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Dolo eventual e presunção de culpa: Ecos do nazismo penal

Neste artigo, mostro como o dolo eventual sustenta presunções autoritárias e defendo sua superação por uma imputação penal fundada na vontade real e nos princípios democráticos.

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Atualizado às 10:28

A presunção é um dos instrumentos mais delicados e, ao mesmo tempo, perigosos do Direito Penal. Sua função histórica tem oscilado entre proteger garantias mínimas e ampliar, sem critério objetivo, o poder punitivo estatal. No caso do dolo eventual, essa oscilação assume contornos dramáticos. Presume-se que o agente aceitou o risco do resultado, mesmo quando não há demonstração clara de vontade. Esse raciocínio compromete não apenas o princípio da legalidade, mas toda a estrutura democrática da imputação penal.

Na obra Fundamentos de la teoría significativa de la imputación (Bosch, 2ª ed., 2025), demonstro como essa presunção de vontade se conecta a uma tradição inquisitorial e autoritária que instrumentaliza a imputação penal como mecanismo de dominação e repressão, dissociado de critérios verificáveis. O conceito de dolo eventual - embora apresentado como um "grau menor" de dolo - não se sustenta dogmaticamente. Trata-se de uma ficção jurídica que busca transformar previsibilidade em vontade, convertendo a dúvida em fundamento condenatório.

Essa operação é antiga. No século XX, o Projeto Alemão de 1927 introduziu a chamada Einwilligungstheorie, segundo a qual bastaria a consciência do risco para se concluir pela existência do dolo. Mesmo quando não houvesse interesse no resultado, se o agente "consentisse" com a sua possibilidade, o fato seria doloso. Essa perspectiva abriu caminho para imputações penais desvinculadas da vontade real do agente.

Foi no regime nacional-socialista, diga-se, nazismo, que essa teoria se consolidou como instrumento estatal de repressão. A indiferença, tomada como indício de aceitação do resultado, bastava para a configuração do dolo eventual. A fórmula passou a ser simples: prever + não evitar = punir como dolo.

Essa lógica foi incorporada em países sul-americanos, inclusive no Brasil, como já mencionei aqui na coluna. Durante o Estado Novo, o art. 18 do CP de 1940 cristalizou essa ambiguidade ao definir o crime doloso como aquele em que o agente "quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo". O uso do "ou" revela a contradição: se dolo é vontade, como se pode admitir sua existência também na ausência dela? O resultado foi a abertura de um espaço interpretativo onde a presunção substitui a prova, e o elemento volitivo cede lugar a um juízo valorativo subjetivo.

A consequência prática dessa ambiguidade é a legitimação de condenações baseadas em ficções. Casos manifestamente imprudentes, especialmente em crimes de trânsito, passaram a ser tratados como dolosos - não por evidência da vontade de causar o resultado, mas porque o risco era previsível. A previsibilidade, por si só, passou a bastar. Com isso, a imputação perdeu seu vínculo com a ação significativa e passou a se apoiar em critérios subjetivos e morais, como "o agente deveria ter evitado", ou "ele agiu com indiferença".

Esse desvio compromete a racionalidade e a legitimidade do Direito Penal. Tenho insistido nisso. O Estado, em vez de demonstrar a presença do dolo, presume sua existência com base em fórmulas vagas. A dúvida, que deveria absolver, transforma-se em critério condenatório. Não se leva em consideração o in dubio pro reo. O processo deixa de ser instrumento de apuração e se converte em ritual de confirmação de uma tese dogmática ultrapassada.

Autores como Romagnosi, Feuerbach, Manzini e Eichmann advertiram para os perigos da presunção no campo penal. A aceitação da imputabilidade moral com base apenas na exterioridade da conduta revela como a presunção pode ser instrumentalizada como mecanismo de poder. Quando a vontade é substituída pela expectativa do que "deveria ter sido previsto ou aceito", o que está em jogo não é apenas uma técnica de imputação, mas a própria legitimidade da sanção penal.

A Teoria Significativa da Imputação propõe a superação dessa lógica. Em vez de recorrer a presunções, reconstrói a imputação penal com base na filosofia da linguagem e na análise objetiva da conduta. O dolo não é deduzido da previsão, mas identificado na vontade manifesta de alcançar o resultado típico. Tudo aquilo que não for vontade - ainda que previsto, tolerado ou não evitado - deve ser tratado como imprudência consciente, e esta, sim, é passível de classificação normativa.

O modelo que proponho distingue claramente cinco formas de ofensa ao bem jurídico: (1) por dolo, quando há vontade de produzir o resultado; (2) por imprudência consciente gravíssima, quando o agente age aceitando o resultado previsto dado como certo; (3) por imprudência consciente grave, quando o agente age com indiferença ao resultado previsto como eventual; (4) por imprudência consciente leve, quando o agente prevê o resultado eventual, acredita sinceramente e/ou e tenta evitá-lo; e (5) por imprudência inconsciente, quando não há conhecimento e previsibilidade do resultado. Essa gradação substitui ficções como a do dolo direto de segundo grau e do dolo eventual por uma estrutura coerente com os princípios de um Estado Democrático de Direito.

A superação do dolo eventual, portanto, não é apenas uma tarefa teórica. É um dever político, ético e constitucional. Permanecer atrelado a essa figura é perpetuar uma presunção de culpabilidade incompatível com o devido processo legal. É permitir que o Estado puna com base em crenças, e não em fatos. É admitir que a imputação penal possa ocorrer sem certeza, sem vontade, sem garantias.

Enquanto isso persistir, o Direito Penal continuará operando em nome da justiça com instrumentos incompatíveis com ela. Romper com ficções como o dolo eventual é um passo essencial para reconstruir a imputação penal com fundamento técnico, constitucional e humano.

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Fundamentos de la teoría significativa de la imputación (Bosch, 2ª ed., 2025).

Sobre a estrutura do dolo e da imprudência (Juruá - 2025).

Antonio Sanches Sólon Rudá

VIP Antonio Sanches Sólon Rudá

Ph.D. student (Ciências Criminais na Fac de Dir da Universidade de Coimbra); Membro da Fundação Internacional de Ciências Penais; Advogado. Autor da Teoria Significativa da Imputação.

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