gerais processuais, que conferem ao juiz um poder geral de efetivação. Se as medidas são atípicas é porque podem ser construídas - inclusive por indicação do advogado - de acordo com as necessidades do caso
As mútiplas faces da liminar conectam o passado ao presente e representam um microcosmo de um desafio permanente do Processo: como interpretar de maneira integrada, coerente e eficiente o ordenamento, para resolver, com prudência, sensatez, imparcialidade, e agilidade, os problemas das pessoas?